FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
Sumário

I - O Fundo é, nos termos da lei (art. 21º, n.º 2, al. a) e b) do citado Dec-lei 522/85) uma entidade que, além do mais, garante, por acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal, a satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais ou materiais quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz.
II - Quando, assim, satisfaça a indemnização aos lesados, o Fundo fica sub-rogado nos direitos destes, tal como dispõe o n.º 1 do art. 25º do mesmo diploma.
III - Daqui decorre que o Fundo não é um devedor – é um mero garante do cumprimento da obrigação do responsável civil de reparar os danos causados ao lesado.
A sua obrigação é autónoma e subsidiária da obrigação do responsável civil, não respondendo ele como devedor principal ou direto (que é o incumpridor da obrigação de segurar), pois que não existe entre este e o Fundo uma relação de solidariedade passiva própria.
IV - A obrigação do FGA e a do responsável civil não são verdadeiramente solidárias, no contexto do art. 497º do Cód. Civil, porque essa solidariedade é uma solidariedade imprópria, imperfeita ou “impura”. Só nas relações externas, face ao lesado, é que ambos respondem solidariamente; no plano interno, paga a indemnização pelo Fundo, fica este investido nos direitos do credor – o lesado – podendo pedir do lesante o que pagou.
V- Havendo solidariedade no plano externo, parece irrecusável que a condenação na indemnização dos danos sofridos pelo lesado deve abranger todos os que por ela respondem, devendo por isso a sentença proceder à condenação solidária de ambos os devedores (Fundo e Lesante).

Texto Integral







Apelação n.º 2444/07.8TBABF.E1 (2ª secção cível)





ACORDAM 0S JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


E.................. instaurou no Tribunal Judicial de Albufeira (3º Juízo) ação declarativa de condenação, com processo ordinário, contra Fundo de Garantia Automóvel e Max .................., alegando em síntese:
- A autora era transportada no veículo ligeiro de passageiros, matrícula CX-50-42, do qual o seu condutor perdeu o controlo indo embater noutro que se encontrava estacionado, tendo-se colocado em fuga.
- Em consequência do embate a autora sofreu lesões corporais que lhe provocaram danos.
Concluindo peticiona a condenação dos réus:
a) no pagamento de € 24.000 a título de danos físicos;
b) no pagamento de € 15.000 a título de danos morais;
c) no pagamento das despesas de consultas, exames e medicamentos, num total de € 353,23;
d) no pagamento global das despesas em dívida ao Hospital de Faro;
e) no pagamento dos juros de mora, calculados à taxa legal, bem como nos vincendos, até integral pagamento.
Citados os réus vieram contestar.
O réu Max .................., para além de impugnar os factos, veio excecionar a sua ilegitimidade, salientando que vendeu o veículo a Flávio Sobral em data anterior à do acidente, nunca mais o tendo conduzido ou utilizado, concluindo pela improcedência da ação.
O réu FGA veio contestar por impugnação concluindo pela improcedência do pedido.
A autora foi convidada a “afastar uma possível ilegitimidade passiva, designadamente fazer intervir nos autos o proprietário do veículo em causa” tendo requerido a intervenção provocada de Flávio José Veloso Sobral, que foi admitida sendo este citado editalmente, passando a ser representado pelo MP.
Tramitado e julgado o processo em sede de 1ª instância foi proferida sentença, cujo dispositivo reza:
“Nestes termos e por tudo o exposto, decide-se:
a) julgar o réu Max .................. como parte ilegítima e, em consequência, absolvê-lo da instância;
b) julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenar o réu Fundo de Garantia Automóvel a pagar à autora E..................:
i. a quantia de €130,81 (cento e trinta euros e oitenta e um cêntimos), correspondentes aos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde 24/12/2002;
ii. a quantia de €10.000 (dez mil euros), correspondentes aos danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a presente decisão;
iii. e, ainda, a quantia que se vir a liquidar em incidente de liquidação relativamente aos danos patrimoniais indiretos e decorrentes da incapacidade já fixada, a que acrescerão juros contados desde a data da decisão a tomar nesse incidente.
Quanto ao chamado Flávio José Veloso Sobral a presente sentença terá o valor previsto no artigo 328º do Código de Processo Civil.”
*
Desta decisão foi interposto, pelo réu FGA, recurso de apelação com vista à alteração da decisão, terminando o recorrente por formular as seguintes conclusões que se passam a transcrever:
I – Vem o presente recurso de apelação interposto da douta sentença de fls__, que condena o FGA, a pagar à autora E.................. a quantia de 10.130,81 Euros e ainda a quantia que se vier a liquidar em incidente de liquidação, decisão com a qual não se conforma o FGA.
II - A douta sentença absolve o chamado Flávio Sobral, decisão com que não pode conformar-se o FGA.
III - Dos factos provados 16 a 20 alcança-se que pertencia a Flávio Sobral a propriedade do veículo, razão pela qual foi absolvido Max de Freitas por ser parte ilegítima na presente ação.
IV - E, em B. da Fundamentação de Direito da douta sentença consta: “No que respeita ao chamado Flávio José Veloso Sobral, pode dizer-se, em face dos factos provados, que o veículo circulava no interesse e sob a sua responsabilidade. Nos termos do art. 503.º, n.º 1 do Código Civil responde pelos riscos próprios do veículo por ter a sua direção efetiva.
V - Contudo, a douta sentença acaba por absolver o chamado em virtude de, por não existir seguro válido, responder apenas o Fundo de Garantia Automóvel, tendo para o chamado apenas o efeito previsto no art. 328.º do C.P.C.
VI - Salvo o devido respeito que é muito, tal decisão não pode ser admitida. Se foi requerida a intervenção principal provocada do Flávio Sobral, figura este na ação como chamado, mas em lugar de Réu, tendo, necessariamente que ser absolvido ou condenado, o que não sucedeu, sendo esta uma causa de nulidade da sentença nos termos do art. 668.º, n.º 1, al. d) do C.P.C., que, para todos efeitos se invoca.
VII - Por outro lado, se foi requerida a intervenção principal provocada do Flávio como forma de suprir a ilegitimidade do FGA, pois o mesmo não pode ser demandado e condenado isoladamente, caso o responsável seja conhecido, como é o caso dos autos, não se
vislumbra qual a razão de o Flávio não ser condenado solidariamente com o FGA.
VIII - O Fundo de Garantia Automóvel é um mero garante da obrigação de indemnizar, não podendo, salvo no caso de o responsável civil por lesões corporais ser desconhecido, o que não é o caso dos autos, ser condenado isoladamente, desacompanhado do responsável civil, mas sim, solidariamente com este.
IX - Rege nesta matéria o art. 21.º, n.º2 do D.L. 522/85 de 31/12.
X - É essa função de mero garante que justifica o litisconsórcio necessário passivo, estabelecido no art. 29.º, n.º 6, do mesmo diploma legal, exigindo que, as “ações destinadas à efetivação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quando o responsável seja conhecido e não beneficie de seguro válido ou eficaz”, tenham de ser propostas contra o Fundo de garantia Automóvel e o responsável civil, sob pena de ilegitimidade, tendo o douto Tribunal a quo reconheceu, em consonância com o supra expendido convidando a A. a suprir essa ilegitimidade, requerendo a intervenção principal provocada do proprietário Flávio.
XI - Fica o Fundo de Garantia Automóvel, depois de satisfeita a indemnização, sub-rogado nos direitos do lesado contra o responsável, conforme estabelece o art. 25.º, n.º1 do D.L. 522/85 de 31/12.
XII - Dada a sua condição de garante, a responsabilização do Fundo de Garantia Automóvel depende direta e necessariamente da imputação aos restantes RR. (proprietário e condutor do veículo sem seguro da responsabilidade civil pela ocorrência do facto danoso).
XIII - Assim, pode suceder que, verificando-se a responsabilidade do causador do evento danoso, pode o Fundo de Garantia Automóvel não ser condenado por falta de algum dos requisitos previstos no art. 21.º e 29.º do D.L. 522/85 de 31/12, mas já o contrário não pode acontecer, em virtude da posição de garante, que depende da condenação do responsável civil.
XIV - Nunca poderia, pois, o FGA ser condenado isoladamente, pois o disposto no art. 29.º, n.º 6, do DL 522/85, de 31-12 obrigando à demanda em litisconsórcio necessário passivo, exige, em conjugação com o art. 29.º, 1.ª parte, do CPC, que a decisão final seja a mesma para os litisconsortes.
XV - Nas palavras do Ilustre Professor Doutor Miguel Teixeira de Sousa, em Estudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 164 e ss., LEX, 2.ª Edição, Lisboa 1997 “O litisconsórcio unitário é aquele em que a decisão tem de ser uniforme para todos os litisconsortes. Este litisconsórcio corresponde a situações em que o objeto do processo é um interesse indivisível, pelo que sobre ele não podem ser proferidas decisões divergentes”.
XVI - Entre as hipóteses de exigência de uniformidade de decisão, o insigne Professor enquadra precisamente as situações de existência de uma relação de prejudicialidade entre vários objetos, avançando como exemplos: “A conformidade necessária entre a decisão condenatória do devedor e do fiador e entre a condenação do causador do dano e da seguradora”.
XVII - Na situação vertida dos autos, a responsabilização do Fundo de Garantia Automóvel, atenta a sua posição de mero garante, depende direta e necessariamente da imputação ao condutor do veículo sem seguro da responsabilidade pela ocorrência do evento danoso.
XVIII - Vale isto por dizer que, se é verdade que condenado o responsável pela ocorrência do acidente, o Fundo de Garantia Automóvel poderá ser absolvido pela falta de algum dos restantes pressupostos previstos no art. 21.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, nomeadamente quando se não prove a inexistência de seguro válido e eficaz,
XIX - Já o inverso não é verdade, pois que, absolvendo o condutor do veículo sem seguro, não se encontra naturalmente verificado um dos pressupostos essenciais de que depende a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel.
XX - A douta decisão preteriu, pois, o litisconsórcio unitário entre Fundo de Garantia Automóvel e o Chamado Flávio, e violou o preceituado no n.º 1 do art. 21.º do Decreto-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.
XXI - Elucidativo da posição que vimos expendendo, é o acórdão da Relação do Porto de 8 de Maio de 1996 - in CJ 1996, III, 225, nomeadamente a douta fundamentação de págs. 227 :"A intervenção do "responsável civil" ao lado do FGA tem pelo menos três objetivos evidentes a saber: 1. Tornar mais acessível ao FGA pela via mais autêntica do próprio interveniente no acidente. A versão deste e todo o material probatório a que de outro modo facilmente não acederia; 2. Facilitar ao lesado a satisfação do seu direito ofendido, colocando à sua disposição a possibilidade de optar entre o património do lesante faltoso e a indemnização meramente substitutiva do FGA; 3. Definir logo, na medida do possível e sem mais dispêndio processual, aproveitando da presença daquele, os pressupostos de facto e até de direito em que há-de fundar-se do direito de sub-rogação do FGA previsto no art. 25.º do D.L. 522/85 citado , o que não seria possível sem a presença desse "responsável civil" no processo.
Eis três razões de fundo indesmentíveis que determinaram o legisladora seguir a via do falado litisconsórcio necessário passivo nesta ação.
Razões que, logicamente, só podem desembocar na necessidade de condenação solidária de ambos os demandados, sob pena de ter de concluir-se, contra os ditames da boa interpretação (Cfr. art. 9.º, n.ºs 1 e 3 do C. Civil) que o legislador ao traçar o regime processual desta ação mais não fez que fazer aqui aportar a inútil contribuição do obrigado ao seguro, limitado que estaria nela a mero oficiante de corpo presente.
Mas, sendo assim, já se vê que, sendo de mera "garantia" (Cfr. art. 21.º n.º 2 do D.L. 522/85, de 31/12: " O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por...") a intervenção do recorrente na acção, o "papel principal" será sempre do "responsável civil" e não do Fundo."
XXII - Não tendo o chamado sido condenado solidariamente como devia com o FGA, deve o FGA ser julgado parte ilegítima ou a douta sentença julgada nula, por aplicação do art. 668.º, n.º 1, al. d) do C.P.C.
XXIII - Vem a douta sentença recorrida condenar o FGA no pagamento à A. do que se apurar em sede de incidente de liquidação relativamente a danos patrimoniais indiretos, não podendo o FGA concordar com tal.
XXIV - Os elementos que A. não provou eram de conhecimento direto da A., sendo de fácil prova, e o ónus da prova de tais elementos pertenciam à A.
XXVI - Não pode o R. ser punido pela inércia da A., pois o que o Tribunal a quo está a fazer é premiar a A. dando-lhe uma nova oportunidade de fazer o que devia ter feito e não fez.
XXVII - Não são factos que se venham a apurar mais tarde, como seria, por exemplo uma incapacidade parcial permanente, caso as lesões não estivessem consolidadas. Aí, sim, caberia a liquidação ulterior. O caso dos autos é outro, a A. devia ter alegado e provado e não o fez, quando o ónus era integralmente seu.
XXVIII - A idade da lesada e o seu salário são factos de que a A. tinha, à data, perfeito conhecimento e devia ter obtido prova para tal. Não o fazendo, o seu direito a tal, precludiu.
XXIX - Não logrou provar tais factos, o que significa que o seu pedido terá de improceder nessa parte, devendo o FGA ser absolvido da parte do pedido respeitante aos danos patrimoniais “indiretos”.
XXX - Vem a douta sentença recorrida condenar o FGA no pagamento à A. do montante de 10.000,00 Euros, a título de danos não patrimoniais, fixados com base na equidade.
XXXI - Salvo o devido respeito, que é muito, tal montante revela-se manifestamente excessivo, tendo em conta os danos que se provaram e que relevam para efeitos da fixação dos danos não patrimoniais.
XXXII - As lesões sofridas pela A. não lhe conferem sequer rebate profissional, teve a A. 15 dias de internamento hospitalar.
XXXIII - Tendo em conta tais factos, o montante de 4.500,00 Euros é o adequado para compensação da A. pelos seus danos não patrimoniais, devendo a douta sentença ser revogada nessa parte e substituída por outra que condene neste montante a este título.
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Foram apresentadas contra alegações por parte do MP pugnando pela manutenção do julgado.
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Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso - disposições combinadas dos artºs 660º n.º 2, 661º, 664º, 684º n.º 3 e 690º, todos do Cód. Proc. Civil.
Assim, as questões que importa apreciar são:
1ª – Da nulidade da sentença;
2ª – Da condenação solidária do proprietário do veículo (chamado) e do FGA;
3ª – Do relegar para sede de execução de sentença a liquidação por danos patrimoniais indiretos sofridos pela autora.
4ª – Do montante a arbitrar pelos danos não patrimoniais sofridos pela autora.
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Na sentença recorrida foi considerado como provado o seguinte quadro factual:
1. A autora E.................. esteve internada no Hospital Distrital de Faro no período compreendido entre os dias 25 de Dezembro de 2002 e 2 de Janeiro de 2003 (alínea A) dos factos assentes).
2. No dia 24 de Dezembro de 2002, cerca das 23h00, na Avenida 25 de Abril, nas Ferreiras, comarca de Albufeira, circulava no sentido Algoz-Ferreiras o veículo ligeiro de passageiros de matrícula CX-50-42 (resposta ao artigo 1º da base instrutória).
3. O condutor desse veículo tinha dado boleia à autora, que seguia no lugar de passageiro, ao lado do condutor (resposta ao artigo 2º da base instrutória).
4. Na ocasião e lugar indicados no artigo 1º da base instrutória o condutor do veículo de matrícula CX-50-42 perdeu o controle da sua viatura e com a parte lateral da mesma foi embater na parte lateral esquerda do veículo automóvel de matrícula 72-94-MP, que se encontrava estacionado na berma da faixa de rodagem no sentido contrário, Ferreiras/Algoz (resposta ao artigo 3º da base instrutória).
5. Após o embate, o condutor do veículo de matrícula CX-50-42 pôs-se em fuga e mais adiante parou o veículo e fugiu, abandonando a autora dentro do veículo automóvel, não lhe prestando qualquer auxílio (resposta ao artigo 4º da base instrutória).
6. O local do embate caracteriza-se por uma reta (resposta ao artigo 5º da base instrutória).
7. O piso estava molhado e o tempo estava chuvoso (resposta ao artigo 6º da base instrutória).
8. Em consequência desse embate sofreu a autora fratura de ramos ileo-isquio-púbicos e contusão lombar (resposta ao artigo 9º da base instrutória).
9. A autora ficou a padecer de pseudoartrose do ramo isquio púbico com dores na flexão da anca com joelho em extensão (resposta ao artigo 10º da base instrutória).
10. A autora ficou com uma incapacidade permanente geral de 3% (resposta ao artigo 11º da base instrutória).
11. A autora sofreu uma incapacidade absoluta para o trabalho de 210 (duzentos e dez) dias (resposta ao artigo 13º da base instrutória).
12. Teve de permanecer, pelo menos, 30 dias em repouso absoluto no leito, dependendo de assistência de terceiros para se alimentar e efetuar a sua higiene diária (resposta ao artigo 14º da base instrutória).
13. A autora sofreu dores (quantum doloris de 3 em 7) – resposta ao artigo 15º da base instrutória.
14. A autora sentiu medo de não voltar a andar normalmente (resposta ao artigo 16º da base instrutória).
15. A autora despendeu em assistência hospitalar, consultas médicas, exames e medicamentos a quantia de €130,81 (centro e trinta euros e oitenta e um cêntimos) – resposta ao artigo 23º da base instrutória.
16. O Réu Max .................., em 23 de Novembro de 2001, acordou com Flávio José Veloso Sobral a venda do veículo automóvel de matrícula CX-50-42, tendo sido elaborado o escrito de fls. 43 a 44 dos autos (denominado “requerimento-declaração para registo de propriedade”), subscrito por ambos (artigo 24º da base instrutória, considerado assente).
17. O veículo e as respetivas chaves foram entregues pelo réu ao Flávio José Veloso Sobral no ato da outorga do escrito de fls. 43 a 44 dos autos, em 23 de Novembro de 2001 (artigo 25º da base instrutória, considerado assente).
18. E a partir dessa data o Réu Max Reginaldo nunca mais conduziu o veículo automóvel, nem se fez transportar no mesmo e nem sequer viu mais o veículo (artigo 26º da base instrutória, considerado assente).
19. Ficou acordado verbalmente entre o Réu Max Reginaldo e o Flávio José Veloso Sobral que este efetuaria o registo da aquisição do veículo a seu favor (artigo 27º da base instrutória, considerado assente).
20. Passado algum tempo após ter entregue o veículo ao Flávio Sobral o réu Max Reginaldo contactou-o e este garantiu-lhe que havia procedido ao registo da aquisição a seu favor (artigo 28º da base instrutória, considerado assente).
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Conhecendo da 1ª questão
O recorrente defende existir nulidade da sentença a que alude o artº 668º n.º 1 al. d) do CPC, por o Julgador, ao invés do que se lhe impunha, não ter condenado solidariamente o proprietário do veículo.
O artº 668º n.º 1 al. d) do Cód. Proc. Civil, fulmina de nulidade a sentença em que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não devia tomar conhecimento, sendo que a mesma está diretamente relacionada com o consignado no n.º 2 do artº 660º do CPC, servindo de cominação ao seu desrespeito.
Tais questões, no entanto, não devem confundir-se com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes, já que a estes não tem o tribunal de dar resposta especificada ou individualizada limitando-se, se for caso disso, a abordá-los caso contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido.
Apreciada a arguição, constatamos que não se verifica a alegada nulidade, traduzida em omissão de pronúncia, uma vez que em face do conteúdo da sentença constata-se que o Julgador entendeu ser essa a posição acertada no âmbito da subsunção dos factos ao direito aplicável, ou seja a de não condenar solidariamente o proprietário do veículo com o FGA.
Todavia a não existência de nulidade da sentença, não implica que se mostre ajustada a posição seguida pelo Julgador. Mas isso é questão a apreciar em sede do conhecimento da questão seguinte.
Improcede nesta vertente o recurso.

Conhecendo da 2ª questão
Defende o recorrente que não faz qualquer sentido a sua condenação isolada, quando o artº 29º n.º 6 do Dec. Lei 522/85 de 31/12 obriga a que o proprietário do veículo seja demandado, sob pena de ilegitimidade passiva, o que conduz a que a seja proferida condenação solidária de ambos os demandados.
No caso em apreço, a autora demandou o FGA e a pessoa que entendia ser o proprietário do veículo causador do acidente, Max Freitas, pedindo a condenação solidária de ambos. Porém, no decorrer do processo, em face da contestação apresentada por Max Freitas, chegou-se à conclusão que este não seria o proprietário da viatura e que o verdadeiro proprietário do veículo seria Flávio Sobral (o que efetivamente se veio a constatar), tendo o Julgador por despacho de 09/01/2009 convidado a autora “a agir processualmente com vista a afastar uma possível ilegitimidade passiva, designadamente fazer intervir nos autos o proprietário do veículo em causa” o que ela fez “na qualidade de réu” através do incidente de intervenção principal, o que pressupõe da sua parte a manutenção no que respeita ao interveniente, do peticionado anteriormente formulado contra Max Freitas.
Todavia, na sentença, o Julgador a quo salientou que:
No que respeita ao chamado Flávio José Veloso Sobral, pode dizer-se, em face dos factos provados, que o veículo circulava no seu interesse e sob a sua responsabilidade. Nos termos do artigo 503º, nº 1 do Código Civil responde pelos riscos próprios do veículo por ter a sua direção efetiva (cf., também, artigo 507º, nº 1, do Código Civil).
No entanto, não havia sido transferida para qualquer seguradora a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação causados pelo veículo referido, pelo que responde, igualmente, o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do artigo 21º do citado D.L. 522/85, de 31 de Dezembro.
Sendo certo que, no caso, apenas o réu Fundo poderá ser condenado, quanto a este chamado a sentença terá o valor previsto no artigo 328º do Código de Processo Civil.
Concluindo na parte decisória da sentença por omitir a declaração de pronúncia sobre o mesmo, salientando, no entanto, que “quanto ao chamado Flávio José Veloso sobral a presente sentença terá o valor previsto no Artº 328º do Código Processo Civil”.
Sem olvidarmos o entendimento perfilhado no Ac. do TRL de 07/10/2008 no processo 1376/2008-1 disponível in www.dgsi.pt, onde se afirma que “a condenação única do FGA, é o corolário lógico daquela analisada subsidiariedade, ficando este sub-rogado no direito da lesada e A. nos autos”, temos para nós que esta não é a melhor interpretação a fazer dos normativos legais, nomeadamente daquele que impõe, sob pena de ilegitimidade passiva, que o proprietário do veículo seja demandado conjuntamente com o FGA.
Comungamos, assim, da posição esclarecidamente sustentada no Ac. do STJ de 05/11/2009 proferido no processo 1350/1998.S1, disponível em www.dgsi.pt, no qual é referido:
O Fundo é, nos termos da lei (art. 21º, n.º 2, al. a) e b) do citado Dec-lei 522/85) uma entidade que, além do mais, garante, por acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal, a satisfação das indemnizações por morte ou lesões corporais ou materiais quando o responsável não beneficie de seguro válido ou eficaz.
Quando, assim, satisfaça a indemnização aos lesados, o Fundo fica sub-rogado nos direitos destes, tal como dispõe o n.º 1 do art. 25º do mesmo diploma.
Daqui decorre que o Fundo não é um devedor – é um mero garante do cumprimento da obrigação do responsável civil de reparar os danos causados ao lesado.
A sua obrigação é autónoma e subsidiária da obrigação do responsável civil, não respondendo ele como devedor principal ou direto (que é o incumpridor da obrigação de segurar), pois que não existe entre este e o Fundo uma relação de solidariedade passiva própria.
O Fundo não é um devedor solidário, mas enquanto garante legal da obrigação do responsável civil, um mero obrigado subsidiário, um obrigado ao cumprimento, se o direto devedor o não fizer. (Cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal, de 23.09.2008, proferido no Proc. n.º 08A1994, disponível em www.dgsi.pt/jstj que, nesta parte, seguimos de perto).
No acórdão de 28.05.2009, deste Supremo Tribunal, refere-se, em sentido idêntico ao acabado de expressar, que a norma acima transcrita, do n.º 6 do art. 29º do Dec-lei 522/85, não foi estabelecida por a obrigação do FGA e a do responsável civil serem verdadeiramente solidárias, no contexto do art. 497º do Cód. Civil, porque essa solidariedade é uma solidariedade imprópria, imperfeita ou “impura”. Só nas relações externas, face ao lesado, é que ambos respondem; no plano interno, paga a indemnização pelo Fundo, fica este investido nos direitos do credor – o lesado – podendo pedir do lesante o que pagou (Este acórdão foi lavrado no Proc. 529/04.1TBFR.S1, e acha-se disponível em www.dgsi.pt/jstj.).
Ora, se assim é – se, perante o lesado, ambos (responsável civil e FGA) respondem, embora o Fundo seja um mero obrigado subsidiário, um obrigado ao cumprimento, se o direto devedor, o responsável civil, o não fizer – parece irrecusável que a condenação na indemnização dos danos sofridos pelo lesado deve abranger todos os que por ela respondem.
A condição – do Fundo – de garante da obrigação do responsável civil postula, naturalmente, a existência dessa obrigação, e a vinculação deste último (i.e., do responsável civil) ao cumprimento dessa obrigação – vinculação que a sentença deve expressar…
Ora, segundo cremos, a intervenção do responsável civil ao lado do FGA – que a lei quis assegurar de forma tão vincada, a ponto de a tornar obrigatória, sob pena de ilegitimidade – visa, em essência,
- facilitar ao lesado a satisfação do seu direito, facultando-lhe a possibilidade de reclamar a indemnização do responsável civil ou do Fundo;
- ajudar o FGA no conhecimento das circunstâncias do acidente e das suas causas e efeitos, bem como do pertinente material probatório, pelo contributo que, para tanto, pode ser trazido por quem, melhor do que o próprio Fundo, conhece esses elementos de facto, a que este não tem, por vezes, fácil acesso;
- definir logo, com a presença de todos os interessados, a medida em que deverá ser exercido, posteriormente, o direito do Fundo a ser reembolsado, nos termos do art. 25º n.º 1 do Dec-lei 522/85.
Tais objetivos – designadamente o primeiro e o último – reclamam a necessidade de condenação solidária dos demandados, responsáveis civis e FGA, sob pena de ficar sem justificação plausível o regime processual que a lei quis impor.
Deste modo, haverá que reconhecer razão, na questão em análise, ao recorrente FGA, pelo que se determinará a condenação solidária do demandado Flávio – o responsável civil (art. 497º/1 do CC) - e do ora recorrente.
Procede, nesta parte o recurso.

Conhecendo da 3ª questão
O recorrente não se conforma com a condenação em incidente de liquidação de sentença, que lhe foi imposta, relativa aos danos patrimoniais indiretos decorrentes da incapacidade fixada à autora, por entender que os mesmos, a existirem eram do conhecimento da autora na altura em que propôs a ação, sendo fácil a sua prova, a qual só não foi conseguida por inércia da própria demandante.
Na sentença recorrida salienta o Julgador que a autora sofreu danos que se manterão durante toda a sua vida decorrentes da IPP de 3% que lhe foi fixada, mas não é possível recorrer à equidade para fixação do quantitativo a arbitrar por tais danos, uma vez que se desconhece a idade da autora, a sua profissão e o rendimento do seu trabalho, donde caberá em sede de liquidação de sentença apurar tais factos para se poder então arbitrar uma indemnização.
Estamos de acordo que por falta de elementos não é possível, mesmo recorrendo a equidade, fixar qualquer indemnização à autora pelos danos patrimoniais indiretos, mas já não comungamos da opinião que tal indemnização se possa apurar e fixar em sede de execução de sentença.
A autora foi descuidada na alegação e prova dos factos relevantes para a decisão, mesmo com recurso à equidade. Relativamente à idade alegou, mas não provou. Relativamente à profissão ou atividade, bem como ao rendimento auferido, nem sequer alegou qualquer facto sobre o qual pudesse incidir prova.
Só nos casos em que no momento da formulação do pedido ou da prolação da sentença não haja elementos para fixar objeto ou quantidade do pedido se poderá relegar para execução de sentença a liquidação de um crédito. Contudo, a remissão para a execução de sentença não pode fazer-se em razão da falta de prova dos factos por não terem sido alegados, uma vez que há data da propositura da ação, não havia qualquer evolução dos factos determinantes encontrando-se perfeitamente consolidada a sua verificação.
Como se salienta no Ac. do STJ de 24/02/2000, in Sumários, 38º, 45, a “falta de elementos nunca poderá ser consequência da falta ou fracasso da prova na ação declarativa, mas antes, e apenas, por não serem conhecidos ainda, naqueles momentos, com rigor, as unidades que integram a universalidade ou por não se terem revelado, por estarem em evolução, todas as consequências”.
No caso dos autos, nem se evidenciou fracasso da prova, mas pura e simplesmente, omissão de alegação factual conducente ao arbitramento de indemnização pelos danos, pelo que não será lícito dar à autora uma segunda oportunidade, agora em sede de ação executiva, para produção de prova sobre factos que eram conhecidos e estavam definitivamente consolidados, que nem sequer alegou em sede de ação declarativa, sob pena de se subverterem as regras que estabelecem os momentos e lugares próprios para as diferentes fases processuais (cfr. Ac. do STJ de 13/01/2000 in Sumários, 37º, 34).
Nestes termos, à autora não assiste o direito de exigir em sede de execução de sentença quaisquer quantias a título de danos patrimoniais indiretos pelo que merece provimento, nesta parte o recurso, impondo-se a modificação da decisão recorrida, também no segmento que condenou o Fundo a pagar à autora quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença.

Conhecendo da 4ª questão
O recorrente entende que a quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais (€ 10 000,00), atendendo ao acervo factual apurado, peca por excesso, sendo adequado apenas o montante de € 4 500,00.
Nos termos das disposições combinadas dos artºs 496º n.º 3 e 494º do Cód. Civil o montante da respetiva indemnização deve ser fixado equitativamente, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, nomeadamente as lesões sofridas, nas vertentes de dano estético (prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima) de prejuízo de afirmação social (dano indiferenciado que respeita à inserção social da vítima nas vertentes, familiar, afetiva, sexual, profissional, recreativa, cultural etc), de prejuízo da saúde em geral e da consequente longevidade (o mal estar, a dor, o corte na maior expectativa de vida), do preço da juventude (assume realce a frustração do viver em pleno a chamada “primavera da vida”) e do preço da dor (abarcando as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade).
Também, como refere Antunes Varela[1] “o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de prudência e de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. É este, como já foi observado por alguns autores, um dos domínios onde mais necessários se tornam o bom senso, o equilíbrio e a noção das proporções em que o julgador deve decidir”.
No caso dos autos e com relevância para a questão em apreço constatamos que:
- Em consequência desse embate, a autora, sofreu fratura de ramos ileo-isquio-púbicos e contusão lombar, ficando a padecer de pseudoartrose do ramo isquio púbico com dores na flexão da anca com joelho em extensão.
- A autora ficou com uma incapacidade permanente geral de 3% e sofreu uma incapacidade absoluta para o trabalho de 210 (duzentos e dez) dias.
- A autora teve de permanecer, pelo menos, 30 dias em repouso absoluto no leito, dependendo de assistência de terceiros para se alimentar e efetuar a sua higiene diária.
- A autora sofreu dores (quantum doloris de 3 em 7) e sentiu medo de não voltar a andar normalmente.
Tendo presente este quadro factual haverá que reconhecer que a autora, não sendo minimamente responsável pela produção do acidente que a vitimou, ficou a sofrer na de limitação funcional com carácter permanente e doloroso à flexão, com repercussões pelo menos no campo da sua vivência diária que lhe retira qualidade de vida, tudo isto se repercutindo nos anos que tem de pela frente (a autora alegou ter 38 anos à data do acidente embora não tenha feito prova de tal facto), constituindo, por isso, marcas irrecuperáveis de limitação e sofrimento.
Nestes termos, sopesando tudo o que foi dito, e chamando á colação a equidade e a proporcionalidade, concluímos que se acha adequado fixar em € 10 000,00 a compensação a arbitrar à autora pelos danos não patrimoniais sofridos, havendo, assim, nesta parte, que manter-se a decisão impugnada, improcedendo o recurso.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, determina-se que a parte decisória da sentença recorrida passe a ter a seguinte redação:
“Nestes termos e por tudo o exposto, decide-se:
a) julgar o réu Max .................. como parte ilegítima e, em consequência, absolvê-lo da instância;
b) julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenar, solidariamente, o Fundo de Garantia Automóvel e Flávio José Veloso Sobral a pagarem à autora E..................:
i. a quantia de €130,81 (cento e trinta euros e oitenta e um cêntimos), correspondentes aos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde 24/12/2002;
ii. a quantia de €10.000 (dez mil euros), correspondentes aos danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a presente decisão.”
Custas pela autora, réu e interveniente, nos termos do respetivo decaimento.

Évora, 20 de Setembro de 2012



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Mata Ribeiro


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Sílvio Teixeira de Sousa


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Rui Machado e Moura




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[1] - citado a fls. 134, no ac. do STJ de 25/06/2002 in Col. Jur., ano X, tomo 2.