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ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ÓRGÃO OU REPRESENTANTE DO ENTE COLECTIVO
Sumário
1. A possibilidade de entrega à segurança social dos descontos efetuados não é elemento constitutivo do crime p. e p. pelo art. 107.º do RGIT, do mesmo modo que a impossibilidade de pagamento da prestação tributária não é causa de justificação ou de exclusão da culpa. Tem-se entendido que mesmo utilizando as quantias descontadas e não entregues para o pagamento de salários, fornecedores, etc., o abuso de confiança contra a segurança social verifica-se de igual modo, porquanto essas vias constituem modos de o agente se apropriar e dispor dos valores em dívida para outros fins como coisa sua.
2. É materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a norma constante do n.º7 do art. 8.º do RGIT ao consagrar a responsabilidade solidária do órgão ou representante do ente coletivo que colabore dolosamente na prática de crime tributário, dando lugar à sua condenação pela autoria do crime respetivo, cumulativamente com o ente coletivo em nome e no interesse de quem agiu.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
1. Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular com o número em epígrafe que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Estremoz, o MP acusou D.., Lda, sociedade comercial por quotas,... com sede ...em Estremoz; e JE, divorciado, gerente comercial,...,, residente em Estremoz, tendo-lhes imputado a prática – em coautoria e na forma consumada e continuada – de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 7.º, 16.º, 107.º e 105.º n.º 5 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), na redação introduzida pela Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro e pelo artigo 30.º n.º 2 do Código Penal.
2. Na sequência daquela acusação, O Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Segurança Social de Évora deduziu pedido de indemnização civil contra os demandados D., Lda. e JE, peticionando que os mesmos sejam condenados a pagar-lhe a quantia global de €30.489,30 (trinta mil, quatrocentos e oitenta e nove euros e trinta cêntimos) acrescida de juros de mora até integral e efetivo pagamento, bem como todas as custas que despendeu no âmbito do presente processo e respetiva procuradoria, correspondente à soma das quais que descontaram nos salários pagos aos trabalhadores e gerentes da sociedade por contribuições devidas à Segurança Social, utilizando-os em benefício e no interesse da mesma sociedade.
3. – Após Audiência de Discussão e Julgamento, o tribunal a quo decidiu:
- Condenar a arguida D..., Lda, como co-autora material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto e punido nos artigos 7.º, 16.º, 107.º e 105.º n.º 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) e pelo artigo 30.º n.º 2 do Código Penal, numa pena de 720 (setecentos e vinte) dias de multa à taxa diária de €10,00 (dez euros), o que perfaz a quantia de €7.200,00 (sete mil e duzentos euros);
- Condenar o arguido JE, como co-autor material, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.° n.°s 1, 4 e 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho), por referência ao disposto no artigo 6.º n.º 1 daquele diploma, numa pena de 360 (trezentos e sessenta) dias de multa à taxa diária de €8,50 (oito euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de €3.060,00 (três mil e sessenta euros);
- Declarar os arguidos solidariamente responsáveis pelas multas a que foram, respectivamente, condenados nos termos do disposto no artigo 8.º n.º 7 do RGIT.
- Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Segurança Social de Évora e, consequentemente:
a) Condenar os demandados D....., Lda e JE a pagar, solidariamente, à Demandante a quantia de €27.716,65 (vinte e sete mil, setecentos e dezasseis euros e sessenta e cinco cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal de 1% ao mês, até integral e efectivo pagamento;
b) Condenar a demandada D....,Lda a pagar à Demandante a quantia de €2.772,65 (dois mil, setecentos e setenta euros e sessenta e cinco cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa legal de 1% ao mês, até integral e efectivo pagamento;
- Julgar parcialmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido relativamente ao demandado JE quanto ao mais.
- Condenar os demandantes e demandados no pagamento das custas cíveis, na proporção do respectivo decaimento.
4. Daquela sentença condenatória veio o arguido, JE, interpor o presente recurso, extraindo da respetiva Motivação as seguintes
« CONCLUSÕES
1. Não tendo o arguido JE agido de forma dolosa, isto é, não tendo agido com uma intenção deliberada da não entrega das cotizações dos trabalhadores, não se mostra preenchido um dos requisitos do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
2. Não existe intenção deliberada da não entrega quando o motivo desta é a total falta de meios provenientes da insuficiência de tesouraria e a penhora de créditos sobre os respectivos clientes.
3. Nunca tendo o recorrente disposto dos valores relativos às cotizações para a Segurança Social, uma vez que nunca existiram tais montantes nem se verifica a possibilidade de utilização dos respectivos valores contabilísticos para outro fim, não existe apropriação.
4. Não existindo intenção, nem apropriação, não se verificam os pressupostos do abuso de confiança, pelo que a sentença recorrida faz incorrecta aplicação do disposto no artigo 105º do R.G.I.T..
5. Também se faz incorrecta aplicação do artigo 105º do R.G.I.T. ao aplicar-se o mesmo a cotizações para a Segurança Social, quando no respectivo âmbito de protecção normativa apenas cabem situações relativas à administração tributária e existe preceito próprio - o 107º do mesmo diploma legal- para o abuso de confiança contra a segurança social.
6. Sem conceder, não se verificando quaisquer necessidades de prevenção especial, nem reincidência (as condições anteriores e as situações dos presentes reportam-se ao mesmo período temporal - Março 2004/Dezembro 2009), sendo as consequências pouco graves face ao período em causa (quase seis anos) relativamente e à actual conjuntura pouco significativas e, ainda, as razões -falta de liquidez e penhoras- que estiveram na origem do incumprimento,
7. A aplicação da multa ao recorrente pelo máximo de dias previstos (360), viola as regras do disposto no artigo 71º do Código Penal, já que nas circunstâncias, e uma vez mais sem conceder, a pena não deveria ultrapassar metade do limite máximo (180 dias).
8. É inconstitucional a interpretação do nº 7 do artigo 8º do RGIT, por violação dos princípios constitucionais de culpa, igualdade e proporcionalidade que, sem outros factos dolosos para além das responsabilidades próprias pela infracção, declarou o gerente, ora arguido, responsável solidário pela multa aplicada à arguida D.
9. Tendo o Instituto da Segurança Social título executivo para cobrança dos mesmos créditos que peticiona nos autos (cotizações e respectivos juros), tal petição não deveria ter sido apreciada pois a respectiva decisão “apenas” serve para duplicar tal título.
10. Correndo já execução com o mesmo fim, a decisão em causa consubstancia um caso de litisprudência, ou mesmo de caso julgado uma vez que não foi deduzida oposição à execução, o que obsta ao conhecimento do mérito da causa nos termos dos artigos 493º e 494º do Código de Processo Civil.
11. Já existindo título executivo e não tendo o recorrente dado causa a tal pedido, não pode ser condenado nas respectivas custas.
Termos em que a sentença recorrida deverá ser revogada e proferida decisão que absolva o recorrente do crime de que foi acusado, como é de JUSTIÇA!»
5. O MP apresentou a sua resposta, concluindo pela improcedência do recurso,
6. Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
7. Notificado nos termos do art. 417º nº2 do CPP, o recorrente nada acrescentou.
8. A sentença recorrida (transcrição parcial):
« II. 1. Factos provados
Discutida a causa e produzida a prova, resultaram assentes os seguintes factos:
1. A arguida D...., Lda é uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Predial/ Comercial de Estremoz em 31 de Março de 1983.
2. A sociedade arguida tem por objecto social o comércio de peças e acessórios de automóveis e de máquinas industriais, reparações de sistema diesel e serviços por meio de veículos pronto-socorro.
3. Na Conservatória de Registo Predial/Comercial de Estremoz sob a Ap. 03/--- encontra-se inscrita a gerência da sociedade a favor do arguido JE e de JA.
4. Não obstante o arguido figurar como gerente da sociedade, a gestão dos assuntos correntes desta foi, exclusivamente, efectuada por JA até Março de 2004, tendo o arguido assumido tais funções apenas após tal data.
5. No âmbito da sua actividade, a sociedade arguida procedeu ao desconto de contribuições referentes a salários pagos aos funcionários e ao gerente no valor global de €30.489,30 (trinta mil quatrocentos e oitenta e nove euros e trinta cêntimos).
6. No valor referido no ponto anterior encontram-se incluídas as quotizações referentes ao mês de Outubro 2003, no valor de €803,41;
7. De Novembro de 2003, no valor de €691,46;
8. De Dezembro de 2003, no valor de €1.277,78;
9. De Abril de 2004, no valor de €486,08;
10. De Dezembro de 2004, no valor de €1.274,79;
11. De Fevereiro de 2005, no valor de €650,30;
12. De Março de 2005, no valor de €611,39;
13. De Abril de 2005, no valor de €633,34;
14. De Maio de 2005, no valor de €633,34;
15. De Junho de 2005, no valor de €743,07;
16. De Julho de 2005, no valor de €759,03;
17. De Agosto de 2005, no valor de €748,59;
18. De Setembro de 2005, no valor de €740,37;
19. De Outubro de 2005, no valor de €682,75;
20. De Novembro de 2005, no valor de €759,54;
21. De Dezembro de 2005, no valor de €1.266,66;
22. De Janeiro de 2006, no valor de €611,63;
23. De Fevereiro de 2006, no valor de €633,34;
24. De Março de 2006, no valor de €567,50;
25. De Abril de 2006, no valor de €567,50;
26. De Maio de 2006, no valor de €567,50;
27. De Junho de 2006, no valor de €567,50;
28. De Julho de 2006, no valor de €567,50;
29. De Agosto de 2006, no valor de €1.134,97;
30. De Setembro de 2006, no valor de €567,50;
31. De Outubro de 2006, no valor de €516,29;
32. De Novembro de 2006, no valor de €519,56;
33. De Dezembro de 2006, no valor de €519,74;
34. De Janeiro de 2007, no valor de €567,50;
35. De Fevereiro de 2007, no valor de €567,50;
36. De Março de 2007, no valor de €567,50;
37. De Abril de 2007, no valor de €507,14;
38. De Maio de 2007, no valor de €507,14;
39. De Junho de 2007, no valor de €446,79;
40. De Julho de 2007, no valor de €446,79;
41. De Agosto de 2007, no valor de €446,79;
42. De Setembro de 2007, no valor de €440,20;
43. De Outubro de 2007, no valor de €778,30;
44. De Novembro de 2007, no valor de €446,79;
45. De Dezembro de 2007, no valor de €446,79;
46. De Janeiro de 2008, no valor de €446,79;
47. De Fevereiro de 2008, no valor de €446,79;
48. De Março de 2008, no valor de €446,79;
49. De Abril de 2008, no valor de €446,79;
50. De Maio de 2008, no valor de €446,79;
51. De Junho de 2008, no valor de €446,79;
52. De Julho de 2008, no valor de €355,68;
53. De Agosto de 2008, no valor de €613,64;
54. De Setembro de 2008, no valor de €282,13; e
55. De Outubro de 2008, no valor de €288,72.
56. O arguido JE, enquanto gerente da sociedade arguida, tinha a obrigação de entregar os montantes referidos nos pontos 9) a 55) à Segurança Social, em todos aqueles meses, o que não fez. Existindo também correspondente obrigação por parte da sociedade relativamente aos montantes referidos nos pontos 6) a 9), o que esta não fez.
57. Em 25 de Fevereiro de 2009 e em 5 de Março de 2009, em cumprimento do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, foram os arguidos, respectivamente, notificados para no prazo de 30 dias procederem ao pagamento das quotizações retidas dos salários pagos e não entregues à Segurança Social.
58. Não obstante as mencionadas notificações os arguidos não procederam ao pagamento das quotizações retidas dos salários pagos e devidas à Segurança Social.
59. O arguido JE, enquanto legal representante da sociedade arguida, sabia que estava obrigado a entregar à Segurança Social as quotizações retidas dos salários pagos, ainda assim, optou por não proceder a essa entrega, integrando tal importância no património da sociedade arguida, utilizando-a como se desta fosse.
60. O arguido JE, enquanto gerente da sociedade arguida, actuou com o propósito de se apropriar dos meios monetários gerados pela retenção das quotizações sociais dos salários pagos, o que efectivamente conseguiu, obtendo desta forma uma vantagem patrimonial, que sabia ser indevida, em detrimento dos legais interesses da Segurança Social.
61. O arguido JE tinha, assim, conhecimento dos factos descritos e agiu sempre de forma livre e consciente bem sabendo serem proibidas por lei as referidas condutas.
Está também provado que:
62. À data dos factos a sociedade arguida tinha a correr contra si processos de execução fiscal relativamente a outras dívidas ao Estado.
63. No âmbito de tais processos foram penhorados créditos que a arguida detinha sobre clientes de montantes não concretamente apurados;
64. As condutas descritas nos pontos 5) a 59) resultaram das dificuldades financeiras sentidas ao nível da gestão das actividades desenvolvidas pela sociedade arguida, decorrente, nomeadamente, da falta de trabalho, do excesso de trabalhadores ao seu encargo e da falta de pagamento por parte de clientes e agravadas pelo facto de parte dos créditos que detinha sobre clientes terem sido objectos de penhoras.
65. O arguido exerce as funções de gerente comercial de uma empresa e aufere mensalmente a quantia de, pelo menos, €600,00;
66. O arguido encontra-se divorciado, vive com a mãe, que é reformada e recebe de reforma de cerca de €1.700,00;
67. O arguido tem um filho menor a quem paga uma pensão de alimentos no valor de €320,00.
68. A sociedade arguida não se encontra em laboração desde 2009, mas ainda não foi objecto de liquidação.
69. O arguido JE já foi condenado por sentença proferida em 12 de Outubro de 2004 e transitada em julgado em 27 de Outubro de 2004, pela prática em 21 de Setembro de 2003, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido condenado numa pena de 65 dias de multa, à razão diária de €5,00, perfazendo um total de €325,00 e na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses.
70. O arguido já foi condenado por sentença proferida em 26 de Abril de 2006 e transitada em julgado em 23 de Maio de 2006, pela prática em 12 de Outubro de 2004, de um crime de desobediência, tendo sido condenado numa pena de 90 dias de multa, à razão diária de €6,00, perfazendo um total de €540,00.
71. O arguido já foi condenado por sentença proferida em 9 de Abril de 2008 e transitada em julgado em 9 de Maio de 2008, pela prática em 2004, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, tendo sido condenado numa pena de 180 dias de multa, à razão diária de €8,00, perfazendo um total de €1.440,00.
72. O arguido já foi condenado por sentença proferida em 6 de Janeiro de 2011 e transitada em julgado em 7 de Fevereiro de 2011, pela prática em Setembro de 2006, de um crime de abuso de confiança fiscal, tendo sido condenado numa pena de 230 dias de multa, à razão diária de €8,50, perfazendo um total de €1.955,00.
73. A sociedade arguida D...., Lda já foi condenada por sentença proferida em 9 de Abril de 2008 e transitada em julgado em 9 de Maio de 2008, pela prática em 25 de Abril de 2003, de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, tendo sido condenada numa pena de 500 dias de multa, à razão diária de € 15,00, perfazendo um total de € 7.500,00.
74. A arguida já foi condenada por sentença proferida em 6 de Janeiro de 2011 e transitada em julgado em 7 de Fevereiro de 2011, pela prática em Setembro de 2006, de um crime de abuso de confiança fiscal, tendo sido condenada numa pena de 550 dias de multa, à razão diária de €10,00, perfazendo um total de €5.500,00.
75. O arguido confessou os factos.
II. 2. Factos não provados
Com interesse para a causa, resultaram não provados os seguintes factos:
A. Desde a data da constituição da sociedade o arguido JE assumiu a sua representação e gestão, exercendo efectivamente tais funções.
A.
II. 3. Motivação da decisão de facto
A convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, coerência do raciocínio e de atitude e sentido de responsabilidade manifestados – que, porventura, transpareçam em audiência.
No caso em apreço, a convicção do Tribunal quanto à prova da factualidade supra exposta, baseou-se no depoimento do arguido – que confessou os factos integralmente e sem reservas, excepto no que concerne ao período em que procedeu à efectiva gestão da sociedade arguida – e na prova documental junta aos autos, tendo sempre como fio condutor as regras da vida e da experiência comum.
Saliente-se, assim, que para prova da factualidade vertida nos pontos 1) a 3) o Tribunal também atendeu à certidão emitida pela Conservatória de Registo Predial/Comercial de Estremoz, junta a fls. 47/49.
Quanto ao facto a que alude o ponto 4) o Tribunal considerou o depoimento do próprio arguido JE que depôs de forma isenta, objectiva e credível e, por isso, mereceu a credibilidade do Tribunal.
Relatou, igualmente, o arguido o quadro de dificuldades financeiras da empresa em que actuou, concretizando, já existirem penhoras de créditos efectuadas no âmbito de processos de execução fiscal, que contribuíram para agravar a situação.
Os factos a que aludem os pontos 5) a 55) resultaram igualmente provados por força do extracto global da declaração de remunerações junta a fls. 91/261.
No que concerne aos factos descritos no ponto 58) o Tribunal considerou também as notificações efectuadas aos arguidos ao abrigo do citado preceito legal e juntas a fls. 10/16.
Os factos atinentes às condições pessoais e económicas dos arguidos provaram-se com base nas declarações do arguido JE. Saliente-se que o Tribunal não logrou apurar o valor concretamente auferido por parte do arguido a título de remuneração, tendo apenas dado como provado que o mesmo aufere, no mínimo, €600,00. Com efeito, pese embora o arguido tenha declarado ser apenas esse o valor por si auferido, o certo é que tal declaração não se nos afigura credível, porquanto é contrário às regras da vida e da experiência comum que alguém que aufira tal valor pague, a título de pensão de alimentos ao seu filho, €320,00 mensais.
No que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos e à certidão extraída do processo n.º 20/08.7IDEVR.
Os factos não provados resultaram de prova em sentido contrário, nos termos supram mencionados.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
III. 1. Enquadramento Jurídico-Penal dos Factos Provados
Vêm os arguidos D..., Lda e JE acusados da prática, em co-autoria e de forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto pelos artigos 7.º, 16.º, 107.º e 105.º n.º 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), na redacção introduzida pela Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro e pelo artigo 30.º n.º 2 do Código Penal.
Estabelece o artigo o 107.º do RGIT (que entretanto foi alterado pela Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro) que as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas e punidas nos n.ºs 1 e 5 do citado artigo 105.º.
Por sua vez, o artigo 105.º do referido diploma dispõe que quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. É, ainda, aplicável à situação em apreço o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º por força da remissão efectuada pelo citado artigo 107.º do RGIT. Salienta-se que este preceito sofreu alterações por força da Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro, passando apenas a ser punida a falta de entrega de prestações tributárias de valor superior a €7.500,00, mas que entendemos não ser aplicável ao caso em apreço (conforme, aliás, entendimento exarado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2010 de 14 de Julho de 2010, processo n.º 6463/07.6 TDLSB.L1-A. S1, relator: José Adriano Machado Souto de Moura, Diário da República, 1.ª série — N.º 186 — 23 de Setembro de 2010, para cujos fundamentos remetemos e que fixou jurisprudência, no sentido de que a exigência do montante mínimo de €7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do RGIT – aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de Dezembro – faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma).
A incriminação em causa visa tutelar a confiança da Segurança Social em relação a quem a lei impõe a obrigação de deduzir as quotizações dos salários dos trabalhadores, de forma a tutelar a prossecução de interesses sociais e humanos atribuídos ao Estado.
Os elementos constitutivos do tipo legal de abuso de confiança contra a Segurança Social são os seguintes:
a) a apropriação total ou parcial: a apropriação é, pois, elemento implícito do tipo de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, consistindo na não entrega, total ou parcial, da prestação devida, integrando, pois, tal valor na sua esfera patrimonial e afectando-o a fins diversos daquele a que a lei o obriga – de facto, pese embora a letra da lei não faça uma referência expressa à apropriação (ao contrário do que acontecia com o artigo 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro), ela está contida no espírito do texto, pois se o agente não entrega à Segurança Social os valores referentes às quotizações retidas dos salários aos trabalhadores e era obrigado a entregar, é porque se apropriou delas, dando-lhes assim um destino diferente daquele que lhe era imposto por lei (neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Junho de 2005, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXX, Tomo III, pág. 267 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2003, Colectânea de Jurisprudência STJ, Ano XVIII, Tomo I-2003, pág. 234);
b) de coisa móvel alheia que consiste no valor monetário correspondente à quotizações devidas e deduzidas pela entidade empregadora na remuneração dos seus trabalhadores; e
c) entregue por título não translativo da propriedade, isto é, entregue ao agente por qualquer título que não o constitua como proprietário dessa coisa, sendo certo que a posse ou detenção tem de anteceder, mesmo que seja apenas pelo mais breve momento lógico, a apropriação.
d) que o agente esteja obrigado a entregá-la ao credor Segurança Social não fazendo tal entrega – o que vale a dizer que tal infracção pressupõe a verificação de um prejuízo patrimonial para esta instituição, que deixa de receber as prestações não entregues, mas deduzidas aos trabalhadores.
Este ilícito constitui um crime de realização intencionada, na medida em que um dos seus elementos é a apropriação de coisa, consumando-se quando se dá inversão do título da posse e o agente passa a dispor da coisa animo domino. Ora, o agente apropria-se das quotizações retidas aos salários dos trabalhadores no momento em que, devendo entregá-las à Segurança Social, o não faz. A apropriação pode, assim, traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações deduzidas ou retidas com obrigação de as entregar ao credor. O certo é que o ilícito se consubstancia na utilização desses valores para fim diverso, seja ele qual for.
Refira-se que o crime em análise se consuma com o vencimento do prazo legal de entrega da prestação tributária. Com efeito, estabelece o artigo 5.º n.º 2 do RGIT que as infracções tributárias omissivas se consideram praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.
O tipo subjectivo deste ilícito criminal pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal, prescindindo o actual regime da intenção de obtenção de vantagem patrimonial indevida ou de apropriação, reduzindo o núcleo da infracção ao denominador comum da não entrega.
Nestes termos, e atento ao que se deixa exposto, preenche o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, aquele que dolosamente não entrega a prestação retida ou recebida na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários, estruturando-se o tipo num comportamento omissivo – a não entrega dentro do prazo legal – e integrando-se na categoria dos crimes de omissão pura ou própria.
Por força do disposto no n.º 4 do citado preceito os factos só serão, porém, punidos se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. Por outro lado, se o valor da prestação em dívida não exceder €2.000,00 a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros e respectivo valor mínimo da coima aplicável por falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após notificação para o efeito pela administração tributária.
Saliente-se que por força da alteração introduzida ao RGIT pela Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro o n.º 4 passou a dispor que os factos só são puníveis não só se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, mas também se a prestação comunicada à administração através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Do exposto resulta que não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizam a situação em prazo a conceder, evitando-se assim a proliferação de inquéritos por crime de abuso de confiança fiscal e em relação à segurança social que, actualmente, acabam por ser arquivados por decisão do Ministério Público na sequência do pagamento do imposto.
Estamos, pois, perante condições de punibilidade e não perante elementos constitutivos do tipo criminal, uma vez que consumação deste ilícito opera na data em que termina o prazo para cumprimento dos respectivos deveres tributários (artigo 5.º n.º 2 do RGIT).
De facto, por regra, o facto típico, ilícito e que possa ser pessoalmente censurado ao agente também é punível, no entanto, alguns tipos reclamam a verificação de outras circunstâncias para que haja punibilidade. Tais elementos adicionais e excepcionais – que não pertencem nem à tipicidade, nem à ilicitude, nem à culpa, porque não respeitam à função dogmática e político-criminal própria destas categorias – são incluídos numa sede sistemática própria que conformará uma quarta categoria da teoria geral do crime.
As condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que devem somar-se à acção para que se gere a punibilidade. A concreta punição do facto depende da sua afirmação (concorrência). Delas devem distinguir-se as condições objectivas de procedibilidade que condicionam, não a existência do crime, mas a sua perseguição penal, ou seja, a abertura de um processo penal.
As condições das alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 105.º são cumulativas e material e temporalmente distintas.
Por fim, refira-se que a responsabilidade dos administradores, gerentes e representantes das sociedades pelas infracções fiscais cometidas em nome da sociedade encontra abrigo no artigo 6.º n.º 1 do RGIT segundo o qual será punido quem agir voluntariamente como titular dum órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem.
Já a responsabilidade da sociedade arguida advém do disposto no n.º 1 do artigo 7.º do RGIT, segundo o qual, as pessoas colectivas e equiparadas são responsáveis pelos crimes previstos no presente regime jurídico quando cometidos pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo e sendo certo que a responsabilidade destas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos gerentes. Ao alargar a incriminação em apreço à pessoa colectiva – em contrariedade com o disposto no artigo 11.º do CP – o julgador rodeou-se de especiais cautelas, exigindo uma estreita conexão entre o comportamento do agente – pessoa singular – e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em representação ou em nome deste e no interesse colectivo, tendo-se a responsabilidade por excluída quando o agente tiver actuado contra ordens expressas da pessoa colectiva.
A prestação em causa nos autos prende-se com as contribuições do regime de segurança social, que devem ser descontadas pela taxa de quotização correspondente, das remunerações dos trabalhadores dependentes e dos gerentes e entregues pela respectiva entidade empregadora à instituição da segurança social, até ao dia 15 do mês subsequente àquele a que disser respeito (conforme resulta das disposições conjugadas dos artigos 1.º a 3.º do Decreto-Lei n.º 103/80 de 9 de Maio, com os artigos 5.º n.º 2, 3.º e 6.º do mesmo diploma legal, bem como com os artigos 6.º do Decreto Regulamentar n.º 26/99 de 27 de Outubro e 4.º, n.º 2 alínea l) do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 316-A/2000 de 7 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 112/2004 de 13 de Maio).
Sucintamente efectuada a abordagem jurídica do crime em análise, vejamos o caso concreto.
Ora, dos factos dados como provados resulta que no período compreendido entre Outubro a Dezembro de 2003, Abril e Dezembro de 2004, Fevereiro a Dezembro de 2005, Janeiro a Dezembro de 2006, Janeiro a Dezembro de 2007 e Janeiro a Outubro de 2008 a sociedade arguida procedeu ao desconto de contribuições referentes a salários pagos aos funcionários e ao gerente no valor global de €30.489,30 (trinta mil quatrocentos e oitenta e nove euros e trinta cêntimos).
Mais resultou provado que pese embora a gerência da sociedade se encontrasse inscrita a favor do arguido JE e de JA desde a data da constituição da sociedade, apenas a partir de Março de 2004 o arguido assumiu a efectiva gestão dos assuntos correntes da mesma.
Por outro lado, resultou provado que o arguido JE, enquanto gerente da sociedade arguida, tinha a obrigação de entregar os montantes referidos nos pontos 9) a 55) à Segurança Social, o que não fez.
Por fim, resultou provado que pese embora tivesse conhecimento e consciência da sua obrigação o arguido JE optou por não proceder à entrega das quotizações retidas dos salários pagos, integrando tal importância no património da sociedade arguida, utilizando-a como se desta fosse. Resultou, igualmente, provado que o arguido actuou com o propósito de se apropriar dos meios monetários gerados pela retenção das quotizações sociais dos salários pagos, o que efectivamente conseguiu, obtendo desta forma uma vantagem patrimonial, que sabia ser indevida. O arguido actuou de forma livre e consciente bem sabendo serem proibidas por lei as referidas condutas.
Ora, tais factos integram os elementos constitutivos do tipo de ilícito que é imputado aos arguidos, a saber os elementos objectivos e subjectivos do tipo de abuso de confiança à Segurança Social. Porém, importa voltar a salientar que a conclusão pela prática deste ilícito depende da verificação de duas condições objectivas de punibilidade. Com efeito, é necessário que o agente não tenha procedido à entrega de tais quantias dentro do prazo legal, nem durante os 90 posteriores e é, ainda, necessário que o agente – que tenha comunicado a prestação à administração tributária através da correspondente declaração – não pague o valor em dívida, acrescido dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação efectuada para o efeito.
In casu, resultou provado que os arguidos não procederam ao pagamento das referidas quantias no prazo de 90 dias após o dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, datas em que findaram os prazos para o seu pagamento. Por outro lado, resultou provado que os arguidos, tendo sido notificados, em cumprimento do disposto no artigo 105.º n.º 4 alínea b) do RGIT, a 25 de Fevereiro de 2009 e a 5 de Março de 2009 para no prazo de 30 dias procederem ao pagamento das quotizações retidas dos salários pagos e não entregues à Segurança Social, não procederam a tal pagamento.
Face a tal factualidade torna-se evidente que se encontram perfectibilizados os elementos objectivo e subjectivo supra mencionados, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou mesmo de procedibilidade, devendo, pois, concluir-se pela verificação do crime de abuso de confiança relativo à Segurança Social.
Considerando que os arguidos se encontram acusados da prática de um crime consumado na forma continuada importa atender ao disposto no artigo 30.º n.º 2 do Código Penal, até porque aos crimes tributários e seu processamento são aplicáveis, subsidiariamente, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar (conforme resulta do artigo 3.º alínea a) do RGIT).
Dispõe o artigo 30.º do Código Penal que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi cometido pela conduta do agente. Por outro lado, constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Do exposto, resulta que a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou a resolução inicial; um crime na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; e um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores.
Ora, nos crimes tributários, a omissão das entregas pode ser fruto da execução de um plano prévio, gizado antes da primeira falta, cujo dolo todas abrange – caso em que se estará perante uma única resolução e, portanto, um só crime; se, pelo contrário, antes de cada falta, foi tomada a resolução de não entregar a próxima prestação, então o comportamento do agente poderá constituir um concurso de infracções ou um crime continuado (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Setembro de 2008, processo n.º 0714660, relator: Francisco Marcolino, www.dgsi.pt e MARQUES DA SILVA, Isabel – “Regime Geral das Infracções Tributárias”; Cadernos IDEEF, n.º 5, 2.ª edição, Almedina, 2007, pág. 182/185).
No caso dos autos provados factos que constituem a existência de uma pluralidade de resoluções por parte dos arguidos, ou seja, de várias manifestações de vontade de realização do projecto criminoso importa determinar se acaso estamos perante um crime continuado.
Na sequência do que já se expôs, pode definir-se o crime continuado como a situação em que, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um circunstancialismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente. São essencialmente razões de justiça e de economia processual que estão na base da construção dogmático-jurídica de tal figura.
Estamos perante actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime, ou tipos legais de crime que, embora distintos, protegem fundamentalmente o mesmo bem jurídico, e em relação às quais presidiu uma pluralidade de resoluções, mas que por um exercício de ficção são consideradas como constituindo um só delito, dado que expressam uma significativa diminuição da culpa do agente. O fundamento desta diminuição da culpa deve ir encontrar-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto, revelando-se, portanto, imperiosa a verificação de um conjunto de circunstâncias que, “de fora”, e de maneira considerável, facilitam a repetição da actividade delituosa e fazem enfraquecer a capacidade de o agente se determinar pelos contra-motivos inibitórios da prática de um crime. É também importante que as condutas sejam praticadas de uma forma essencialmente homogénea, verificando-se entre as mesmas uma dada ligação temporal e espacial.
Concluindo, são pressupostos do crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); a homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção); a violação do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado); a unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção, no sentido de que as diversas resoluções se devem conservar dentro de uma linha psicológica continuada) e a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e diminui consideravelmente a culpa do agente.
In casu, estamos perante a realização plúrima do mesmo tipo de crime – crime de abuso de confiança relativamente à Segurança Social –, existindo também uma homogeneidade na respectiva forma de execução – retenção das quotizações dos salários e sua subsequente não entrega. Por outro lado, surpreende-se nos autos uma mesma situação exógena: as dificuldades económicas sentidas que propiciaram um clima favorável à repetição e funcionaram como contra-motivação ética.
Verifica-se, pois, uma repetição de factos criminosos, executados por forma substancialmente homogénea, em obediência a uma unidade de desígnio criminoso, dentro de uma linha psicológica continuada, lesiva do mesmo bem jurídico, cometida a coberto de uma situação exterior típica que leva à diminuição da culpa. Donde a sobredita subsunção da situação dos autos à figura da continuação criminosa.
Assim sendo, os arguidos deverão ser condenados pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança, na forma continuada, previsto e punido nos artigos 107.º e 105.º n.°s 1, 4 e 7, do RGIT, conjugado com o artigo 30.º do Código Penal.
III. 2. Da medida da pena
O crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social imputado aos arguidos é punido, nos termos do disposto nos artigos 107.º n.º 1 e 105.º n.º 1 do RGIT, com pena de prisão até 3 anos ou multa entre 10 e 360 dias. Caso estejamos uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada os limites mínimo e máximo da referida pena de multa é elevado para o dobro, nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 3 do RGIT. Caso a entrega não efectuada seja superior a €50.000,00, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
Por outro lado, importa atentar no disposto no artigo 16.º do RGIT que prevê a possibilidade de serem, cumulativamente, aplicáveis as penas acessórias aí enunciadas mediante verificação dos pressupostos mencionados no artigo 17.º do referido diploma conjugado com o Código Penal.
Por fim, porquanto estamos perante um crime continuado importa ainda atentar ao disposto no artigo 79.º do CP, ou seja, importa atender à pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação, conforme resulta do artigo 79.º do Código Penal (neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24 de Março de 2009, processo n.º 20/06.1IDSTR.E1, relator: Gilberto Cunha, www.dgsi.pt).
Interessa, ainda, considerar o disposto no artigo 8.º n.º 1 alínea a) do diploma legal em análise que preceitua a responsabilidade civil subsidiária dos administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por sua culpa que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento.
Para além desta responsabilidade subsidiária, prevê o n.º 7 do citado preceito que quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso. Incorrerão nesta responsabilidade civil os co-autores e cúmplices de infracções tributárias, relativamente às sanções que vierem a ser aplicadas aos seus co-arguidos, cumulativamente com a sua própria responsabilidade. Neste caso está-se perante uma solidariedade em primeiro plano, podendo as dívidas ser originariamente exigidas, desde logo, aos responsáveis solidários, independentemente da existência de bens do autor da infracção (neste sentido, LOPES DE SOUSA, Jorge e SIMAS SANTOS, Manuel – Regime Geral das Infracções Tributárias – Anotado, Áreas Editora, 2.ª edição [actualizada e ampliada], Janeiro de 2003, pág. 93/95).
In casu, considerando os montantes das prestações em causa, estamos perante um crime simples, sendo aplicáveis as penas previstas no n.º 1 do citado artigo 105.º, elevadas para o dobro em relação à sociedade arguida, pelo que a moldura penal abstracta aplicável é de 20 a 720 dias. Acresce, entendermos, que perante os factos provados não existe a necessidade de aplicação de qualquer uma das sanções acessórias previstas na lei.
Por imperativo decorrente do disposto no artigo 70.º do Código Penal, se a um crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade deve o Tribunal privilegiar esta última, sempre que assim se realizem adequada e cabalmente as finalidades da punição.
Como decorre da factualidade acima exposta, quer a sociedade arguida quer o arguido JE já possuem antecedentes criminais. Com efeito, ambos já foram condenados pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, tendo-lhes sido aplicadas penas de multa. Acresce que o arguido JE conta, ainda, com mais duas condenações, por condução de veículo em estado de embriaguez e por desobediência. Saliente-se que as condenações referentes aos crimes de abuso de confiança se reportam a factos contemporâneos dos presentes, pese embora a última delas tenha já sido proferida após a prática dos mesmos. Refira-se, por outro lado, que o arguido JE se encontra profissional, social e familiarmente inserido, enquanto a arguida sociedade já não se encontra em laboração desde 2009.
Pelo exposto, encetando um juízo de prognose social positiva, consideramos que as finalidades do sistema sancionatório ainda se realizam, no caso vertente, com a aplicação de uma pena de multa.
Dentro da moldura penal abstracta, deverá a pena ser concretamente determinada em conformidade com o sistema dos dias de multa proposto pelo legislador, procedendo-se à fixação, em primeiro lugar, do número de dias de multa – de acordo com o princípio regulador do artigo 40.º n.º 1 e 2 e com os critérios estabelecidos pelo artigo 71.º n.º 1 ambos do Código Penal e pelo artigo 13.º do RGIT – e, seguidamente, do quantitativo diário a achar dentro dos limites definidos na lei, considerando, para o efeito, a situação económico-financeira do arguido e, bem assim, os seus encargos pessoais.
Na fixação da medida concreta da pena é tida em conta e medida da culpa do arguido e, bem assim, são consideradas todas as circunstâncias que, não fazendo parte integrante do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, as necessidades de prevenção e o grau de culpa (conforme resulta do referido artigo 71.º n.º 1 do Código Penal).
No caso sub judice cabe ponderar globalmente:
- a gravidade das consequências do mesmo que, no caso concreto, foram de grau elevado atenta o valor das prestações não entregues à Segurança Social;
- a intensidade do dolo dos arguidos, que no caso em apreço é elevado, considerando o facto de estarmos apenas perante a falta de pagamento de prestações referentes a 6 anos, praticamente consecutivos.
- as fortes necessidades de prevenção geral deste tipo de comportamentos atenta a generalização destas condutas criminosas que causam grande prejuízo financeiro ao Estado, sendo certo que é através da receita que o Estado provê à satisfação das necessidades sociais do país; e
- as necessidades de prevenção especial, que se revelam medianas em face da existência de outros antecedentes criminais pela prática de ilícitos da mesma natureza.
Assim, por se mostrarem devidamente asseguradas as finalidades de punição que ao caso se impõem, temos por adequada a condenação do arguido JE e da arguida D...., Lda numa pena de 360 e 720, respectivamente.
O artigo 15.º do RGIT dispõe que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €1,00 e €500,00, tratando-se de pessoas singulares, e entre €5,00 e €5.000,00, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos.
Ora, é ponto assente na jurisprudência que o montante diário da pena de multa deve fixar-se em termos de constituir um sacrifício real para o condenado, atendendo ao seu rendimento líquido e às suas necessidades indispensáveis, sob pena de se desacreditar a pena, gerando um sentimento de injustiça, inutilidade e impunidade.
In casu, resultou provado que o arguido JE é divorciado, vive com a mãe e tem um filho menor. Resultou, ainda, provado que o arguido exerce as funções de gerente comercial, aufere mensalmente, pelo menos, € 600,00 e despende € 320,00 com a pensão de alimentos do filho. Por outro lado, resultou provado que a sociedade D..., Lda não se encontra em laboração desde 2009, mas ainda não foi objecto de liquidação.
Pelo exposto, considera-se ser adequado fixar em € 8,50 (oito euros e cinquenta cêntimos) o quantitativo diário da pena de multa supra fixada em relação ao arguido JE – o que perfaz o montante de €3.060,00 (três mil e sessenta euros) – e fixar em €10,00 (dez euros) o quantitativo da multa fixada em relação à arguida D...., Lda – o que perfaz o montante de €7.200,00 (sete mil e duzentos euros).
III. 3. Do pedido de indemnização civil
Conforme já se referiu, nos presentes autos o Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Segurança Social de Évora deduzir pedido de indemnização civil contra os demandados D..., Lda e JE, peticionando que os mesmos sejam condenados a pagar-lhe a quantia global de €30.489,30 (trinta mil, quatrocentos e oitenta e nove euros e trinta cêntimos) acrescida de juros de mora até integral e efectivo pagamento, bem como todas as custas que despendeu no âmbito do presente processo e respectiva procuradoria.
No nosso direito positivo, a questão da indemnização a fixar pela prática de um crime consiste no sistema da adesão obrigatória da acção civil à acção penal, com algumas excepções expressas na lei (artigos 71.º e 72.º do Código de Processo Penal). Com efeito, do próprio artigo 377.º n.º 1 do Código de Processo Penal resulta a existência de uma autonomia entre a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal, na medida em que mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal o Tribunal deve conhecer da responsabilidade civil, que tem necessariamente a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal. De facto, sendo irrecusável a existência de conexão entre as duas acções desde logo imposta pela unidade da causa o certo é que não se confundem, podendo mesmo considerar-se jurídico-intencionalmente distintas (nesse sentido, TOLDA PINTO, António Augusto – A Tramitação Processual Penal, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 155).
Saliente-se que a responsabilidade civil que poderá ser apreciada em processo penal (se o pedido for aí deduzido), refere-se tão-somente àquela que emerge da violação do direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos, ficando excluída a responsabilidade contratual (nesse sentido, Assento n.º 7/99 de 17 de Junho de 1999, Diário da República, Série I-A, de 3 de Agosto de 1999).
No que concerne à indemnização de perdas e danos por crime, dispõe o artigo 129.º do Código Penal que a mesma é regulada pela lei civil. Ora, estabelece o artigo 483.º n.º 1 do Código Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Importa, portanto, averiguar se os factos dados como provados preenchem os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito.
Assim, para que o pedido de indemnização proceda, torna-se necessário o preenchimento dos seguintes pressupostos: a existência de um facto voluntário do agente; a ilicitude desse mesmo facto consubstanciada na desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado; a imputação do facto ao agente em termos de culpa; o dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
A responsabilidade civil dos arguidos pelo incumprimento das contribuições devidas à Segurança Social constitui uma responsabilidade por facto ilícito (artigo 483.º n.º 1 do CC) que tem como pressupostos a existência de um acto ilícito, a culpa do agente, a existência de prejuízos indemnizáveis e um nexo de causalidade entre o acto ilícito e o prejuízo, que no caso vertente se concretizou na não entrada dos fundos contributivos devidos pela sociedade nos cofres da Segurança Social. A indemnização pelo dano sofrido com o não pagamento consiste, precisamente, na reposição das contribuições desviadas acrescida de juros respectivos (saliente-se que esta responsabilidade civil por facto ilícito é diversa da responsabilidade do arguido, na qualidade de sócio-gerente, pelo não pagamento de multas ou coimas por parte da empresa, prevista no artigo 8.º do RGIT).
Ora, os arguidos ao procederem pela forma descrita nos factos provados e que aqui nos dispensamos de reproduzir preencheram os pressupostos de que depende a constituição da obrigação de indemnizar, porquanto praticaram, voluntaria e dolosamente, um facto ilícito, do qual resultou um prejuízo. Acresce que sendo co-autores de um crime fiscal uma sociedade e o seu gerente, são ambos responsáveis, solidariamente, pelo pagamento da indemnização.
Do exposto, resulta que a regra do ónus da prova vigente no nosso direito (artigo 342.º n.º 1 e artigo 487.º do Código Civil e artigo 516.º do Código de Processo Civil) encontra-se preenchida, no que se refere aos citados prejuízos, pelo que, deverão os demandados indemnizar o demandante civil.
Prescreve o artigo 562.º do Código Civil que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. O legislador português consagrou o princípio da reposição natural. Nos presentes autos a Demandante peticiona a ressarcibilidade de danos de natureza patrimonial.
Os danos de natureza patrimonial abrangem os prejuízos susceptíveis de avaliação pecuniária e apenas podem ser reparados, directamente, através da restauração natural da situação ou, indirectamente, através de uma indemnização pecuniária (VARELA, João de Matos Antunes – Das Obrigações em Geral; vol. I, Almedina, 10.ª edição revista e actualizada, Setembro de 2004, pág. 601).
In casu, resultou provado que em virtude do comportamento dos demandados a demandante deixou de receber as quotizações dos trabalhadores, no valor de €30.489,30 (trinta mil, quatrocentos e oitenta e nove euros e trinta cêntimos) relativamente à sociedade demandada e no valor de €27.716,65 (vinte e sete mil, setecentos e dezasseis euros e sessenta e cinco cêntimos) relativamente ao arguido demando, já que não tendo resultado provado que este exercesse a gerência de facto no ano de 2003, não resultou provada a responsabilidade civil do mesmo quanto a tal período temporal.
Por ser uma obrigação pecuniária vence juros à taxa legal de 1% ao mês, nos termos do artigo 16.º n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 411/91 de 17 de Outubro e dos artigos 1.º n.º 1 alínea a) e 3.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 73/99 de 16 de Março (norma de natureza especial e que, por conseguinte deve prevalecer sobre as regras gerais consagradas no Código Civil).
Perante a factualidade dada como provada procede, com a especialidade supra referida, o pedido de indemnização civil deduzido nos autos. (…) »
Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.
II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso – poderes de cognição do tribunal ad quem.
São as seguintes, as questões suscitadas pelo arguido recorrente:
a) Contrariamente ao decidido em 1ª instância, não se mostram preenchidos os elementos objetivos do crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelos arts 107º e 105 do RGIT, pelo qual o arguido foi condenado, por não se verificar apropriação das contribuições não entregues à segurança social, porquanto nunca existiram tais montantes nem é possível a utilização dos respetivos valores contabilísticos para outro fim.
Não se mostra igualmente preenchido o elemento subjetivo daquele crime, porquanto o arguido não agiu com a intenção deliberada de não entrega das quotizações dos trabalhadores, pois aquela falta de entrega deveu-se antes a insuficiência de tesouraria e penhora de créditos sobre clientes.
b) Em matéria de medida da pena principal de multa, o arguido recorrente impugna a sua condenação pelo número máximo de dias previsto na moldura legal (360), entendendo que a manter-se a sua condenação a mesma não deve verificar-se em medida superior a 180 dias de multa.
c) Entende também o arguido recorrente que é inconstitucional o nº7 do art. 8º do RGIT na parte em que fundamentou a sua condenação como responsável solidário pela pena de multa aplicada à co-arguida D..., Lda, pelo que deve ser revogada a sentença nesta parte.
d) Por último, relativamente ao pedido cível deduzido pelo I.S.S., invoca o arguido recorrente a exceção de litispendência ou mesmo caso julgado, que obstam ao julgamento do mérito da causa, em virtude de aquele Instituto dispor já de título executivo para cobrança dos créditos cujo pagamento peticiona no pedido cível deduzido nestes autos. Pela mesma razão não deve o arguido recorrente ser condenado nas custas cíveis, porquanto não deu causa ao pedido cível.
São estas, pois, as questões a apreciar e decidir no presente recurso.
O arguido recorrente alega ainda não poder ser condenado pelo art. 105º do RGIT por estar em causa contribuição a entregar à segurança social e não à administração fiscal, mas reporta-se certamente a lapso material manifesto verificado no Dispositivoda sentença recorrida. Na identificação do crime pelo qual os arguidos são condenados refere-se ali apenas o art. 105º do RGIT em vez das disposições conjugadas dos arts 105º e 107º, do mesmo RGIT, tal como consta da acusação e sempre foi mencionado na fundamentação da sentença.
Assim e tendo especialmente em conta o disposto no art. 380º nº 1 e 2, do CPP, retifica-se aquele mesmo lapso material.
2- Decidindo.
2.1. - No que respeita às questões suscitadas relativamente ao preenchimento do tipo legal do art. 107º do RGIT, é manifesta a falta de razão do arguido recorrente, tanto no que concerne ao elemento objetivo, como ao elemento subjetivo.
Quanto ao elemento objetivo do tipo, independentemente da questão de saber se a apropriação constitui elemento implícito do tipo, não se encontra provada a factualidade em que o arguido assenta o seu recurso, ou seja, a alegação factual que nunca o recorrente dispôs dos valores relativos às cotizações para a Segurança Social, uma vez que nunca existiram tais montantes nem se verifica a possibilidade de utilização dos respectivos valores contabilísticos para outro fim ( cfr conclusão 3ª).
Pelo contrário, foi julgado provado que a sociedade co-arguida procedeu aos descontos em causa (nº5 dos factos provados), que o arguido não entregou aqueles descontos à segurança social (nº 56) e que optou por não o fazer, integrando tal importância no património da sociedade arguida, utilizando-o como se desta fosse (nº 60 da factualidade provada).
A factualidade descrita sob o nº 65, ou seja, que a não entrega dos descontos ficou a dever-se a dificuldades financeiras sentidas ao nível da gestão das atividades desenvolvidas pela sociedade arguida, não se confundem com a alegação do recorrente, pois não invalidam que se tenham efetuado os descontos em causa e a não entrega dos mesmos como descrito.
Mesmo que assim não fosse, porém, o entendimento comum na jurisprudência é o de que a possibilidade de entrega à segurança social dos descontos efetuados não é elemento constitutivo do crime p. e p. pelo art. 107º do RGIT, do mesmo modo que a impossibilidade de pagamento da prestação tributária não é causa de justificação ou de exclusão da culpa. Tem-se entendido que mesmo utilizando as quantias descontadas e não entregues para o pagamento de salários, fornecedores, etc,, o abuso de confiança contra a segurança social verifica-se de igual modo, porquanto essas vias constituem modos de o agente se apropriar e dispor dos valores em dívida para outros fins como coisa sua - Cfr Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. 2, U.C.Editora-2011 p. 479 e acórdãos do T. Constitucional e do STJ aí citados.
Quanto ao dolo encontra-se o mesmo claramente vertido nos nºs 60 e 62, da factualidade provada, ao dar-se por assente que o arguido sabia que deixava de entregar as quantias descontadas, agindo de acordo com esse conhecimento e a sua vontade de não entregar aquelas quantias. Aliás mesmo a entender-se que o tipo legal exige a apropriação enquanto elemento típico autónomo, julgou-se provado sob o nº61 que o arguido atuou com o propósito de se apropriar dos meios monetários gerados pela retenção das quotizações sociais e que obteve dessa forma vantagem patrimonial.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
2.2. – Da medida concreta da pena de multa.
Para fundamentar a sua pretensão de que a pena de multa não deve ser fixada em mais que 180 dias, alega o recorrente que não se verificam quaisquer necessidades de prevenção especial, nem reincidência, sendo as consequências pouco graves face ao período em causa (quase seis anos) relativamente à actual conjuntura pouco significativas e, ainda, as razões -falta de liquidez e penhoras- que estiveram na origem do incumprimento – cfr conclusão 6ª.
A reincidência constitui uma agravante de caráter geral que incide sobre a moldura penal, elevando o seu limite mínimo, pelo que não é pertinente a invocação da não verificação da mesma em sede de determinação concreta da pena num caso, como o presente, em que os arguidos não são condenados como reincidentes. As necessidades de prevenção especial são bem reais, constituindo as anteriores condenações do arguido circunstâncias que relevam contra si na determinação concreta da pena, tal como sucede, no mesmo plano, com a conduta posterior aos factos, nomeadamente à ausência de qualquer ação no sentido de reparar o mal do crime.
O montante das contribuições em causa não é despiciendo contrariamente ao que pretende o recorrente.
Por um lado ascende a 1 277,788€ o valor mais elevado das contribuições em dívida, particularmente relevante em face do disposto no art. 79º do C.Penal. Por outro lado, o elevado número de infrações, pois estamos face a uma pluralidade de infrações punidas como um só crime continuado, e o valor total em dívida, que ascende a 30 000€ são circunstâncias igualmente desfavoráveis ao arguido.
A seu favor apenas há que considerar a diminuição da culpa em atenção às dificuldades de tesouraria e de gestão que condicionaram a conduta típica, que, no entanto, foram já consideradas na punição das várias condutas como um só crime continuado, assumindo, assim, pouca relevância na determinação concreta da pena de multa.
Assim e tendo ainda em conta que está em causa pena principal de multa, aplicável em alternativa a pena de prisão, não viola o critério legal decorrente das disposições dos arts 70º e 71º, do C.Penal, a fixação da pena de multa pelo seu limite máximo, como forma de assegurar que esta pena não privativa da liberdade satisfaça de forma credível e consistente as necessidades de prevenção geral e especial das penas, tal como estabelecidas no art. 40º do C.Penal.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
2.3. – Relativamente ao pedido cível deduzido pelo I.S.S., invoca o arguido recorrente a exceção de litispendência ou mesmo caso julgado, que obstam ao julgamento do mérito da causa, em virtude de aquele Instituto dispor já de título executivo para cobrança dos créditos cujo pagamento peticiona no pedido cível deduzido nestes autos. Pela mesma razão não deve o arguido recorrente ser condenado nas custas cíveis, porquanto não deu causa ao pedido cível.
Alega ainda que estão a decorrer os procedimentos executivos intentados pela segurança social sem que os aqui arguidos tenham deduzido oposição.
Sucede, porém, que independentemente do mérito jurídico do entendimento expresso pelo arguido a tal respeito, não se encontra provado que tenha sido instaurado qualquer procedimento executivo pelas contribuições em causa no presente processo crime, nem tão pouco se mostra junta documentação relativa ao alegado.
Ora, pressupondo a exceção de litispendência e a exceção de caso julgado a repetição de uma causa (art. 497º nº1 do CPCivil) e não se encontrando demonstrado a existência de qualquer outra causa com o mesmo objeto, causa de pedir e sujeitos, falta a factualidade que pudesse sustentar a argumentação do arguido recorrente, pelo que é manifesta a improcedência das exceções processuais invocadas pelo arguido recorrente, bem com a conclusão que da sua alegação retiram em matéria de custas.
Em todo o caso, sempre são distintos a causa de pedir e os sujeitos no processo tributário e no processo criminal, sendo autónomas as respetivas obrigações, apesar de conexas. Na execução em processo tributário está em causa a obrigação tributária autónoma que tem como responsável principal o ente coletivo e como responsável subsidiário o seu órgão ou representante. No processo criminal discute-se a obrigação civil solidária de indemnizar do ente coletivo e dos seus órgãos ou representantes, pelos danos emergentes do crime tributário[1]. Nem a ação se repete, nem a existência do título executivo tributário torna inútil o pedido cível em processo criminal nem, em todo o caso, sucederá que o credor tributário venha a receber o imposto em falta e a indemnização de igual valor. “A indemnização corresponde sempre ao pagamento do imposto evadido e consequentemente pago o imposto não é mais devida a indemnização ou paga a indemnização não é mais devido o imposto” – Cfr Germano M. Silva, ob. citada em nota, p. 326.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
2.4. – Da invocada inconstitucionalidade do nº7 do art. 8º do RGIT.
O arguido recorrente invoca a inconstitucionalidade do citado nº7 do art. 8º do RGIT por violação dos princípios da culpa, igualdade e proporcionalidade ao declarar o arguido responsável solidário pela multa aplicada à arguida D., Lda sem outros factos dolosos para além das responsabilidades próprias pela infração.
Na sua resposta em 1ª instância, o MP alega que a responsabilidade pelas multas e coimas prevista no art. 8º do RGIT deve ser vista como “uma responsabilidade civil e não como a transmissão da responsabilidade penal”, de acordo com o Ac 129/2009 do Tribunal constitucional, embora refira que não está aqui em causa a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes prevista no art. 8º nº1 do RGIT, que deu origem ao julgamento de inconstitucionalidade constante do Ac 26/2011 daquele mesmo tribunal, mas antes responsabilidade solidária nos termos do nº7 daquele mesmo art. 8º.
Porque se encontram associados a questões de inconstitucionalidade conexas com a presente, abordaremos a eventual desconformidade da norma aplicada nestes autos com os princípios da intransmissibilidade da responsabilidade penal e a proibição de ne bis in idem.
Vejamos então.
2.4.1. - O nº8 do RGIT, que tem por epígrafe, “Responsabilidade civil pelas multas e coimas”, dispõe no seu atual nº7: “Quem colaborar dolosamente na prática de infração tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso”.
Com fundamento neste preceito, o tribunal recorrido declarou “…os arguidos são solidariamente responsáveis pelas multas a que foram, respetivamente, condenados nos termos do art. 8º nº 7 do RGIT” – (cfr dispositivo da sentença).
Antes de mais, entendemos que o tribunal recorrido fez correta interpretação da lei ordinária ao considerar que o citado nº7 do art. 8º do RGIT prevê a responsabilização solidária do arguido, enquanto gerente da sociedade arguida, pela pena de multa aplicada a esta. Embora a questão se coloque juridicamente de forma idêntica relativamente à declarada solidariedade da sociedade pela pena de multa aplicada ao arguido, não abordaremos esta última, uma vez que só o arguido recorreu.
A questão da responsabilidade solidária do órgão ou representante condenado cumulativamente com a sociedade, que se verifica no caso presente, não é isenta de dúvidas, desde logo porque a menção do nº7 do art. 8º a quem “colaborar dolosamente na prática da infração», não corresponde literalmente à forma de imputação jurídico-penal prevista no art.º 7º do RGIT, pois este último preceito acolhe como critério de imputação do ente coletivo os atos cometidos pelos seus órgãos[2] ou representantes em nome e no interesse do ente coletivo, fazendo derivar a responsabilidade do ente coletivo necessariamente da responsabilidade individual, que, no entanto, se mantém, não se acolhendo o critério de imputação autónoma, baseada no conceito de culpa da organização.
Verifica-se, assim, uma situação de responsabilidade cumulativa e não de coautoria ou forma diversa de comparticipação, uma vez que o ente coletivo não pratica o facto por si mesmo, pelo que em rigor não pode dizer-se que a pessoa coletiva comparticipa na comissão do facto com o seu órgão ou representante. O facto é-lhe antes atribuído em razão da qualidade do agente que o cometeu e dos condicionalismos da atuação deste[3].
Mas se é assim na perspetiva do ente coletivo é-o de forma ainda mais acentuada na perspetiva do órgão ou representante, na medida em que é do seu facto que deriva a responsabilidade criminal daquele ente, pelo que o legislador não se expressa da melhor forma, em termos jurídico-penais, ao afirmar que o órgão ou representante colaborou na infração do ente coletivo. Do mesmo modo não será rigorosa a afirmação de que ambos (i.e, ente coletivo e o seu órgão ou representante) colaboraram na prática da infração, porque do ponto de vista da responsabilidade penal a relação que existe é de representação funcional que não é configurável, quer-nos parecer, como de mera colaboração entre indivíduos.
Todavia, não obstante o elemento gramatical, afigura-se-nos resultar suficientemente dos elementos sistemáticos da interpretação que o legislador quis responsabilizar reciprocamente e de forma solidária todos os que dolosamente tenham colaborado entre si na prática de infração punida com multa, independentemente da forma que tenha assumido a sua participação no facto: autoria, coautoria ou cumplicidade, nomeadamente quando as duas primeiras, por terem lugar em nome e no interesse de ente coletivo, dão lugar a responsabilidade cumulativa desses entes com os seus órgãos ou representantes.
Designadamente no que respeita à responsabilidade de administradores e gerentes aqui em causa, a sua responsabilização solidária nos termos do nº7 do art. 8º é coerente com a responsabilização subsidiária prevista nos nºs 1 e 2 do mesmo art. 8º por corresponder a conduta mais grave do obrigado. Enquanto nos casos de obrigação solidária o agente participou dolosamente na prática da infração, aos obrigados subsidiários apenasse exige que exercessem funções ao tempo da prática da infração ou, relativamente a factos anteriores, que por culpa sua o património se tenha tornado insuficiente para pagamento das multas e coimas ali previstas.
Por outro lado, a responsabilidade solidária recíproca é igualmente a solução acolhida em lugares paralelos do direito penal secundário, nomeadamente no regime legal das Infrações contra a economia e contra a saúde pública, constante do Dec-lei 28/84 de 20 de janeiro. O seu art. 2º nº3 dispõe que «As sociedades civis e comerciais e qualquer outras das entidades referidas no nº1 respondem solidariamente, nos termos da lei civil, pelo pagamento das multas, coimas, indemnizações e outras prestações em que forem condenados os agentes das infrações previstas no presente diploma, nos termos do número anterior”. O art.º 3º nº3, por sua vez, depois de afirmar a responsabilidade individual cumulativa dos órgãos ou representantes, remete expressamente para o nº3 do artigo anterior, estabelecendo a responsabilidade solidária destes nos termos da lei civil, pelo pagamento das multas, coimas, indemnizações e outras prestações em que for condenado o ente coletivo.
Por último, no que respeita aos fins de política criminal visados com a norma, parece-nos indubitável que no caso presente, como nas demais situações aludidas, o legislador pretende assegurar que os cofres públicos não fiquem privados das quantias correspondente às sanções pecuniárias aplicadas, ao mesmo tempo que se associa a este regime a expectativa de um forte efeito preventivo, quer geral, quer especial.
Parece-nos, assim, ser de seguir o entendimento do Prof. Germano M. Silva[4], quando considera, referindo-se ao art. 8º do RGIT: «Enquanto que o n.º 1 segue o disposto no art. 24.º da LGT, já o n.º 6 (actual n.º7) se afasta desse regime, embora se trate ainda de responsabilidade também por dívida de outrem, mas agora a responsabilidade é solidária porque o administrador colaborou dolosamente na prática da infracção e, por isso, vai responder solidariamente com os co-responsáveis pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua própria responsabilidade, porque foi o seu comportamento ilícito causa direta da multa, foi o seu comportamento a causa da multa aplicada à pessoa colectiva pela prática do facto ilícito penal. Tenha-se, porém, presente, que a responsabilidade de que trata o n.º 6 (actual n.º7) do art. 8.º do RGIT se refere exclusivamente às consequências jurídicas decorrentes da prática do crime enquanto o art. 24.º se reporta às consequências decorrentes do não pagamento do imposto devido.” (Sem atualização de ortografia)
Confirmada a interpretação do tribunal a quo relativamente ao nº7 do art. 8º do RGIT, é esta norma inconstitucional, como pretende o arguido recorrente?
2.4.2. – Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o art. 8º do RGIT e a sua eventual transposição para o caso sub judice.
Embora, ao que cremos, nunca se tenha pronunciado sobre o seu nº7, o Tribunal Constitucional pronunciou-se por diversas vezes sobre eventual inconstitucionalidade do 1 do art. 8º do RGIT e de norma similar contida no anterior art. 7º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA) aprovado pelo Dec-lei 20-A/90 de 15 de Janeiro, com alterações subsequentes, que viria a ser revogado pelo RGIT, na sequência de decisões sucessivas do STA no sentido da inconstitucionalidade daquelas normas.
Em face de anteriores decisões divergentes, o Plenário do Tribunal Constitucional decidiu nos acórdãos nºs 437/2011 de 3.10.2011 e 561/2011 de 22.11.2011, não julgar inconstitucionais, respetivamente, o art. 8º nº 1 do RGIT quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efetiva pelo mecanismo da reversão fiscal , contra gerentes ou administradores de sociedade devedora, e o art. 7º-A do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), na parte em que se refere à responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes pelos montante correspondentes às coimas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação fiscal.
Parece-nos claro, porém, que a doutrina destes acórdãos não é transponível para o caso presente.
Em primeiro lugar, sempre esteve em causa o regime legalmente previsto de responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores por multas e coimas e não de responsabilidade solidária.
Em segundo lugar, sempre esteve concretamente em causa responsabilidade pela prática de contraordenação e não de crime.
2.4.2.1.Por um lado, no que respeita à responsabilidade subsidiária do órgão ou representante pelo pagamento da coima, o T. Constitucional considerou naqueles acórdãos que se trata aí de responsabilidade civil extra-contratual ou aquiliana por danos derivados da falta de cumprimento da sanção aplicada ao ente coletivo, pela prática da infração tributária. Assim, a responsabilidade subsidiária do órgão ou representante não deriva da transmissão da responsabilidade pública do ente coletivo pelo ilícito penal, mas de responsabilidade própria do órgão ou representante pelo não pagamento da sanção por parte do ente coletivo. A obrigação subsidiária dos gerentes e administradores (grosso modo) visará ressarcir a Administração Fiscal ou a Segurança Social pelo dano consistente na falta de pagamento da quantia correspondente à sanção contraordenacional pelo devedor originário.
Conforme se diz no Ac TC 561/2011[5], « O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa colectiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.»[6]Deste modo, não se mostrará violado o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal acolhido no art.º 30º nº3 da CRP, por estar em causa responsabilidade civil por ato próprio.
Ora, no caso de obrigação solidária prevista no nº7 do art.º 8º do RGIT não há qualquer dilação temporal entre a condenação na sanção e o seu não pagamento, que pudesse fundar uma responsabilidade autónoma do órgão ou representante por danos derivados de conduta sua diferente da participação no ilícito criminal (ou contraordenacional, se fosse o caso). A solidariedade pelo pagamento encontra-se incondicionalmente prevista na lei como consequência direta da condenação pela prática do crime, sendo normalmente declarada na sentença penal aquando da declaração da pena. O pagamento pode ser exigido ao condenado originário ou ao condenado solidário independentemente da resposta daquele e, como é próprio da obrigação solidária, sem que possa invocar o benefício de excussão do património coletivo ou de outros co-responsáveis.
A obrigação solidária do órgão ou representante pelo pagamento é, assim, consequência direta da sua colaboração dolosa no mesmo crime, sem a mediação de outro facto posterior ou anterior à condenação, conforme aludido, não sendo configurável qualquer dano autónomo indemnizável[7], contrariamente ao que pode entender-se nos casos de responsabilidade subsidiária[8], como vimos.
O art.º 8º nº7 do RGIT não se reporta, assim, a responsabilidade civil nos mesmos termos em que nos citados acórdãos do plenário do T. Constitucional se reconhece tal natureza à obrigação subsidiária estabelecida no art. 8º nº1 do RGIT, sem prejuízo do respeito devido ao entendimento contrário, seguido em alguns acórdãos das Relações[9]/[10] que, no essencial, transpuseram a citada doutrina do tribunal constitucional referente ao art. 8º nº1 do RGIT para a obrigação solidária que nos ocupa.
A responsabilidade do obrigado solidário estabelecida no art. 8º nº7 do RGIT não é, pois, caraterizável como responsabilidade civil extracontratual por dano emergente de ilícito penal tributário[11].
2.4.3. – Tal não significa que não deva reconhecer-se natureza civil à obrigação solidária de pagamento da coima ou multa criminal estabelecida pelo legislador no art.º 8º nº7 do RGIT, na medida em que não se procura com ela fins próprios das penas, mas antes a garantia de cumprimento das sanções pecuniárias à custa do património do obrigado solidário e nunca da sua pessoa, como meio de assegurar aos cofres públicos a receita correspondente ao pagamento das sanções pecuniárias.
Referindo-se à responsabilidade solidária da pessoa coletiva pelo pagamento da pena de multa aplicada aos seus órgãos ou representantes de acordo com a legislação então vigente (1999), Augusto Silva Dias refere que esta “… solução da responsabilidade civil solidária … é muito utilizada pelo Direito Penal francês como garantia de cumprimento e representa um hábil estratagema para proteger os cofres públicos da falta de liquidez dos autores “, embora entenda que tal é feito “à custa do princípio constitucional da pessoalidade e intransmissibilidade legal das penas[12].
Também K. Tiedemann – precisamente a propósito do ordenamento português – fala em responsabilidade civil (da pessoa coletiva) sem, porém, a reconduzir à obrigação de reparar um dano (responsabilidade civil aquiliana), referindo antes que em Portugal tem-se procedido ao enquadramento da multa como crédito de natureza civil. Ao analisar o estado atual (2006) do dogma “societas delinquere non potest” numa perspetiva de direito comparado, diz aquele autor, depois de referir-se à necessidade de uma punição adicional ou exclusiva para lograr um efeito suficientemente dissuasório no âmbito da delinquência dos entes coletivos (tradução livre do castelhano agrupación), o seguinte:
- «Esta questão não fica de todo resolvida quando se recorre a uma simples responsabilidade civil das pessoas jurídicas. Esta forma de responsabilidade que se refere sobretudo às multas aplicadas aos dirigentes do ente coletivo, pode ser cumulativa ou subsidiária. Este modelo é clássico em países que recusam a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Portugal mantém-na juntamente com a responsabilidade penal e quase penal dos entes coletivos.
O fundamento teórico desta responsabilidade [continua o autor] encontra-se na ideia de que a multa, a partir do momento em que adquire força de caso julgado, se converteria num crédito de Direito civil.
Esta teoria (discutida sobretudo em Portugal) é rejeitada, com razão, pela maior parte dos ordenamentos jurídicos modernos que assinalam o caráter retributivo e pessoal da multa. Este tipo de garantia na execução da multa imposta contra os autores físicos não é, pois, aceite, entre outros países, pela Alemanha, Inglaterra, Grécia, Irlanda, Países Baixos, Rússia, Japão e Austrália»[13]
2.4.4.1 - Do regime legal da responsabilidade dos entes coletivos e dos seus órgãos e representantes, tal como foi pioneiramente definido entre nós para as infrações tributárias e as infrações contra a economia e contra a saúde pública, resulta, como aludido, que o propósito do legislador ordinário foi o de responsabilizar reciproca e cumulativamente os entes coletivos e os seus órgãos e representantes pela prática de ilícitos criminais ou contraordenacionais, independentemente do maior ou menor respeito que a solução legal represente para princípios tradicionais do direito penal, o que é assumido claramente no que à responsabilidade penal das pessoas coletivas respeitava.
Conforme pode ler-se, v.g., no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 28/84, «Importante novidade neste diploma é a consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas colectivas e sociedades, a que algumas recomendações de instâncias internacionais, como o Conselho da Europa, se referem com insistência.
Tratando-se de um tema polémico em termos de dogmática jurídico-penal, nem por isso devem ignorar-se as realidades práticas, pois se reconhece por toda a parte que é no domínio da criminalidade economica que mais se tem defendido o abandono do velho princípio societas delinquere non potest.
Em todo o caso, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas é consagrado com prudência: exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do agente — pessoa singular — e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em representação ou em nome deste e no interesse colectivo. E tal responsabilidade tem-se por excluída quando o agente tiver actuado contra ordens expressas da pessoa colectiva».
Ao consagrar a responsabilidade penal das pessoas coletivas movidos por razões pragmáticas de política criminal sentidas na generalidade dos ordenamentos jurídicos,[14] o legislador ordinário concebeu um conjunto normativo capaz de evitar que da estreita relação existente entre o ente coletivo e os seus órgãos e representantes pudessem surgir práticas fraudulentas que, no âmbito do direito tributário, como nos demais domínios do direito penal secundário aludidos, permitissem fugir à satisfação dos deveres tributários e correlativa arrecadação das receitas fiscais e da segurança social, quer diretamente, quer torpedeando os mecanismos sancionatórios legalmente previstos.
A particular relevância social das obrigações tributárias e da segurança social, por um lado, e a especial configuração da responsabilidade criminal dos entes coletivos por infrações fiscais e contra a segurança social, por outro, explicam o regime draconiano vigente entre nós em matéria tributária para além, pelo menos, em matéria de crimes contra a economia e contra a saúde pública, que vai ao ponto de responsabilizar recíproca e solidariamente o ente coletivo e os titulares dos seus órgãos e representantes, para além de terceiros (em sentido estrito) coautores ou cúmplices -, pelos mesmos factos.
Como vemos, independentemente das referências críticas destes autores, ambos enquadram a obrigação solidária de pagamento de multa criminal como obrigação correlativa do crédito do Estado nascido da condenação principal ao pagamento de uma dada quantia a título de multa criminal. Ora, como diz, por todos, Manuel Cortes Rosa[15], “Não é a arrumação categorial atribuída a uma figura jurídica a decidir do regime respetivo, antes é mister que este regime, uma vez determinado, comande aquela arrumação.”
Não queremos dizer que a pena de multa perca a sua natureza criminal quando é inconvertível em prisão[16], como sucede quando aplicada a pessoas coletivas, mas que ao estabelecer a obrigação solidária pelo seu pagamento no art.º 8º nº7 do RGIT, o legislador perspetiva a multa apenas como dívida ao Estado, pretendendo garantir os cofres do Estado pelo seu pagamento, pelo que sujeita aquela obrigação ao regime positivo da obrigação civil solidária, independentemente das finalidades das penas.
Saber se a obrigação assim criada pelo legislador tributário é compatível com os princípios do direito penal e, sobretudo, da Constituição – quer deva reconhecer-se-lhe natureza civil ou penal, independentemente da intenção do legislador [17] - é a questão que verdadeiramente se coloca.
2.4.4. – Ora, relativamente à natureza da obrigação solidária, parece-nos que do regime estabelecido no RGIT e em lugares paralelos (vd supra) que preveem a responsabilidade solidária do ente coletivo pelo pagamento de sanções pecuniárias aplicadas aos seus agentes e órgãos e/ou a responsabilidade solidária destes pelas sanções aplicadas aos entes coletivos (como sucede no caso presente), resulta que esta obrigação pelo pagamento da sanção pecuniária é autonomizável como obrigação civil[18].
Afigura-se-nos, porém, que não é tal natureza decisiva no juízo de conformidade com a constituição, num duplo sentido.
Por um lado, mesmo a entender-se que a obrigação de pagamento da multa é indissociável da sua natureza de sanção criminal[19], a responsabilização solidária do órgãos ou agente do ente coletivo por tal pagamento não é proibida pelo art.º 30º nº3 da CRP. Entendemos assim em atenção (1) à especial relevância que a conduta da pessoa individual assume na responsabilidade penal do ente coletivo e (2) à natureza pecuniária ou patrimonial da pena de multa, associada à inaplicabilidade de qualquer outra consequência estritamente penal para a pessoa do obrigado solidário, que apenas responde pelo pagamento na medida do seu património.
Por outro lado, tenha natureza civil ou criminal, a conformidade constitucional da obrigação solidária legalmente estabelecida sempre há-de depender da sua conformidade com os princípios da culpa, da igualdade e com o princípio da proporcionalidade (invocados pelo recorrente e considerados na jurisprudência do Tribunal constitucional sobre o tema), para além do referido princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal e da proibição de ne bis in idem.
2.4.4.1. – Vejamos então um pouco mais de perto o art. 30º nº3 da CRP, que na atual redação, introduzida pela Lei 1/97, é do seguinte teor:
- “A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão”.
A redação originária do preceito, que se manteve até à aludida revisão de 1997, era a seguinte:” As penas são insusceptíveis de transmissão”. Conforme se diz no acórdão do TC n.º 160/04, “A evolução do texto constitucional (…) não se ficou, porém, a dever a qualquer intenção de transcender o domínio do direito penal (como, aliás, resulta claramente também da nova redacção), mas sim evitar que o princípio da intransmissibilidade se confinasse às situações em que a decisão de aplicação da lei penal transitara em julgado, sobrevindo apenas na fase da aplicação da pena.”.
A questão da sua inconstitucionalidade tal como procurámos enquadrá-la, passa, em primeiro lugar, pelo confronto da responsabilização solidária de órgãos e representantes com o referido princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal, o que exige um olhar um pouco mais atento, sobre este princípio, especialmente no que respeita à pena de multa.
a) Vejamos o que sobre o tema pode respigar-se em legislação mais remota, na doutrina penal e na jurisprudência, nomeadamente constitucional, tendo presente que, como dizem G. Canotilho e V. Moreira, CRP anotada, 4ª ed. p. 504, o sentido do princípio da pessoalidade das penas acolhido no art. 30º nº3, é o que se encontra estabilizado na doutrina e jurisprudência.
Germano M. Silva, refere-se-lhe como princípio da personalidade, o que implica “quesó o condenado fica sujeito à pena, não podendo esta ter quaisquer efeitos jurídicos sobre outras pessoas, mormente os familiares do condenado” – cfr Direito Penal Português III – 1999 p. 23. Cita aí, ainda, Basílio A. de Sousa Pinto, Lições de Direito Criminal de 1861, de quem transcreve o seguinte trecho: - «A qualidade é ser pessoal … isto é, que recaia sobre o delinquente e não sobre inocentes. As penas que recaem sobre outro, que não seja o criminoso, são aberrantes. […] tal é a pena de confiscação, a qual vai punir pessoas inocentes. O mesmo acontece com a pena de infâmia transmitida aos parentes, como entre nós sucedia no crime de lesa majestade que, segundo a frase da lei, fazia secar a árvore da geração, porque toda esta ficava infeccionada, e por consequência infame.».
Luís Osório[20], em comentário ao art. 123º do C.Penal/1886 (a que sucederia, com o mesmo texto, o art. 113º, em 1972 – vd infra) referia-se ao princípio da intransmissibilidade das penas como princípio referente à execução das penas, enquanto o princípio da personalidade da responsabilidade criminal se encontrava formulado no art. 28º do mesmo Diploma legal. Este art.º 28º do C.Penal/1886 consagrava o chamado princípio da individualidade da responsabilidade criminal, que, nas palavras de L. Osório, continha duas regras:
- 1ª - “A responsabilidade penal recai unicamente nos agentes dos crimes e contravenções”, pelo que a imputabilidade e responsabilidade penal são sempre pessoalíssimas, recaindo unicamente sobre aqueles agentes a obrigação de cumprir a pena. Da sua conjugação com o citado art. 123º resultava que as penas do delinquente não passariam em caso algum da sua pessoa, o que aquele autor expressamente considerava ser uma reação contra o confisco e contra as penas infamantes. Em sentido contrário ao princípio, o autor indicava a responsabilidade penal das pessoas encarregadas da vigilância do incapaz.
- 2ª. - A responsabilidade criminal recaía unicamente sobre os agentes da infração, de acordo com o princípio societas delinquere non potestas, segundo o qual os corpos coletivos não têm responsabilidade criminal, a qual pertence aos indivíduos que foram agentes dos crimes. Este corolário do princípio mantem-se como regra no art. 11º do C. Penal de 1982. A Lei 59/2007 de 4 de setembro incluiu no C.Penal a responsabilidade das pessoas coletivas e alargou consideravelmente os casos em que a lei penal a prevê, mas continua a cominá-la a título excecional, continuando a acolher como regra a responsabilidade das pessoas singulares.
Por sua vez, o art. 8º da Constituição de 1933 incluía entre os direitos e garantias individuais dos cidadãos o de “Não haver confisco de bens, nem transmissão de qualquer pena da pessoa do delinquente” (nº12), o que era reiterado pelo C. Penal de 1886 que no art.º 113º (na redação do dec-lei 184/72 de 31 de maio e, anteriormente, do art. 123º), estabelecia que “As penas não passarão em caso algum da pessoa do delinquente”.
Maia Gonçalves integra o princípio daintransmissibilidade das penas no princípio da individualidade da responsabilidade criminal (é esta a epígrafe do art. 28º do C.Penal de 1886), considerando que ambos representam desdobramento do princípio mais amplo da pessoalidade das penas.
No seu C. Penal Português. Notas de trabalho, os magistrados do MP do distrito judicial do Porto, consideram que o princípio da individualidade da responsabilidade criminal (art. 11º do C.,Penal/1982) aliado ao princípio da intransmissibilidade das penas, constituem o princípio da pessoalidade das penas (cfr p. 54), o que nos parece refletir a realidade normativa ainda hoje vigente, embora o princípio da individualidade tenha perdido importância e extensão, apontando a evolução legislativa no sentido de a responsabilidade das pessoas coletivas passar a ser regra no futuro.
b) Do que vimos (sem entrar em linha de conta com doutrina e jurisprudência mais recentes), parece-nos poder concluir-se que o princípio constitucional da intransmissibilidade da responsabilidade penal acolhido no art.º 30º nº3 da CRP, integra necessariamente o princípio da individualidade ou personalidade da responsabilidade penal, no sentido em que ninguém pode ser responsabilizado por ilícito penal no qual não tenha participado. Historicamente, esta dimensão do princípio sempre lhe tem estado associada e é ainda fortemente marcada pela reação contra efeitos das penas que se repercutiam de forma intolerável sobre terceiros, designadamente familiares, como é o caso do confisco geral de bens ou das penas infamantes. Nesta medida, o princípio tem como corolário a extinção da pena pela morte do responsável e a intransmissibilidade mortis causa dos efeitos das penas.
Por outro lado, é o condenado quem, necessariamente, deve cumprir a pena que lhe foi aplicada, em nome dos fins das penas, não podendo ser substituído por outro, quer se trate de pena privativa da liberdade, quer, em princípio, de pena não privativa da liberdade. Tal implica que a pena e seus efeitos não possa ser objeto de negócio inter-vivos, como seja a sub-rogação de efeitos das penas por terceiros ou a realização de seguros que visem assumir aspetos da responsabilidade penal. O que se diz para a transmissão voluntária da responsabilidade criminal, vale naturalmente para os casos em que é a lei a estabelecer hipóteses de transmissão daquela mesma responsabilidade, como poderá ser o caso sub judice (vd infra Damião da Cunha).
Como assinalam G. Canotilho e Vital Moreira (est. e loc. cit) os principais corolários do princípio constitucional da intransmissibilidade da responsabilidade criminal são, precisamente, (a) extinção da pena com a morte do agente, (b) proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros e (c) impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas.
Damião da Cunha in J. Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª ed. 2011, p. 683 refere-se ao princípio da pessoalidade e intransmissibilidade da responsabilidade criminal, que liga historicamente a reação ao direito penal, sobretudo da Monarquia absoluta, onde a infâmia do crime podia ser transmitida aos herdeiros do condenado e associa-lhe a impossibilidade de “substituição/transferência” por terceiro, quer voluntária, quer legal, e a extinção da pena com a morte do condenado.
Como refere Damião da Cunha (est. e loc. cit) o princípio “…não coloca, em regra, problemas na aplicação prática e assume-se hoje pacífico quanto à responsabilização de pessoas singulares ou de indivíduos, por qualquer título[21].
2.4.4.1.1.. - É realmente assim para a responsabilidade de pessoas singulares e também, em regra, para as penas privativas de liberdades ou de direitos, sejam elas penas principais, acessórias ou penas de substituição, cujo caráter pessoal ou pessoalíssimo praticamente não suscita divergências.
As dificuldades e eventuais especialidades surgem, porém, relativamente às penas patrimoniais, particularmente a pena de multa, quando um dos criminalmente responsáveis é uma pessoa coletiva ou outro ente coletivo. Precisamente a situação que nos ocupa.
Desde logo, como refere ainda Damião da Cunha (est. cit p. 684) não se poderá,” … sem mais, transpor aquele princípio da intransmissibilidade para o âmbito sancionatório (penal ou outro) de pessoas coletivas”, por razões que do ponto de vista penal nos parecem fazer todo o sentido. Por um lado, diz o autor, “não estará em causa, por forma tão evidente, a mesma ratio que preside à intransmissibilidade da responsabilidade de pessoas individuais – nomeadamente as ideias de culpa pessoal, de juízo de censura pessoal, de “sensibilidade” à pena, etc., consequências e traduções dos princípios da autodeterminação e da liberdade, etc. – e por outro, porque tais entidades, para atuarem, carecem de titulares/suportes individuais que, com base numa relação jurídica, as representem.”
Em todo o caso, o autor remete-nos para a jurisprudência constitucional aludida, relativa a responsabilidade subsidiária por coima para extrair a seguinte conclusão, apresentada sob forma interrogativa, condicionada ainda pelo princípio ne bis in idem. Deve ser regra a ideia segundo a qual todas as hipóteses de responsabilidade subsidiária pelo não pagamento de sanção penal ou contraordenacional aplicada a pessoa coletiva, pressupõem necessariamente um “juízo” autónomo, assente em critérios de decisão próprios (ou seja, com base na “censura” por violação de deveres decorrentes da “representação”, violação que tenha sido a causa para a insuficiência patrimonial da pessoa colectiva, subjacente ao não pagamento, ou para o não pagamento), critérios naturalmente diferentes daqueles que regulam a responsabilidade penal, pelo que estará em causa uma responsabilidade que não deve ser confundida (material ou processualmente) com a responsabilidade penal”. – Cfr ob. cit. p. 685.
Parece-nos, pois, que o autor tenderá a considerar inconstitucionais formas de responsabilização subsidiária (ou solidária) diretamente derivadas da participação em ilícito de outro”, mesmo que se trate da relação entre o ente coletivo e o seu órgão ou representante.
Afigura-se-nos, porém, sem entrar agora em linha de conta com o princípio ne bis in idem, que a importância decisiva do facto da pessoa individual na configuração legal da responsabilidade criminal dos entes coletivos e as particularidades das ideias de culpa pessoal, juízo de censura pessoal, apontadas pelo autor, quando estão em causa entes coletivos, permitem fundamentar um juízo de compatibilidade entre o princípio constitucional acolhido no art. 30º nº3 da CRP e a responsabilidade solidária (e, por maioria de razão, a responsabilidade subsidiária) do órgão ou representante pelo pagamento da coima ou multa criminal aplicada a ente coletivo, à luz daquele princípio.
Numa formulação necessariamente insatisfatória mas que possa traduzir o que pensamos sobre a questão, parece-nos o que está em causa são os termos em que pode falar-se em alteridade na relação entre o ente coletivo e o seu órgão ou representante na questão que nos ocupa. Isto é, sendo a pessoa física quem se determina, quem é capaz de culpa e de maior ou menor censura, sendo o seu comportamento que pode levar ao preenchimento do tipo legal imputado ao ente coletivo, ainda que em seu nome e no seu interesse, pode aceitar-se então que a responsabilidade pela multa aplicada ao ente coletivo constitua como que uma extensão da sua culpa e não um puro fenómeno de transmissão de uma culpa alheia.
Nunca a pessoa física solidariamente responsável estaria, pois, no papel do inocente que vê transferir-se para si a responsabilidade criminal de outrem, ideia esta que assume a maior importância na construção do princípio da pessoalidade da pena criminal ou da intransmissibilidade da responsabilidade criminal. Na procura de um conceito de pena válido independentemente do ordenamento em que vigore, Jakobs considera que «A pena é sempre reação ante uma infração de uma norma. Mediante a reação sempre se põe em evidência que deve respeitar-se a norma. E a reação demonstrativa sempre tem lugar à custa do responsável por ter infringido a norma (por à custa de entende-se neste contexto a perda de qualquer bem). Trata-se de um problema normativo; a atribuição de um acontecimento perturbador a quem há-de suportar os custos necessários para eliminar a perturbação[22]» .
Nesta concetualização pode ver-se bem a caraterística da sua pessoalidade como algo de intrínseco à própria noção de pena. É o autor do ilícito e os que nele participam – e só estes - que devem suportar as consequências jurídico-penais desse mesmo ilícito. Como diz ainda Jakobs, «Quando hoje se considera evidente que só pode responsabilizar-se por uma infração normativa a quem por si mesmo participou nela, ativamente ou por omissão, este ponto de vista pressupõe – juntamente com muitas outras condições – que os membros da sociedade pertençam a essa mesma sociedade diretamente (e não mediatamente, como p. ex. através de uma estirpe ou clã).» - Cfr ob. cit. p. 9. (tradução não técnica do castelhano, como os demais trechos traduzidos do castelhano).
Daí que alguns dos corolários da intransmissibilidade das penas não impeçam aparentes fenómenos de transmissão “mortis causa” ou inter-vivos quando está em causa a responsabilidade penal (ou contraordenacional das pessoas coletivas), contrariamente ao que sucede quando estão envolvidas apenas pessoas singulares.
O nº 8 do art.º 11º do C.Penal afasta expressamente a extinção da responsabilidade criminal nos casos de cisão ou fusão da pessoa coletiva ou equiparada, de harmonia, aliás, com o julgamento de não inconstitucionalidade formulado no ac TC 153/04, entre outros (v.g. 588/05), que começando por não negar a aplicabilidade do art. 30º nº3 CRP às pessoas coletivas, rejeitou “ a sua aplicação automática a situações de extinção de pessoas coletivas que substancialmente não sejam equivalentes à morte de pessoas singulares e que, por isso, não possam estar abrangidas pelo fim de proteção daquela norma».
Na mesma linha doutrinária também o Ac. TC 395/03 (entre outros), chamado a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade do art.º 7º do RGIT na parte em que prevê a responsabilidade penal de entes coletivos pelos atos dos seus órgãos ou representantes, entendeu não se mostrar violado o princípio do caráter individual da responsabilidade penal, ao considerar que “O ente colectivo não será responsabilizado por factos de terceiro, mas sim por factos praticados por um elemento da sua organização, actuando em seu nome e no seu interesse e sem desrespeitar ordens ou instruções de “quem de direito.”»
Ora, também a inversa é verdadeira, porquanto o titular do órgão ou representante da pessoa coletiva condenado ao pagamento solidário da pena de multa aplicada ao ente coletivo não é responsabilizado por facto de terceiro (o ente coletivo), mas ainda pela sua participação no facto que origina a responsabilidade penal cumulativa, pelo que não estamos perante verdadeira transmissão da responsabilidade criminal do ente coletivo para o seu órgão ou representante.Mais sentido faria a afirmação de sentido contrário mas, como vimos, o T. Constitucional sempre entendeu que a responsabilidade da pessoa coletiva derivada do facto do seu órgão ou representante não implicava transmissão da responsabilidade penal proibida pelo art. 30º nº3 da CRP.
2.4.4.1.2. Por outro lado, também a natureza patrimonial da pena de multa releva na conclusão de que a condenação solidária do titular do órgão ou representante do ente coletivo não é vedada pelo princípio da intransmissibilidade da responsabilidade criminal acolhido no art.º 30º nº3 da CRP.
Desde logo, não obstante o citado art. 8º do Constituição de 1933 e mesmo o art. 30º nº3 da CRP/76, o art. 87º do C.Penal/1886 (redação do dec-lei 184/72 de 31/05) admitia no seu § único que a obrigação de pagar a multa pudesse passar aos herdeiros do condenado se em vida deste a sentença de condenação tivesse passado em julgado, o que era explicado por Maia Gonçalves[23] com a natureza mista da multa, de reação criminal e civil, sendo transmissível aos herdeiros somente a responsabilidade civil, o que tornava aquela disposição compatível com o art.º 30º nº3 da CRP já vigente, que na redação originária de 1976 se referia à insusceptibilidade de transmissão das penas em vez da intransmissibilidade da responsabilidade penal que consta do preceito desde a revisão constitucional de 1997, como vimos.
Apesar de não poder falar-se em natureza mista da pena de multa, que assume antes a natureza irrestrita de pena criminal, ainda que não seja convertível em privação da liberdade[24] (como sucede quando aplicada às pessoas coletivas) e mesmo reconhecendo-lhe a generalidade dos efeitos que o Prof. F. Dias[25] associa à sua caraterização como pena pessoalíssima, a sua natureza pecuniária abre a porta a diferenças de regime, face às penas pessoais.
A diferença de efeitos das penas de natureza pessoal ou patrimonial (e, dentro destas, em função da extensão com que o património é afetado) permite-nos identificar um núcleo irredutível de pessoalidade e intransmissibilidade que engloba as penas essencialmente pessoais (como a prisão ou a PTFC) e as que implicam a privação total do património afetado, portanto, toda a descendência do agente, como é o caso do confisco geral de bens.
Fora deste núcleo, porém, pode questionar-se a transmissibilidade relativa das penas pecuniárias, como é o caso da pena de multa, não só porque não há uma privação total do património, mas também porque a fungibilidade dos meios voluntários de cumprimento da pena (máxime o pagamento da multa) sempre deixa em aberto a hipótese de serem terceiros a suportá-la efetivamente.
Assim, sempre que as finalidades das penas, máxime as finalidades de prevenção geral o permitam ou aconselhem, vemos na pena de multa e outras sanções pecuniárias campo para uma maior abertura à transmissão de penas, que sempre admitiria a obrigação solidária de pagamento da multa (ou coima) por agente do órgão ou representante de ente coletivo, à luz do princípio consagrado no art. 30º nº3 da CRP. É verdade que este preceito não distingue entre as penas (tal como não distingue entre os agentes de crimes que sejam pessoas singulares e os que sejam entes coletivos), mas é a própria natureza das penas e a raiz e teleologia do princípio constitucional que fundamentarão a diferença.
A obrigação solidária de pagamento da multa aplicada ao ente coletivo, que o art.º 8º nº7 faz impender sobre os seus órgãos ou representantes é, porém, compatível com os princípios da culpa e da proporcionalidade, bem como com a proibição do ne bis in idem?
2.4.4.2. - Conforme síntese de Taipa de Carvalho, a proibição contida no nº5 do art. 29º da CRP, « …de “duplo julgamento” pela prática do mesmo crime constitui e continua a constituir uma garantia do cidadão frente a possíveis arbitrariedades do “jus puniendi” estadual. Assim a “ratio” e o alcance deste princípio é o da proibição de um novo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido e o da proibição de dupla punição pela prática do mesmo crime.» Também G. Canotilho e V. Moreira, entendem que o princípio engloba “…a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime” - cfr CRP anotada 4ª ed. p. 497.
É esta última dimensão do princípio que aqui está em causa, na medida em que a responsabilidade solidária do órgão ou representante pelo pagamento da multa aplicada ao ente coletivo, pode configurar-se como uma segunda sanção pela participação no mesmo ilícito[26] pelo qual foi condenado em pena própria.
Sobre questão próxima, mas que não se confunde com esta, decidiu já o Ac TC 212/95 que “a responsabilização pelo mesmo crime, da pessoa coletiva e do seu representante, não viola, o princípio ne bis in idem, pois o princípio não obsta a que pelo mesmo objetivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas jurídicas distintas, sendo por isso igualmente passíveis de sanções diferentes.
No mesmo sentido decidiram os acórdãos 9/99, 134/01 e 389/01 e pronuncia-se o Prof. Germano Marques da Silva[27], partindo igualmente da clara diferenciação entre a conduta da pessoa coletiva e a do seu órgão ou representante, apesar da estreita conexão existente entre ambas.
Como se vê, a questão aí decidida é diversa. No caso presente está em causa a responsabilidade pelo pagamento da multa criminal aplicada ao outro para além da responsabilidade pela pena aplicada ao próprio e não a aplicação de diferentes sanções a pessoas diferentes ainda que pelo mesmo facto, como sucede, aliás, na comparticipação.
Ainda que formalmente as penas aplicadas à pessoa individual e ao ente coletivo constituam sanções autónomas, no plano material a responsabilidade patrimonial da pessoa singular pela multa aplicada ao ente coletivo não deixa de configurar-se como consequência jurídica derivada do mesmo ilícito penal pela qual foi já punida mediante a aplicação direta de pena criminal.
Todavia, o reconhecimento de natureza civil à obrigação solidária de pagamento parece que permite a sua compaginação com o princípio ne bis in idem, na medida em que este surge como princípio da constituição processual penal reportado à duplicação da sanções de natureza penal.
Por outro lado, independentemente de reconhecermos natureza civil à obrigação de pagamento da multa nos termos que deixámos expostos, sempre lhe será aplicável a regra das obrigações solidárias segundo a qual o obrigado solvente mantem direito de regresso contra o obrigado principal, conforme refere expressamente o art.º 11º nº 9 do C. Penal atual para a obrigação subsidiária aí estabelecida. A obrigação de pagamento configura-se, pois, como obrigação de garantia por dívida alheia, pelo que é esta a “segunda” consequência jurídica derivada do crime para o titular do órgão ou representante e não a imposição de uma segunda sanção a título principal e definitivo, a acrescer à pena aplicada nos termos do art.º 7º do RGIT, na sua atual versão.
2.4.4.3 - Porém, esta obrigação solidária, que em si mesma poderá considerar-se ainda tolerada pelo princípio da proibição do ne bis in idem, face à sua natureza civil e ao direito de regresso contra o ente coletivo, não pode ser vista de forma tão simples nem desligada de outros princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da proporcionalidade e o princípio da culpa, expressamente invocados pelo recorrente.
Em primeiro lugar, o exercício do direito de regresso pode ser infrutífero em número significativo de casos por falta de património do ente coletivo, tanto mais que no RGIT, como nos casos previstos no Dec-lei 28/84, a pena de multa pode ser aplicada cumulativamente com a pena de dissolução nos crimes mais graves, contrariamente ao regime geral atualmente previsto no C.Penal que não prevê a aplicação cumulativa de ambas as penas ao ente coletivo. Mesmo que não se verifique a inexistência ou insuficiência do património do ente coletivo, o exercício do direito de regresso até à sua efetividade, pode representar um encargo excessivo para a pessoa singular.
Em segundo lugar, a medida da sanção aplicada ao ente coletivo não é determinada em função da culpa do órgão ou representante e das suas condições pessoais, apresentando-se, também por esta via, desproporcionada para o potencial económico da pessoa singular, pelo que o seu pagamento pode frequentemente depauperar de forma significativa o seu património, de pouco lhe valendo o hipotético regresso futuro do que prestou.
Na verdade, quer a moldura legal da pena de multa aplicável ao ente coletivo, quer os quantitativos diários legalmente previstos, quer a sua medida concreta, é necessariamente delimitada e determinada em função da superior capacidade económica dos entes coletivos, sob pena de frustração das finalidades das penas, quer geral, quer especial.
Tal circunstância, porém, para além de pôr em causa o princípio da proporcionalidade coloca igualmente em crise o princípio da culpa.
Os art.ºs 12º e 15º da Lei 15/2001 (RGIT) estabelecem para a multa aplicável a pessoas singulares o limite geral mínimo de 10 dias e máximo de 600 dias e o quantitativo diário entre 1 e 500€, sendo os limites gerais aplicável às pessoas coletivas e entidades equiparáveis de 20 e 1920 dias de multa, fixando-se o quantitativo diário entre 5 e 5000€. Estes limites legais do quantitativo diário representam o quíntuplo e o décuplo, respetivamente, dos previstos para as pessoas singulares.
Por sua vez, o nosso modelo de punição envolvendo as pessoas coletivas assenta no sistema de punição cumulativa ou paralela, em que a determinação da pena contra o ente coletivo deve depender da situação e das possibilidades desta e não da pessoa singular[28], reclamando-se mesmo uma maior densificação dos critérios a que deve obedecer a determinação da pena de multa a aplicar aos entes coletivos, atentas as suas especificidades[29].
A pena concreta a aplicar ao ente coletivo tem que ser graduada em função da sua capacidade económica e não da do seu órgão ou representante, ao mesmo tempo que deve considerar-se para a pena do ente coletivo a sua motivação própria para o crime e a medida da ventagem que procura ou realiza, aferida em função do interesse do ente coletivo que a pessoa singular prossegue com a conduta ilícita.
A culpa associada à prática de um ilícito penal por uma pessoa coletiva tem, pois, para efeitos de escolha e determinação da pena conteúdos distintos, consoante esteja em causa a pena a aplicar à pessoa singular e ao ente coletivo.
Neste sentido, a responsabilização da pessoa singular pela sanção aplicada ao ente coletivo, rectius, pelo pagamento aos cofres públicos da pena de multa aplicada à pessoa coletiva de acordo com as especificidades da culpa desta[30] e da sua situação económica e mesmo social, não respeita o princípio da culpa.
Ainda que não estejamos perante uma pena da pessoa singular, a obrigação solidária de pagamento do órgão ou representante tem a sua génese na prática de ilícito penal pelo qual o ente coletivo é cumulativamente sancionado, surgindo aquela obrigação como consequência jurídica deste facto, pelo que, se bem vemos o problema, sempre há que respeitar as apontadas dimensões do princípio constitucional da culpa por facto ilícito enquanto limite intransponível da responsabilidade exigível ao agente de crime.
A obrigação solidária prevista no art. 8º nº7 para o órgão ou representante respeita o princípio da culpa (e da pessoalidade das penas) quanto aos pressupostos da responsabilidade respetiva, uma vez que a culpa imputável ao obrigado solidário é condição do nascimento da situação de responsabilidade, mas - conforme se diz no citado Ac TC 481/2010 - essa mesma culpa do agente individual é inteiramente desconsiderada na determinação da multa a aplicar ao ente coletivo.
Para a determinação do montante da multa são indiferentes as circunstâncias que lhe dizem pessoalmente respeito, como a modalidade da culpa, a sua gravidade, a situação económica, relevando apenas as circunstâncias relativas ao ente coletivo, como referido. O obrigado solidário responde pelo pagamento da multa como responderá o devedor principal, mas tendo em conta na fixação do quantum de multa apenas circunstâncias que não respeitam à sua pessoa. Daí que, não dependendo a graduação da sua responsabilidade do grau de culpa do obrigado e das circunstâncias que rodearam a sua atuação, se mostre desrespeitado o princípio da culpa, enquanto limite inultrapassável da medida da sua responsabilidade.
Também o princípio da proporcionalidade se mostra violado, como aludido, na medida em que os limites da sanção aplicável ao ente coletivo são demasiado elevados para a pessoa singular, em resultado de estes limites não serem estabelecidos, abstratamente, em função da pessoa singular mas sim do ente coletivo, que, como vimos, é justamente tomado pelo legislador como dispondo de maior capacidade económica. A multa concretamente aplicada ao ente coletivo, revela-se, assim, à partida, desproporcionadamente agravada relativamente à pessoa singular a quem é exigido, em primeira linha, o seu pagamento, em virtude de a mesma ser fixada dentro de uma moldura ajustada à natureza própria da personalidade coletiva do devedor principal. (cfr o citado Ac. do TC 481/2010).
A instrumentalização da função repressiva a fins de garantia traduzidos na intenção legislativa de satisfazer o montante integral do crédito correspondente à multa, embora legítima dentro de certos limites, é aqui levada longe de mais pelo direito penal secundário. A solução legal em causa pode mesmo dar origem a situações de verdadeiro sufoco económico das pessoas singulares que se veem confrontadas com o dever legalmente imposto de satisfazerem o pagamento do valor de sanções penais determinadas, em regra, por critérios legais desfasados da sua pessoa.
Parafraseando ainda o citado Ac TC 481/2010, também o princípio da igualdade é posto em causa quando se parificam as situações do ente coletivo e do seu órgão ou representante, quanto ao objeto da obrigação de pagamento do montante da multa, apesar de serem estruturalmente diferentes do ponto de vista do sujeito responsável. A irrelevância da conduta e da situação do obrigado solidário para a definição do quantum da multa devida, não só em face do ente coletivo mas também de outros eventuais co-obrigados, abre a porta a situações de grave desproporcionalidade e desigualdade.
Para além dos termos deste acórdão do T. Constitucional (rel. Joaquim de Sousa Ribeiro), também as declarações de voto apostas no Ac TC 437/2011 (e repetidos no Ac TC 561/2011), apontam neste mesmo sentido, valendo por maioria de razão para o caso dos autos, a argumentação expendida aí a propósito da obrigação subsidiária por contraordenação.Corroborando o entendimento expresso no Ac 481/2010 a esse propósito, Maria João Antunes refere expressamente na sua declaração de voto, mostrar-se violado o princípio da proporcionalidade que se extrai do art. 2º da CRP, em virtude de a determinação da medida da sanção não ser feita em função da culpa e da situação económica do agente obrigado ao seu pagamento.
Esta conclusão parece-nos válida independentemente da natureza penal ou civil da obrigação solidária imposta ao órgão ou representante do ente coletivo igualmente condenado, apesar de entendermos, nos termos expostos, que deve reconhecer-se natureza civil à obrigação solidária de pagamento da multa imposta no nº 7 do art. 8º do RGIT ao órgão ou representante do ente coletivo que colabore dolosamente na prática de crime tributário, dando lugar à sua condenação pela autoria do crime respetivo nos termos do art. 7º do RGIT cumulativamente com o ente coletivo em nome e no interesse de quem agiu.
2.4.4. - Concluímos, pois, pela inconstitucionalidade da norma do nº7 do art. 8º da CRP por violação dos princípios da culpa (art. 1º e 27º nº1, da CRP), da igualdade (art. 13º) e da proporcionalidade (arts 2º e 18º), razão pela qual desaplicamos esta mesma norma, por imposição do art. 204º da mesma CRP, revogando a decisão recorrida na parte em que decidiu “Declarar os arguidos solidariamente responsáveis pelas multas a que foram, respectivamente, condenados nos termos do disposto no artigo 8.º n.º 7 do RGIT”, embora apenas relativamente ao arguido, uma vez que a sociedade arguida não interpôs recurso da sentença condenatória e o juízo de inconstitucionalidade agora formulado não é automaticamente transponível para esta última.
Procede, pois, o recurso parcialmente.
III. Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido JE, desaplicando a norma constante do nº7 do art. 8º do RGIT aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de junho, com as alterações posteriores, por considerarmos a mesma materialmente inconstitucional por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, conforme exposto.
Consequentemente, revoga-se a decisão recorrida na parte em que declarou o arguido, JE,solidariamente responsável pela multa em que foi condenada a co-arguida D..., Lda, mantendo no mais a sentença condenatória recorrida.
Sem custas, dado o provimento parcial do recurso e o disposto na atual redação do art. 513º do CPP, tendo em conta que os presentes autos tiveram o seu início em 29.06.2009.
Évora, 20 de março de 2012
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)
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(António João Latas)
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[1] Vd, por todos, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, U.C.Editores-2009 pp. 314-327.
[2] Em rigor, pelos titulares dos seus órgãos, apesar de a lei se referir aos órgãos do ente coletivo (v.g. art.º 7º do RGIT ou no nº4 do art. 11º do C.Penal), precisamente porque a responsabilidade deriva necessariamente da responsabilidade individual, conforme decorre claramente do art. 11º nº1 do C.Penal.
[3] Vd sobre este ponto, por todos, Isabel Marques da Silva, Responsabilidade Fiscal Penal Cumulativa. Das Sociedades e dos seus Administradores e Representantes, U.C.Editora – 2000, designadamente p. 153.
[4] Responsabilidade Penal das Sociedades, p. 443. Vd ainda Direito Penal Tributário, U.C. supracitado p. 204 e sgs e Jorge Lopes de Sousa e M. Simas Santos, Regime Geral das Infrações Tributárias-2008, p. 99.
[5] E antes dela nos acórdãos do TC 129/2009 e 150/2009.
[6] Também na fundamentação do Ac do Plenário do TC nº 437/2011 se refere que, “Nas duas situações [al. a) e al. b) do nº1 do art. 8º do RGIT] o quadro legal exige a verificação da culpa dos eventuais responsáveis subsidiários na não satisfação do crédito público resultante das multas ou coimas em causa, seja por um não pagamento culposo das mesmas no caso da al. b), seja pelo facto da insuficiência do património societário causadora do não pagamento a eles lhes ser imputável, como dispõe a al. a).”.
Já no Ac TC n.º 129/2009 (publicado no Diário da República, IIª Série, de 16-04-2009), a propósito das normas das alíneas a) e b) do n.º1 do artigo 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, se considerara que o que “ … artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT… prevê é uma forma de responsabilidade civil, que recai sobre administradores e gerentes, relativamente a multas ou coimas em que tenha sido condenada a sociedade ou pessoa colectiva, cujo não pagamento lhes seja imputável ou resulte de insuficiência de património da devedora que lhes seja atribuída a título de culpa.”
[7] Menos ainda poderia falar-se da indemnização por dano causado á administração fiscal ou à segurança social, pois o pagamento da multa criminal, quer pelo condenado principal quer pelos condenados solidários, é devido ao IGFI (Instituto de Gestão financeira e de Infra-Estruturas da justiça, nos termos do art. 36º do Regulamento das Custas Processuais (RCP)), pelo que o não pagamento da multa não implica qualquer dano para a administração tributária ou a segurança social - cfr o Ac RP de 30.11.2011 (Rel. Eduarda Lobo) e Ac RG de 12.04.2010 (Rel. Margarida Almeida), podendo ler-se neste último: “…. Ora, a impossibilidade de cobrança coerciva de uma pena de multa criminal não implica para a administração fiscal qualquer dano, pois o destino dos montantes devidos a este título é, nos termos previstos no artº 512 do C.P.Penal, o que for fixado no C.C.Judiciais – no caso, tais quantitativos são recebidos e devidos ao IGFI (Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, I. P.), nos termos do artº 36 do RCP.
Queremos com isto dizer que a receita não obtida, face ao não pagamento da pena de multa criminal imposta à sociedade arguida, se destinava a entidade diversa da administração fiscal pelo que esta, em bom rigor – e mesmo fazendo apelo à construção jurídica que o T. Constitucional realiza – não será nunca credora de qualquer quantia, a este título, face à sociedade aqui arguida.
Na verdade, nada tendo a receber em sede de pena de multa criminal – por os montantes a este título devidos serem destinados a entidade diversa – a ausência de cobrança da mesma não determina qualquer dano para a Administração Fiscal, inexistindo assim qualquer fundamento ressarcitório que torne legalmente admissível a aplicação do vertido no dito artº 8º do RGIT e a subsidiária responsabilização do gerente.”
[8] Vd as criticas feitas a este enquadramento jurídico no Ac TC 481/2010.
[9] Vd Acs RP de 23.06.2010 (rel. Élia Pedro), de 12.01.2011 (rel. Mª da Graça Silva), de 28.09.2011 (rel. Vasco Freitas), do TRC de 13.12.2011 (Rel. Brízida Martins) e do TRG de 21.11.2011 (c/voto de vendido de Isabel Cerqueira), bem como os acórdãos desta Relação de Évora de 11.10.2011 e 18.10.2011 (rel. João M. Amaro e Fernando R. Cardoso, respetivamente),
[10] Afastaram a natureza civil da obrigação solidária que nos ocupa o Ac RP de 30.11.2011 supracitado, concluindo que “…não decorre do nº7 do art. 8º do RGIT a responsabilidade solidária do administrador ou gerente, co-arguido, pelo cumprimento da pena de multa criminal imposta à co-arguida pessoa colectiva. E entendimento diverso traduziria clara violação do princípio constitucional ne bis in idem e do princípio da intransmissibilidade das penas”.
[11] Por outro lado, mesmo a entender-se que a responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores (grosso modo) pelo pagamento de coima não teria natureza civil, ainda assim em todas as situações apreciadas pelo T. Constitucional estava em causa o pagamento de coima, como aludido, e não pode considerar-se assente que o princípio da intransmissibilidade das penas consagrado no art. 30º nº3 da CRP seja aplicável às contraordenações. Também Maria João Antunes na declaração de voto aposta no citado Ac TC 437/2011 acompanhou o entendimento segundo o qual a intransmissibilidade “…da responsabilidade penal (art. 30º nº3 da CRP) não se estende à responsabilidade contraordenacional”, citando ainda no mesmo sentido os acórdãos do TC 129/2009 e 150/2009.
[12] Cfr Augusto Silva Dias, O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro in AAVV Direito Penal Económico e Europeu, Vol. II, Coimbra Editora-1999 p. 250.
Conforme vimos, o Tribunal Constitucional não sufragou esta tese
[13] Cfr Klaus Tiedemann, Derecho penal y nuevas formas de criminalidade (trad. de Manuel A. Vásquez), Editora Jurídica Grijley, Lima-2007, p.97.
[14] Vd o estudo citado de K. Tiedmann.
[15] O problema da aplicabilidade de multas às pessoas colectivas por violação de deveres fiscais in AAVV Direito Penal Económico e Europeu, Vol. II, Coimbra Editora-1999 p. 55.
[16] Vd a crítica desta ideia em Manuel Cortes Rosa, est. e loc. citado na nota antecedente
[17] Como assinala Tiedemann, ainda a propósito da responsabilidade penal das pessoas coletivas, “ A terminologia não é decisiva em face da tendência observada em importantes tribunais constitucionais, os quais não se sentem necessariamente vinculados pelas declarações do legislador quando se trata de determinar a natureza de uma sanção.” – Cfr est. e loc. cit. p. 109
[18] João Castro e Sousa assinala vários exemplos no direito fiscal dos anos de 1970 e anteriores de responsabilidade solidária da pessoa coletiva pelo pagamento de multa criminal aplicada aos seus representantes legais, que o autor expressamente qualifica de responsabilidade civil – Cfr As pessoas Colectivas. Biblioteca Jurídica. Coimbra Editora-1985, pp164-171.
[19] Nuno Brandão, referindo-se criticamente à doutrina que traça uma distinção entre a responsabilidade pelo cometimento da infração e uma responsabilidade pelo pagamento da sanção a partir da disciplina legal da comunicabilidade da responsabilidade pelo pagamento da pena de multa, apelida esta solução de “…autêntica burla de etiquetas, o travestir de responsabilidade pelo cumprimento da sanção aquilo que na realidade é uma autêntica transmissão da responsabilidade penal, ainda que operada por via legal” – cfr O regime das pessoas coletivas na revisão do código penal in Revista do CEJ número 8 (especial)-2008 p. 51.
[20] Cfr Notas ao Código Penal Português, I - 1923, p. 386 e 114-5.
[21] In J. Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2ª ed. 2011, p. 683.
[22] G. Jakobs, Derecho Penal. Parte General, 2ª ed. , Madrid 1997, Marcvial Pons, p. 8
[23] Cfr C.Penal Português, 5ª ed. Almeidna-1980 p. 226.
[24] Como enfatiza Cortes Rosa, “Independentemente de ser ou não convertível em prisão quando o condenado não a possa pagar, a multa é, em si, uma privação de bens jurídicos. O Estado comina-a e aplica-a, no caso das pessoas singulares, a autores de condutas antijurídicas, em ordem à prossecução de fins retributivos e preventivos. E é indubitável que a multa tem aptidão para prosseguir tais fins, mesmo sem a ameaça da convertibilidade em prisão” – Cfr est. citado p. 55.
[25] Cfr- Consequências jurídicas do crime, §122º
[26] Sobre questão próxima, mas que não se confunde com esta, decidiu já o TC que “a responsabilização pelo mesmo crime, da pessoa coletiva e do seu representante, não viola, o princípio ne bis in idem. No Ac 212/95 entendeu-se que o princípio não obsta a que pelo mesmo objetivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas jurídicas distintas, sendo por isso igualmente passíveis de sanções diferentes. No mesmo sentido decidiram os acórdãos 9/99, 134/01 e 389/01.
Como se vê, a questão é diferente porque no caso presente está em causa é a responsabilidade pelo pagamento da multa criminal aplicada ao outro ente, para além da responsabilidade pela pena aplicada ao próprio e não a aplicação de diferentes sanções a pessoas diferentes ainda que pelo mesmo facto, como sucede, aliás, nos casos de comparticipação.
[27] Cfr Direito Penal tributário citado p.301.
[28] Vd Tiedemann, est. e loc. cit. p. 110.
[29] Vd Nuno Brandão, est. cit. p. 46.
[30] Embora possa entender-se que a diferenciação em sentido forte da conduta do agente material e do ente coletivo não goza de completa aderência à realidade, a verdade é que não há completa sobreposição entre o facto do órgão ou representante e do ente coletivo, pois tratando-se de uma imputação e culpa essencialmente normativas são muitos os espaços de autonomia., justificando-se em parte.