CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Sumário


Não comete o crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º1, al. b) do Código Penal, quem não cumpre a decisão judicial que o condenou a entregar a carta de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito da mesma, com a cominação de, não o fazendo, cometer aquele crime.[1]

Texto Integral


Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO

Nos presentes autos de Processo Comum (Tribunal Singular) com o nº 154/10.8TAPSR, do Tribunal Judicial de Ponte de Sôr, foi o arguido AJ, melhor identificado a fls. 60, acusado pela prática, como autor material, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, al. b), do Código Penal, por não ter entregue a sua carta de condução no tribunal ou em qualquer posto policial, depois de notificado para o efeito e de advertido que o incumprimento o faria incorrer em crime de desobediência.

Por despacho judicial, datado de 05-07-2011, a acusação foi rejeitada, entendendo-se que a mesma é manifestamente infundada (os factos nela descritos não constituem crime).
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O Ministério Público, inconformado, interpôs recurso, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AJ, imputando-lhe a prática do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

2. Por douto despacho de 5 de Julho de 2011, a Mma. Juíza a quo rejeitou a acusação público deduzida pelo Ministério Público por manifestamente infundada.

3. Decorre dos elementos carreados para os presentes autos que, na sentença proferida nos autos de Processo nº ---/09.6GBPSR, foi cominada com o crime de desobediência a falta da entrega da carta de condução pelo arguido, no prazo de dez dias após o trânsito, trânsito esse que ocorreu.

4. Com o trânsito em julgado da sentença dos autos de Processo nº ---/09.6GBPSR, consolidaram-se na ordem jurídica todos os efeitos penais dali decorrentes, nos termos do artigo 467.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

5. Não devia o Tribunal considerar não ser legítima nem emanar de autoridade competente aquela cominação com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art. 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pela falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.

6. Não será de efectuar uma interpretação minimalista do artigo 348.º, n.º 1, aliena b), do Código Penal, pois, caso contrário, estar-se-ia a esvaziar a norma nos casos em que a advertência é feita, como o foi na sentença condenatória proferida no Processo nº ---/09.6GBPSR, a fim de garantir o cumprimento da pena acessória por parte do arguido e, nessa medida, proteger a autonomia intencional do Estado e do funcionário.

7. O crime de desobediência consumou-se com a omissão do acto determinado, consubstanciada, in casu, com a falta de entrega da carta de condução pelo arguido no prazo de dez dias após o trânsito.

8. Se se entender que não é legítimo cominar a falta de entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência e se o arguido recusasse a entrega da carta perante a autoridade policial, nos termos do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não haveria quaisquer consequências para o incumprimento.

9. Com efeito, se o Tribunal não puder, desde logo, no acórdão condenatório, cominar com a prática de crime a falta de entrega da carta de condução, também a autoridade policial, num segundo momento que viesse a ocorrer e na sequência do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não poderia cominar com tal crime a eventual e reiterada falta de entrega daquele documento por parte do arguido perante as autoridades policiais.

10. A conduta do arguido de não entrega voluntária da carta e não se logrando proceder à apreensão daquele documento nos termos do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, culminaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.

11. A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais, pois, a assim não ser, equivaleria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse.

12. A cominação com o crime de desobediência obsta à pretensão do arguido que pretenda subtrair-se ao cumprimento da pena acessória em que foi condenado por sentença e reforça a confiança da comunidade na validade da norma penal violada.

13. A cominação funcional do crime de desobediência foi efectuada na prossecução discricionária da competência que lhe é atribuída pelos artigos 470º e 499°, n.º 6, ambos do Código de Processo Penal.

14. O disposto no artigo 69º n.º 4 do Código Penal, no que ao Ministério Público concerne, apenas faz sentido se o juiz titular puder efectuar a cominação com a prática do crime de desobediência.

15. O legislador distingue a sanção acessória de inibição de conduzir da pena acessória de proibição de conduzir, sendo tal diferença reforçada no art.º 160.º do Código da Estrada, que estende a cominação com o crime de desobediência a ambas as situações.

16. Existindo no âmbito do Direito Contra-ordenacional uma disposição legal a prever a cominação da desobediência simples no caso de desrespeito do dever de entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir - artigo 160º, n.º 3 do Código da Estrada - não se compreenderia que a punição da mesma conduta não fosse possível, ainda que através de cominação funcional do crime de desobediência, estando em causa uma infracção criminal.

17. O legislador deu ao juiz o suporte legitimador para, no exercício das suas funções de autoridade com competência para ordenar as providências necessárias para a execução da pena acessória, cominar com o crime de desobediência, a não entrega da carta a título voluntário.

18. A norma do art.º 160.º do CE apenas serve de suporte legitimador da cominação funcional a efectuar pelo Juiz pela não entrega da carta de condução, na sequência da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir.

19. A norma do artigo 160.º, n.os 1 e 3 do CE não prevê directamente a cominação com o crime de desobediência, apenas servindo de elemento interpretativo.

20. Não havendo norma específica a cominar com crime de desobediência no seio das disposições destinadas à regulação da pena acessória de proibição de conduzir, aplica-se a alínea b) do art.º 348.º,n .º 1 do CP.

21. Destarte, teria sempre de haver cominação funcional pelo juiz, nos termos da al. b) do n.,º 1 do art.º 348.º do CP, cuja legitimidade é fundamentada pelo conteúdo da sobredita norma do Código da Estrada.

22. Todavia, ainda que se entenda que é de aplicar a alínea a) do n.º 2 do art.º 348.º do CP, por referência ao art.º 160.º do CE, a redução do prazo de 15 para 10 dias não é fundamento de ilegalidade substancial, uma vez que o sentido previsto pela norma está totalmente transmitido pela cominação legal e pela expressão oral do julgador, uma vez que os elementos essenciais foram transmitidos, a saber: dever de entrega da carta de condução no Tribunal ou qualquer posto policial sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

23. No seguimento desse entendimento, a questão da redução do prazo de entrega apenas terá interesse jurídico se o arguido entregar a carta para lá dos dez dias, mas ainda dentro do prazo dos 15 dias previsto na norma contra-ordenacional, caso em que o arguido cumpre a cominação existente na norma legal do art.º 160.º do CE.

24. Os factos pelos quais o arguido se encontra acusado integram a prática do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, n.º 1, al. b) do Código Penal.

25. A acusação pública deveria ter sido recebida.

26. Ao não o fazer, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 348º, n.º 1, al. b) do Código Penal e 311º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.

Pelo que, dando provimento ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido e ordenando a sua substituição por outro a determinar o recebimento da acusação pública proferida e designação de data para a audiência, Vossas Excelências farão, como sempre, a costumada Justiça”.
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O arguido não apresentou resposta ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.

A questão suscitada no presente recurso reduz-se a saber se os factos constantes da acusação pública em apreciação consubstanciam ou não um crime de desobediência.

2 - A decisão recorrida.

O despacho revidendo é do seguinte teor (integral):

“Autue como Processo Comum, com intervenção de tribunal singular.
O Tribunal é competente.

O Ministério Público deduziu acusação contra Aj imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, porquanto o mesmo, notificado para entregar a sua carta de condução no tribunal ou qualquer posto policial e advertido que o incumprimento de tal ordem o faria incorrer em crime de desobediência, não o fez.

Cumpre apreciar e decidir.

Deduzida acusação, de natureza pública ou particular, impõe-se ao juiz proceder ao recebimento da acusação, ao abrigo do disposto no artigo 311º, procedendo ao saneamento e verificação da regularidade do processo.

Prescreve o artigo 311º do Código de Processo Penal que:

“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284.º, n.º 1, e 285.º, n.º 3, respectivamente.

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime.”

Esta fase preliminar do julgamento inicia-se com o saneamento do processo, nos termos estabelecidos no artigo 311.º, do Código Processo Penal, que tanto pode incidir sobre aspectos adjectivos, como relativamente a aspectos substantivos.

Os primeiros tanto podem consistir em questões incidentais ou prévias, como em nulidades (n.º 1, n.º 2, al. a)) com particular destaque para aquelas que podem afectar a acusação e que sejam de conhecimento oficioso.

Nestas destaca-se, por estar expressamente consagrado, as circunstâncias de rejeição da acusação por vícios processuais respeitantes à falta de identificação do arguido, à narração dos factos, de indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas que a fundamentam (n.º 3, al. a), b), c)).

Nestes aspectos processuais susceptíveis de saneamento, também encontramos aqueles que representam uma alteração substancial dos factos, tanto da acusação particular, como pública, enunciado no artigo 311.º, n.º 2, alínea b).

Os aspectos substantivos reportam-se ao mérito da causa, que tanto podem incidir sobre questões prévias ou incidentais, como sucede, a título de exemplo, com a extinção do procedimento criminal, como podem representar um julgamento antecipado da causa, mas que se restringirá à rejeição da acusação em virtude dos factos narrados nesta não constituírem crime (311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d)).

Esta fase de saneamento preliminar é essencialmente vocacionada para apreciar a regularidade do processo e só apenas extraordinariamente do mérito da causa, porquanto o conhecimento desta é, por excelência, destinado ao julgamento.

No caso concreto, imputa-se ao arguido a prática de um crime de desobediência pela não entrega da carta de condução, em desobediência a cominação efectuada em sede de audiência de julgamento.

Entende este Tribunal que, atenta a posição assumida quanto à prática deste tipo legal de crime, importa atender ao mérito da acusação formulada.

Pratica o crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea a) do Código Penal:

“1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandados legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição com desobediência simples;

b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente citação.”

O tipo legal do crime de desobediência visa a tutela penal do bem jurídico que é o interesse do Estado no cumprimento das instruções legítimas dos seus agentes ou órgãos, em matéria de serviço e ordem públicos, por parte daqueles a quem são dirigidas (vd. o Acórdão da Relação do Porto de 20/05/87, CJ, XII, t. III. pp. 225). Por outro lado, e ao requerer que tais instruções sejam regularmente comunicadas (e até que, na ausência de previsão legal, seja expressamente cominada, por quem as dita, a punição do seu incumprimento), o legislador penal não deixou de tomar em consideração que quem as recebe necessita de ter um conhecimento exacto do seu teor, e de estar ciente da necessidade do seu acatamento para poder determinar-se em conformidade, isto é, para tomar uma atitude fiel ao direito.

Assim, a ordem ou mandado têm que se revestir de legalidade substancial, ou seja, têm que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente.

Por outro lado, exige-se a legalidade formal que se traduz na exigência de as ordens ou mandados serem emitidos de acordo com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão.

Requer-se, ainda, que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, isto é, que aquilo que pretendam impor caiba na esfera das suas atribuições.

Por fim, os destinatários têm que ter conhecimento da ordem a que ficam sujeitos, o que exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido.

No caso concreto funda-se a acusação formulada contra o arguido na cominação expressa de incriminação que a lei impõe que o agente da autoridade efectue, motivo pelo qual cai na previsão da alínea b) do referido artigo 348º do Código Penal.

“Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger dessa forma toda e qualquer ordem de autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência” (Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 18ª Edição, página 1045).

Temos assim duas posições jurisprudenciais distintas no que concerne à presente incriminação.

Passemos a analisar ambas para melhor sustentação da posição a assumir nos autos.

É jurisprudência maioritária, mormente junto do Tribunal da Relação de Coimbra, que o preceito que regula a execução da proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Mais se pugna que resulta claramente da norma (artigo 69º, nº 2 do código Penal e 500º, nº 3 do Código de Processo Penal) que o legislador previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão e que se o legislador prevê que a não entrega da carta de condução tem como consequência a sua apreensão, então a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega, contraria manifestamente o espírito da norma, entendendo-se que sendo intenção do legislador cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, o mesmo tê-lo-ia consignado expressamente.

Mais se consigna em sede da posição exposta que as normas dos artigos 69º, nº 3 do código Penal e 500º, nº 3 do Código de Processo Penal esgotam a previsão legal da situação fáctica, surgindo a cominação funcional como funcionalmente desnecessária e excessiva.

Estamos, assim, em sede de uma análise que se prende com a legalidade substancial e formal da cominação consignada pela não entrega da carta de condução.

Prescreve o artigo 500º, nº 2 do Código de Processo Penal que “no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo”.

Mais consigna o n.º 3 do referido preceito que “se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.

Entende-se inexistir qualquer cominação legal de punição de não entrega como crime de desobediência, carecendo o julgado de legitimidade para a realizar na medida em que a lei prevê mecanismo executivo para o comportamento omissivo do condenado, com emprego de meios coercivos, constituindo o meio próprio para a efectiva execução da pena acessória.

Mais se aventa que a norma do artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código tem natureza subsidiária, na medida em que a autoridade ou o funcionário só podem fazer tal cominação quando o comportamento em causa não constitua ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra, só sendo válida se se erigir a cominação materialmente legítima em nome da intervenção penal de ultima ratio.

Existindo uma norma legal que prevê a entrega coerciva da carta de condução e sendo a mesma idónea a produzir o efeito pretendido falece a condição essencial à cominação mais gravosa, a saber a legitimidade.

Neste sentido os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Abril de 2010 (Processo nº 253/08.6TAVGS.C1), de 14 de Outubro de 2009 (Processo nº 513/05.8TAOBR.C1), e de 22 de Outubro de 2008 (Processo nº 43/08.6TAALB.C1), todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt .

A posição contrária, a qual pugna pela legalidade e legitimidade da cominação efectuada pelo legislador e a existência de correspondente crime de desobediência, ancora-se na interpretação sistemática da ordem de entrega e respectiva cominação com o todo do ordenamento jurídico em vigor.

Defende-se que o Código da Estrada prevê, para os casos de aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir, que a falta de entrega da carta no prazo de 15 dias após a notificação para o efeito faz incorrer o responsável na prática do crime de desobediência, nos termos do artigo 160º, nº 3 do respectivo diploma legal.

Argúem que não é compreensível que a falta de entrega da carta para cumprimento de sanção de natureza administrativa aplicável a contra-ordenação seja cominada com o crime de desobediência, enquanto que a mesma falta para cumprimento de pena acessória judicialmente decretada e que não tenha consequência sancionatória alguma. Mais se pugna que a notificação efectuada para entrega de carta não pode ter apenas valor informativo, já que o artigo 69º do Código Penal é claro no sentido, em que 10 dias após o trânsito em julgado, o arguido deve entregar a sua carta de condução, sendo a ordem de entrega legítima e o seu não cumprimento reveste desvalor criminal enquanto inobservância de uma injunção judicial.

Chama-se à colação a unidade do sistema jurídico, não tendo cabimento descriminalizar a referida conduta no âmbito criminal na medida em que não se pode sustentar um regime mais benévolo para sanção de natureza criminal que o da contra-ordenação correspondente.

Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Março de 2010 (Processo nº 470/04.8TAOER.L1-3), do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Novembro de 2009 (Processo nº 1952/08.8TAVNG.P1) e do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 14 de Novembro de 2009 (Processo nº 103/07.0TACDN.C1) todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

Esgrimidos os argumentos que sustentam as duas teses que sobre a questão suscitada nos autos são convocados no debate jurisprudencial, importa assumir nos autos a posição deste Tribunal.

Efectivamente aderem-se aos argumentos plasmados na primeira das posições explanadas, considerando-se que, tratando-se a intervenção penal da ultima ratio, e existindo mecanismo coercivo para cumprimento e controlo efectivo da condenação em pena acessória de inibição de condução - a apreensão da carta de condução por mandado judicial -, falece a legitimidade para a realização e comunicação da cominação de incursão em crime de desobediência pela não entrega da carta de condução.

Nestes termos, entende-se inexistir por parte do arguido a prática de um crime de desobediência, nos termos consignado na acusação, por insusceptibilidade da conduta integrar a prática de tal tipo legal de crime.

Por tal razão, rejeita-se a acusação deduzida pelo Ministério Público contra Aj, por se entender a mesma por manifestamente infundada dada a circunstância dos factos em causa não constituírem crime, nos termos do disposto no artigo 311.º, nº 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal.

Notifique.

Declaro extinta a medida de coacção aplicada ao arguido.

Oportunamente, arquive”.

3 - Elementos relevantes à decisão.

Com relevância para a decisão a proferir há que considerar os factos seguintes:

a) O arguido foi condenado, no Processo Sumário nº ---/09.6GBPSR, do Tribunal judicial de Ponte de Sôr, por sentença transitada em julgado em 11-02-2009, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, nº 1, e 69º, nº 1, do Código Penal, para além de numa pena de multa, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses.

b) O Mmº Juiz que proferiu a condenação determinou, logo na decisão condenatória, a notificação do arguido para proceder à entrega da respectiva carta de condução na secretaria do Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, “sob pena de, não o fazendo, incorrer no crime de desobediência, e de a mesma lhe ser apreendida, nos termos do artigo 348º do Código Penal (cfr. artigos 69º, nº 3, do Código Penal, e 500º, nº 2, do Código de Processo Penal)”.

c) A notificação ao arguido, presente na audiência de discussão e julgamento, teve lugar de imediato.

d) O arguido, porém, não procedeu à entrega da carta de condução nos locais e no prazo estabelecidos, não cumprindo, desse modo, o que lhe foi ordenado na dita sentença condenatória.

e) Em 16-05-2011, o arguido foi acusado, nos presentes autos, como autor material de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, al. b), do Código Penal (fls. 60 e 61), acusação essa que a Mmª Juíza a quo, mediante o despacho recorrido, rejeitou.

4 - Apreciação do mérito do recurso.

A questão suscitada no presente recurso consiste em saber se, não tendo entregue a carta de condução no prazo que lhe foi concedido pelo Mmº Juiz, que o condenou, para além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir (notificando-o para proceder à entrega da carta de condução, no prazo de 10 dias, sob cominação de desobediência), o arguido cometeu ou não o crime de desobediência que o Ministério Público lhe imputa na acusação (liminarmente rejeitada pela Mmª Juíza a quo, que entende que tais factos não constituem crime).

Há que ponderar e decidir.

Dispõe o artigo 348º, nº 1, do Código Penal:

Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.

Como se vê, o tipo objectivo de ilícito tem os seguintes elementos:

- A ordem ou mandado;
- A sua legalidade formal e substancial;
- A competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
- A regularidade da sua transmissão ao destinatário;
- O conhecimento pelo agente dessa ordem.

Materialmente, verifica-se um acto de desobediência quando se falta à obediência devida, sendo certo que só é devida obediência a ordem ou mandato legítimos.

Como bem salienta Cristina Líbano Monteiro (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, Parte Especial, Tomo III, pág. 351), “condição necessária de legitimidade é a competência em concreto da entidade da qual emana a ordem ou o mandado. Para que o destinatário saiba se está ou não perante uma ordem ou um mandado desse tipo, torna-se indispensável que este chegue ao seu conhecimento e pelas vias normalmente utilizadas - que lhe seja regularmente comunicado. Faltar à obediência devida não constitui, porém, por si só, facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige, para além do que fica dito, que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado”.

Adverte Maia Gonçalves (in “Código Penal Português - Anotado e Comentado”, Almedina, 10ª ed., pág. 893), a propósito da disposição contida no artigo 348º do Código Penal, que se trata “de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e porque isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência”.

A amplitude deste tipo legal de crime foi (de novo) ponderada pela Comissão de Revisão do Código Penal (cfr. “Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, Distribuidora Rei dos Livros, 1993, págs. 408 e 409), sendo de destacar as seguintes passagens da discussão que teve lugar no seio dessa comissão de revisão: “para o Senhor Conselheiro Sousa e Brito torna-se no entanto necessário restringir o âmbito de aplicação do artigo, pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem. Justifica-se plenamente uma restrição àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena. Por outro lado entende que o mandato, por exemplo, deveria ter lugar com a cominação da pena. O Sr. Dr. Costa Andrade, concordando no plano dos princípios com o Sr. Conselheiro Sousa e Brito, frisou o facto de se operar uma alteração muito profunda, a ponto de desarmar a Administração Pública. O mesmo tipo de considerações teceu o Sr. Professor Figueiredo Dias (a solução da exigência da norma legal seria a melhor), mas há que ter consciência da Administração Pública que temos. A Comissão acordou na seguinte solução, de molde a afastar o arbítrio neste domínio e numa tentativa de clarificar o alcance da norma para o aplicador: (…)” – segue o texto actual da norma em causa.

Daqui decorre, a nosso ver, claramente, que, para a existência deste tipo legal de crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1 do artigo 348º do Código Penal, é necessário ainda que, em alternativa, se verifique também o condicionalismo de alguma das alíneas desse mesmo nº 1 do artigo 348º.

Ora, in casu, e desde logo, o preceito legal que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Na verdade, dispõe o artigo 500º, nº 2, do C. P. Penal: “no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo”.

E acrescenta o nº 3 desse mesmo artigo 500º do C. P. Penal: “se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução”.

Com o devido respeito por opinião contrária, de tais disposições legais resulta, a nosso ver, manifestamente, que o legislador previu, expressamente, para a falta da entrega (voluntária) da carta de condução, a sua apreensão.

A este propósito, e conforme bem escreve Cristina Líbano Monteiro (ob. citada, pág. 354), “a alínea b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (isto é, mesmo um preceito não criminal), prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal”.

Ou seja, se o legislador prevê, expressa e claramente, que a não entrega da carta de condução (por parte do agente condenado em proibição de conduzir) tem como consequência a sua apreensão, afigura-se-nos que a cominação da prática de um crime de desobediência para tal conduta de não entrega, ainda que feita pelo Juiz que procede à condenação, contraria o sentido da norma (artigo 500º, nº 3, do C. P. Penal) e constitui uma injustificada criminalização dessa mesma conduta de não entrega.

Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega (voluntária) da carta de condução - entrega que decorre dos termos da lei e que não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito - tem como consequência a determinação da sua apreensão, razão pela qual, e com o devido respeito pela opinião contrária, entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da não entrega da carta de condução acaba por contrariar o sentido da norma.

A esta luz, podemos afirmar que a notificação que é feita ao arguido para, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar a sua carta de condução, não integra uma ordem legítima, entendida esta legitimidade no sentido de que, sendo tal ordem desrespeitada, o arguido incorre na prática de crime de desobediência - pois da não entrega da carta de condução decorre apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.

Alega o Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente que, existindo, no âmbito do direito contra-ordenacional, uma disposição legal a prever a cominação da desobediência simples no caso de desrespeito do dever de entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir (artigo 160º, nº 3, do Código da Estrada), não se compreenderia que a punição da mesma conduta não fosse possível, ainda que através de “cominação funcional” do crime de desobediência, estando em causa uma infracção criminal.

Contudo, e com o devido respeito, tal argumento não contraria o que acima dissemos.

A norma contida no artigo 348º, nº 1, al. b), do Código Penal (que prevê a referida “cominação funcional”) é, no fundo, uma norma em branco, a qual tem (e deve ter) um carácter absolutamente subsidiário, na medida em que a autoridade ou o funcionário só podem impor uma tal “cominação” se ela for, além do mais, necessária e materialmente legítima, em obediência a um modelo de intervenção mínima do direito penal, constitucionalmente consagrado (artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa).

Se a lei prevê uma forma de executar a pena acessória de proibição de conduzir (a apreensão da carta), não pode o julgador sancionar criminalmente a falta de entrega da carta de condução, mas apenas, isso sim, mandar cumprir a lei (ordenando a apreensão da carta).

A solução é a apreensão da carta em causa (artigo 500º, nº 3, do C. P. Penal), não havendo qualquer outra sanção para o incumprimento da obrigação de entrega, não sendo legítimo ao intérprete e/ou ao aplicador da lei substituir-se ao legislador e “inventar” (com o devido respeito) uma nova cominação, perfeitamente dispensável, e, por isso, totalmente ilegítima.

Acresce, e é importante para o que agora nos ocupa, que a entrega da carta de condução tem a mera função de possibilitar a execução (e permitir o controlo da mesma) da pena acessória de proibição de conduzir.

Ora, se a apreensão da carta de condução permite, na íntegra, satisfazer essa função, não é possível ao aplicador da lei lançar mão de uma “ordem” e de um crime de “desobediência” para, no fundo, coisa nenhuma.

Existindo uma norma legal que prevê a entrega coerciva da carta de condução, e sendo a mesma idónea a produzir o efeito pretendido, falece, assim, a nosso ver, a condição essencial à cominação mais gravosa: a legitimidade.

É, pois, necessário esgotar os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da obrigação de entrega da carta de condução (no caso, a apreensão da mesma), residindo aí a condição da legitimidade material da ordem, também em nome do princípio da proporcionalidade.

O juiz, ao cominar o crime de desobediência para a situação sub judice descura, manifestamente (com o devido respeito), o princípio da proporcionalidade (podendo até afirmar-se, bem vistas as coisas, que a proporcionalidade da cominação é ela própria condição da legitimidade material da ordem judicial).

Por conseguinte, não secundamos a argumentação exposta pelo Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente, quando invoca o disposto no artigo 160º, nº 3, do Código da Estrada (aliás, seguindo tais argumentos, e como a lei penal não prevê, directamente, ao contrário da lei contra-ordenacional, a desobediência na situação ora em apreço, haverá que interpretar a lei penal de acordo com a lei estradal, o que, parece-nos óbvio, é um absurdo).

O que nos compete fazer é, isso sim, uma correcta e criteriosa aplicação dos princípios constitucionais considerados estruturantes na nossa ordem jurídica, e não uma mera comparação de regimes (o penal e o contra-ordenacional), pois esta comparação nenhuma relevância possui (argumentar, para tipificar um crime, com recurso a uma norma do Código da Estrada, que sanciona contra-ordenações, é até, em si mesmo, e com o devido respeito, totalmente descabido).

Não se pode equiparar (como parece pretender o Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente) a cominação da desobediência quanto à prática de determinada acção, determinada por lei, com a cominação (pura e simples) da desobediência quanto à prática de determinada acção, determinada pelo juiz ou por outra autoridade.

O juízo da tipificação de uma certa conduta como crime é um juízo que deve estar reservado para o legislador (democraticamente legitimado), não havendo que fazer equiparações quando foi o próprio legislador que não as quis fazer (sob pena de acrescentarmos nós, aplicadores do Direito, ao arsenal penal, logo à partida, mais uma incriminação).

O legislador assinalou consequências diferentes para a não entrega da carta de condução, conforme se trate de contra-ordenação ou de crime. Há, tão-só, que respeitar essa opção.

Em suma: não se pode, sob pena de violação dos princípios da legalidade e da proporcionalidade, pretender consagrar como desobediência um eventual comportamento posterior omissivo da entrega da carta de condução, quando, manifestamente, repete-se, existe solução expressa na lei para essa omissão (a apreensão da carta).

E sob pena ainda, se seguíssemos o entendimento contrário, de chegarmos a uma conclusão absurda (e invertida): a de possibilitar a cominação do crime de desobediência antes sequer de o tribunal ordenar (e tentar) a apreensão da carta (como in casu aconteceu), quando esta apreensão é, sem margem para dúvidas, imposta por lei (artigo 500º, nº 3, do C. P. Penal).

A cominação do crime de desobediência, suporte da acusação pública rejeitada pela Mmª Juíza a quo, carece, assim, de suporte legal, falecendo, por isso, a legitimidade da ordem a que o arguido desobedeceu.

Em consequência, bem andou o tribunal de primeira instância ao rejeitar a acusação, por manifestamente infundada (os factos nela descritos não constituem crime).

Posto tudo o que precede, é totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 27 de Março de 2012.

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Maria de Fátima Mata-Mouros)

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[1] - Breve nótula sobre a questão: Em sentido divergente do aqui decidido podem ver-se, entre outros, os acórdãos desta Relação de Évora de 24-03-2011 (relator Sénio Alves), de 14-06-2011 (relator Pedro Vaz Pato), e de 31-01-2012 (relatores Ana Brito e António João Latas), publicados in www.dgsi.pt