CONCURSO DE INFRACÇÕES
Sumário

Não há uma mera relação de concurso aparente entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário do art. 291 do Cod. Penal e o crime de ofensa à integridade física de terceiro cometido no decurso daquela condução.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

No Processo Comum Singular n.º nº457/06.6GTVCT, do 2º Juízo Criminal de Viana do Castelo, por sentença datada de 23/10/08, foi o arguido A... BARRETO condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artº148º, nºs1 e 3 do C.P., na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

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Inconformado, interpôs recurso da sentença, concluindo a sua motivação com conclusões das quais resulta ser a questão a decidir saber se se verifica excepção do caso julgado e consequente violação do princípio ne bis in idem.

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Admitido o recurso a ele responderam o MºPº e os assistente, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.

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O Exmo Procurador Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer no qual conclui que o recurso não merece provimento.

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Foi cumprido o disposto no artº417º, nº2 do C.P.P..

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir:
Questão única:
Defende o arguido que foi acusado no Processo nº340/06.5GTVCT, do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Viana do Castelo, pelos mesmos factos constantes destes autos, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artºs291º, nºa1 e 2 e 69º, nº1, al.a) do C.P. e tendo sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime p. e p. pelos artºs292º e 69º, ambos do C.P., se verifica a excepção do caso julgado.

Primordial à solução da questão suscitada pelo arguido é saber se o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artº291º do C.P., de que foi acusado naquele processo nº340/06, é consumido pelo crime de ofensa à integridade física de terceiro, pelo qual foi condenado nestes autos.
Vejamos:
O crime pelo qual o arguido foi acusado no referido processo nº340/06 é um crime de perigo concreto Cfr. Paula Ribeiro de Faria – Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo II, pág-1083, ou seja, não é preciso que haja um dano efectivo do bem jurídico que se pretende proteger através da incriminação. Basta o perigo de lesão concretizado numa certa pessoa Cfr. Teresa Pizarro Beleza – Direito Penal – 2º Vol., pág.117 e 119 e Germano Marques da Silva – Direito Penal Português – Parte Geral – II – Teoria do Crime, pág.30. . Como diz Hans-Heinrich Jescheck Tratado de Derecho Penal – Parte General – 4ª Ed., pág.238. nos delitos de perigo basta, como resultado da acção, o risco de lesão.
O crime de ofensa à integridade física é um crime de dano, ou seja, pressupõe que tenha havido uma lesão efectiva da integridade física de alguém.
Ambos são crimes de resultado ou crimes materiais, isto é, pressupõem a verificação de um certo resultado para a sua consumação Cfr. Germano Marques da Silva, obra citada, pág.29/30 e Teresa Beleza, obra citada, pág.116/117 e ainda o primeiro – Crimes Rodoviários, pág.14 e nota 7..
Ora, do facto de a conduta do agente integrar a prática de um crime de resultado e de um crime de perigo não tem, só por si, como consequência necessária, que aquele consuma este.
O artº30º nº1 do Cód. Penal dispõe:
O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Assim, para fazer a distinção entre unidade e pluralidade de infracções é perfilhado o critério teleológico – atende-se ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime.
Mas para existir concurso efectivo, e embora a lei o não diga expressamente, não basta que a conduta do agente tenha violado vários tipos, é necessário determinar também se lhe pode ou não ser feita uma pluralidade de juízos de censura, determinada pela pluralidade de resoluções Cfr. Maia Gonçalves – Cód. Penal Português – Anotado e Comentado – 15ª Ed., págs.142/143..
Ensina Eduardo Correia Unidade e Pluralidade de Infracções, pág.20 – Almedina 1983. ensina: “o apuramento da existência do chamado concurso ideal só é possível depois de previamente se estudarem e tomarem em conta as especiais relações de subordinação em que se encontram os preceitos uns relativamente aos outros quanto à sua aplicabilidade, já que só elas permitem limitá-lo e opô-lo ao chamado concurso legal (aparente, impuro). Quanto àquelas relações de subordinação entre diferentes preceitos, os autores costumam falar (mas a doutrina está muito longe de ser firme a este respeito) em especialidade, subsidiaridade, consumpção e alternatividade.”
Assim, no concurso aparente a violação de vários tipos ou a violação do mesmo tipo várias vezes não é verdadeira. E para se determinar se o concurso de crimes é ou não aparente tem que se analisar, em concreto, a relação em que as diversas normas se encontram entre si.
Haverá concurso aparente de normas quando entre as normas concorrentes houver uma relação de especialidade, de subsidariedade ou de consumpção.
Verifica-se uma relação de consumpção entre normas quando os valores que uma delas visa proteger já estão protegidos pela outra, ou seja, como também ensina Eduardo Correia Direito Criminal – Vol.II, pág., entre os valores por essas normas protegidos verifica-se uma relação de mais para menos, o que só em concreto se poderá afirmar.
Segundo o Ac. do STJ de 01/10/91 BMJ 410/268, “A eficácia da consunção de normas criminais está dependente não só da circunstância de os bens jurídicos tutelados se encontrarem numa relação de mais para menos, mas também de, no caso concreto, a protecção visada por uma delas ficar esgotada ou consumida pela outra.”
O bem jurídico constitui a base da estrutura e da interpretação dos tipos e tem de entender-se como um valor abstracto e juridicamente protegido da ordem social, em cuja manutenção a comunidade tem interesse e que pode atribuir-se, como titular, a pessoa individual ou a colectividade. Cfr. Hans-Heinrich Jescheck, obra citada, pág.231/232
O bem jurídico é ainda o critério decisivo da classificação e agrupamento dos tipos (p.ex. crimes contra as pessoas, crimes contra o património, crimes contra a vida em sociedade, etc.).
Transpondo para o caso dos autos:
Quanto ao bem ou bens jurídicos protegidos por cada uma das normas, a norma do artº148º protege “a integridade física da pessoa viva contra ataques negligentes” Paula Ribeiro de Faria, obra citada, Vol.I, pág.260. , enquanto que a do artº291º tem um âmbito de protecção mais alargado - protege essencialmente a segurança do tráfego rodoviário e só reflexamente o direito à vida e à integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Não se pode, por conseguinte, considerar que ambas protejam o mesmo bem jurídico. Por isso, estamos perante um concurso real de crimes.
O crime de condução perigosa de veículo rodoviário consuma-se no momento em que o agente, na via pública, conduz um veículo em violação grosseira das regras de circulação rodoviária e cria perigo:
a) para a vida ou integridade física de outrem;
b) para bens patrimoniais alheios de valor elevado
O crime de ofensas corporais consuma-se quando o agente ofende o corpo ou a saúde de outrem.
Por conseguinte, no crime de condução perigosa de veículos não é necessária a consumação da ofensa. Basta a criação do perigo. Note-se, aliás, que a condução nos termos descritos no artº291º é apenas um dos meios possíveis para a ofensa à integridade física.
Por isso, verifica-se a negação autónoma dos diversos valores jurídicos protegidos pelas duas normas.
Segundo Paula Ribeiro de Faria Obra citada, Vol.II, pág.1079/1080.: “Com esta disposição pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar assustadoramente no nosso país nos últimos anos, punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.”
Ensina Eduardo Correia Direito Criminal – Vol.II, pág.206, nota 2 da pág. Anterior. que não se verifica consumpção entre as disposições que punem o pôr-se em perigo a lesão de bens jurídicos por aquelas que punem a sua lesão efectiva.
Por outro lado e em favor da tese de que se não verifica consumpção, acresce que o crime de ofensa à integridade física por negligência se encontra inserido no Livro II, Título I, Capítulo III, nos crimes contra as pessoas, enquanto que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário está inserido no Livro II, Título IV, Capítulo IV, nos crimes contra a vida em sociedade.
Assim, dado concluir-se não ser o mesmo o bem jurídico protegido por cada uma das normas analisadas, é manifesta a inverificação da excepção do caso julgado suscitada pelo recorrente.

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DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão, julga-se improcedente o recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se em 6 Ucs a taxa de justiça.

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Guimarães, 27/04/09