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VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
DESOBEDIÊNCIA
Sumário
A falta de entrega pelo arguido da carta de condução no prazo cominado, a contar do trânsito em julgado da sentença que lhe aplicou a pena acessória de proibição de conduzir, constitui crime de desobediência punível nos termos do art.º 348.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, e não nos termos da al.ª b) dessa mesma disposição legal.
Texto Integral
I
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Tribunal Judicial de Ponte de Sôr, o arguido R respondeu, acusado de ter cometido um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353.º, do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi o arguido absolvido da prática desse crime.
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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido R, imputando-lhe a prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.
2. Por sentença de 25 de Maio de 2011, a Mma. Juíza a quo absolveu o arguido do crime em causa.
3. A Mm.ª Juíza deveria ter condenado o arguido pelo crime do art.º 353.º do CP, uma vez que a inserção da palavra “imposições” na alteração de 2007 teve como objectivo incluir os casos de incumprimento de imposições resultantes de penas acessórias, como é o caso nos presentes autos.
4. Não se compreenderia que a não entrega da carta no âmbito do Código da Estrada seja susceptível de integrar o crime de desobediência simples e o incumprimento da imposição de entrega da carta para cumprimento de pena acessória no quadro do Direito Penal fosse punível com pena menos gravosa ou nem sequer punível.
5. Todavia, não concordando a Mm.ª Juíza a quo com a integração dos factos dados como provados no art.º 353.º do CP, sempre teria de aplicar o art.º 348.º, n.º1, al. b) do Código Penal.
6. Decorre dos elementos carreados para os presentes autos que, na sentença proferida nos autos de Processo nº 74/09.9GBPSR, foi cominada com o crime de desobediência a falta da entrega da carta de condução pelo arguido, no prazo de dez dias após o trânsito, trânsito esse que ocorreu.
7. Com o trânsito em julgado da sentença dos autos de Processo nº 74/09.9GBPSR, consolidaram-se na ordem jurídica todos os efeitos penais dali decorrentes, nos termos do artigo 467.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
8. Não devia o Tribunal considerar não ser legítima nem emanar de autoridade competente aquela cominação com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art. 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, pela falta de entrega da carta de condução no prazo de dez dias após o trânsito.
9. Não será de efectuar uma interpretação minimalista do artigo 348.º, n.º 1, aliena b), do Código Penal, pois, caso contrário, estar-se-ia a esvaziar a norma nos casos em que a advertência é feita, como o foi na sentença condenatória proferida no Processo nº ---/09.9GBPSR, a fim de garantir o cumprimento da pena acessória por parte do arguido e, nessa medida, proteger a autonomia intencional do Estado e do funcionário.
10. O crime de desobediência consumou-se com a omissão do acto determinado, consubstanciada, in casu, com a falta de entrega da carta de condução pelo arguido no prazo de dez dias após o trânsito. 11. Se se entender que não é legítimo cominar a falta de entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência e se o arguido recusasse a entrega da carta perante a autoridade policial, nos termos do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não haveria quaisquer consequências para o incumprimento.
12. Com efeito, se o Tribunal não puder, desde logo, no acórdão condenatório, cominar com a prática de crime a falta de entrega da carta de condução, também a autoridade policial, num segundo momento que viesse a ocorrer e na sequência do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não poderia cominar com tal crime a eventual e reiterada falta de entrega daquele documento por parte do arguido perante as autoridades policiais.
13. A conduta do arguido de não entrega voluntária da carta e não se logrando proceder à apreensão daquele documento nos termos do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, culminaria na ausência de quaisquer consequências para a recusa do arguido em cumprir a pena acessória a que está obrigado.
14. A eventual recusa de o arguido cumprir com a pena acessória, traduzida na falta da entrega da carta de condução, parece-nos ser merecedora de suficiente dignidade a valorar em termos penais, pois, a assim não ser, equivaleria a admitir-se a possibilidade de deixar à consideração do arguido a decisão de cumprir ou não com tal pena acessória, ou de cumpri-la apenas quando entendesse.
15. A cominação com o crime de desobediência obsta à pretensão do arguido que pretenda subtrair-se ao cumprimento da pena acessória em que foi condenado por sentença e reforça a confiança da comunidade na validade da norma penal violada.
16. A cominação funcional do crime de desobediência foi efectuada na prossecução discricionária da competência que lhe é atribuída pelos artigos 470º e 499°, n.º 6, ambos do Código de Processo Penal.
17. O disposto no artigo 69º n.º 4 do Código Penal, no que ao Ministério Público concerne, apenas faz sentido se o juiz titular puder efectuar a cominação com a prática do crime de desobediência.
18. O legislador distingue a sanção acessória de inibição de conduzir da pena acessória de proibição de conduzir, sendo tal diferença reforçada no art.º 160.º do Código da Estrada, que estende a cominação com o crime de desobediência a ambas as situações.
19. Existindo no âmbito do Direito Contra-ordenacional uma disposição legal a prever a cominação da desobediência simples no caso de desrespeito do dever de entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir - artigo 160º, n.º 3 do Código da Estrada - não se compreenderia que a punição da mesma conduta não fosse possível, ainda que através de cominação funcional do crime de desobediência, estando em causa uma infracção criminal.
20. O legislador deu ao juiz o suporte legitimador para, no exercício das suas funções de autoridade com competência para ordenar as providências necessárias para a execução da pena acessória, cominar com o crime de desobediência, a não entrega da carta a título voluntário.
21. A norma do art.º 160.º do CE apenas serve de suporte legitimador da cominação funcional a efectuar pelo Juiz pela não entrega da carta de condução, na sequência da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir.
22. A norma do artigo 160.º, n.os 1 e 3 do CE não prevê directamente a cominação com o crime de desobediência, apenas servindo de elemento interpretativo.
23. Não havendo norma específica a cominar expressamente com crime de desobediência no seio das disposições destinadas à regulação da pena acessória de proibição de conduzir, aplica-se a alínea b) do art.º 348.º,n .º 1 do CP.
24. Destarte, teria sempre de haver cominação funcional pelo juiz, nos termos da al. b) do n.,º 1 do art.º 348.º do CP, cuja legitimidade é fundamentada pelo conteúdo da sobredita norma do Código da Estrada.
25. Todavia, ainda que se entenda que é de aplicar a alínea a) do n.º 2 do art.º 348.º do CP, por referência ao art.º 160.º do CE, a redução do prazo de 15 para 10 dias não é fundamento de ilegalidade substancial, uma vez que o sentido previsto pela norma está totalmente transmitido pela cominação legal e pela expressão oral do julgador, uma vez que os elementos essenciais foram transmitidos, a saber: dever de entrega da carta de condução no Tribunal ou qualquer posto policial sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência. 26. No seguimento desse entendimento, a questão da redução do prazo de entrega apenas terá interesse jurídico se o arguido entregar a carta para lá dos dez dias, mas ainda dentro do prazo dos 15 dias previsto na norma contra-ordenacional, caso em que o arguido cumpre a cominação existente na norma legal do art.º 160.º do CE.
27. Os factos pelos quais o arguido se encontra acusado integram a prática do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do CP.
28. Todavia, caso não se concorde com tal inserção sistemática, dever-se-á proceder à aplicação do art.º 348º, n.º 1, al. b) do Código Penal, de acordo com os fundamentos atrás expostos, condenando-se o arguido pela não entrega da carta no prazo estipulado.
29. Pelo exposto, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 353.º do Código Penal.
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O arguido respondeu, pugnando pela manutenção do decidido.
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Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1. Por sentença proferida no âmbito do Processo Sumário nº ---/08.5GBPSR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ponte de Sôr, transitada em julgado a 03 de Setembro de 2008, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses e dez dias.
2. Mais foi aí determinado que o arguido, a fim de cumprir esse período de inibição, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença, deveria entregar a sua carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial.
3. Porém, apesar de tal, o arguido não entregou, em tal prazo e naqueles locais, a carta de condução, tal como lhe havia sido imposto.
4. O arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que com a sua conduta não cumpria a obrigação que lhe havia sido imposta por sentença criminal no âmbito do Processo Sumário nº ---/08.5GBPSR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ponte de Sôr.
5. Mais sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei.
6. O arguido encontra-se reformado por invalidez, desde 1987, auferindo uma pensão no valor mensal de € 230,00.
7. Vive com a sua mãe, que gere os seus rendimentos.
8. O arguido tem por habilitações literárias o 2.º ano de escolaridade.
9. Do certificado de registo criminal do arguido consta:
-por sentença transitada em julgado em 03 de Setembro de 2008, no âmbito do processo que correu termos pelo Tribunal Judicial de Ponte de Sôr, o arguido foi condenado pela prática em 03 de Julho de 2008, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º e 69.º, nº 1, alínea a), na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses e dez dias, a qual se encontra extinta pelo cumprimento.
# -- Factos não provados:
Inexistem factos não provados.
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Fundamentação da convicção:
Nos termos do disposto no artigo 374º n.º 2 do Código de Processo Penal, deve o Tribunal indicar as provas que serviram para formar a sua convicção e bem ainda proceder ao exame crítico das mesmas.
No caso sub judice a convicção do Tribunal sobre a factualidade considerada provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, globalmente considerada e de acordo com as regras da experiência comum.
Concretamente valorou o Tribunal as declarações do arguido que referiu não ter procedido à entrega da carta de condução por esquecimento, julgando que seria notificado para proceder à entrega da carta e que mal a mesma lhe foi pedida pelos militares da GNR a entregou de imediato.
Mais depôs, de forma isenta e credível, acerca da sua situação pessoal.
Valoraram-se, ainda, os documentos juntos a fls. 3 a 13 (certidão de sentença proferida no Processo nº ---/08.5GBPSR); fls. 14 e 15 e fls. 32 e 33 (certidão do termo de apreensão de carta de condução no Processo nº 181/08.5GBPSR) e o que da literalidade dos mesmos resulta.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido o Tribunal atentou no constante de certificado de registo criminal junto aos autos.
# Em sede da fundamentação de Direito e enquadramento jurídico dos factos, o tribunal expendeu o seguinte:
Apurados os factos, importa proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.
Para que um agente possa ser jurídico penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo.
O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos do tipo legal de crime.
Vem imputada ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punível pelo artigo 353.º do Código Penal.
Dispõe o mencionado artigo 353.º que “Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”
O bem jurídico protegido com a presente incriminação traduz-se, nas palavras de Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 400, na não frustração de sanções impostas por sentença criminal e, bem ainda, na não frustração das penas aplicadas no âmbito do processo especial sumaríssimo. Constituem elementos objectivos do tipo: a violação de imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal; aplicadas a título de pena em processo sumaríssimo, pena acessória ou medida de segurança não privativa da liberdade.
Estamos perante uma proibição sempre que se mande não fazer, abster-se de uma conduta; quando o mandado é positivo, cria para o destinatário uma imposição, uma obrigação.
Por seu turno a interdição é passível de ser imposta por sentença criminal a título de medida de segurança não privativa da liberdade.
Ficam excluídas do tipo as sanções acessórias do direito de mera ordenação social, e bem ainda as penas acessórias não violáveis e penas ou medidas de segurança cujo regime preveja as consequências jurídico-penais do seu incumprimento – neste sentido vide Cristina Líbano Monteiro, in ob. cit. pág. 401.
Constituem proibições, expressamente previstas no Código Penal, entre outras: a proibição de exercício de função (artigo 66º); a suspensão do exercício de função (artigo 67º); a proibição de conduzir veículos motorizados (artigo 69º) e a inibição do poder paternal, da tutela ou da curatela (artigo 179º).
Por seu turno constituem exemplos de interdições, plasmadas no Código Penal, entre outros: interdição de actividades (artigo 109º) e cassação da licença e interdição da concessão da licença de condução de veículo motorizado (artigo 101º).
Ao nível do elemento subjectivo estamos perante um crime doloso, devendo o dolo integrar a representação de que a sua conduta viola uma imposição, proibição ou uma interdição e ainda a consciência de que essa imposição violada constitui uma pena aplicada em processo sumaríssima ou de que a proibição ou interdição violadas formam parte de sentença criminal. * Posto isto vejamos se os referidos elementos do tipo se encontram preenchidos, vertendo ao caso concreto.
Defendemos que a conduta do arguido, condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, com a cominação tal desrespeito importaria a prática de um crime de desobediência, ou seja, de omissão de entrega da carta de condução no prazo fixado na lei e indicado na sentença, não integra o crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal.
A disposição legal prevista no referido artigo 353.º consagra que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória e não as imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
Assim, apenas é autor de um crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória, no caso concreto da condenação em pena acessória de inibição de conduzir veículos, quem conduzir e, assim sendo, já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória, mormente a não entrega a carta de condução, que constitui uma obrigação processual.
Pugnamos que a obrigação de entrega da carta não constitui parte do núcleo e conteúdo da própria pena acessória.
Nestes sentido, citamos os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra datados de 20 de Janeiro de 2010 (Processo n.º 672/08.8TAVNO.C1), de 24 de Fevereiro de 2010 (Processo n.º 117/09.6TAVNO.C1), de 06 de Outubro de 2010 (Processo n.º 24/09.2TAVGS.C1), em sede dos quais se consigna que “o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só. Entende-se, pois, que a norma do artigo 69.º, n.º 3 é meramente processual, ordenadora do cumprimento da pena e com função de controle deste mesmo cumprimento (…), demonstrando-o, aliás, o facto de estar “repetida” no artigo 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. (…) Quer dizer (…) que as normas que processualmente regulamentam a execução da pena acessória estão sistematicamente bem delimitadas no Código. O substrato material da pena que aqui nos interessa é a proibição de conduzir, tão só (…), excluindo-se dela o acto de entrega da carta como elemento integrante desse substrato.
Logo, se o arguido condenado não entrega a carta, como é sua obrigação processual, então é ordenada a apreensão. Enquanto não entregar, não se inicia o cumprimento da pena.
Concretizada a apreensão, inicia-se o cumprimento da pena. Se no período que dura a proibição o arguido conduzir, então põe em causa a imposição resultante da pena acessória e comete o crime de violação de proibições. Assim, a falta de entrega da carta constitui obrigação processual do condenado não punível. Consequentemente não integra os elementos objectivos do tipo de ilícito do artigo 353.º do Código Penal”.
Assim, o tipo de violação de proibições prevê como conduta criminosa a voluntária violação de imposições ou proibições que integrem o conteúdo duma pena acessória, a qual se reconduz à proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 04 meses.
Assim, defendendo-se e pugnando-se que o artigo 353.º do Código Penal não consente a integração nele de comportamentos processuais prévios à execução da sanção acessória, mas tão só comportamentos ou proibições que a integrem, concluímos que a conduta do arguido não integra a prática do crime pelo qual vinha acusado.
* IV. DECISÃO:
Pelo exposto supra, o Tribunal decide julgar improcedente a acusação e consequentemente, decide-se:
a) Absolver o arguido R, como autor material, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punível pelo artigo 353.º do Código Penal.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a única questão posta ao desembargo desta Relação é o de aferir se os factos assentes como provados têm ou não relevância jurídico-criminal, designadamente se integram a prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353.º, do Código Penal.
Como concordamos com a fundamentação jurídica da decisão recorrida em que não se verifica no caso o cometimento pelo arguido do crime por que vinha acusado de violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo art.º 353.º do Código Penal, vejamos se, não obstante, os factos assentes como provados integram a prática de outro ilícito, qual seja o de desobediência p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1, do Código Penal.
Estabelece o n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal que:
Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
Embora na sentença proferida no âmbito do Processo Sumário nº ---/08.5GBPSR até conste que houve uma ordem de entrega da carta de condução sob a cominação do cometimento do crime de desobediência – o que permitiria a integração da conduta (também) pelo n.º 1 al.ª b) do preceito legal citado –, entendemos que a falta de entrega da carta de condução por arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor preenche o crime de desobediência p. e p. pelo n.º 1 al.ª a).
É que, não obstante nem do art.º 69.º, n.º 3, do Código Penal, nem do art.º 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nas suas actuais redacções[1], resultar a incriminação dessa conduta, ela surge com toda a nitidez do art.º 160.º, n.º 1 e 3, do Código da Estrada[2].
Aonde se prevê que:
1 – Os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir. 2 – …
3 – Quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à entidade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º 1, esta notificação ser efectuada com a notificação da decisão.
Esta incriminação não constava da versão originária do Código da Estrada, uma vez que os n.ºs 1 e 3 do seu art.º 161.º apenas se referiam à apreensão de cartas e licenças de condução para cumprimento de inibição de conduzir ou de cassação, medidas a que se referiam os art.º 141.º e 150.º do mesmo Código, que tinham como fundamento a violação de normas de mera ordenação social.
O Código da Estrada não curava então da apreensão de títulos de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor prevista no art.º 69.º do Código Penal.
Aquele diploma (o Código da Estrada) foi, porém, alterado, pela primeira vez, pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3-1, aprovado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 97/97, de 23-8.
Através da al.ª c) do art.º 3.º desta Lei, o Governo ficou autorizado a prever «a punição como crime de desobediência da não entrega da carta ou licença de condução à entidade competente pelo condutor proibido ou inibido de conduzir ou a quem tenha sido decretada a cassação daquele título».
Cumprindo essa incumbência, o Governo deu ao que passou a ser o art.º 167.º do Código da Estrada a seguinte redacção:
1 – As cartas ou licenças de condução devem ser apreendidas para cumprimento da cassação da carta ou licença, proibição ou inibição de conduzir. 2 – …
3 – Nos casos previstos nos números anteriores, o condutor é notificado para, no prazo de 20 dias, entregar a carta ou licença de condução à entidade competente, sob pena de desobediência.
Esta disposição manteve-se, embora com diferente numeração, nas sucessivas redacções do Código da Estrada, só tendo sido derrogada, no que à matéria proibição de conduzir diz respeito, no que toca ao prazo da entrega uma vez que este é, de acordo com a redacção dada em 2001 ao art.º 69.º do Código Penal, de 10 dias.
Ora, a proibição de conduzir a que se refere o actual art.º 160.º do Código da Estrada não pode deixar de ser a pena acessória de natureza penal que se encontra prevista no citado art.º 69.º e que neste caso foi imposta ao arguido.
Por isso, entendemos que a falta de entrega pelo arguido da carta de condução no prazo cominado a contar do trânsito em julgado da sentença que aplicou a proibição de conduzir constitui crime de desobediência punível nos termos do art.º 348.º, n.º 1 al.ª a), do Código Penal, e não nos termos da al.ª b) dessa mesma disposição legal[3].
Essa alteração da qualificação jurídica não obsta, contudo, a que se julgue procedente o recurso interposto e se revogue a sentença proferida, a qual, após cumprimento do mecanismo contido nos art.º 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, deve ser substituída por outra que, na sequência da realização da audiência, aprecie a responsabilidade criminal imputada ao arguido.
Assim, assente a culpabilidade do arguido (art.º 368.°, do Código de Processo Penal), impõe-se proceder à determinação da espécie e da medida da pena concreta a aplicar, de harmonia com o disposto nos art.º 369.° e segs. do Código de Processo Penal e 70.° e segs do Código Penal.
Porém, tal decisão, deverá ser proferida pelo tribunal "a quo" e não por este tribunal "ad quem".
Com efeito, essa é a solução imposta pela consagração constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, consagrado constitucionalmente no art.º 32.°, n.º 1, da Lei Fundamental, que, desde a IV Revisão Constitucional (Lei 1/97), consagra expressamente o direito ao recurso entre as garantias de defesa reconhecidas ao arguido.
Caso fosse o tribunal "ad quem" a proceder à determinação da espécie e medida da pena nos casos em que, como no presente, a moldura abstracta permite a aplicação de uma pena não privativa da liberdade, e fosse essa efectivamente a natureza da pena escolhida, seria suprimido indevidamente um grau de jurisdição, pois retirava-se ao arguido a possibilidade de ver apreciada em 2.ª Instância a decisão proferida em matéria de determinação dessa espécie sanção (cfr. art.º 400.°, n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal).
Por outro lado, é essa a solução imposta pelo nosso modelo processual e substantivo de determinação da sanção.
Acresce que a relativa autonomização do momento da determinação da sanção (quase cesure), leva a que só depois de decidida positivamente a questão da culpabilidade, o tribunal pondere e decida sobre a necessidade de prova suplementar com vista à determinação da sanção (cfr. art.º 469.°, n.º 2 e 470.°, do Código de Processo Penal) e eventual reabertura da audiência (cfr. art.º 471.º do Código de Processo Penal), na qual pode ser necessário, para além do mais, ouvir o próprio arguido.
Finalmente, como destaca Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial — Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória”, Porto, 2002, Publicações Universidade Católica, pág. 410, "os direitos de defesa do arguido, no âmbito da determinação da sanção, (...) [assumem] também uma função positiva, dentro das eventuais possibilidades de sancionamento que estejam dependentes da sua livre «vontade»", como sucede nos casos em que é suposto o consentimento do condenado (v.g. prestação de trabalho a favor da comunidade, sujeição a tratamento médico ou plano individual de readaptação social no âmbito da pena de suspensão da execução da pena de prisão).
Assim, para além da necessidade de se cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição, também o cabal cumprimento das normas de direito processual e substantivo relativas à escolha e determinação da pena, implicam que deva ser o tribunal de 1.ª Instância a proferir a respectiva decisão, depois de ponderar sobre a eventual necessidade de reabrir a audiência e de ordenar ou levar a cabo quaisquer diligências que entenda serem adequadas.
Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por desnecessárias, impõe-se conceder provimento ao recurso, embora que por razões diferentes das nele invocadas, revogando-se em consequência a sentença impugnada que deverá ser substituída por outra que, nos termos expostos, condene o arguido pela prática em autoria material de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.°, n.º 1 al.ª a), do Código Penal.
IV
Nestes termos e embora que por razões diferentes das nele invocadas, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, decide-se:
Revogar a sentença recorrida, devendo ser substituída por outra que, após cumprimento do mecanismo contido nos art.º 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, nos termos expostos condene o arguido pela prática de um crime de desobediência simples p. e p. pelo art.º 348.°, n.º l al.ª a), do Código Penal.
Determinar que o tribunal recorrido proceda à determinação da espécie e da medida da pena a aplicar, após eventual produção de prova suplementar e reabertura da audiência, nos termos dos artigos 369.°, 370.º e 371.°, do Código de Processo Penal.
Sem custas.
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Évora, 24-04-2012
(Elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga).
João Martinho de Sousa Cardoso (relator)
Ana Barata Brito
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[1] O art.º 69.º do Código Penal tem actualmente a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 77/2001, de 13-7, e o art.º 500.º do Código de Processo Penal a que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25-8.
[2] Na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23-2.
[3] Neste sentido: acórdãos da Relação de Lisboa de 24-3-2010, rel. Carlos Almeida, proc. 470/04.8TAOER.L1-3 – que seguimos de perto; de 15-12-2010, rel. Augusto Lourenço, CJ, 2010, V-156; e, desenvolvidamente, da Relação de Évora de 31-1-2012, rel. António Latas, proc. 1102/08.0TAABF.E1 (este e o primeiro, acessíveis em www.dgsi.pt).