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TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CUMPLICIDADE
DOLO
Sumário
1. O dolo, na sua formulação mais geral, reconduz-se ao conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, a que conceitualmente correspondem, respectivamente, o elemento intelectual e o elemento volitivo do mesmo.
2. Por isso, necessário é que o agente tenha o conhecimento, a previsão ou a representação da totalidade dos elementos constitutivos do tipo legal ou seja que, ao nível da factualidade típica, isso se verifique.
3. Se bem que a cumplicidade se revista inevitavelmente da acessoriedade relativamente à autoria, não se exige, para a sua punição, que o autor seja concretamente punível ou que o facto do autor seja típico, ilícito e culposo. Basta-se com a circunstância de que o facto do autor seja típico e ilícito, de harmonia com a chamada teoria da acessoriedade limitada.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
1. RELATÓRIO
Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Elvas, o Ministério Público deduziu acusação, além do mais, contra a arguida SL, imputando-lhe, como cúmplice, um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos arts. 21.º e 25.º, alínea a), do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01.
Realizado o julgamento, a arguida foi condenada, por sentença proferida em 25.10.2011, pela prática desse crime, como cúmplice, na pena de 4 (quatro) meses de prisão substituída por 120 (cento e vinte) dias de multa à razão diária de €8,00 (oito euros), perfazendo o total de €960,00.
Inconformada com tal decisão, a arguida interpôs recurso, formulando as conclusões:
1º O Tribunal “a quo” interpretou e violou erroneamente o artigo 16º do Código Penal na medida em que a arguida agiu de forma intempestiva e por influência do individuo que lhe pediu para guardar o produto não tendo a menor ideia qual era a quantidade de produto nem que quantidade de estupefaciente excedia o permitido para consumo próprio.
2º Outrossim, registou-se errada interpretação e violação dos artigos 26º e 27º do mesmo diploma legal porquanto a cumplicidade não tem autonomia no sistema penal português, ou seja, não há cúmplice sem autor.
3º Ao dar como não provado quem era o proprietário do estupefaciente o Tribunal “a quo” afasta a possibilidade de punir uma cúmplice já que pode concluir pela verificação de todos os elementos do crime.
4º Registou-se violação do artigo 340º do CPP porque não foram efectuadas todas as diligências indispensáveis à descoberta da verdade mormente a inquirição dos outros dois ocupantes do veículo
5º De igual modo, se constatou violação e errada interpretação dos artigos 356º n° 7 e 345º nº 4 CPP uma vez que “São legalmente admissíveis as declarações prestadas por um arguido, em prejuízo objectivo de co-arguido que optou pelo silêncio, quando aquele se não recusa a responder às questões que lhe forem formuladas, nomeadamente a instâncias do defensor deste último”
6º Pelo mesmo motivo foram, igualmente, violadas as normas constantes dos artigos 125º e 140º do CPP
7º Foram violados e sujeitos a interpretação errada os artigos 26°, 27°, 28° e 29° do CP porquanto, resumidamente, para se punir o participante é preciso que o autor tenha praticado um facto típico e ilícito o que não aconteceu no caso em apreço.
8° Foram violadas as normas do artigo 410° n° 2 alíneas a), b) e c) do CPP que deveriam ter sido interpretadas em consonância com a interpretação que aqui se deu por reproduzida
9º Deverá, pois, considerar-se incorrectamente julgada por violação e errada interpretação dos citados artigos do CP e CPP
Nestes termos e nos mais de Direito que Vossa Excelências Doutamente suprirão deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença, com todas as consequências legais daí decorrentes assim se fazendo Justiça.
O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
1. A arguida SL foi condenada, na sentença recorrida, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21.°, n.º 1 e 25.0, alínea a) do Decreto - Lei n.? 15/93, na pena de 4 (quatro) meses de prisão substituída por 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 8, 00, no total de € 960, 00 (novecentos e sessenta euros).
2. Pretende a recorrente colocar em causa aquela condenação, por entender não terem sido interpretadas correctamente as normas ínsitas nos artigos 16.°, 26.° e 27.°, todos do Código Penal.
3. Inexiste a ausência de conhecimento sobre a relação de contrariedade entre a conduta da arguida e o comando emergente da norma jurídica, porque o agente não ignorava a existência da norma que pune quem detiver material estupefaciente, tanto assim que o escondeu no soutien que usava.
4. À recorrente foi solicitado, por individuo cuja identidade não se logrou provar, que escondesse uma substância vegetal prensada de cor acastanhada, vulgarmente conhecida como haxixe, tendo-lhe sido entregue tal produto, sendo que a arguida, sabendo que se tratava de material estupefaciente, e que a sua detenção é legalmente punida, escondeu o produto no interior do soutien que usava, na expectativa de que, como na maioria dos casos, os elementos das forças policiais são homens, aquele material não viesse a ser encontrado. Face a tais factos, facilmente fica demonstrado, tal com se refere na sentença recorrida, a prática da participação da arguida, a título de cumplicidade, no cometimento do ilícito.
5. A recorrente entende que foi violado o artigo 340. ° do Código de Processo Penal.
6. Resulta da matéria factual assente que foi a própria arguida quem admitiu a prática dos factos que lhe foram imputados, e pelos quais foi condenada, pelo que não se afigura que o tribunal “a quo”, tenha preterido qualquer diligência que se reputasse útil para a descoberta da verdade, e, consequentemente, para a boa decisão da causa.
7. A recorrente entende ainda que foram violados os artigos 356.º, n.º 7, 345.°, n.º 4, 125.° e 140.°, todos do Código de Processo Penal.
8. Ora, não há qualquer impedimento do arguido depor nessa qualidade contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente de se valorar a prova feita por um arguido contra os seus co-arguidos. Contudo, uma das limitações a este princípio reside na apreciação do valor probatório do depoimento do arguido feito contra outro no mesmo processo, na medida em que viola o princípio da presunção da inocência a fundamentação exclusiva da condenação na valoração do depoimento do co-arguido.
9. A recorrente entende que foi violado o disposto no artigo 410.°, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal.
10. O vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão não tem a ver, e não se confunde, com as provas que suportam ou devam suportar a matéria de facto, antes, com o elenco desta, que poderá ser insuficiente, não por assentar em provas nulas ou deficientes, antes, por não encerrar o imprescindível núcleo de factos que o concreto objecto do processo reclama face à equação jurídica a resolver no caso, o que não se verifica no caso.
11. Erro notório na apreciação da prova constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio, o que não se verifica no caso em apreço.
12. Assim, não foi violado qualquer preceito legal, nomeadamente os artigos invocados.
11. Pelo que a sentença recorrida não nos merece qualquer reparo.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se dessa forma a sentença recorrida, só assim se fazendo JUSTIÇA!
O recurso foi admitido.
Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando e integralmente subscrevendo a argumentação da resposta apresentada e no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), a arguida nada acrescentou.
Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995.
Delimitando-o, lógica e ordenadamente, à luz dessas conclusões, sendo que, da decisão de alguma questão, pode resultar prejudicado o conhecimento de outra(s), reconduz-se a analisar:
A) – se a sentença padece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP; B) – se se mostra violado o art. 340.º do CPP; C) – se o disposto nos arts. 356.º, n.º 7, e 345.º, n.º 4, do CPP foi incorrectamente interpretado; D) – se foram violados os arts. 16.º e 17.º do Código Penal (CP); E) – se não poderia ter sido punida como cúmplice.
No que ora releva, consta da sentençarecorrida:
Factos provados:
«1. No dia 5 de Agosto de 2009, pelas 12h30m, na EN n° 372°, ao local da Calçadinha, em Elvas, elementos da GNR, procederam à fiscalização do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ---AG--, no qual seguiam como passageiros, entre outros, os arguidos S e X que se dirigiam ao “Freedom Festival” a decorrer na Herdade da Chaminé, em Vila Fernando.
2. Momentos antes, por se ter apercebido que estava a decorrer uma missão de fiscalização das forças policiais, um dos indivíduos que seguia no veículo pediu à arguida S que escondesse uma substância vegetal prensada de cor acastanhada, vulgarmente conhecida como haxixe, a fim de que o produto estupefaciente não fosse encontrado na posse daquele, e entregou-lhe tal produto.
3. Então a arguida S sabendo que aquilo que lhe havia sido entregue era produto estupefaciente e que a detenção de produtos estupefaciente é legalmente punida, escondeu o produto no interior do soutien que usava, na expectativa de que, como na maioria dos casos os elementos das forças policiais são homens, o referido estupefaciente não viesse a ser encontrado.
4. Porém, porque a referida missão de fiscalização visava, entre outras, a detecção de produtos estupefacientes, quando a soldado da GNR, MQ, se preparava para proceder à revista da arguida, esta retirou do interior do soutien o pedaço da substância vegetal prensadas de cor acastanhada, com o peso aproximado de 21,5 gramas, que, momentos antes, havia guardado a pedido de outro individuo, e entregou-o à militar da GNR.
5. Submetida a análise laboratorial a substância apreendida e detectada na posse da arguida S, verificou-se que tinham o peso total de 19,319 gramas e que era resina de canabis, substância constante da tabela I-C anexa ao D.L. 15/93 como sendo estupefaciente.
6. O produto estupefaciente apreendido pertencia ao individuo que o entregou à arguida S e excedia a quantidade de produto estupefaciente necessário para o consumo médio individual durante um período de 10 dias fixado pela portaria 94/96 de 26 de Março, e destinava-o aquele ao seu consumo e ao consumo de terceiros no decurso do “Freedom Festival”.
7. O referido individuo, adquiriu aquele produto voluntária e conscientemente, sabendo ser uma substância estupefaciente, com intenção de o consumir, de o ceder a outros indivíduos e de o vender a quem para tal fim o procurasse, sabendo que a compra, detenção, cedência e venda desses produtos é proibida por lei.
8. Voluntária e conscientemente agiu a arguida S ao aceder ao pedido do referido individuo e ao esconder aquele produto que sabia ser estupefaciente no seu soutien, com a intenção de que assim não viesse a ser detectado, sabendo que o transporte, detenção, consumo cedência e venda de tais produtos é legalmente punida e que ao esconder o produto praticava actos que contribuíam para que os actos ilícitos que terceiro praticava e visava praticar não viessem a ser descobertos e punidos.
9. A arguida é estudante universitária, frequentando o 2.º ano do curso de psicologia.
10. Paga €330,00 mensais de propinas.
11. Vive com os pais, que são professores e auferem cerca de 2.700,00 mensais.
12. Tem uma semanada no valor de €30 a €40.
13. A arguida não fuma, nem é consumidora de estupefacientes.
14. Os arguidos não têm antecedentes criminais.».
Factos não provados:
«a) No circunstancialismo de tempo e lugar descritos na acusação, o arguido X transportava consigo uma substância vegetal prensada de cor acastanhada, vulgarmente conhecida como haxixe, e não querendo que aquele produto estupefaciente fosse encontrado na sua posse, nem querendo ficar sem o mesmo, pediu à arguida S que escondesse o produto e entregou-lho.
b) O produto estupefaciente apreendido foi adquirido pelo arguido X a indivíduo desconhecido e destinava-o o arguido ao seu consumo e de terceiros no decurso do “Freedom Festival”.
c) O arguido X, adquiriu aquele produto voluntária e conscientemente, sabendo ser uma substância estupefaciente, com intenção de o consumir, de o ceder a outros indivíduos e de o vender a quem para tal fim os procurasse, sabendo que a compra, detenção, cedência e venda desses produtos é proibida por lei ».
Motivação da decisão de facto:
« A convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, coerência do raciocínio e de atitude e sentido de responsabilidade manifestados - que, porventura, transpareçam em audiência.
Em face da prova produzida e dos imperativos legais previstos na lei quanto à valoração da prova produzida em audiência de julgamento, o Tribunal concluiu negativamente quanto à factualidade imputada ao arguido X.
Senão vejamos,
O arguido X remeteu-se ao silêncio.
Já a co-arguida S, que quis prestar declarações, afirmou que a droga apreendida pertencia ao seu co-arguido S.
De acordo com o disposto no artigo 345.°, n.º 4, do Código de Processo Penal, não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.ºs 1 e 2 deste preceito.
Significa isto que não há qualquer impedimento do arguido depor nessa qualidade contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente de se valorar a prova feita por um arguido contra os seus co-arguidos. Contudo, uma das limitações a este princípio reside na apreciação do valor probatório do depoimento do arguido feito contra outro no mesmo processo, na medida em que viola do princípio da presunção da inocência a fundamentação exclusiva da condenação na valoração do depoimento do co-arguido (assim, vide jurisprudência e doutrina citada in “Comentário do Código de Processo Penal”, Paulo Pinto de Albuquerque, Universidade Católica Editora, 855).
No caso concreto a co-arguida S, de forma absolutamente convincente, credível e natural, declarou que vinha a dormir na viagem e que, quando acordou, o X, ao ver que iriam ser fiscalizados, pediu-lhe para guardar o estupefaciente que o mesmo trazia e a arguida acedeu a tal pedido.
Sucede que, inexistem outros elementos objectivos ou prova testemunhal que permita reforçar as declarações da co-arguida quanto ao facto do S ser o dono do estupefaciente apreendido nestes autos.
Já que as declarações dos militares da GNR prestadas a este respeito (que disseram que o arguido X na altura disse que o estupefaciente lhe pertencia) não podem ser valoradas em prejuízo do arguido X, por imposição do disposto nos artigos 357.°, n.º 1 e 2 e 356.°, n.º 7, do Código de Processo Penal.
Em face do exposto e em obediência ao imperativo legal radicado na presunção de inocência do arguido X concluímos que as declarações prestadas a este respeito pela co-arguida S, por si só, não são suficientes para concluir pela imputação da factualidade ao X e, nessa medida, concluiu-se negativamente quanto à sua autoria.
Contudo, verificando-se que as declarações da arguida S são merecedoras de total credibilidade e que as mesmas também se mostram conformes com as regras da experiência comum e são consentâneas com as declarações das demais testemunhas, não podemos consentir que a vigência do princípio da presunção de inocência do seu co-arguido X mitigue o direito de defesa da arguida S, impedindo a valoração das declarações desta arguida em seu benefício.
Com efeito, como acima já se disse, a arguida S admitiu ter em seu poder o estupefaciente aprendido nos autos, acrescentando que tal produto pertencia ao co-arguido X, que seguia consigo e com outros amigos em direcção ao festival de música Freedom, e que, momentos antes da fiscalização, aquele lho entregou para que o escondesse durante a fiscalização, A arguida disse ainda que sabia que aquela substância se tratava de haxixe e que aquando da fiscalização entregou voluntariamente à GNR o referido estupefaciente.
Assim e tendo por base as declarações da arguida S, que se mostraram absolutamente credíveis, espontâneas e sinceras, conformes com as regras da experiência e consentâneas com a demais prova testemunhal abonatória, o Tribunal considerou provada a versão dada por esta quanto à sua participação no cometimento do ilícito, nos termos insertos nos pontos 1 a 4 e 6 a 8 dos factos provados (só não o fazendo em relação ao arguido X, por força do imperativo jurídico acima já analisado).
As declarações da arguida quanto à forma como decorreu a fiscalização, quanto ao circunstancialismo de tempo e lugar em que ocorreram os factos e quanto à matéria inserta nos pontos 1 e 4, foram ainda corroboradas pelas testemunhas MQ, PB e JP militares da GNR, que fiscalizaram os arguidos no circunstancialismo em apreço, tendo todos deposto de forma que pareceu isenta, coerente e credível.
Por fim, o Tribunal atendeu ainda para a prova da factualidade acima referida bem como dos factos descritos no ponto 5), ao teor dos documentos juntos a fls. 7, 12 (auto de apreensão e fotografia) e ao exame pericial de fls. 41.
No que tange aos elementos subjectivos enformadores das condutas imputadas à arguida, pese embora nesta parte a arguida tenha tido algumas reservas em admitir os factos, dizendo que agiu sem pensar, a verdade é que a prova dos mesmos resultou do cotejo da matéria objectiva dada como provada que permitiu a este Tribunal inferir a sua verificação, uma vez que a arguida disse ter aceite o referido produto, sabendo que se tratava de estupefaciente e que o escondeu consigo. Ora, é do conhecimento comum que a detenção para venda/cedência de estupefacientes é uma actividade ilícita e a arguida, sendo uma jovem instruída, não podia ignorar, nem ignorava tal facto, tal como o autor do crime também não o ignorava.
A matéria referente às condições pessoais e familiares da arguida, bem como quanto ao facto de não fumar nem consumir estupefacientes, resultou das declarações prestadas pela própria arguida, pelos seus pais e pela amiga da família MC, que depuseram de forma credível.
No que concerne aos antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao teor dos Certificados de Registo Criminal juntos aos autos a fls. 118/119.».
Fundamentação de direito:
« O art. 21.º, nº 1, do D L nº 15/93 de 22/1 estipula que incorre na prática do crime de tráfico de estupefaciente: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40°, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III …..”
Por sua vez o artigo 25.° alínea a) do Decreto - Lei n.° 15/93 de 22 de Janeiro aplica-se aos casos em que o agente realize uma das actividades previstas no tipo legal do artigo 21.° mas, a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, devendo, nesse caso, o agente ser punido de forma privilegiada, como traficante de menor gravidade.
O legislador consagrou uma técnica legislativa que parte de um tipo legal abrangente (o do artigo 21.°), mais gravemente punido, ao qual os restantes tipos-de-ilicito, pela sua especialidade e menor abrangência, reduzem o campo de incidência.
Nos termos do artigo 27.°, n.º 1, do Código penal “É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.”
Assim, a cumplicidade pressupõe a existência de um facto praticado dolosamente por outrem, estando subordinada ao princípio da acessoriedade. Ou seja, o cúmplice não toma parte do domínio funcional dos actos constitutivos do crime, tem conhecimento de que favorece a prática de um crime mas não toma parte nele.
Descendo ao caso concreto, constata-se que quanto ao arguido X resultaram não provados todos os factos descritos na acusação susceptíveis de integrarem os elementos típicos do crime em análise, ou seja, não se provou que o arguido detivesse e fosse o dono do estupefaciente apreendido nos autos e que o destinava ao seu consumo e à cedência a terceiros. De onde se conclui não ter ficado provada a prática, pelo arguido, do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, pelo qual vem acusado.
Já quanto à arguida S verifica-se que a mesma, momentos antes de ser fiscalizada pelas forças policiais, recebeu e escondeu consigo, a pedido de outro individuo, 19,319 gramas de resina de canabis, vulgarmente conhecida como haxixe, a fim de que o produto estupefaciente não fosse encontrado na posse daquele. O referido produto estupefaciente pertencia ao indivíduo que o entregou à arguida S e excedia a quantidade de produto estupefaciente necessário para o consumo médio individual durante um período de 10 dias fixado pela portaria 94/96, de 26 de Março, e destinava-o aquele ao seu consumo e ao consumo de terceiros no decurso do “Freedom Festival”.
Tal produto (canabis resina) está incluído na tabela I-C, anexa ao DL 15/93, de 22/01.
Mais se verifica que a arguida S agiu voluntária e conscientemente ao aceder ao pedido do referido individuo e ao esconder aquele produto que sabia ser estupefaciente no seu soutien, com a intenção de que assim não viesse a ser detectado, sabendo que o transporte, detenção, consumo cedência e venda de tais produtos é legalmente punida e que ao esconder o produto praticava actos que contribuíam para que os actos ilícitos que terceiro praticava e visava praticar não viessem a ser descobertos e punidos.
Tendo em conta as considerações acima expendidas a propósito da cumplicidade importa, antes de mais, qualificar juridicamente a actuação do autor material dos factos. Ora, face à factualidade provada e à quantidade apreendida - que não é muito elevada - concluímos que o agente detinha consigo estupefaciente que destinava, para além do mais, a terceiros, actuando de forma livre e intencional.
Acresce que a ilicitude da conduta do agente se encontra diminuída atenta a reduzida quantidade em seu poder, pelo que é forçoso concluir que o individuo que entregou o estupefaciente à arguida cometeu o crime previsto pelo citado artigo 25.°.
Por conseguinte e tendo a arguida S prestado a tal individuo um auxílio material, consubstanciado no acto de ocultar o referido produto, e tendo a arguida um dolo de cúmplice material (na medida em que agiu com a intenção de que o agente não viesse a ser detectado, sabendo que ao esconder o produto praticava actos que contribuíam para que os actos ilícitos que terceiro praticava e visava praticar não viessem a ser descobertos e punidos), concluímos que a mesma preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime que lhe é imputado na acusação, enquanto cúmplice material do autor material.
Assim sendo e inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, concluímos pela condenação daquela.».
Apreciando, como definido:
A) -
Constituindo princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito nos termos do art. 428.º do CPP, a recorrente invoca que foi violado o art. 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP, o que se reconduz à existência de vícios da decisão, se bem que o fazendo como consequência que extrai de solução para outras questões delimitadas no objecto recursivo.
De qualquer modo, a dependência dessas questões surge implícita à sua posição, na medida em que, à fundamentação do recurso, não carreou argumentação concreta para suportar a presença de algum vício.
Ao invés, transparece que, ao ter feito consignar a conclusão que enumerou em 8.º, mais não fez do que, na sua perspectiva, sumariar o resultado dessas outras questões, como se os respectivos planos de análise se confundissem.
Não obstante e inserindo-se o conhecimento desses vícios no modelo de revista ampliada ou alargada, adoptado pelo CPP de 1987, com que, segundo o Figueiredo Dias, in “Para Uma Reforma Global do Processo Penal Português”, in “Para uma Nova Justiça Penal”, Almedina, 1983, se pretendeu instituir um recurso que (…) se não restringisse à tradicionalmente chamada «questão de direito», mas devesse ser admissível face a contradições insanáveis entre as comprovações constantes da sentença e a prova registada, a erros notórios ocorridos na apreciação da prova ou, em geral, a dúvidas sérias suscitadas contra os factos tidos como provados na sentença recorrida, sempre a oficiosidade dessa apreciação se imporá ao julgador, sendo, aliás, uma das situações em que, de acordo com o art. 431.º do CPP, a matéria de facto, mesmo que não impugnada ao abrigo do art. 417.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, como é o caso, pode vir a ser modificada.
Mas, certo é também que qualquer desses vícios, a existir, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (art. 410.º, n.º 2), o que implica que, para o efeito, não pode apelar-se a elementos que não sejam endógenos e intrínsecos à decisão e que não se tenham em conta as máximas da experiência em geral aceites.
Quanto à definição de cada um desses vícios, refira-se sucintamente:
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar solução de direito, não se confundindo, porém, com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida (v. acórdão do STJ 13.02.1991, citado em anotação ao preceito em “”Código de Processo Penal Anotado”, de Maia Gonçalves, Almedina, 1998, pág. 724), ou, como salienta Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 325, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito, e que acontece quando o tribunal a quo deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique (acórdão do STJ de 16.04.1998, acessível em www.dgsi.pt).
Ou, ainda, como se assinalou no acórdão do STJ de 20.04.2006, no proc. n.º 06P363 (www.dgsi.pt ), A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista à sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.
No tocante à contradição insanável da fundamentação (ou entre esta e a decisão), supõe posições antagónicas e inconciliáveis entre si nos factos descritos ou entre essa descrição e fundamentação.
Segundo Germano Marques da Silva, ob. cit, vol. III, pág. 325, respeita antes de mais à fundamentação da matéria de facto, mas pode respeitar também à contradição na própria matéria de facto (fundamento da decisão de direito). Assim, tanto constitui fundamento de recurso (…) a contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, pois pode existir contradição insanável não só entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
Ainda, conforme acórdão do STJ de 13.10.1999, in CJ Acs. STJ, ano XXIV, tomo III, pág. 184, Existe o vício de contradição insanável de fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, tem de ser interpretado como o tem sido o de facto notório em processo civil, isto é, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório (v. acórdão do STJ de 06.04.1994, in CJ Acs. STJ, ano II, tomo II, pág. 185) e, assim, como referido expressivamente no acórdão do STJ de 24.03.2004, no proc. n.º 03P4043 (www.dgsi.pt ), depara-se quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
Ora, atentando na sentença sob censura, é manifesto que nenhum destes vícios se configura, independentemente do que a restante apreciação do recurso venha a merecer.
Afigura-se, pois, que a motivação da decisão em matéria de facto contém os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal recorrido se tivesse formasse no sentido em que decidiu, tendo procedido ao necessário exame crítico das provas, assentando-o em critérios de razoabilidade e respeitando os limites decorrentes do art. 127.º do CPP.
A eventual limitação inerente à livre apreciação da prova, que resultaria da existência de erro, não se apresenta minimamente.
B)
No que respeita à invocada violação do art. 340.º do CPP, a recorrente sustenta que não foram efectuadas todas as diligências indispensáveis à descoberta da verdade, mormente a inquirição dos outros dois ocupantes do veículo.
É sabido que no preceito se concretiza a admissão da prova em audiência, sujeita à relevância para a descoberta da verdade e com vista à boa decisão da causa, aferida por critérios de necessidade, em sintonia, além do mais, com o direito de acesso ao tribunal (art. 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
E, coadunando-se com tal perspectiva, a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade pode implicar nulidade (art. 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP), com a consequência de invalidar o acto em que se verifica, bem como os que dele dependerem ou possam ser afectados (art. 122.º, n.º 1, do CPP).
Através da sentença, concretamente da sua motivação da decisão de facto, ao nível do apuramento da culpabilidade, resulta que o tribunal “a quo” atendeu e valorou as declarações da aqui recorrente e os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência, além da prova documental e pericial examinada.
Tais testemunhas correspondem às que foram oportunamente arroladas na acusação (fls. 83) e, na parte atinente às condições pessoais da recorrente, outras depuseram, tendo sido arroladas na sua contestação (fls. 133).
Em face do desiderato daquele art. 340.º, não se divisa que o tribunal devesse ter procedido a quaisquer outras diligências probatórias, sendo que a referida inquirição de testemunhas, como aquela que vem invocada, certamente não modificaria o sentido da decisão, falecendo, desde logo, o pressuposto da sua essencialidade.
Aliás, nem sequer a recorrente, em audiência, na qual esteve presente e assistida pelo seu defensor, suscitou a questão, pelo que, a existir nulidade – o que não se aceita – sempre estaria já sanada, nos termos do n.º 3, alínea a) do aludido art. 120.º.
C) –
A recorrente preconiza que foi interpretada erradamente a valoração de declarações do co-arguido, segundo alega, por efeito do disposto nos arts. 356.º, n.º 7, e 345.º, n.º 4, do CPP.
Ora, resulta que, em audiência, o co-arguido X se remeteu ao silêncio e que a aqui recorrente prestou declarações, sendo que, como consta da motivação da sentença, as declarações dos militares da GNR prestadas a este respeito (que disseram que o arguido X na altura disse que o estupefaciente lhe pertencia) não podem ser valoradas em prejuízo do arguido X, por imposição do disposto nos artigos 357.°, n.º 1 e 2 e 356.°, n.º 7, do Código de Processo Penal.
Assim, não se descortina que, de modo algum e, mormente quanto à recorrente, tivessem sido aproveitadas declarações suas perante órgão de polícia criminal e a cuja leitura se tivesse procedido.
Aliás, como ficou realçado, e bem, também a declaração do co-arguido perante esse órgão não foi atendida, respeitando-se a proibição contida naquele art. 356.º, n.º 7.
No tocante ao invocado art. 345.º, n.º 4, a recorrente reconhece que nada impede a valoração de declarações de co-arguido em audiência, em sintonia com a admissibilidade desse meio de prova nos termos do art. 125.º do CPP.
Suscita ainda as reservas quanto à fragilidade desse meio de prova e os cuidados exigíveis na apreciação da sua credibilidade, citando os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 524/97, de 14.07 (www.dgsi.pt ), ao Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República, a norma extraída com referência aos artigos 133º, 343º e 345º do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio e n.º 133/2010, de 14.04, no D.R. 2.º Série, n.º 96, de 18.05.2010, que entendeu que, desde que encaradas com cautelas adicionais, as declarações de um arguido em desfavor de outro são meio probatório idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática e que Decisivo é que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas valer não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório, como resulta do acórdão n.º 194/97.
Já Teresa Beleza, na Rev. Min. Público, Ano 19, n.ºs 58 e 59, referia que:
«O depoimento de co-arguido, não sendo, em abstracto, uma prova proibida em Direito português, é no entanto um meio de prova particularmente frágil, que não deve ser considerado suficiente para basear uma pronúncia; muito menos para sustentar uma acusação.
Não tendo esse depoimento sido controlado pela defesa do co-arguido atingido nem corroborado por outras provas, a sua credibilidade é nula.
Na medida em que esteja totalmente subtraído ao contraditório, o depoimento de co-arguido não deve constituir prova atendível contra o(s) co-arguido(s) por ele afectado(s).
A sua valoração seria ilegal e inconstitucional».
Também Medina de Seiça, in “O Conhecimento Probatório do Co-Arguido”, Coimbra, 1999, pág. 206, apesar de legitimamente valorável e assumir diversas vezes um significado precioso para a descoberta da verdade, constitui uma máxima da experiência (nesse sentido naturalmente fundada) que a informação probatória dos co-arguidos, na parte em que se refere aos outros, há-de rodear-se de particular dúvida.
E como assinalado no citado acórdão desta Relação (relator Sénio Alves), de 24.05.2011 (www.dgsi.pt):
«A doutrina e parte significativa da jurisprudência vêm apontando para a fragilidade das declarações do arguido enquanto meio de prova. E por essa razão, Medina de Seiça termina desta forma a sua dissertação de mestrado (“O conhecimento probatório do co-arguido”, p. 228): “O percurso efectuado em torno do critério da valoração do conhecimento probatório do co-arguido leva-nos a concluir que tal material probatório requer uma verificação suplementar que se traduz na exigência de corroboração. Com a corroboração significa-se a existência de elementos oriundos de fontes probatórias distintas da declaração que, embora não se reportem directamente ao mesmo facto narrado na declaração, permitem concluir pela veracidade desta. A regra da corroboração traduz de modo particular uma exigência acrescida de fundamentação, devendo a sua falta merecer a censura de uma fundamentação insuficiente”.
E tão só. Na verdade, “a ausência de uma norma expressa a comandar a exigência de corroboração e a cominar-lhe as consequências da sua não verificação na concreta decisão, impede-nos, naturalmente, de afirmar a existência de uma proibição de valoração do conhecimento probatório do co-arguido que não se mostre corroborado” – autor e op. cit., 227.
No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 12/3/2008 (rel. Cons. Santos Cabral), www.dgsi.pt: “importa precisar alguma confusão que está subjacente à cruzada empreendida contra o arguido que produz depoimento incriminatório. Na verdade uma coisa são proibições de prova que são verdadeiros limites à descoberta da verdade, barreiras colocadas à determinação dos factos que constituem objecto do processo e outra, totalmente distinta a valoração da prova. Nesta ultima está implícita uma apreciação da credibilidade da prova produzida em termos legais.
Portanto a questão que se coloca é tão só, e singelamente, saber se é válida processualmente a admissibilidade do depoimento do arguido que incrimina os restantes coarguidos. A resposta é, quanto a nós, frontalmente afirmativa e dimana desde logo da regra do artigo 125 do Código Penal que dispõe que são admitidas as provas que não forem proibidas por lei; por outro lado não se sente qualquer apoio numa interpretação rebuscada da Constituição que aponte a inconstitucionalidade de uma tal interpretação. (…) Portanto a questão que se coloca neste caso é, como em relação a todos os meios de prova, uma questão de credibilidade do depoimento do coarguido. Esta credibilidade, como adiante precisaremos, só pode ser apreciada em concreto face às circunstâncias em que é produzida. O que não é admissível é a criação de regras abstractas de apreciação da credibilidade retornando ao sistema da prova tarifada, opção desejada pelo sistema inquisitorial. Assim, dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do coarguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras da produção de prova sem qualquer apoio na letra ou no espírito da lei».
E, mais adiante: «Será que o arguido que opta pelo direito ao silêncio adquire ope legis um direito de veto à produção de outra prova que não aquela que lhe convém? O direito de não se auto incriminar do arguido é conflitual com a colaboração do coarguido na procura da verdade material? Estamos em crer que a resposta tem de ser necessariamente negativa. (…) a proibição de valoração incide sobre o silêncio que o arguido adoptou como a melhor estratégia processual e, como é evidente, não poderá repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal e que venha a precisar e demonstrar a responsabilizar criminalmente o arguido. Seria necessária uma visão fundamentalista, e unilateral do processo penal, defender que o exercício do direito ao silêncio tivesse potencialidade para inquinar todo o meio de prova que, não obstante a sua regularidade, viesse a demonstrar a falência de tal estratégia de silêncio. (…) estamos em crer que o eixo fundamental da mesma questão reside no facto de o depoimento incriminatório estar sujeito às mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, ou seja, a sua sujeição à regra da investigação, da livre apreciação e do princípio in dubio pro reo.
Assegurado que esteja o funcionamento de tais princípios e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo artigo 32 da Constituição nenhum argumento subsiste à validade de tal meio de prova. Aliás, a partir do momento em que o arguido depõe no exercício do seu direito de defesa é evidente que as suas palavras têm uma dupla conotação: sendo emergentes de um inviolável direito de defesa elas são também um meio de prova. Não é possível, em termos práticos, separar aquela realidade concreta que é o depoimento do arguido considerando ora como um exercício legítimo de um direito ora como meio de prova. Tal visão, para além de um inequívoco maniqueísmo, esquece que o processo penal visa a descoberta da verdade material e não de tantas realidades quanto aquelas que interessam aos diversos sujeitos processuais». ».
E no respectivo sumário, que O direito do arguido ao silêncio não pode ter uma amplitude tão grande que se confunda com um direito a contra ele não ser produzida prova, o que tem sido acolhido, quer na doutrina, quer na jurisprudência, sendo que a nova redacção conferida a esse n.º 4 do art. 345.º pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, em nada veio alterar o que já era entendido, designadamente pelo Tribunal Constitucional, como é realçado no acórdão do STJ de 27.11.2007, no proc. n.º 3872/07-5 (www.dgsi.pt).
A perspectiva concreta colocada pela recorrente mais se dirigirá, porém, à fundamentação do tribunal “a quo” que redundou na decidida ausência de prova legal para poder concluir pela participação do co-arguido X nos factos, sustentando-a na circunstância de, segundo alega, não se ter recusado a responder a quaisquer perguntas que lhe foram formuladas e ao abrigo dos n.ºs 1 e 2 desse mesmo art. 345.º.
A posição defendida pelo tribunal poderá, é certo, ver-se como excessivamente restritiva da possibilidade de valoração das suas declarações produzidas em prejuízo do co-arguido, mas, de todo modo, não caberá ora sindicá-la para o efeito de aferir da participação da recorrente, cuja prova em que assentou não suscitou, nem suscita, dúvida.
Além do mais, se, por um lado, quanto a si, não é correcto chamar à colação aquele art. 345.º, n.º 4, por outro, relativamente ao co-arguido, não tendo o Ministério Público recorrido, impõe-se observar a proibição de reformatio in pejus do art. 409.º do CPP.
D) –
Em apelo à existência de erro sobre as circunstâncias do facto e de erro sobre proibições nos termos do art. 16.º, n.º 1, do CP, a recorrente invoca que não ficou provado que tivesse ideia da quantidade de produto que lhe foi pedido guardar, assim, como não sabia que quantidade de produto é permitido ter para consumo próprio, bem como não sabia qual o limite de peso a partir do qual se está a praticar um acto ilícito.
A recorrente não impugnou a matéria de facto provada ao abrigo do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, pelo que, na ausência de vício da decisão nos termos sobreditos, a sua posição não encontra apoio nesses factos, segundo os quais, no que aqui releva, se provou que:
3. Então a arguida S sabendo que aquilo que lhe havia sido entregue era produto estupefaciente e que a detenção de produtos estupefaciente é legalmente punida, escondeu o produto no interior do soutien que usava, na expectativa de que, como na maioria dos casos os elementos das forças policiais são homens, o referido estupefaciente não viesse a ser encontrado.
8. Voluntária e conscientemente agiu a arguida S ao aceder ao pedido do referido individuo e ao esconder aquele produto que sabia ser estupefaciente no seu soutien, com a intenção de que assim não viesse a ser detectado, sabendo que o transporte, detenção, consumo cedência e venda de tais produtos é legalmente punida e que ao esconder o produto praticava actos que contribuíam para que os actos ilícitos que terceiro praticava e visava praticar não viessem a ser descobertos e punidos.
E na respectiva fundamentação, destacando-se:
(…) a arguida S admitiu ter em seu poder o estupefaciente aprendido nos autos (…) e que, momentos antes da fiscalização, aquele lho entregou para que o escondesse durante a fiscalização, A arguida disse ainda que sabia que aquela substância se tratava de haxixe e que aquando da fiscalização entregou voluntariamente à GNR o referido estupefaciente.
(…) No que tange aos elementos subjectivos enformadores das condutas imputadas à arguida, pese embora nesta parte a arguida tenha tido algumas reservas em admitir os factos, dizendo que agiu sem pensar, a verdade é que a prova dos mesmos resultou do cotejo da matéria objectiva dada como provada que permitiu a este Tribunal inferir a sua verificação, uma vez que a arguida disse ter aceite o referido produto, sabendo que se tratava de estupefaciente e que o escondeu consigo. Ora, é do conhecimento comum que a detenção para venda/cedência de estupefacientes é uma actividade ilícita e a arguida, sendo uma jovem instruída, não podia ignorar, nem ignorava tal facto, tal como o autor do crime também não o ignorava.
O art. 16.º, seu n.º 1, do CP, exclui o dolo do agente quando este tenha actuado em erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável.
É sabido que o dolo, na sua formulação mais geral, se reconduz ao conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, a que conceitualmente correspondem, respectivamente, o elemento intelectual e o elemento volitivo do mesmo.
Para o preenchimento do dolo, é imperioso, pois, desde logo, que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito (…) Só quando a totalidade dos elementos de facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta (Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, Coimbra, 2004, tomo I, págs. 334 e seg.).
Por isso, necessário é que tenha o conhecimento, a previsão ou a representação da totalidade dos elementos constitutivos do tipo legal ou seja que, ao nível da factualidade típica, isso se verifique.
Doutrinariamente, o erro que incide sobre a totalidade das circunstâncias, de facto ou de direito, descritivas ou normativas do facto, é havido como erro sobre a factualidade típica, cujo efeito é a não afirmação do dolo, na vertente do seu elemento intelectual.
O que significa que não basta nunca o conhecimento dos meros factos, mas se torna indispensável a apreensão do seu significado correspondente ao tipo (v. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 335), sem que tal implique, contudo, a exigência de um exacto conhecimento jurídico, mas simplesmente a adequação, segundo o nível de representações do agente, do sentido e do significado correspondentes à sua forma de agir.
Feitas estas considerações e tendo como assente a factualidade fixada, inexiste fundamento para o alegado, já que a recorrente, cuja acção foi voluntária e consciente, não deixou de apreender de forma acertada a relevância em guardar produto, que sabia ser estupefaciente, cujo modo de actuação se configura enquadrável no tipo legal, em cuja definição a quantidade da substância não constitui elemento constitutivo.
Por seu lado, o erro sobre proibições, traduzido em que a recorrente não tivesse conhecido a proibição legal da sua conduta, está igualmente afastado.
Na verdade, perante o tipo de ilícito em presença, não se divisa que fosse à recorrente exigível qualquer especial conhecimento para discernir da sua relevância axiológica, sendo um dado adquirido que se trata de criminalidade sobejamente divulgada e com dimensão reconhecida, aliada à multiplicidade de acções de que se pode revestir.
Não é também a exigência específica de que se esteja perante uma maior ou menor quantidade de produto estupefaciente, no sentido de aquilatar da sua correcta subsunção jurídica, que para o efeito releva.
Quanto ao invocado erro sobre a ilicitude, previsto no art. 17.º do CP, exclui a culpa, se não for censurável e, sendo censurável, pode motivar a atenuação especial da pena.
A consciência da ilicitude consiste numa “valoração paralela na esfera do leigo” da proibição legal (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 102).
Aqui relevante é, pois, o erro ao nível da própria consciência ética ou consciência dos valores, por ausência de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger, só se verificando se o agente não logra apreender correctamente essa ordem, situação que é de todo alheia à recorrente, como se provou e ficou plenamente fundamentado.
E) -
O tribunal “a quo” considerou a recorrente, tal como aliás já constava da acusação, como cúmplice na prática do crime.
A recorrente discorda, sustentando que, ao dar-se como não provado quem lhe entregou o estupefaciente, não se conclui pela verificação de todos os elementos do crime, designadamente, que conhecesse o destino a dar ao mesmo pelo autor.
Acerca do alegado desconhecimento desse destino, independentemente, até, de este não ser elemento do tipo, o que os factos provados dizem conflui no sentido contrário.
Por sua vez, a cumplicidade, prevista no art. 27.º do CP, traduz um auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso e, assim, como uma participação no facto do autor, que pressupõe a ilicitude deste mesmo facto.
Não prescinde da sua adequação ao tipo legal, sendo punível se e na medida em que represente um contributo causal para a realização do tipo, embora este, atendendo a que essa causalidade não é essencial, pudesse ser praticado, ainda que noutras circunstâncias.
Toda a participação do cúmplice se caracteriza, frente à autoria, pela circunstância de lhe faltar o domínio do facto, limitando-se a favorecer a acção de um terceiro (Eduardo Correia, “Direito Criminal”, Coimbra, 1971, vol. II, pág. 248).
Se bem que a cumplicidade se revista inevitavelmente da acessoriedade relativamente à autoria, não se exige, para a sua punição, que o autor seja concretamente punível ou que o facto do autor seja típico, ilícito e culposo.
Basta-se com a circunstância de que o facto do autor seja típico e ilícito, de harmonia com a chamada teoria da acessoriedade limitada (v. Figueiredo Dias, “Lições de Direito Penal”, Coimbra, 1975/76, pags. 81 e seg,.e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., págs. 127 e seg.).
Perante o que se deixa referido, acrescido desenvolvimento é, pois, desnecessário, para fundamentar que a recorrente deve ser, como foi, punida como cúmplice, atendendo a que, dolosamente, prestou auxílio à prática por terceiro de actos subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes.
3. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pela arguidae, consequentemente,
- manter integralmente a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça em soma equivalente a 4 UC.