OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
IMPOSIÇÃO DE DEVERES
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário


1. As lesões insignificantes estão excluídas do tipo de crime do artigo 143.º do Código Penal.

2. O acto de “empurrar” envolve, em princípio, uma certa violência sobre o corpo de outra pessoa, e pode situar-se na fronteira da (i)licitude penal.

3. Assim, um empurrão num transporte colectivo, ou um empurrão para afastar alguém que se aproxima demasiado, não serão condutas típicas; mas já o será o “desferir empurrões nos ombros de outra pessoa na sequência de discussão que se gerou entre ambas”.

4. A obrigação de reparação do mal do crime, como condicionante da suspensão da pena de prisão, cumpre uma função adjuvante das finalidades da punição, contribuindo para a reinserção social do arguido e para a reposição da situação do lesado antes do cometimento do crime.

5. Mas para que se prossiga tal desiderato deve o arguido encontrar-se em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária, na quantidade e no tempo determinados na sentença.

6. Apresentando-se desproporcionado o montante da indemnização arbitrada, face à situação económica do condenado, deve fazer-se uso do art. 51º nº1, al. a) do Código Penal e substituir-se o “todo” da indemnização pela “parte” que o arguido se apresente em condições de poder cumprir.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Processo n.º 466/07.8GESTB do Tribunal Judicial de foi proferida sentença em que se decidiu:

a) Absolver o arguido JM da prática do crime de ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º do Código Penal.

b) Absolver o arguido CN, da prática dos crimes de detenção de arma proibida, do artigo 86.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e do crime de detenção de arma proibida, do artigo 86.º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

c) Condenar o arguido CN como autor do crime de ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º do Código Penal na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de 7 € (sete euros);

d) Condenar o arguido CN como autor do crime de ofensa à integridade física grave, do artigo 144.º, al. d) do Código Penal na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

e) Suspender a execução da pena aplicada ao arguido CN pelo período de 5 (cinco) anos, com regime de prova.

f) Subordinar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido CN ao pagamento aos demandantes cíveis das quantias referidas infra a título de indemnização, no prazo da suspensão da pena.

g) Condenar o arguido RM como autor do crime de ofensa à integridade física simples, do artigo 143.º do Código Penal na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de 7 € (sete euros).

I – Condenar o demandado CN a pagar ao demandante JM a quantia de 6.919,03 € (seis mil, novecentos e dezanove euros e três cêntimos) a título de indemnização por danos patrimoniais, no prazo fixado para a suspensão da execução da pena de prisão fixada;

II – Condenar o demandado CN a pagar ao demandante JM a quantia de 15.000,00, € (quinze mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, no prazo fixado para a suspensão da execução da pena de prisão fixada;

III – Absolver o demandado CN do remanescente peticionado pelo demandante JM.

IV – Condenar o demandado CN a pagar a quantia de 12.110,16 € (doze mil, cento e dez euros e dezasseis cêntimos) ao demandante Centro Hospitalar de Setúbal, EPE no prazo fixado para a suspensão da execução da pena de prisão fixada;

V – Condenar o demandado RM a pagar ao demandante Centro Hospitalar de Setúbal, EPE a quantia de 106,00 € (cento e seis euros).

Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo da forma seguinte:

“1ª- No douto acórdão foi decidido absolver o arguido JM da prática do crime de ofensa à integridade física resultante do facto do mesmo ter desferido empurrões nos ombros de CN;

2ª- De acordo com os termos da fundamentação tal facto não integra a prática desse crime por não terem existido lesões susceptíveis de revestir uma gravidade que permita tal enquadramento;

3ª- A decisão neste ponto é inaceitável pois os factos em apreço integram, sem qualquer dúvida, os elementos do crime típicos daquele crime;

4ª- Na verdade, o bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a integridade física e psíquica da pessoa na sua integralidade, ou seja, o direito à integridade pessoal, enquanto dimensão nuclear da dignidade da pessoa humana;

5ª- Não se exige na norma incriminadora, nem tal é elemento do tipo, que se provoque no ofendido dor ou lesão e, muito menos, que exista lesão visível que ou imponha certo tratamento;

6ª- No caso em apreço, a conduta do arguido consistente em desferir empurrões nos ombros de outra pessoa, é uma acção que envolve violência sobre o corpo do ofendido, pois o conceito de empurrar envolve sempre uma acção forte, vigorosa e tendente a afastar outrem.

7ª- Acresce que em face da forma como o agente praticou os factos considera-se, sem qualquer dúvida, que se mostra preenchido o elemento intencional, dada a forma livre e consciente que actuou sobre o corpo doutra pessoa;

8ª- Nestes termos, deverá o arguido JM ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples do art. 143º, nº 1 do Código Penal, por se mostrarem preenchidos todos os elementos típicos bem como por resultar dos factos provados que o arguido agiu de forma voluntária com intuito de ofender o corpo do opositor;

9ª- No que respeita à escolha e medida da pena, em face do grau de ilicitude, do facto de ter agido com dolo directo, da inexistência de antecedentes criminais e ponderando as exigências de prevenção geral existentes neste tipo de crime deverá o aludido arguido ser condenado na pena de multa, não inferior a 40 dias, em montante diário a fixar;

10ª- O douto acórdão recorrido violou o disposto no art. 143º, nº1 do Código Penal, ao não ter integrado os factos provados relativos à actuação do arguido JM no que respeita aos empurrões que desferiu nos ombros do opositor neste tipo legal de crime, na medida em que tais factos integra a prática desse crime.”

Também o arguido CN interpôs recurso do acórdão, concluindo:

“a) Sem desdouro, ousamos discordar do, apesar de tudo, Douto Decisório ora em crise, no que concerne à decisão sobre a matéria de facto e de direito;

b) a Decisão da matéria de facto deveria ter considerado provados os seguintes factos (art. 412.°, n." 3, alínea a) do CPP):

c) A correcção da factualidade dada como provada impõe-se, de acordo com a boa concretização do poder-dever consagrado no art." 431º alíneas a) e b) do CPP.

d) As provas que impunham decisão diversa são as seguintes (art. 412 °, nº 2, alínea b) do CPP):

i. Prova Documental; Relatório médicos com referência ao peso corporal do arguido JM;
ii. Depoimento da testemunha RM;
iii. Depoimento da testemunha RF;
iv. Depoimento dá testemunha ME;
v. Depoimento da testemunha NR;
vi. Declarações do Arguido CN:

e) As normas jurídicas violadas são as seguintes;

i. Quanto à valoração da prova produzida em julgamento: arts 127º do CPP e arts 351.º do CC, na medida em que a apreciação da prova conforme acima se descreveu, violou a prova carreada para os autos e exibida em audiência de julgamento, bem como as elementares regras de experiência comum;

ii. Art. 340.º do CPP, atenta a não valoração de prova documental junta aos autos, sem que para o efeito tivesse sido realizada qualquer diligência, até de confronto da mesma com o arguido;

iii. Quanto ao enquadramento jurídico das condutas imputadas ao arguido, a incorrecta aplicação dos ilícitos tipo de ofensa à integridade física e ofensa à integridade física agravada, nos termos dos arts 143º, nº 1 e 144° alínea d) do Cod. Penal;

iv. Por não aplicação, foram violados os arts. 32º ou, subsidiariamente o art. 33º n.º 2 do Cód. Penal e o art. 143.º n.3 alinea b) do mesmo diploma;

v. Foi ainda violado o art. 51° nº 2 do Código Penal, no tocante à condição estabelecida para a suspensão da execução da pena.

f) Da análise de toda a prova produzida em julgamento resulta provado que o Arguido usou o punhal como forma de se defender da agressão actual e ilícita dos arguidos JM e RM;

g) No ponto 12 dos factos dados como provados deveria constar que o arguido JM e o arguido RM avançaram para o arguido C, em comunhão de esforços e com a intenção de o agredir.

h) Nos factos provados deveria constar ainda que: os três arguidos envolveram-se em agressões mútuas – o arguido CN ficou no meio dos arguidos JM e RM, tendo caído para o chão na sequência das agressões destes, as quais continuaram.

i) No ponto 1.3 dos factos provados deveria constar ainda que "Nesse instante, e para se defender das agressões de que estava a ser alvo, o arguido CN desferiu com o supra referido punhal dois golpes no corpo do arguido JM … "

j) Mais devendo os pontos 22,23 e 24 dos factos provados ser alterados em conformidade com o-supra exposto.

k) Por outro lado, resultou da prova produzida em audiência, que, após a discussão no café o arguido CN, regressou a casa enquanto procurava e telemóvel, encontrou o arguido JM, em que este se encontrava munido de uma catana, e com receio de ser agredido o arguido CN regressou a casa e saiu já munido de um punhal, por receio daquele arguido e apenas para se defender de eventuais agressões

1) Devendo pois este facto ser transportado para os factos provados.

m) Quanto ao ponto 44 dos factos dados provados, o mesmo baseou-se unicamente no relatório social do arguido o qual não poderá fazer prova quanto à personalidade do mesmo, pelo que deverá tal facto ser desconsiderado.

n) A versão apresentada pelos arguidos J, R e ainda pela testemunha MR é farta em contradições e incoerências;

o) Quanto aos factos que se passaram na taberna; na ausência total de prova de que o arguido CN tenha desferido um soco no arguido JM fundamentou o Tribunal a quo tal condenação nas declarações dos arguidos (!) e no depoimento da esposa e mãe dos arguidos J e R, respectivamente, que declarou que o seu marido veio para casa Lavar o sangue que tinha na boca e que até lhe caiu um dente;

p) Na ausência total de prova que corrobore o ponto 4 dos factos provados, como, resulta patente do próprio Acórdão, deverá o mesmo ser dado como não provado e o arguido absolvido da prática do crime, por existir insuficiência da matéria de facto dada como provada para a decisão;

q) Deverá também o pedido de indemnização cível ser julgado improcedente atento o facto de o arguido ter agido ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude,

r) A condição imposta ao arguido para efeito de suspensão da pena é desrazoável e desproporcional, atenta a sua muito débil situação económica e a total ausência de perspectivas de melhoria por razões a si não imputáveis.

Sem prejuízo e subsidiariamente sempre será de considerar o Principio in dubio pro reo.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, alegando que o recorrente não procedeu à impugnação da prova nos termos do art. 412º, nº 1 do Código de Processo Penal, que o Tribunal julgou bem, de facto e de direito, e que o acórdão deve ser confirmado.

O arguido JM respondeu aos recursos do Ministério Público e do co-arguido, pronunciando-se no sentido da(s) improcedência(s).

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência do recurso do arguido, não se pronunciando quanto ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na decisão recorrida consideraram-se os seguintes factos provados:

“1 - Em 27 de Julho de 2007, a hora indeterminada, mas entre as 22 e as 23 horas, os arguidos CN e JM encontravam-se no café “xxx”, sito na Aldeia da Piedade, em Azeitão.

2 - Nessa ocasião, o arguido CN afirmou em voz alta, referindo-se às pessoas da Aldeia “as pessoas daqui não valem uma merda” tendo sido interpelado por JM que lhe disse “Para que é que vieste para cá?”.

3 - Na sequência da discussão que se gerou entre ambos, o arguido JM desferiu empurrões nos ombros do arguido CN.

4 - Após, o arguido C desferiu um soco na face do arguido JM, causando-lhe o sangramento da boca e partindo-lhe um dente, e ainda o empurrou, tendo o arguido JM caído no chão, por cima de uma mota que ali se encontrava estacionada.

5 - Entretanto, RM, filho de JM, estava a chegar ao local e, vendo o seu pai, o arguido JM, já caído no chão, muniu-se de uma cadeira de plástico e desferiu, pelo menos, uma pancada com a mesma nas costas do arguido C, partindo a cadeira.

6 - Após, o arguido CN encetou a fuga do local, correndo na direcção de sua casa, enquanto os demais arguidos abandonaram o local dirigindo-se para as suas casas.

7 - Em consequência de ter sido atingido com uma cadeira pelo arguido RM, o arguido CN sofreu uma ferida incisa na face dorsal da primeira falange do 3º dedo da mão esquerda, lesão essa que lhe provocou dores.

8 - O arguido CN actuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, com o propósito concretizado de ofender o corpo e a saúde do arguido JM.

9 - O arguido RM actuou livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, com o propósito concretizado de ofender o corpo e a saúde do arguido CN.

10 - No mesmo dia 27/7/2007, entre as 23 horas e as 24 horas e enquanto fazia o percurso entre a sua casa e o café “xxx”, no sentido de procurar o telemóvel que havia perdido aquando da sua fuga, o arguido CN encontrou o arguido JM, o qual se dirigia para o mesmo café.

11 - Nessa altura, o arguido CN estava munido de um punhal de caça grossa, marca Crowning Stainless, em aço inoxidável, com uma lâmina de 17,5 cm de comprimento, medindo o gume cortante 16 cm de comprimento e 3,5 cm de largura, com bico perfurante.

12 - Após o arguido JM se lhe ter dirigido perguntando o que é que estava ali a fazer e por este ter respondido que não queria nada com ele, queria era com o RM, o arguido JM avançou para o arguido CN dizendo o que é que ele queria com o seu filho e, de seguida, os mesmos agarraram-se mutuamente.

13 - Nesse instante, o arguido CN desferiu com o supra referido punhal dois golpes no corpo do arguido JM, atingindo-o na região abdominal e no terço médio da coxa esquerda.

14 - Em consequência da conduta descrita o arguido JM sofreu uma ferida penetrante na região epigástrica da cavidade abdominal e traumatismo abdominal perfurante e ferida da coxa, que determinaram o seu internamento hospitalar de urgência, em estado de choque tendo sido efectuada sutura de laceração do estômago.

15 - Foi submetido a laparotomia exploradora, constatando-se ferida transfixiva do estômago, que foi suturada, lavagem, exploração e encerramento da ferida da coxa direita.

16 - No pós-operatório teve necessidade de suporte ventilatório, pelo que foi transferido para a UCI, onde esteve internado durante 17 dias.

17 - Durante esse processo teve como intercorrências: Pneumonia nosocomital, realizou antibioterapia; Evisceração, reoperado, realizado encerramento da parede abdominal;

18 - Apresenta as seguintes lesões; Cicatriz operatória na linha mediana abdominal com 20 cm de comprimento; Duas cicatrizes lineares respectivamente com 2,5 cm e 1,5 cm localizadas, uma região epigástrica e outra no flanco esquerdo.

Apresenta ainda 3 cicatrizes na face externa do abdómen resultantes da colocação de drenos.

Na face externa direita do abdómen apresenta cicatriz linear com 2 cm de comprimento ao flanco direito.

Apresenta ainda 2 cicatrizes no flanco direito, resultantes da colocação de drenos.

Cicatriz linear e regular com cerca de 10 cm de comprimento na face anterior terço médio da coxa esquerda.

19 - As lesões sofridas demandaram para consolidar um período de 157 dias de doença com igual incapacidade para o trabalho.

20 - Em 6 de Setembro de 2007, o arguido CN detinha:

- Uma espingarda semi-automática de marca “Browning”, de calibre 12, com o n.º 411PY09725, com 1 cano liso de 70 cm;

- Uma espingarda semi-automática de marca “Breda”de calibre 12, com o n.º 439012, com 1 cano liso de 62,5 cm;

- Uma espingarda de marca “Miroku”, de funcionamento tiro a tiro, de calibre 12, com o n.º 56144NP, composta por 2 canos lisos de 76 cm, sendo que esta última encontrava-se guardada num armeiro, armas essas que lhe pertenciam e se encontravam registadas em seu nome.

21 - O arguido CN possuía licença para uso e porte de arma, mas a respectiva validade havia expirado a 19/05/2007.

22 - O arguido CN, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de ofender o corpo e a saúde do arguido JM.

23 - O arguido CN agiu ainda bem sabendo, ao utilizar o punhal supra referido, que a zona deste último por si visada alojava órgãos vitais e representando a possibilidade de a sua conduta colocar em perigo a vida do mesmo e, ainda assim, conformou-se com esta última possibilidade.

24 - O arguido CN actuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo as características das supra referidas espingardas e do punhal referido, bem sabendo que a licença de uso e porte de arma se encontrava, em 19/5/2007, caducada.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP (AFJ de 19.10.95) – que, no caso, não se detectam – as questões a apreciar são as seguintes:

Recurso do Ministério Público:

- Erro de subsunção – não integração dos factos provados no crime de ofensa à integridade física do art. 143º, nº1 do Código Penal (cometido pelo arguido JM).

Recurso do arguido CN:

- Impugnação da matéria de facto
- Impugnação da pena

Recurso do Ministério Público

Do cometimento do crime de ofensa à integridade física (art. 143º, nº1 do Código Penal) pelo arguido JM:

O Ministério Público não recorre de facto.

Limita o seu recurso à matéria de direito, opondo-se à posição defendida no acórdão – no sentido da atipicidade da conduta apurada – e à sequente absolvição do arguido JM.

Defende que o bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a integridade física e psíquica da pessoa na sua integralidade, ou seja, o direito à integridade pessoal, enquanto dimensão nuclear da dignidade da pessoa humana; que não se exige na norma incriminadora, nem tal é elemento do tipo, que se provoque no ofendido dor ou lesão e, muito menos, que exista lesão visível que imponha tratamento; e que, no caso, a conduta do arguido, consistente em desferir empurrões nos ombros de outra pessoa, é uma acção que envolve violência sobre o corpo do ofendido, pois o conceito de empurrar envolve sempre uma acção forte, vigorosa e tendente a afastar outrem.

Reconhece-se o acerto destas asserções.

“O tipo legal preenche-se através de uma ofensa no corpo ou na saúde da vítima, independentemente da dor ou do sofrimento causados” e “por ofensa no corpo entende-se todo o mau trato através do qual o agente è prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante” (Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Org. Figueiredo Dias, 2ª ed., p. 304-305).

Exige-se, pois, que a ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não sejam insignificantes.

As lesões insignificantes estarão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor (Figueiredo Dias, Direito Penal, 2004, p. 277).

O acto de empurrar envolve efectivamente uma certa violência sobre o corpo de outra pessoa. “Empurrar” significa “impulsionar com força, impelir com vigor” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

Mas este comportamento é um bom exemplo de conduta que pode situar-se na fronteira da (i)licitude penal – reportando-nos sempre ao crime de ofensa à integridade física -, devendo merecer cuidada atenção na contextualização no conjunto dos factos, a fim de se decidir sobre o sentido social de desvalor.

Assim, por exemplo, um empurrão num transporte colectivo, ou um empurrão para afastar alguém que se aproxima demasiado, não serão condutas típicas.

Mas estas situações, ainda socialmente adequadas, são diferentes daquela que se encontra descrita nos factos provados.

A posição seguida no acórdão parece assentar na consideração da pequena significância do comportamento do arguido JM para o direito penal. Aceita uma ideia de insignificância, de “Geringfügigkeit”, considerando, por tanto, aquele comportamento desmerecedor de tutela penal.

Não nos parece que a conduta apurada se apresente, à partida, como insignificante e, como tal, insusceptível de enquadrar ofensa no corpo e de ser objectivamente típica.

Provou-se, na parte que interessa aqui, que “na sequência da discussão que se gerou entre ambos, o arguido JM desferiu empurrões nos ombros do arguido CN”

Contudo, ainda com interesse, considerou-se como não provadoque o arguido JM tenha provocado lesões e tenha actuado livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, com o propósito concretizado de ofender o corpo e a saúde do arguido CN”.

O Ministério Público não recorreu de facto. Não procedeu à impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal. Restringiu o seu recurso à matéria de direito.

Assim, e mesmo que se considere que os factos externos não configuram uma “Geringfügigkeit”, tais factos não deixam de ser insuficientes para preenchimento do tipo de ilícito.

É que “o resultado típico (ofensas no corpo ou na saúde do ofendido) tem que ser inequivocamente abrangido pelo dolo do agente” (Paula Ribeiro de Faria, loc. cit., p.314).

O dolo, como conhecimento e vontade de realização de um concreto tipo de ilícito, não poderá deixar de ser descrito factualmente na sentença. E é errado pensar que os factos subjectivos possam resultar logicamente dos factos objectivos narrados.

É que uma coisa é a base factual que constitui a decisão de facto, antecedente da decisão de direito, e, outra, é a prova desses mesmos factos que, esta sim, pode ser feita recorrendo a presunções e inferências lógicas.

O acórdão não contém nenhum facto provado relativo ao dolo do agente.

Mesmo perante um tipo que se basta com o dolo genérico, em qualquer uma das modalidades do art.14º do Código Penal, a base factual teria de conter os factos integrantes desse dolo genérico. Factos esses que, como se viu, foram considerados como não provados.

Neste momento processual e de acordo com a forma como o recurso se apresenta, na ausência de factualidade susceptível de integrar o dolo, nada mais resta do que confirmar a absolvição do recorrido JM.

Por tudo se conclui que o acto (objectivo) de “empurrar”, independentemente da sua maior ou menor significância, sempre seria insusceptível de subsunção típica, na ausência dos factos integrantes do tipo subjectivo de ilícito. Os factos subjectivos foram tidos como não provados e a isto não reagiu o Ministério Público, que não recorreu de facto.

Este recurso terá, assim, de improceder.

Recurso do arguido CN

Da impugnação da matéria de facto:

Impõe o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação faz-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (nº4). O incumprimento das formalidades, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, obsta ao conhecimento do recurso da matéria de facto, o que não ocorre no caso.

Antes de apreciar as concretas razões explanadas no recurso, cumpre recordar a motivação do acórdão, da qual se terá necessariamente de partir, já que o recurso da matéria de facto pressupõe, não a reapreciação total do complexo das provas, mas a reapreciação da razoabilidade da decisão do tribunal de julgamento quanto aos pontos de facto que o recorrente indica como incorrectamente julgados.

Assim, a motivação da matéria de facto apresenta-se na sentença da forma seguinte:

“Na fundamentação da matéria de facto teve-se em consideração a ponderação conjunta da prova documental junta aos autos, as declarações do arguido (também quanto às condições pessoais) e os depoimentos das testemunhas.

Assim, teve-se em consideração o teor do Auto de notícia de fls. 2 e aditamento de fls. 25; os documentos de fls. 47, 52 a 55, 58 a 61, 76 a 79, 81 a 88, 156 a 158, 184 a 186; os Autos de busca e apreensão de fls. 51 e 57; os Autos de exame e avaliação de fls. 151 e 152 e 159.

Considerou-se ainda os Autos de exame médico de fls. 169 e 180 e 181 – nomeadamente quanto ao facto de as lesões sofridas pelo arguido JM terem colocado em perigo efectivo a sua vida.

Atendeu-se ainda aos Auto de apreensão de fls. 8 e Auto de exame e avaliação do punhal de fls. 159 e 160; aos Autos de exame e avaliação das armas de fls. 151 a 152.

O Tribunal assentou ainda os factos no CRC do arguido CN a fls. 148 e 149; no CRC do arguido JM de fls. 833 e do arguido RM a fls. 832, no relatório social relativo ao arguido CN a fls. 869 a 873.

Os arguidos prestaram declarações em audiência.

Em concreto, o arguido C declarou corresponderem à verdade os factos tal como constavam da pronúncia.

Admitiu que tinha a licença da arma caducada, o que sabia.

Admitiu ainda que se iniciaram as agressões com uma frase por si dita; “que os da aldeia não valiam uma merda” ao que um senhor de mais idade lhe perguntou se não valiam nada porque é que estava ali e o arguido JM vai ter com ele, empurra-o e acabam a agredir-se.

No entanto, na realidade afasta-se dos factos referidos na pronúncia quando afirma que apenas utilizou o punhal em sua defesa, por ter sido ameaçado pelo arguido JM com uma catana.

Assim, o arguido relata que nessa noite, após o envolvimento com os restantes arguidos na Taberna, e por ter perdido o telemóvel, perto da casa do arguido JM, dirigiu-se para este local munido de uma lanterna.

Antes de ai chegar, encontrou o arguido JM que se encontrava escondido num beco à sua espera, munido de uma catana com cerca de 60 cm de lâmina e, brandindo a mesma no ar em direcção ao arguido C o ameaçou que o degolava.

O arguido foge para casa com medo, mas decide voltar a sair para procurar o telemóvel, altura em que a situação se repete.

Pela terceira vez o arguido decide sair de casa, desta vez com o punhal com que veio a agredir o arguido JM.

Quando estava de joelhos à procura do telemóvel surge o arguido JM, pelo que o arguido C, receando ser agredido face aos dois últimos encontros, o apunhala.

Admite o arguido C que se apercebeu que dessa vez o arguido JM não trazia qualquer catana na mão.

Tais declarações carecem de credibilidade, consideradas à luz do mais elementar senso comum e regras de experiência.

Deste modo, não faz qualquer sentido que o arguido C, afirmando que se encontrou com o arguido JM e este, brandindo a catana, o ameaçasse, o que lhe provocou bastante medo, temendo o arguido C pela sua vida, tenha ainda assim resolvido sair uma segunda vez para a rua, apenas 10 minutos volvidos, só para buscar o telemóvel, sem ter pedido qualquer auxílio ou procurado ir ter com a sua companheira à Taberna ou relatado a ocorrência a quem quer que fosse.

Refere ainda o arguido C que já tinha visto a dita catana anteriormente nas mãos do arguido JM e este até chegou a dizer-lhe que a catana cortava muito bem.

O arguido afirma ainda que quando se preparava para sair pela segunda vez, aparece o RG a avisá-lo que o arguido JM o ameaçava com uma catana.

Assim, já depois do alegado primeiro encontro com o arguido JM e avisado pelo R, sentindo o arguido C medo e temendo pela sua vida, o arguido C sai pela segunda vez e, embora refira que sai de casa acompanhado, encontra-se novamente sozinho com o arguido JM, a brandir a catana no ar e a ameaçar que o degolava.

Fugindo pela segunda vez para casa, decide o arguido C sair pela terceira vez, munido do punhal, utilizado em caça grossa, para se defender.

Ora, o arguido dispunha em sua casa de armas de fogo, com as quais melhor se poderia defender, como alega ser sua intenção quando, ao sair pela terceira vez, traz consigo o punhal.

Acresce que o arguido C tem experiência de vários anos no manuseamento de armas, por ser caçador e tendo inclusivamente gerido o Campo de Tiro de Grupo Desportivo de xxx, conforme consta do relatório Social.

Também não colhe qualquer credibilidade o facto de o arguido JM estar à espera do arguido C, tendo o arguido encontrado o mesmo por duas vezes com a catana e finalmente, à terceira, o arguido JM já tivesse “desmobilizado” e ao dirigir-se ao arguido C, não tivesse qualquer catana consigo, vindo a ser apunhalado pelo C.

Por outro lado, igualmente não convenceu a explicação dada pelo arguido para o facto de achar que o seu telemóvel se encontrava debaixo de um carro estacionado praticamente à porta do arguido JM, distante da Taberna e que nem sequer ficava no caminho que o arguido C fez ao fugir a correr da taberna. Refere o arguido, nas declarações prestadas na audiência de julgamento do dia 20/12/2011, que se apercebeu que o telemóvel lhe caiu do bolso da camisa e que o telemóvel “correu” para debaixo de um carro estacionado a cerca de 15 metros.

Ainda que assim não se entendesse, acresce que esta versão do arguido C não teve qualquer eco, quer nas declarações dos outros dois arguidos, quer em qualquer depoimento prestado pelas testemunhas.

Assim, o arguido JM declarou que no dia e horas em causa nos autos o arguido C estava a dizer mal das pessoas da aldeia ao que o arguido JM se lhe dirige dizendo que ainda assim o C tinha vindo para a aldeia matar a fome.

O arguido C dá-lhe um murro e cai por cima de uma mota. O filho apareceu e deu-lhe com a cadeira, ao que o C abandona o local.

O arguido acompanhado pelo filho, dirigem-se para as respectivas casas, indo o arguido JM lavar a boca que estava cheia de sangue.

Passado algum tempo, não exactamente apurado mas entre um quarto de hora ou 45 minutos, sai de casa novamente com intenção de voltar à Taberna para comprar tabaco, seguido pelo filho, pela sua irmã e pela mulher.

Vê o arguido C ao pé de um carro estacionado, entre o carro e a parede que distavam 40 ou 45 cm, a cerca de três metros da porta dele e pergunta-lhe o que é que anda ali a fazer, ao que o arguido C diz que com ele não quer nada, quer é com o filho. O arguido J avança para o arguido C a dizer para tratar do assunto que for com ele e o C agarra-o por um braço e atinge-o com o punhal.

O sítio não tinha espaço de manobra e o seu filho teve de dar a volta por trás do carro, para o puxar. O C vira-se a ele e o filho teve de fugir para não ser atingido.

Nega ter mexido em qualquer catana.

Foi atingido pelo menos duas vezes, no estômago e na perna e ficou logo combalido com a primeira.

Da sua porta à taberna são cerca de 45 metros.

É um sítio escuro onde só há luz do prédio da vizinha.

Estas declarações são coincidentes com as prestadas pelo arguido RM.

Este refere que chegou à Taberna e vê o pai caído e o C a agredi-lo, pelo que agarra numa cadeira e dá-lhe com a cadeira em cima, nas costas, que até a cadeira se partiu.

É possível que o arguido C tenha feito a ferida na mão da qual veio a receber tratamento hospitalar nessa ocasião.

O C foge, os outros arguidos vão para casa do arguido JM, para este se limpar uma vez que estava a sangrar da boca.

O pai decide voltar a sair para ir à Taberna comprar tabaco, encontram o C, o pai pergunta-lhe o que estava ali a fazer, este diz qualquer coisa como “Contigo falo amanhã agora quero falar é com o teu filho”; O pai avançou para ele e foi esfaqueado.

O C virou-se a ele e ele fugiu, o C foi atrás dele mas conseguiu fugir porque foi mais rápido, deu a volta e foi ver do pai.

A testemunha MR, irmã do arguido JM, relata os acontecimentos da mesma forma que os arguidos J e R referiram, com excepção do facto de a mulher do arguido JM ter estado desde o início dos acontecimentos junto deles.

Quanto a esta, refere a testemunha e isso mesmo é confirmado pela própria CM, mulher do arguido JM, que esta só sai de casa momentos depois do arguido ter saído, em robe e pijama, não se apercebendo logo da faca e achando que o C o estava a socar.

Nessa altura o arguido C virou-se para o R dizendo que agora era com ele, mas o R foge, com a testemunha e a mulher do arguido J atrás.

O arguido C ainda agarra a CM, que estava a gritar para que ele deixasse a sua família em paz e aponta-lhe a faca ao pescoço, facto referido também pela testemunha RM.

A testemunha MR interveio, tentando fazê-lo chegar à razão e o arguido C olhou para ela e foi-se embora.

A testemunha refere ainda que esteve sempre com o irmão entre os acontecimentos na Taberna e estes, sendo que o irmão não saiu de casa antes nem agarrou em qualquer catana.

Este depoimento é coincidente com o testemunho de CM, mulher do arguido J e mãe do R.

RM descreve também a agressão com a faca e declara igualmente que não viu nenhuma catana.

A testemunha AB referiu que estava junto à Taberna e que vê passar o C com uma lanterna na mão.

Ora, não se compreende porque é que o arguido não aproveitou para pedir ajuda às outras pessoas que ali se encontravam, uma vez que estava a ser ameaçado pelo arguido J.

A testemunha J declarou que foi à procura do R e, chegado à casa do C, encontra este muito nervoso. Como o R ali não se encontrava e o arguido C ia sair com uma lanterna à procura do telemóvel saiu com ele até que o chamaram a dizer que o R estava no restaurante. Foi-se embora e logo de seguida ouve gritos. Apercebe-se depois que o arguido C tinha esfaqueado o JM.

Assim, também não faz qualquer sentido que o arguido C nada tenha dito a este testemunha sobre as alegadas ameaças com a catana por parte do arguido JM.

LC, empregada doméstica e amiga do arguido J declara que apenas vê o arguido J a dirigir-se ao arguido C e este “leva o J à frente”. Só quando chega mais perto vê os golpes. Também não viu o arguido J com qualquer catana.

ME, doméstica e companheira do arguido C declarou que, após os acontecimentos na Taberna, se manteve nesta e que passado pouco tempo chega um indivíduo de nome Zé ao pé dela com um telemóvel na mão, a perguntar-lhe se o conhecia, ao que a testemunha diz que sim, que era do arguido C e guardou-o. Este facto igualmente não abona a favor da versão do arguido C quando afirma que sentiu o telemóvel a cair do bolso perto da casa do arguido J que fica a cerca de 45 metros da Taberna e que lhe deu um pontapé, tendo o telemóvel se deslocado para debaixo do veículo estacionado ao pé da porta do arguido J.

Esta testemunha referiu ainda em audiência que a dada altura o seu filho R chega ao pé dela a gritar “mãe já mete catanas e tudo”, mas a testemunha não viu catana nenhuma. Disse que agarrou no telemóvel e foi para casa e encontrou roupas do arguido C e o chão todo “borrado” e o arguido C com o dedo debaixo da água, e branco.

Entretanto a GNR chegou.

Confirmou ainda a testemunha que o arguido C tinha armas em casa e que a licença estava caducada.

JJ – cabo da GNR de Azeitão, foi chamado ao local, estava de patrulha e foi chamado à Aldeia da Piedade.

Não sabe se houve uma chamada antes para a GNR.

Não assistiu aos factos; ali chegado viu uma pessoa esfaqueada. Disseram-lhe quem era, esperou por reforços e detiveram o C.

Nesse dia o punhal não foi encontrado, foi no dia seguinte, de manhã, por outra patrulha no quintal do arguido C que dizia que a faca estaria para ali, por a ter atirado na noite anterior.

Relativamente ao depoimento da testemunha RG, filho da companheira do arguido CN, manifestamente as suas declarações foram condicionadas pela emoção, depreendendo-se das mesmas a existência de um conflito interior desta testemunha. Assim, referiu esta testemunha (e foi a única) ter visto o arguido JM com a catana na mão. Sucede que este depoimento não coincidiu nem com as declarações do próprio arguido C, nem com o depoimento da sua mãe, nem com depoimentos ou declarações das restantes testemunhas.

Concretamente, o arguido C referiu que encontrou o arguido JM por duas vezes, brandindo este a catana no ar e ameaçando-o. Referiu ainda que antes de sair pela segunda vez o R o alertou para o facto de o arguido JM ter a catana. A testemunha FG diz que o seu filho chegou ao pé dela na taberna e lhe falou na catana. Nada disto foi referido pela testemunha, que referiu ter visto o arguido JM com a catana apenas uma vez, e que este tinha a catana virada para baixo; não ouviu as ameaças; não avisou anteriormente o arguido e não foi ter com a sua mãe à taberna para a avisar que o JM tinha uma catana.

As suas declarações foram norteadas por inconsistências e contradições, com manifesta resistência a relatar tais factos, denotando-se algum receio em falar. Referiu ainda que na altura era muito novo e que foi atrás do arguido C porque o viu muito nervoso e “já sabia como ele era”; quando instado a descrever ao tribunal a que é que se referia, resistiu a responder, não esclarecendo cabalmente as suas anteriores declarações.

Atento ao que consta do relatório social elaborado e respeitante ao arguido C, em que se refere que este tem dificuldade no controle dos seus impulsos, o tribunal ficou convicto que a testemunha não estava a falar com verdade, que haverá da sua parte receio em relação ao arguido C, com o qual a testemunha não terá boas relações.

Assim, da ponderação conjunta das declarações dos arguidos e destes depoimentos se alicerçaram os factos que a respeito desta situação ficaram provados, não encontrando a invocada justificação do arguido C de se estar apenas a defender da ameaça da catana empunhada pelo arguido JM, qualquer fundamentação na prova produzida.

Quanto ao elemento subjectivo da agravação do crime de ofensa à integridade física por parte do arguido C, teve-se em atenção, por um lado, que o punhal utilizado era susceptível de ser utilizado para abate de porcos e o arguido C era caçador há largos anos, conforme o mesmo admitiu e resulta do Relatório Social pelo que conhecia bem as características da arma e o seu manuseamento e efeitos do mesmo; teve-se por outro lado em consideração o facto de o arguido C pretender dirigir-se ao arguido R e não ao arguido JM e as demais circunstâncias em que os factos ocorreram, pelo que ficou a convicção que ao utilizar o punhal atingindo a região abdominal do arguido JM do modo descrito, o arguido C representou a possibilidade de colocar a vida daquele em perigo e ainda assim agiu conformando-se com essa possibilidade, mas não pretendeu directamente pôr em perigo a vida daquele.

Relativamente aos factos que se passaram na Taberna, MR, irmã do arguido JM, tia do R, estava no interior da Taberna e não assistiu ao início dos acontecimentos; presencia já o momento em que o JM está caído no chão e o R atinge-o com a cadeira.

MG confirma as expressões proferidas pelo arguido C na Taberna, por as ter presenciado e refere que o arguido JM foi “tirar satisfações” e que lhe deu empurrões nos ombros.

O C reage, empurra o JM e este cai.

Entretanto chega o R e dá com a cadeira no C, tendo as coisas terminado aí.

RM, assistente operacional, ouviu o arguido C a falar mal da aldeia e o arguido J a ir falar com ele.

Refere que se iniciou uma discussão e o arguido C empurra o arguido JM, que cai.

O R chegou nessa altura e vendo o pai caído no chão, dá com a cadeira nas costas do C.

Entre o arguido C e o arguido J não se recorda se viu algum soco ou pontapé.

AB confirma o modo como os factos se iniciaram e que o arguido J se dirige ao arguido C por este estar a falar mal das pessoas da aldeia. Embora utiliza expressões como “engataram-se” e andaram “envolvidos” quando directamente perguntado sobre agressões do arguido J ao arguido C diz que não o viu fazer nada que ele foi só falar com o C “tirar a pergunta”.

J e JM nada presenciaram quanto a estes factos; LC diz ter ouvido o C a dizer mal das pessoas da aldeia; sai e de seguida ouve gritos e já só vê o C a afastar-se a correr da Taberna.

NR, testemunha indicada pelo arguido C, veio dizer que nesse dia se encontrava no interior do seu carro, estacionado perto da Taberna e que se apercebe que um indivíduo dá uns empurrões no arguido C estando este sentado; este reage, levanta-se e empurra o outro que caiu. Aparece outro senhor que desfere um golpe com uma cadeira no C e o C foge. Declara não ter visto mais nada.

Assim, por ausência de prova concludente e credível relativamente às agressões imputadas ao arguido JM sobre o arguido C, para além de uns empurrões, tal matéria veio a resultar não provada.

Quanto ao soco desferido pelo arguido C, fundamentou-se esta matéria nas declarações dos próprios arguidos e no depoimento de CM que declarou que o seu marido veio para casa lavar o sangue que tinha na boca e que até lhe caiu um dente, declarações que se tiveram por credíveis, como todo o testemunho desta. Aliás, este seria o motivo que levou o arguido JM a regressar a casa e a não ficar na Taberna, onde mais tarde pretendia regressar.

Os arguidos prestaram declarações ainda sobre as suas condições pessoais, como supra ficou assente.

Quanto à matéria do pedido de indemnização civil foram ouvidas as testemunhas JCC, funcionário autárquico, cunhado do arguido J, irmão da C, que confirmou que o arguido J tem a profissão de jardineiro e que fazia trabalho remunerado ao mês, nomeadamente auferindo, pelo menos 400 euros do Sr. F e 175 euros, não sabe exactamente de quem, não sabendo se tinha outros trabalhos.

Declarou que o arguido esteve 18 ou 20 dias em coma e durante mais algum tempo no Hospital. Quando saiu este em casa da testemunha, cerca de um mês e meio a dois meses.

Refere que o arguido continuou a fazer consultas externas, mas não sabe quantas.

Quanto à consulta de pneumologia, declarou que o arguido consultou um médico conhecido da testemunha, porque o arguido não conseguia andar, sufocava. Acha que pagou 30 euros.

O seu cunhado esteve sem poder trabalhar e a sua irmã tentou assegurar o posto de trabalho, até que a mulher da testemunha teve também um acidente de viação.

Declarou que esta situação causou transtorno na vida da família e que o seu cunhado, primeiro não se lembrava de nada, depois começou a voltar ao estado normal.

Era uma pessoa que antes dos factos não se queixava, nem tinha qualquer problema, e depois sentia-se com falta de força, sentia-se mais fraco, incapacitado, com perda de capacidades físicas. A profissão exigia esforço físico.

Nunca mais ficou o que era. Era alegre e divertido e ficou com traumas, mais triste.

A mulher desta testemunha, AC, Auxiliar administrativa, irmã da C, confirmou o depoimento do seu marido e que o arguido e a sua mulher foram para casa dela porque a irmã estava com medo de ficar sozinha em casa e quando o cunhado veio do hospital também não conseguia. Neste momento têm a casa à venda e vão morar para Sesimbra porque não querem voltar a morar na Aldeia.

Afirmou que o arguido tinha de ir a consultas no Hospital, mas não sabe quantas nem quanto gastou, o mesmo afirmando quanto a medicamentos.

Referiu que o arguido J, antes dos factos, era sempre muito alegre e muito amigo dos amigos e já não é alegre como era.

Perdeu a saúde, tem medo de estar em casa.

Já recomeçou a trabalhar como jardineiro, mas tem menos capacidade física e toma comprimidos para dormir.

HS, professora reformada emprega o arguido J, como jardineiro, desde 2000. Pagava-lhe o salário mínimo.

O arguido esteve de baixa talvez seis meses mas já voltou a trabalhar para ela.

Foi ainda considerada a seguinte prova documental quanto à matéria do pedido cível:

Declaração de fls. 308 de HS declarando que o demandante trabalha para si auferindo o ordenado mensal de 403,00 €;

Declaração de fls. 309 de RO, datada de 11/11/2007 declarando que o demandante auferia o rendimento mensal de 250 € pelo serviço prestado de limpeza e manutenção de espaços verdes na Quinta xxxx – Aldeia da Piedade;

Declaração de fls. 310 de MM, datada de 16/12/2007 declarando pagar mensalmente a JM a quantia de 250 € para cuidar, vigiar e tratar do terreno sito----, Aldeia da Piedade, Azeitão.

Nota de débito do Centro Hospitalar de Setúbal em nome de JM; Factura n.º 27015442 enviada ao demandante pelo HSB, no montante de 12.020,16 €, datada de 30/11/2007, relativa a procedimentos major no estômago, esófago, duodeno, intestino delgado e intestino grosso, com Código Civil major, constando da mesma “Causa: Agressão”, a fls. 327 dos autos e Factura n.º 28009724 do Centro Hospitalar de Setúbal a fls. 334 dos autos, em nome de JM, datada de 20/8/2008 e no montante de 12.110,16 €. Desta constam facturadas três consultas em nome do demandante (de 27/7/2007; 5/9/2007 e 26/9/2007), no montante de 30 € cada.

Dos documentos de fls. 313 a 324 – recibos de taxas moderadoras, não resulta que estas tenham sido feitas em consequência da situação descrita nos autos (veja-se que a fls. 321 está um recibo datado de 14/3/2007 – data anterior à dos factos); de facto, na sequência dos factos foi detectado ao demandante um pólipo gástrico, que determinou que o mesmo viesse a ser operado novamente em 13 de Março de 2008, conforme resulta do documento junto a fls. 328 dos autos – relatório Clínico - sendo plausível que as consultas em causa, ou parte delas, se prendam com esta situação que não tem directamente a ver com os factos.

Levou-se ainda em consideração o recibo de consulta de pneumologia de fls. 235, no montante de 40 €, em nome do demandante, datado de 18/9/2007 e o recibo de farmácia, em nome do demandante, no montante de 10,25 €, datado de 5/4/2008 – em que mais uma vez nada resulta nos autos que permita concluir que esta despesa tenha directamente a ver com os factos em causa.

Quanto à consulta levou-se ainda em consideração os motivos para a mesma invocados pela testemunha JC.

Atendeu-se ainda à Factura n.º 28009725 do Centro Hospitalar de Setúbal a fls. 334 dos autos, em nome de CN e no montante de 106,00 €.”

Consigna-se, como ponto de partida na sindicância do juízo sobre prova efectuado pelo tribunal de julgamento, que o registo da prova oral (a cuja audição ora procedemos) revela a correcção do alegado quanto ao sentido de toda as declarações e depoimentos, tudo conforme resulta ipsis verbis da motivação da sentença.

Daquilo que retiramos do recurso – que não é claro no enunciado dos concretos pontos de facto e das concretas provas – o recorrente fundamenta a sua discordância, essencialmente e, em síntese, quanto a dois pontos de facto:

- O facto ocorrido na Taberna xxxx e descrito no ponto 4., que não aconteceu, pelo que devia constar dos factos não provados;

- Os factos descritos nos pontos 12. e 13., 22., 23. e 24., que não aconteceram do modo aí descrito, devendo aditar-se aos factos provados que o arguido JM se encontrava munido de uma catana, que o recorrente foi agredido pelos arguidos J e RM e que actuou para deles se defender;

- O facto descrito no ponto 44., dificuldade no controlo dos impulsos com facilidade de recorrer à violência.

Da imprecisa indicação das “concretas provas”, retiramos que, na visão do recorrente,

- Inexiste prova do primeiro ponto de facto impugnado;

- Das declarações do recorrente, corroboradas com os depoimentos de RM, RF e EG resulta a prova dos factos que pretende aditar, integrantes de actuação em legítima defesa,

- O relatório social não é prova bastante do facto descrito em 44.

Seria, por tudo, a prova insuficiente para fundamentar a convicção de “provado” relativamente aos factos impugnados, devendo ainda ser aditados os factos relativos à posse de catana pelo recorrido JM, à agressão deste e de seu filho na pessoa do recorrente.

Analisando o primeiro “ponto de facto” – “O arguido C desferiu um soco na face do arguido JM, causando-lhe o sangramento da boca e partindo-lhe um dente, e ainda o empurrou, tendo o arguido JM caído no chão, por cima de uma mota que ali se encontrava estacionada” – é inverídica a afirmação do recorrente de que “quanto aos factos que se passaram na taberna; na ausência total de prova de que o arguido CN tenha desferido um soco no arguido JM fundamentou o Tribunal a quo tal condenação nas declarações dos arguidos (!) e no depoimento da esposa e mãe dos arguidos J e R, respectivamente, que declarou que o seu marido veio para casa lavar o sangue que tinha na boca e que até lhe caiu um dente”.

Na verdade, e de acordo com as declarações do próprio recorrente a cuja audição procedemos, foi o próprio a afirmar, logo de início, que “as coisas aconteceram tal como a Sra. Dra. leu, … tudo descrito bem correcto até quando eu corri para minha casa e o meu telemóvel me caiu do bolso, … eu nem lhe dei muitos socos…”.

Ou seja, como bem se refere no exame crítico da prova, nem pode dizer-se que o recorrente negue estes factos, nem que inexista outra prova convincente e positivamente valorável – os factos provados correspondem ao declarado pelos co-arguidos M e são corroboradas pelo depoimento de CM que relata as lesões na boca de JM.

Ou seja, cautelosamente e de acordo com todos os princípios que norteiam a prova na vertente da apreciação – livre apreciação / in dúbio pró reo / presunção de inocência – o tribunal valorou acertadamente as declarações dos três arguidos e o depoimento da testemunha.

Passando ao segundo “ponto de facto”, o que se pretende é que o tribunal de recurso efectue um diferente julgamento, avaliando as provas de acordo com a versão do recorrente, substituindo a convicção do tribunal de julgamento, pela sua.

Mas, verdadeiramente, não se denuncia (nem se detecta) nenhum verdadeiro erro de facto, no sentido de o tribunal ter ouvido dizer o que não se disse, ter retirado duma prova uma consequência impossível, ter procedido à leitura incoerente e arbitrária dos indícios…

Pelo contrário, do exame crítico da prova fica claro que o colectivo apreciou e enfrentou todas as incoerências e desarmonias dos relatos e das provas. Foi claro desde o início que a defesa do arguido recorrente se alicerçou essencialmente na legítima defesa. As suas declarações vão no sentido, não da negação dos factos imputados, mas do aditamento de outros factos – existência de uma catana e agressão pelos arguidos M - que terão legitimado o uso da faca, pelo recorrente, sobre a pessoa do recorrido JM.

Ora, o exame crítico da prova explicita bem por que razão as declarações do recorrente não convenceram nesta parte e por que razão acreditou antes na versão dos co-arguidos M (já que estas eram harmónicas entre si). E explicita a desvalorização do depoimento da testemunha R, a única prova, no conjunto total das provas, que, para além das declarações do recorrente se refere à catana. Diz-se no acórdão que “relativamente ao depoimento da testemunha RG, filho da companheira do arguido CN, manifestamente as suas declarações foram condicionadas pela emoção, depreendendo-se das mesmas a existência de um conflito interior desta testemunha. Assim, referiu esta testemunha (e foi a única) ter visto o arguido JM com a catana na mão. Sucede que este depoimento não coincidiu nem com as declarações do próprio arguido C, nem com o depoimento da sua mãe, nem com depoimentos ou declarações das restantes testemunhas.” Esclarece-se, depois, em que consistiram tais descoincidências. E completa-se que “as suas declarações foram norteadas por inconsistências e contradições, com manifesta resistência a relatar tais factos, denotando-se algum receio em falar. Referiu ainda que na altura era muito novo e que foi atrás do arguido C porque o viu muito nervoso e “já sabia como ele era”; quando instado a descrever ao tribunal a que é que se referia, resistiu a responder, não esclarecendo cabalmente as suas anteriores declarações”.

É uma leitura indesmontável desta prova, na medida em que a ela conduz (ou pode conduzir) a audição da gravação do depoimento.

É certo que o arguido recorrente relatou a versão dos factos que aqui defende e que as suas declarações não são, em abstracto, menos credíveis do que as dos co-arguidos ou das testemunhas. E mesmo aceitando-se que o arguido tenha um interesse no desenrolar do processo e no seu desfecho, esse interesse também pode verificar-se por parte da vítima que, no caso, é o co-arguido JM. Mas o exame crítico da prova não revela que o tribunal tenha formado o seu juízo de convicção com deformação das regras e princípios da prova.

Não se trata de exigir ao arguido que prove a sua versão. O arguido beneficia da presunção de inocência até à condenação transitada em julgado, recaindo sobre o acusador o encargo de destruir essa presunção de inocência. O in dubio pro reo impõe a valoração do non liqued, em questão de prova, sempre no sentido favorável ao arguido. Só que, no caso, não estamos em presença de um non liqued pois as provas convencem no sentido da condenação, apresentando-se a versão do recorrente sem a consistência mínima para alterar o decidido.

A prova consistiu, repete-se, não só nas declarações do co-arguido vítima, mas no depoimento complementar ou corroborante de outras testemunhas que presenciaram os factos, confirmando-os da forma como estão nos factos provados. Consistiu, também, na prova igualmente complementar ou corroborante por perícia médica.

Podemos, pois, assentar em que existe total conformidade entre o que foi dito e aquilo que o tribunal ouviu e refere ter ouvido; que nenhuma das provas em causa é proibida ou foi produzida fora das normas procedimentais que regem os meios de prova em apreciação; que o tribunal justificou adequadamente a opção que fez relativamente à escolha e graduação dos conteúdos probatórios; que, perante provas de sinal contrário e, abstractamente, de igual peso probatório, atribuiu-lhes conteúdo positivo ou negativo de uma forma racionalmente justificada, apelando às regras da lógica e da experiência comum, e sem violação do princípio do in dúbio.

Por último, relativamente ao terceiro ponto de facto, dir-se-á, como bem nota o Ministério Público na sua resposta, que o teor do relatório social do recorrente foi examinado em audiência e a defesa nada disse ou requereu a este propósito.

Assim, o tribunal procedeu à sua valoração, tratando-se de prova lícita, expressamente prevista na lei (art. 370º do Código de Processo Penal), sujeita à livre apreciação do julgador e que não foi posta em causa ou contrariada por qualquer outra (prova).

Visando o recurso da matéria de facto a correcção de erros de julgamento, e na reapreciação autónoma da razoabilidade da decisão quanto à matéria de facto sindicada a pedido do recorrente, consigna-se que não se detectam os erros apontados, não impondo as provas decisão diversa da recorrida.

Da impugnação da pena:

Reage o arguido recorrente contra a condição imposta para suspensão da execução da pena em que foi condenado, na parte referente ao pagamento das indemnizações, concluindo que essa condição é “desrazoável e desproporcional, atenta a sua muito débil situação económica e a total ausência de perspectivas de melhoria por razões a si não imputáveis”.

É certo que concluíra, previamente, que o pedido de indemnização cível deveria ser julgado improcedente “atento o facto de o arguido ter agido ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude”.
Ou seja, esta impugnação assentou na mera decorrência do recurso da matéria de facto, o qual, como se disse, improcedeu.

Assim, resta apenas apreciar da correcção da decisão sobre a pena, na parte em que o tribunal condicionou a suspensão ao pagamento das indemnizações.

No acórdão decidiu-se, ao que ora interessa, condenar o arguido CN como autor do crime de ofensa à integridade física grave, do artigo 144.º, al. d) do Código Penal na pena de 5 (cinco) anos de prisão; suspender a execução desta pena pelo período de 5 (cinco) anos com regime de prova, e subordinar a suspensão da execução da pena ao pagamento aos demandantes cíveis das quantias referidas infra a título de indemnização, no prazo da suspensão da pena.

É este segmento final o objecto da nossa apreciação.

Na decisão “cível” – no dispositivo – determina-se a condenação do demandado C N a pagar ao demandante JM a quantia de 15.000,00, € a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de 6.919,03 € a título de indemnização por danos patrimoniais, ainda a pagar a quantia de 12.110,16 € ao demandante Centro Hospitalar de Setúbal, EPE, tudo isto no prazo fixado para a suspensão da execução da pena de prisão.

Como resulta claro do dispositivo, e na decorrência lógica da argumentação desenvolvida na fundamentação do acórdão, o tribunal condicionou a suspensão da execução da pena, não ao pagamento de uma destas parcelas, mas ao pagamento do total das quantias arbitradas, que é de 34.029,19 €.

O que cremos ter sido mal entendido pelo arguido (vide motivação do seu recurso em que se refere apenas à quantia de 12.110,16 €) e pelo Ministério Público (vide conclusão 13ª e 14ª e ponto 3. da motivação em que se diz “no douto acórdão decidiu-se suspender a execução da pena subordinada ao pagamento aos demandantes cíveis das quantias … ou seja, decidiu-se que o recorrente deveria proceder ao pagamento da quantia de 12.110,16 € pelo período de cinco anos”).

Sendo, no entanto, claro que o recorrente reage contra a condição imposta para suspensão da execução da pena “pagamento de indemnização”, e que alega não ter possibilidade de satisfazer (sequer) a quantia de 12.110,16€, deve considerar-se que o objecto do recurso abrange o condicionamento da suspensão de pena ao valor total das indemnizações arbitradas, e não apenas a uma parcela.
Passa, pois, a decidir-se em conformidade com os poderes de cognição assim delineados.

Na fundamentação do acórdão considerou-se, na parte que ora interessa:

“C - Da suspensão da execução da pena de prisão.

(…) No caso em apreciação, deve atender-se ao facto de o arguido, à data da prática dos factos, apenas ter uma condenação, em pena de multa, pela prática de um crime de furto simples, praticado em 2002.

Veio a ser condenado, em 2009, pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, em pena de multa, sendo os factos de 2005.

A seu desfavor, tem inequivocamente o facto de, embora não lhe serem conhecidas outras condenações, se refira a existência de um inquérito onde se indiciam factos subsumíveis à figura da violência doméstica, sendo que o arguido tem dificuldade em controlar os seus impulsos, sobretudo em situações de animosidade, tendo tendência para recorrer ao uso da violência.

A seu favor, porém, tem o seu percurso de vida, pelo menos até 2002. O arguido tem 50 anos de idade e denotou ser um indivíduo activo e empreendedor, inserido laboralmente, responsável e com adequada capacidade para socializar, pelo que existe a possibilidade de o arguido ultrapassar a sua condição actual e recuperar estas características da sua personalidade.

A situação é assim de um caso limite, em que, atendendo ao que a lei dispõe sobre a preferência que deve dar-se à ameaça da pena, se julga poder ainda optar por esta. A favor desta opção e no sentido de precaver a prática de futuros crimes, está o facto de tal suspensão ser necessariamente acompanhada de regime de prova (nº 3 do artigo 53º do Código Penal).

Pelo exposto, julga-se ser de suspender a execução da pena aplicada ao arguido pelo período de cinco anos – art.º 50º, n.º 5 do Código Penal.

Quanto ao regime de prova que necessariamente acompanhará a suspensão da execução da pena, esta incluirá a obrigação de comparência do arguido sempre que convocado pelo tribunal ou pelos técnicos da Direcção de Reinserção Social, colaborando e aceitando o arguido as directrizes que lhe forem sendo apontadas, recebendo visitas, colocando à disposição daquelas entidades documentos ou informações relativas aos seus meios; e de informar os serviços Reinserção Social sobre quaisquer alterações na residência ou trabalho, justificando-as.

Deverão ainda os serviços de Reintegração Social, na elaboração do Plano de Reinserção Social e de acordo com a personalidade, condições familiares e sociais do arguido, providenciar pela assistência do arguido a acções tendentes a fazê-lo reflectir sobre estratégias adaptativas de resolução de conflitos e de melhor inserção laboral, a fim de prevenir condutas posteriores de cariz semelhante por parte do arguido, impondo as condições que julgar proporcionais e adequadas para tanto.

Nos termos do art.º51º, n.º 1, a) do Código Penal, a suspensão da execução da pena vai ainda subordinada ao pagamento aos demandantes cíveis das quantias que vão ser determinadas infra a título de indemnização, no prazo da suspensão da pena.”

De acordo com as conclusões do recorrente, o objecto do recurso circunscreve-se à sindicância deste último parágrafo transcrito.

Não podemos deixar de consignar, no entanto, que não é circunstância relevante para a determinação da pena o facto de o condenado ter outros processos pendentes, sob pena de violação do princípio da presunção de inocência. A asserção “a seu desfavor, tem inequivocamente o facto de, embora não lhe serem conhecidas outras condenações, se refira a existência de um inquérito onde se indiciam factos subsumíveis à figura da violência doméstica” não será, pois, de considerar.

O tribunal, fazendo uso do instituto de suspensão da execução da pena com regime de prova, condicionou a suspensão de pena ao pagamento da totalidade da indemnização em que também condenou, civilmente, o arguido.

A obrigação de reparação do mal do crime, como condicionante da suspensão da prisão, cumpre, no caso, uma importante função adjuvante das finalidades da punição. Contribui para a reinserção social do arguido, que assim melhor se reabilita, apagando, na medida do possível, o seu acto criminoso. Facilita, ainda, a reposição da situação do lesado antes do cometimento do crime.

Em suma, “permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima” (Manso Preto, Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173), melhor assegurando “o direito do cidadão a ser punido com a pena justa” (Faria Costa, Linhas de Direito Penal e de Filosofia alguns cruzamentos reflexivos, 2005, p. 230).

A suspensão condicionada é, pois, um “meio razoável e flexível para exercer uma influência ressocializadora sobre o agente, sem privação da liberdade”. A sua vantagem “reside precisamente na possibilidade de adaptar a sanção às circunstâncias e necessidades do agente” (JeschecK, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 898-899).

E sobre o papel e funções da reparação no ordenamento penal alemão – como isenção ou atenuante de pena; como condição imposta ao condenado; como substitutivo da sanção penal; como consequência jurídica autónoma do direito penal juvenil – pode ver-se Pablo Galan Palermo, Suspensão do Processo e Terceira Via: avanços e retrocessos do sistema penal (in Que Futuro para o Direito Processual Penal, 2009, pp. 613 a 643).

Permite potenciar largamente as virtualidades do instituto da suspensão da execução da pena, que não se limita assim a descansar na “ideia da ameaça da pena e do seu efeito intimidativo”, sendo antes integrado pela imposição ao agente de deveres e regras de conduta que reforçam tanto a socialização do delinquente como a reparação das consequências do crime (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005 reimp., p.339).

Nas palavras de Pablo Galan Palermo, a reparação “constitui um comportamento positivo posterior” do agente que “compensa o injusto, repara o dano social, cumpre com o fim de prevenção especial ressocializadora, cumpre com o fim de prevenção penal integradora” (loc. cit. p. 642-643).

Mas para que se cumpra tal desiderato, deve o arguido encontrar-se em condições de poder cumprir a obrigação pecuniária, na quantidade e no tempo determinados na sentença.

Para tanto, deve o juiz averiguar das possibilidades do cumprimento do dever a impor, de forma a fixá-lo num modo quantitativa e temporalmente compatível com as condições do condenado, só assim se prosseguindo o direito deste a uma pena justa.

A esta compatibilização se refere o art. 51º do CP quando estipula no seu nº2 que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, prevendo-se no nº 3 a modificação dos deveres por ocorrência de circunstâncias relevantes supervenientes.

Daí o dizer-se que este nº 2 completa com um princípio da razoabilidade, os princípios gerais que norteiam a fixação da pena – da adequação e da proporcionalidade.

O Tribunal Constitucional sempre se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma constante do art. 51º, nº1-a), na parte em que permite condicionar a suspensão da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados ao ofendido (v. Ac. TC 440/87, Ac. TC 569/99), sendo igualmente abundante a jurisprudência no sentido até da conformidade constitucional da obrigatoriedade desse condicionamento ao pagamento da totalidade de uma dívida (fiscal) (entre muitos, Ac TC 356/2003, 335/2003, 500/2005, 309/2006, 61/2007, 556/2009, 237/2011).

Neste segundo caso – da obrigatoriedade legal do condicionamento da suspensão ao pagamento de indemnização – apesar de uniforme, a jurisprudência do Tribunal Constitucional contou com voto de vencida da Conselheira Fernanda Palma. Por exemplo, no Ac. n.º 376/2003: “verificando-se a sujeição necessária da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da dívida fiscal, fica inviabilizada a plena ponderação em concreto das exigências de prevenção e de reintegração no momento de decidir a efectiva aplicação e execução da pena. (…) Dá-se portanto a transfiguração de um meio concretizador dos princípios e das finalidades do sistema punitivo (…) num meio de produção de um resultado desejável pelo sistema jurídico, independentemente da concreta ponderação de outras possibilidades de satisfação das finalidades punitivas. (…) A suspensão da pena, como alternativa à prisão, não pode ter como condição a concreta capacidade económica do agente – o que seria violador do princípio da culpa, (…) do direito à liberdade e à igualdade (arts. 1º, 27º-1 e 13º da CRP)”.

Nestes quadro e parâmetros de avaliação, cumpre então determinar se, no caso, o recorrente se encontra em condições de cumprir o dever imposto na decisão recorrida, ou seja, de proceder ao pagamento da quantia de € 34.029,19 € no prazo de cinco anos.

Com interesse aqui, está provado que “(…) 37 - Na sequência do termo da sua primeira relação e início do relacionamento com a actual companheira, que ocorreu em 2002, o arguido fixou-se então na zona da actual residência (Aldeia da Piedade). (…)41 - Actualmente, o arguido trabalha apenas esporadicamente, na apanha da pinha ou em biscates de jardinagem, situação que tem contribuído para o agravamento do quadro financeiro, considerado actualmente instável, e de onde o arguido retira cerca de 30 € por semana. 42 – O arguido reside numa casa pertença da progenitora da companheira, que permite as necessárias condições de espaço e conforto ao agregado composto pelo arguido e sua companheira.”

Pelas razões que enunciámos, o juízo sobre a justeza da decisão que condicionou a suspensão da execução da prisão ao pagamento de indemnização só pode ser de conformidade. Mas, no circunstancialismo económico e social apurado é patente que o recorrente não se encontra em condições de poder cumprir a condição nos precisos termos do acórdão.

Tudo ponderado, justifica-se ser de manter o dever imposto, mas considera-se exagerada a soma fixada, cujo pagamento já se encontra, aliás, civilmente assegurado.

O montante é desproporcionado e, como tal, desadequado ao cumprimento das finalidades da pena, uma vez que se apresenta como uma obrigação pecuniária praticamente impossível de cumprir pelo arguido, de acordo com o quadro factual apurado. E é apenas este que temos.

Fazendo-se uso da faculdade prevista no art. 51º nº1, al. a) do Código Penal, substitui-se o “todo” da indemnização pela “parte”, que se fixa agora em 6.250,00 € (seis mil duzentos e cinquenta euros), a ratear pelos dois demandantes cíveis na proporção das indemnizações cíveis a estes arbitradas.

Assim se compatibiliza o prazo máximo de cumprimento da condição, já concedido, com as capacidades económicas do recorrente, de forma a tornar possível o cumprimento do dever e, como tal, legal e constitucionalmente compatível com os fins e os princípios que justificam e norteiam a pena.

4. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente o recurso do Ministério Público;

- Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido CN, reduzindo para 6.250,00 € o montante a pagar pelo recorrente como condição da suspensão da execução da pena, confirmando-se a decisão recorrida na parte restante.

Sem custas

Évora, 09.10.2012

(Ana Maria Barata de Brito)
(António João Latas)