ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
DESTINO DOS BENS APREENDIDOS
MOTOCICLO
VICIAÇÃO DE ELEMENTOS IDENTIFICATIVOS
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Sumário


I. Apreendido um motociclo na fase de inquérito e decidido o arquivamento dos autos pelo MP, cumpre ao juiz de instrução (JI) decidir sobre a sua perda a favor do Estado quando requerida pelo MP, conforme se verificou no caso presente, nos termos do art. 268º nº1 al. e) e nº2, do CPP.

II. Da conjugação do art. 109º com o preceituado no art. 110º, resulta que a perda de instrumentos ou produtos do crime que preencham os respetivos pressupostos de ordem forma e material só não terá lugar se os mesmos não deverem ser restituídos a terceiro, nos termos do citado art. 110º, o qual não tem aplicação quando for desconhecida a propriedade do objeto, tendo antes lugar a sua perda nos termos do art. 109º.

III. Nos termos do nº 2 deste último preceito, a perda tem lugar mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, o que abrange as situações em que não haja um processo contra pessoa determinada.

IV. A aplicação no motociclo de quadro e motor cujo número foi falsificado, constitui falsificação do veículo no seu todo, visto que o quadro e o motor são parte integrante e elemento de identificação do veículo, pelo que o motociclo constitui produto do crime de falsificação, apresentando-se insuscetível de legalização para vir a ser normalmente utilizado, o que significa que eventual circulação futura do mesmo poderia vir a integrar a prática, se dolosa, daquele mesmo crime sob a forma de uso de documento falsificado.

V. Verificam-se, pois, os pressupostos de natureza formal e material da declaração de perda do objeto a favor do Estado, nos termos do art. 109º do C.Penal.

Texto Integral



Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. Nos autos de inquérito com o número em epígrafe que correm termos contra incertos, na delegação da Procuradoria da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, foi proferido em 31.01.2012 despacho judicial que indeferiu requerimento do MP no sentido da declaração de perda de um motociclo aí apreendido.
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2. É deste despacho que o MP interpôs o presente recurso, extraindo da respetiva motivação de recurso as seguintes conclusões:

«CONCLUSÃO

1. Após proferir despacho de arquivamento do inquérito pela prática dos crimes de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347º, n.º2 do CP e falsificação de documento agravada, p. e p. pelo artigo 256º, n.º1, alíneas b) e e), do mesmo diploma legal, o Ministério Público requereu ao Mmo. Juiz de Instrução que declarasse perdido a favor do Estado o motociclo apreendido nos autos, objecto deste último crime.

2. O Mmo. Juiz de Instrução indeferiu a pretensão do Ministério Público, por não estarem reunidos os pressupostos legais previstos no artigo 109º, n.º1 do Código Penal, fundamentando-se no raciocínio de que o motociclo apreendido não foi produzido por facto ilícito típico, mas que sobre ele foi efectuado um acto ilícito (viciação de um elemento de identificação), e de que, objectivamente, o motociclo não põe em risco a comunidade, e não oferece sério risco de ser utilizado de futuro na prática de crime.

3. Acrescentou o Mmo. Juiz que, desconhecendo-se se o motociclo pertencia aos autores dos factos, tem aplicação o artigo 110º n.º1 do mesmo diploma que estabelece que “a perda não tem lugar se os objectos não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários…”, assim precavendo a possibilidade de o objecto poder, eventualmente, pertencer a um terceiro, que estivesse interessado em solicitar a sua restituição, ao abrigo do artigo 186º, do CPP.

4. Não concordamos com o despacho proferido, por considerar que nele se fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 109º, n.ºs 1 e 2, e 110º, n.º1 o Código Penal.

5. Isto porque resulta da perícia realizada no decurso do inquérito que o motociclo apreendido foi objecto de viciação dos números de quadro e de motor, e que não foi possível recuperar os números originais, apesar das diligências feitas nesse sentido pelos peritos.

6. Ora o número de quadro corresponde ao número de identificação aposto no chassis de cada veículo concretamente produzido, introduzido no mercado, e objecto de registo obrigatório nos termos legais, e por isso é o elemento individualizador de cada veículo em concreto, sendo que a cada número de quadro corresponde uma matrícula, e uma inscrição no registo automóvel.

7. Uma vez que não foi possível recuperar o número de quadro ou de chassis original, não é possível identificar, em termos de registo automóvel, que motociclo foi, em concreto apreendido, nem determinar a quem o mesmo pertence.

8. Por conseguinte, não é possível proceder à sua legalização, nem entrega a um eventual proprietário reclamante, já que nenhum reclamante poderá provar cabalmente a propriedade do veículo concretamente apreendido.

9. Deveria o Mmo. Juiz a quo ter interpretado o n.º1 do artigo 109º do Código Penal no sentido de considerar preenchidos os pressupostos legais para declarar o motociclo apreendido nos autos perdido a favor do Estado, já que a acção criminosa de falsificação do número de chassis o transformou num veículo ilegal, e insusceptível de legalização, sendo em si mesmo o objecto de um crime de falsificação de documento agravado, previsto pelo artigo 256º, n.º1, alíneas b) e e) e n.º 3 do CP, sendo que também a mera utilização do mesmo gera a prática do crime, donde resulta que o mesmo oferece sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos caso viesse a ser permitida a sua restituição.

10. Por outro lado, não pode aplicar-se no caso dos autos o artigo 110º, n.º1 do Código Penal, que impede a declaração de perda quando o veículo pertença a terceiros, com fundamento de que se desconhece se o autor dos factos que se investigam é o titular do motociclo.

11. Este preceito legal visa tutelar a situação de terceiros que vêm os seus objectos apreendidos no âmbito do processo penal, estabelecendo os casos em que há, e não há, lugar à perda dos mesmos.

12. A aplicação do artigo 110º do Código Penal pressupõe sempre o conhecimento, em concreto, do titular do objecto apreendido e ainda de que o respectivo titular é um terceiro relativamente ao autor do crime, o que manifestamente não ocorre no caso dos autos.

13. Assim, desconhecendo-se por completo quer a identidade do titular do motociclo, quer a identidade dos autores dos factos sob investigação, tem plena aplicação o n.º 2 do artigo 109º do Código Penal, que determina que a perda tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

14. Face ao exposto, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare o motociclo perdido a favor do Estado, ao abrigo dos artigos 109º, n.º1 e n.º2 do Código Penal. »

3. Neste tribunal, o senhor Procurador Geral Adjunto a quem o processo foi com vista nos termos do art. 416º do CPP, emitiu parecer no sentido da total procedência do recurso.

4. Despacho recorrido (transcrição integral):

« “Nos termos do disposto no artigo 109.º n.º 1 do Código Penal, “são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.”

Assim, para que o objecto possa ser declarado perdido a favor do Estado é necessário que o mesmo tenha servido para a prática de um facto ilícito típico, estivesse destinado a servir a prática de um facto ilícito típico ou que tenha sido produzido por um facto ilícito típico. Para além destes pressupostos que não são cumulativos, é sempre necessário que o objecto em causa, pela sua natureza ou pelas circunstâncias, possa pôr em perigo a comunidade, designadamente a segurança das pessoas, a moral ou ordem pública, ou oferecer sérios riscos de ser utilizado para a prática de crimes.

O relatório pericial de fls. 84 a 86 conclui pela viciação do motociclo, muito embora não se tenha apurado a sua autoria.

Em sede de relatório de fls. 76 a 79 a Polícia Judiciária conclui pela impossibilidade de identificar o verdadeiro número de quadro do motociclo.

Tem sido entendimento da nossa jurisprudência, designadamente da proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, que “Deixa de haver lugar à perda a favor do Estado dos objectos sobre os quais incidiu a actuação ilícita e que não tenham a natureza de instrumentos do crime, como seja o automóvel que tenha sido objecto de falsificação dos seus elementos identificadores” - citação do acórdão do STJ de 23 de Janeiro de 1997,Conselheiro Sá Nogueira, plasmada no acórdão da Relação de Évora, Processo n.º 1/04.0AASTB.

Efectivamente é o que ocorre nos presentes autos.

O motociclo em causa não foi produzido por facto ilícito típico, simplesmente sobre ele, produzido de forma lícita, foi efectuado um acto ilícito – viciação de elemento de identificação. Para além disso, objectivamente, o motociclo não põe em risco a comunidade, e não oferece sério risco de ser utilizado no futuro para a prática de crime.

Assim, discorda-se do Ministério Público, quando refere que o veículo em causa é insusceptível de legalização, tendo em conta que a viciação consubstanciou-se na adulteração dos elementos de identificação – n.º de quadro e número de motor. Ora, caso se venha a descobrir o número original do quadro, nada obsta a que o mesmo seja reposto e o veículo devidamente legalizado no IMTT.

Acresce que se desconhece se o proprietário do motociclo foi o agente dos factos que estiveram em investigação.

O artigo 110.º n.º 1 do Código Penal, dispõe que “a perda não tem lugar se os objectos não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários…”

Assim, não se tendo apurado o autor dos factos e não oferecendo o motociclo, pelas suas características intrínsecas, sério risco de voltar a ser utilizado na prática de crime, o mesmo deverá ser restituído a quem de direito nos termos do disposto no artigo 186.º do Código de Processo Penal.

A dificuldade nos presentes autos prende-se com o facto de se desconhecer o legítimo proprietário do motociclo e, como tal, desconhecer-se a quem deve ser feita a restituição.

Poderá ser previsível que, dado o lapso de tempo entretanto decorrido, ninguém venha reclamar o bem, contudo, considerando estarmos perante um motociclo, objecto com algum valor económico que se poderá revelar imprescindível para o proprietário como meio de transporte utilitário, é temerário declarar, por ora, a perda a favor do Estado.

Neste contexto perfilhamos a solução avançada por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código do Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª Edição actualizada, página 505, anotação 7 ao artigo 186.º:

“Se não forem conhecidos os proprietários dos objectos apreendidos cuja restituição foi ordenada, deve proceder-se a notificação edital…”

Em face do exposto, indefiro o requerido, sugerindo a aplicação do disposto no artigo 186.º do Código de Processo Penal.»

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.

Apreendido um motociclo na fase de inquérito e decidido o arquivamento dos autos pelo MP, cumpre ao juiz de instrução (JI) decidir sobre a sua perda a favor do Estado quando requerida pelo MP, conforme se verificou no caso presente, nos termos do art. 268º nº1 al. e) e nº2, do CPP.

O despacho judicial recorrido considerou, em síntese, que não se verificam os pressupostos de que o art. 109º do CP faz depender a declaração de perda de bens a favor do Estado, sendo antes caso de restituição de objeto a terceiro, nos termos do art. 110º do C.Penal, pelo que indeferiu a requerida declaração de perda a favor do Estado.

A questão a decidir é, pois, a de saber se, contrariamente ao decidido, se encontram preenchidos os pressupostos de que o artigo 109º do Penal faz depender a declaração de perda de bens ou objetos a favor do Estado.

2. Decidindo.

2.1. – O art. 109º do C.Penal regula a perda de instrumentos e produtos do crime, definindo os primeiros como os objetos que tiverem servido ou que estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico e os segundos como os objetos que tiverem sido produzidos pelo crime, ou seja, que sejam fruto da conduta criminosa.

Para além da sua qualificação como instrumentos ou produtos do crime o preceito exige ainda, cumulativamente, a verificação de um pressuposto material traduzido na perigosidade do instrumento ou produto do crime, nos termos da parte final do nº1 do art. 109º do C. Penal.

Da conjugação do art. 109º com o preceituado no art. 110º, resulta que a perda de instrumentos ou produtos do crime que preencham os respetivos pressupostos de ordem forma e material só não terá lugar se os mesmos não deverem ser restituídos a terceiro, nos termos do citado art. 110º, o qual não tem aplicação quando for desconhecida a propriedade do objeto, tendo antes lugar a sua perda nos termos do art. 109º - Cfr Pinto de Albuquerque, Comentário do C.Penal, UCE-2008 p. 314 e trecho das Actas da comissão revisora do C.Penal aí citado.

Por outro lado, nos termos do nº 2 deste último preceito, a perda tem lugar mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, o que abrange as situações em que não haja um processo contra pessoa determinada, conforme realçado na comissão de revisão do C.Penal que veio a ter lugar com o Dec-lei 48/95 de 15 de março –cfr Actas e Projecto da Comissão de Revisão, M. Justiça-1993 p. 173.

2.2. No caso presente, entende o MP recorrente que a acção criminosa de falsificação do número de chassis o transformou num veículo ilegal, e insusceptível de legalização, sendo em si mesmo o objecto de um crime de falsificação de documento agravado, previsto pelo artigo 256º, n.º1, alíneas b) e e) e n.º 3 do CP, sendo que também a mera utilização do mesmo gera a prática do crime, donde resulta que o mesmo oferece sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos caso viesse a ser permitida a sua restituição.

Com razão.

Na verdade, a aplicação no motociclo de quadro e motor, cujo número foi falsificado - conforme relatório pericial do LPC citado de fls 28 a 31 dos presentes autos de recurso em separado -, constitui falsificação do veículo no seu todo, visto que o quadro e o motor são parte integrante e elemento de identificação do veículo, conforme se decidiu, por todos, no Ac STJ de 20.06.1990, citado em Leal Henriques-Simas santos, C.Penal Anotado -2º vol. – 1996, p. 738, a propósito de caso similar. Deste modo, o motociclo constitui produto do crime de falsificação, apresentando-se insuscetível de legalização para vir a ser normalmente utilizado, o que significa que eventual circulação futura do mesmo poderia vir a integrar a prática, se dolosa, daquele mesmo crime sob a forma de uso de documento falsificado.

Verificam-se, pois, os pressupostos de natureza formal e material da declaração de perda do objeto a favor do Estado, nos termos do art. 109º do C.Penal, pelo que, procede o presente recurso, havendo lugar à perda do veículo a favor do Estado para posterior destruição, conforme requerido, dado ser o mesmo inaproveitável.

III. Dispositivo

Nesta conformidade e tendo especialmente em conta o preceituado nos nºs 1, 2 e 3, do art. 109º do C.Penal, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP revogando o despacho judicial recorrido e decidindo, em substituição, deferir a requerida declaração de perda a favor do Estado do motociclo apreendido nos autos de inquérito relativamente aos quais foi proferido o despacho de arquivamento de fls 33 a 35 dos presentes autos, com vista à posterior destruição do mesmo.

Sem custas.

Évora, 24 de abril de 2012

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)


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(António João Latas)


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(Carlos Jorge Viana Berguete Coelho)