Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
REPRESENTANTE DE SOCIEDADE
GARANTIA DO CONTRADITÓRIO
Sumário
1- A condenação por litigância de má fé, tanto das partes processuais como dos seus representantes, não pode decretar-se sem a prévia audição dos visados sobre os concretos factos que a esse título lhe são imputados e as razões jurídicas que a determinam, sob pena de se cometer uma nulidade processual por inobservância do contraditório, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 3º, nº/s 2 e 3, 3º-A e 201º, n.º 1, todos do CPC. 2 – Para que essa condenação possa ocorrer em relação aos representantes de uma sociedade comercial, como estabelece o art. 458º do CPC, é necessário proceder à sua audição nos termos anteriormente descritos. 3 – Só após ter sido assegurado o contraditório da forma supra referida pode o tribunal apreciar se os factos apurados permitam a conclusão de que estes tiveram, pessoalmente, na causa, uma conduta reprovável, enquadrável normativamente na disposição do art. 456º, nº/s 1 e 2 do CPC.
Sumário do relator
Texto Integral
1. Relatório:
Nos presentes autos de execução em que é executada a sociedade FS foi proferido despacho em que esta, “na pessoa da sua representante legal”, foi condenada como litigante de má fé.
Em reacção a esta decisão surgiu então o presente recurso, que se sintetiza nas seguintes conclusões: 1. Perante o douto despacho recorrido e os seus fundamentos e diante dos fundamentos em que assenta o pedido de suspensão, ainda pelo facto de a representante legal da executada não ter sido notificada pessoalmente para sobre a questão da má fé ter sido ouvida, e perante o facto de ter de tomar conhecimento pelo signatário da decisão que como tal a condena, pois também dela não foi pessoalmente notificada, é notória e é grosseira a falta de fundamento normativo, que é a de uma norma contrária à interpretação com que o Tribunal Constitucional interpreta o artigo 458 do C. P. C. 2. E é com base nessa norma extraída do artigo 458 do C. P. C. que prescinde da audição da representante legal da executada e de a interpelar sobre uma questão concreta, em que a alegada má fé se traduz no entender do julgador "a quo" que a representante legal da executada é condenada como litigante de má fé. 3. A dissolução, nos termos em que foi decidida, e que constam da respectiva acta junta aos autos, é ocorrência de motivo justificado à suspensão, face aos termos do respectivo regime; 4. Foi com base na dissolução e no seu regime que se sustentou o pedido: 5. Em nenhum ponto do despacho se fundamenta que esse seja um motivo injustificado, antes se estribando em fundamentos marginais à causa de pedir e à pretensão. 6. Foi, portanto, notoriamente, violado o artigo 279º n.º 1, segunda parte, para além do artigo 156º n.º 1, 158º, 668º n.º 1 alínea b) e d) do CPC uma vez que não afronta os fundamentos do pedido de suspensão. 7. E aplicada norma inconstitucional: a do artigo 458º do CPC interpretado nos termos que justificaram indevidamente a condenação da representante legal da sociedade, quando devia ser interpretado em termos de condenar ou absolver, mas depois de ouvir a sua representante legal, ela própria, ainda que constituindo advogado, numa interpretação conforme com a Constituição e se decidiu no Acórdão 103/93 do Tribunal Constitucional (DR., II, de 17/06/95. página 6674. 8. Acrescendo que nenhuma má fé ocorreu conforme se explica no corpo das alegações. 9. É aliás mercê de uma ostensiva falta de pronúncia no processo apenso de recurso da decisão de apoio judiciário - enquanto no presente, de que aquele depende, por a este estar apenso, se decidiu que andasse urgente - que o julgador "a quo" se estriba para exigir o pagamento da taxa de justiça quando a sociedade, sem poder pagá-la como está à vista, pretende exercer o seu direito de defesa. 10. E por outro lado a Segurança Social, que é Ré no processo a correr no Juízo de Grande Instância Cível, onde igual pedido de apoio foi formulado, e onde se decidiu que estava obrigada a ouvir a requerente do pedido, decidiu, aqui neste processo também, negar à executada o direito a apoio judiciário, sem a ouvir, como está legal e expressamente obrigada pela norma do artigo 23º do regime respectivo, e em sentido contrário ao que decidira em relação a outra sociedade em dissolução, na área de Lisboa. 11. Tudo isto num contexto em que estimulado, apesar de tudo isto, a pedir a condenação da executada como litigante de má fé, o ilustre representante do Ministério Público, que não se opusera à suspensão, como resulta dos factos alinhados acima, sob os n.ºs 2 e 3, não o fez. 12. Concedendo provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, farão V. Exas., salvo melhor opinião, inteira justiça.
O Ministério Público respondeu, sustentando a decisão impugnada, por entender verificada a má fé processual da executada e esta ter sido previamente notificada para se pronunciar sobre a sua eventual condenação.
O recurso foi admitido, correctamente, como de agravo, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo.
*
Estabelece o art. 705º do CPC que “Quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia.”
Ficaram assim previstas pelo legislador situações em que não se justifica a intervenção da conferência, atenta a simplicidade da questão a decidir, nomeadamente por essa questão já estar suficientemente esclarecida pela jurisprudência existente ou por o que vem pedido no recurso se apresentar manifestamente infundado.
Por outras palavras: a lei processual pretende que nas situações em que surja como claro e pacífico que o recurso não pode proceder, ou a decisão se apresente notoriamente simples, seja isso dito pelo relator em decisão sumária, sem as delongas que implicaria a intervenção do colectivo no tribunal superior.
Afigura-se que é essa a situação do presente recurso, atentos os factos e argumentos de direito apresentados pela recorrente e vista a matéria de facto a considerar.
Entendemos que no caso é manifesto não estarem reunidas as condições para decidir a condenação proferida, contra a legal representante da sociedade executada, por ela não ter sido ouvida previamente sobre tal possibilidade, ela própria, em violação do princípio do contraditório.
Assim passaremos a demonstrar, apreciando e decidindo como se segue.
*
2. Objecto do recurso.
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, como resulta do disposto nos artºs. 684º, n.º 3 e 685º-A, nº1, ambos do Código de Processo Civil – se outra questão não se perfilar que por um lado seja de conhecimento oficioso e que por outro venha a prejudicar o conhecimento daquelas colocadas pelo recorrente
Considerando as conclusões do presente recurso, a questão a decidir resume-se à confirmação ou revogação da condenação como litigante de má fé proferida no despacho impugnado, por a legal representante da executada, atingida por essa condenação, não ter sido notificada previamente para se pronunciar sobre essa imputação.
A nosso ver, a questão está resolvida pela impossibilidade de condenação da legal representante da executada sem previamente assegurar o contraditório em relação a ela, como impõem a Constituição e a Lei, pelo que fica prejudicada a apreciação da questão de fundo, que tem a ver com a existência efectiva de má fé na conduta processual da ré.
*
3. Fundamentação.
3.1 Dos factos.
a) O despacho recorrido, depois de extensamente discorrer sobre a conduta processual da executada, para concluir pela existência de má fé no seu procedimento, concluiu da forma seguinte: (…) não nos suscitam dúvidas que a actuação da Executada é manifestamente dolosa, deduzindo pretensões cuja falta de fundamento não devia ignorar e fazendo do processo e dos meios processuais ao seu dispor um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir unicamente incumprir o acordo a que se vinculou e a sentença que homologou esse mesmo acordo, entorpecendo a acção da justiça e protelando, sem fundamento sério, o fim dos presentes autos com a penhora de bens que possa satisfazer as custas processuais e o crédito do Exequente. As consequências da condenação em litigância de má fé são a condenação em multa e a condenação em indemnização, se peticionada (cfr. número 1 do artigo 456.° do Código de Processo Civil). Quanto à condenação em multa, dispõe a alínea a) do artigo 102.° do Código das Custas Judiciais que a multa é fixada entre 2 e 100 UC.. Atenta a antiguidade dos autos, o montante da quantia exequenda e a conduta da Executada, o tribunal entende adequada a condenação desta numa multa que se fixa em 10 (dez) UC. Note-se que, sendo a Exequente uma pessoa colectiva, ao abrigo do disposto no artigo 458.° do Código de Processo Civil, a responsabilidade pela litigância de má fé recai sobre a representante legal da mesma que actua de má fé, neste caso, sobre MJF. As custas do presente incidente serão a cargo da Executada (cfr. artigo 446.° do Código de Processo Civil), com a taxa de justiça fixada em 4 (quatro) UCs. Pelo exposto: a) Condeno a Executada. na pessoa da sua representante legal MJF, por litigância de má fé numa multa que se fixa em 10 (dez) UCs: c) Condeno a Executada nas custas do incidente, com taxa de justiça fixada em 4 (quatro) UCs.
b) Anteriormente a este despacho, tinha sido ordenada a notificação da executada para se pronunciar, querendo, em 10 dias, sobre a sua eventual condenação por litigância de má fé, notificação essa que foi efectuada, na pessoa do respectivo mandatário, sem que a notificada tenha vindo aos autos pronunciar-se sobre a questão.
c) A legal representante da executada, MJF, não foi notificada para o efeito.
*
3.2. Do direito.
Como já ficou dito, tendo em conta as conclusões do recurso e os factos a considerar, a questão a decidir traduz-se na possibilidade ou impossibilidade legal de uma condenação por litigância de má fé ser proferida, nos termos do art. 458º do CPC, contra o representante legal de uma sociedade que é parte processual, sem que o contraditório seja assegurado em relação ao próprio representante legal.
Ora essa questão tem tido uma resposta uniforme, tanto quanto sabemos, na nossa jurisprudência.
Assim, temos que, por força do disposto no art. 458º do CPC, quando a parte for uma pessoa colectiva “a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa”; porém, tal como acontece quando a parte é pessoa singular e capaz, que responde ela própria pelas consequências da condenação, impõe-se assegurar o exercício do contraditório, dando a quem vai ser responsabilizado a possibilidade de previamente se pronunciar sobre essa eventualidade, rebatendo a imputação que lhe seja dirigida.
Não tendo sido respeitado esse imperativo, a condenação não pode subsistir.
É o que acontece no caso presente, o que implica que a condenação tenha que ser revogada e fiquem por isso prejudicadas as demais questões suscitadas – maxime a questão de fundo, que consiste precisamente na apreciação da conduta da executada e da sua qualificação como litigância de má fé.
Veja-se a este respeito a seguinte jurisprudência, bem explícita na afirmação enfática do ponto que nos ocupa: “I - Quando for parte na causa uma sociedade, esta pode ser condenada como litigante de má fé, apesar de a responsabilidade pelo pagamento da multa, indemnização e custas caber ao seu representante que estiver no processo. II - Por isso, e porque a actividade processual que conta é a do representante da sociedade, tal condenação não pode ter lugar sem prévia audição desse representante.”
(AC. Rel. Porto de 29-01-2002, in www.dgsi.pt) “I - A sociedade só pode ser condenada como litigante de má fé na pessoa dos seus representantes que, para tal, têm de previamente ser ouvidos. II - Só a especial natureza da representação orgânica das pessoas colectivas – que não pensam, não falam, não agem por si, mas apenas a través dos seus representantes – levou a lei a pôr a cargo do representante que esteja de má fé na causa a responsabilidade pela respectiva condenação.”
(AC. Rel. Porto de 17-01-2006, in www.dgsi.pt) “I- Litigando de má-fé uma pessoa colectiva, mais precisamente uma sociedade comercial, a responsabilidade pela multa recai sobre o legal representante que agiu de má-fé, designadamente sobre os gerentes que em representação da sociedade outorgaram a procuração ao mandatário judicial. II- Todavia, não deve ser proferida decisão condenatória dos legais representantes da sociedade, nos termos do art. 458º CPC, sem lhes ter dado a possibilidade de se pronunciarem sobre essa eventual decisão, sob pena de a mesma constituir decisão surpresa.”
(AC. Rel. Lisboa de 12-03-2009, in www.dgsi.pt) “1. No caso de litigância de má fé de sociedade comercial, a responsabilidade por multa e indemnização a tal título recai sobre o representante que esteja de má fé na causa. 2. A responsabilização do representante de sociedade comercial por litigância de má fé tem que ser precedida da sua prévia audição nos termos previstos no artigo 3º, nº 2, do Código de Processo Civil.”
(Ac. Rel. Coimbra de 10-11-2009, in www.dgsi.pt)
Ou seja, regressando ao caso dos autos, sendo a executada uma sociedade, impunha-se que o seu representante fosse chamado a deduzir as suas razões, o que não aconteceu. Na verdade, configurando-se uma situação de litigância de má fé, a condenação iria recair sobre o representante da executada, e não sobre esta, em face do que estabelece o já mencionado artigo 458º do CPC.
Tem sido esta a posição repetida do Tribunal Constitucional, de que se cita o Acórdão nº 103/95, in D. República, II Série, nº 138, de 17/06/1995, a propósito da norma do art. 458º do CPC, em que se conclui que “a condenação por litigância de má fé só deve, obviamente, ter lugar, dando-se à parte (ou, sendo o caso, ao seu representante), antes de assim ser condenada, a oportunidade de se defender, para o que tem que ser, previamente ouvida…sendo chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de uma e de outras”.
Admitindo-se, com efeito, que essa condenação possa ser oficiosa, por resultar dos factos apurados na discussão da causa, ela não poderá ocorrer, no entanto, sem que primeiramente seja notificado o visado dos factos que lhe são imputados e da susceptibilidade de, com base neles, poder vir a ser condenado a esse título, a fim de lhe permitir a defesa no prazo que lhe for concedido.
Como referia Alberto dos Reis, “quando seja parte um incapaz ou uma pessoa colectiva, a actividade processual que conta é a do respectivo representante. É este que age em nome do representado; se no exercício da acção ou da defesa puder descobrir-se dolo substancial ou instrumental, há-de imputar-se ao representante, e não ao próprio incapaz ou à pessoa colectiva” (CPC anotado, II vol., pág. 271).
Tal significa que, tendo sido decidido, expressamente, que “a responsabilidade pela litigância de má fé recai sobre a representante legal da mesma que actua de má fé, neste caso, sobre Maria José da Conceição José Fachadas”, sem que tenha sido ouvida a representante da executada, de modo a assegurar o contraditório, não pode sequer nesta sede conhecer-se da alegada má fé. 4. Decisão:
Face ao exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto e revogar a decisão recorrida, ficando sem efeito a condenação como litigante de má fé proferida no despacho de 16 de Novembro de 2011.
Notifique.
Évora, 2012-02-07
JOSÉ LÚCIO