FALTA DE PAGAMENTO PONTUAL DA RETRIBUIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
JUSTA CAUSA
Sumário


I – O artigo 394º, nº5 do Código do Trabalho consagra uma presunção juris et de jure, portanto, não afastável por prova em contrário.
II- Por força do supra referido normativo, ao trabalhador compete-lhe provar apenas: a) o incumprimento da obrigação contratual de pagamento pontual da retribuição por período de 60 dias ou superior; b) que o comportamento culposo do empregador tornou impossível a subsistência do contrato de trabalho.
III- A apreciação do nexo causal entre o comportamento culposo do empregador e a impossibilidade de sobrevivência do contrato de trabalho, deve ser feita em função dos factos assentes, dado que, ao ter tomado a decisão de fazer cessar o contrato de trabalho, mesmo que nada seja alegado nesse sentido, está implícito que o trabalhador considerava impossível a manutenção daquela relação laboral.
IV- A indemnização que é devida ao trabalhador pela resolução do contrato com fundamento em facto previsto no nº2 do artigo 394º do Código do Trabalho, deve ser determinada de acordo com a gravidade da ilicitude e da culpa do lesante, bem como dos danos efectivamente causados.

Sumário da relatora

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
I.Relatório
M…, solteiro, maior, contribuinte fiscal n.º…, residente na Rua…, Lagos, intentou acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de Trabalho contra A…, lda., pessoa colectiva n.º 502496487, com sede no Vale… Lagos, pedindo que, pela sua procedência:
a)- seja decretada a resolução do contrato de trabalho do autor por justa causa;
b)- seja condenada a ré a pagar ao autor a indemnização por resolução do contrato de trabalho por justa causa, bem como os créditos salariais em dívida, a que o Autor tem direito e não foram pagos, no valor de € 4.733,67;
c)- seja condenada a ré a pagar-lhe a quantia de € 2.250,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Alegou, para tanto e em síntese, que foi contratado pela ré em 17 de Novembro de 2004 para, sob a sua direcção, orientação e fiscalização, lhe prestar as tarefas inerentes à categoria de servente. Continuou a exercer a sua actividade para a ré durante o ano de 2005, trabalhando 9 horas por dia, auferindo, por dia, a quantia de € 43,00.
Exercia a sua actividade em diversas obras a cargo da ré nos concelhos de Lagos, Lagoa e Vila do Bispo, desde 2005, mas só assinou contrato com a ré em 8 de Maio de 2007 não tendo a ré efectuado descontos para a Segurança Social até essa data. No entanto, a Ré efectuava desconto na retribuição no valor de € 75,00.
A partir de Novembro de 2009, começou a trabalhar 8 horas por dia, auferindo, por dia, a quantia de € 37,00.
No dia 5.4.2010, enviou à ré carta registada com aviso de recepção, a comunicar-lhe a resolução do contrato, com fundamento no facto da empregadora não lhe ter pago os vencimentos referentes aos meses de Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010 e ainda os 8 primeiros dias do mês de Março. A ré teve conhecimento dessa carta em 8.4.2010.
Refere o autor que a ré lhe ficou a dever:
- As retribuições relativas aos meses Dezembro de 2009, de Janeiro e Fevereiro de 2010;
- A retribuição correspondente a 8 dias de trabalho prestado pelo autor no mês de Março de 2010;
- Os subsídios de férias e de Natal referente ao ano de 2009;
- Os proporcionais da retribuição referente às férias não gozadas pelo autor no ano de 2010;
- Os proporcionais dos subsídios de férias e de Natal, referentes ao trabalho prestado pelo autor no ano de 2010;
- A indemnização a que alude o artigo 396º, do Código do Trabalho, que o autor entende que deve ser fixada em 30 dias de retribuição base por cada ano completo de antiguidade.
Sustenta ainda que não pode deixar de ser ressarcido pelos prejuízos patrimoniais que sofreu, em virtude dos descontos legais para a Segurança Social, não terem sido efectuados desde a data em que se deu início ao contrato de trabalho.
Realizada a Audiência de Partes, na mesma não foi possível a conciliação.
A ré contestou a acção, alegando a excepção da prescrição dos créditos peticionados pelo autor por já ter decorrido mais de um ano entre a cessação do contrato e a propositura da acção e impugnando a invocada resolução do contrato pelo trabalhador, por não ter recebido qualquer comunicação do mesmo, nesse sentido.
O autor respondeu à defesa por excepção, por impugnação.
Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção da prescrição e se considerou ser desnecessária a realização de audiência preliminar bem como a selecção da matéria de facto assente e controvertida.


Foi realizada audiência de julgamento com observância do legal formalismo e lida a decisão sobre a matéria de facto, que não obteve qualquer reclamação.

Foi então proferida sentença, cuja decisão tem o seguinte teor:

“Julga-se a acção parcialmente procedente e, em conformidade:
a. Condena-se a ré a pagar ao autor a quantia total de € 1.610,42, a título de férias não gozadas, subsídios de férias e de Natal e proporcionais dos mesmos subsídios;
b. Absolve-se a ré da restante parte do pedido”.

Inconformado com esta decisão, veio o autor interpor recurso para este tribunal, formulando, a final, as seguintes conclusões:
“I — A aliás douta sentença em apreço não fez boa apreciação dos factos nem boa interpretação do direito.
II — O Autor nada de concreto alegou e provou que, partindo do não pagamento pontual pela Ré da sua retribuição, conduza o tribunal a considerar que, indubitavelmente, foi ele colocado em situação que, de imediato, punha e pôs em causa a manutenção do vínculo laboral, assistindo-lhe portanto justa causa para sustentar uma resolução contratual do contrato de trabalho.
III - Contudo, o nº 3, al. c), do art. 394º permite também a resolução do contrato de trabalho com justa causa em caso de falta não culposa do pagamento pontual da retribuição.
IV — A factualidade assente revela uma situação crónica de remunerações em atraso, cuja persistência no não pagamento assume gravidade suficiente para justificar a impossibilidade de manutenção do contrato de trabalho.
V — O Autor tinha direito à resolução do contrato de trabalho com justa causa, devendo a Ré ser condenada no pagamento da indemnização pela resolução do contrato de trabalho.
VI - A aliás douta sentença em apreço condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 1.610,42, a título de férias não gozadas, subsídios de férias e de Natal e proporcionais dos mesmos subsídios.
VII — Ficou provado que a Ré não procedeu ao pagamento pontual das retribuições dos meses de Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010.
VIII — O Autor tem assim direito a receber a quantia total de € 3.367,25 e não a quantia de € 1.610,42.
IX — Disposições violadas: Artigos 394º e 396º do Código de Trabalho de 2009”.
A ré não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com efeito devolutivo e subida nos próprios autos.

Neste tribunal a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, que não foi objecto de resposta, no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II-Objecto do Recurso

De harmonia com o disposto nos artigos 684º, nº3 e 685º-A, nº1 do Código do Processo Civil aplicável ex vi do artigo 87º, nº1 do Código do Processo de Trabalho, é consabido que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso, que in casu não se vislumbra.

Em função destas premissas, são duas as questões que importa apreciar e conhecer:
1-saber se houve ou não justa causa de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador;
2-saber se são devidas ao trabalhador as retribuições relativas aos meses de Dezembro de 2009, Janeiro e Fevereiro de 2010, que não integram a decisão de condenação proferida.
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III-Matéria de Facto
A matéria de facto dada como provada na 1ª instância foi a seguinte:
1.O Autor foi contratado pela Ré em 17 de Novembro de 2004 para, sob a sua direcção, orientação e fiscalização, lhe prestar as tarefas inerentes à categoria de servente;
2. A Ré entregou ao Autor cartões de presença, que a Ré assinava todos os dias em que o Autor trabalhava;
3. Os cartões de presença começaram a ser assinados desde o início da prestação de trabalho pelo Autor;
4. O Autor continuou a exercer a sua actividade para a Ré durante o ano de 2005, trabalhando 9 horas por dia, auferindo, por dia, quantia não concretamente apurada, mas não inferior a 15,033;
5. O Autor exercia a sua actividade em diversas obras a cargo da Ré nos concelhos de Lagos, Lagoa e Vila do Bispo;
6. O Autor e Ré, em 8 de Maio de 2007, assinaram um escrito, denominado de «contrato de trabalho», cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 12/14, sob a designação de documento n.º 3;
7. Em Agosto, Setembro e Outubro de 2009, o Autor trabalhou 9 horas por dia;
8. A partir de Novembro de 2009, o Autor começou a trabalhar 8 horas por dia, auferindo, por dia, quantia não concretamente apurada, mas não inferior a 15,033;
9. O Autor, em Novembro de 2009, auferia o vencimento ilíquido de € 585,61;
10. O Autor enviou à Ré carta registada com aviso de recepção, datada de 5.4.2010, recepcionada pela ré no dia 8.4.2010, onde, além do mais, consta:
“Assunto: Resolução de contrato de trabalho por salários em atraso, conforme o artigo 394º a 399º
Venho por este meio comunicar a vossa excelência que a partir da presente data procedo á resolução do meu contrato de trabalho celebrado com a empresa em 8/05/2007.
Pelo motivo de se encontrar em atraso os salários referentes aos meses de Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março sendo que já decorreu o prazo de 60 dias para regularização do mesmo”;
11. Entre 9 de Março e 4 de Abril, o Autor esteve de baixa médica, encontrando-se incapaz temporariamente para o trabalho;
12. O Autor gozou férias, entre 5 de Fevereiro de 2009 e 6 de Março de 2009;
13. A ré não pagou ao autor:
a) As retribuições relativas aos meses de Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010;
b) A retribuição correspondente a 8 dias de trabalho prestado pelo Autor no mês de Março de 2010;
c) Os subsídios de férias e de Natal referente ao ano de 2009;
d) Os proporcionais da retribuição referente às férias não gozadas pelo Autor no ano de 2010;
e) Os proporcionais dos subsídios de férias e de Natal, referentes ao trabalho prestado pelo Autor no ano de 2010;
f) A indemnização a que alude o artigo 396º, do Código do Trabalho;
14. O autor reclamou da ré o pagamento de tais quantias, não tendo a ré, até à presente data, pago as mesmas;
15. O autor auferia a retribuição referida em 9.
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IV- Direito
Comecemos por analisar a primeira das questões que constitui objecto do recurso interposto:
- saber se houve ou não justa causa de resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador.
Na sentença recorrida, o Meritíssimo Juiz a quo considerou que, embora o contrato de trabalho que vigorou entre as partes tenha cessado devido à resolução pelo trabalhador, a mesma não foi motivada por justa causa, uma vez que o autor/trabalhador não alegou encontrar-se perante uma situação de incumprimento da empregadora que, pela respectiva gravidade/amplitude e consequências, punha de imediato em causa a possibilidade de subsistência do contrato de trabalho.
No âmbito das alegações de recurso, veio o Apelante (trabalhador), sustentar que a factualidade assente revela uma situação crónica de remunerações em atraso, cuja persistência no não pagamento assume gravidade suficiente para justificar a impossibilidade de manutenção do contrato de trabalho.
A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que deu, também considerou que ao trabalhador bastava provar que o não cumprimento do pagamento da retribuição se prolongava há mais de 60 dias, dado que, nessa situação se presume que há justa causa de resolução.
Cumpre apreciar e decidir.
Importa, porém, salientar que ao caso concreto, considerando a data de resolução do contrato de trabalho pelo autor, é aplicável o Código do Trabalho aprovado pela L. 7/2009, de 12/2, por força do preceituado no artigo 7º desta Lei.
E, dispõe o artigo 394º deste Código:
“1- Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato;
2- Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador:
a) Falta culposa de pagamento pontual da retribuição;
(…)
3- Constituem ainda justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador:
(…)
b) Falta não culposa de pagamento pontual da retribuição.
4- A justa causa é apreciada nos termos do nº3 do artigo 351º, com as necessárias adaptações.
5- Considera-se culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão do não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo”.
Prevê assim o normativo citado a possibilidade do contrato de trabalho cessar por resolução do trabalhador, devido à existência de justa causa.
A justa causa pode ser objectiva (não culposa) ou subjectiva (culposa).
A primeira, prevista no nº3 do normativo, resulta de circunstâncias objectivas , relacionadas com o trabalhador ou com a prática de actos lícitos pelo empregador.
A segunda, tem na base um comportamento ilícito da entidade empregadora e a ela se reporta o nº 2 do artigo supra citado (embora, a título meramente exemplificativo).
A distinção entre as duas formas de justa causa mostra-se relevante, devido às consequências legalmente previstas.
Consagra o artigo 396º, nº1 do Código do Trabalho que “em caso de resolução do contrato de trabalho com fundamento no facto previsto no nº2 do artigo 394º, o trabalhador tem direito a indemnização, a determinar entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador, não podendo ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades”.
A justa causa para a resolução do contrato deverá ser apreciada, nos termos do nº3 do artigo 351º, com as necessárias adaptações.
Ou seja, na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes, para se poder concluir pela impossibilidade da manutenção do vínculo laboral (cfr. Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 3ª edição, pag.534).
Muito embora, as situações previstas no nº2 do artigo 394º, consubstanciem comportamentos que o legislador considerou que constituem justa causa de despedimento, a Jurisprudência tem entendido que não basta a verificação material de qualquer dos comportamentos previstos, sendo ainda preciso que o comportamento da entidade empregadora “pela sua gravidade e consequências, torne prática e imediatamente impossível a manutenção da relação de trabalho”- ver, a título de exemplo, Acordãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18/4/2007, P. 06S4282; de 13/11/2000, P. 2204/00; de 5/2/1998, P. 3/97; de 11/2/1998, P. 141/97, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
E, conforme foi sumariado no Acordão desta Relação de Évora, de 1/2/2011, P. 51/10.7TTEVR.E1, disponível em www. dgsi.pt:
A resolução do contrato de trabalho, tal como se encontra configurada nos artigos 394º a 399º do Código do Trabalho e para que o trabalhador tenha direito, por via judicial, à indemnização prevista no artigo 396º do referido diploma, pressupõe que o trabalhador faça prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou seja, a existência de justa causa”.
Deste modo, para que se verifique uma situação de resolução do contrato de trabalho fundamentada em justa causa por falta culposa de pagamento da retribuição (como é o caso da situação em apreciação nos autos), mostra-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos cumulativos:
1º um de natureza objectiva- não pagamento da retribuição pontualmente;
2º outro de natureza subjectiva- que essa falta de pagamento seja imputável ao empregador a título de culpa;
3ª que essa conduta do empregador torne imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
Quanto à culpa do empregador, em regra, a mesma presume-se, nos termos gerais da responsabilidade contratual, por aplicação do artigo 799º do Código Civil. Ou seja, cabe à entidade empregadora afastar a presunção, alegando e provando os elementos factuais suficientes para habilitar o tribunal a formular um juízo de não censurabilidade da sua conduta.
Contudo, existe uma situação específica em que o legislador expressamente considera culposa a omissão ou a acção da entidade empregadora.
Dispõe o nº 5 do artigo 394º do Código do Trabalho que se considera culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias, ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo.
De acordo com este normativo, decorrido um período de 60 dias em que se mantém o incumprimento por parte do empregador, presume-se a existência de culpa na falta de pagamento pontual da retribuição.
A propósito da previsão do nº5 do artigo 394º, escreve Pedro Furtado Martins, na obra já mencionada, pag. 537:
“São várias as dúvidas que o novo preceito suscita. A mais relevante é saber se a exigência de que a falta de pagamento se prolongue por 60 dias constitui um pressuposto indispensável para qualificar o comportamento do empregador como culposo ou apenas uma presunção de culpa. Como já foi proposto, pensamos que se trata de uma presunção juris et de jure, portanto não afastável por prova em contrário”.
Também neste sentido, escreve João Leal Amado (Contrato de Trabalho, 2ª edição, Coimbra Editora, pag.460):
neste tipo de casos, em que a mora do empregador excede estes marcos temporais, mais do que uma mera presunção juris tantum de culpa, estabelece-se uma ficção legal de culpa patronal na falta de pagamento da retribuição (a qual, portanto, não admite prova em contrário)”.
Idêntico entendimento tem sido defendido por outros autores, nomeadamente, Joana Vasconcelos (Código do Trabalho anotado, Pedro Romano Martinez e outros, 8ª edição, pags. 1019 e 1020); Diogo Vaz Marecos (Código do Trabalho anotado, pag. 961).
A nível jurisprudencial, o mesmo entendimento foi defendido no Acordão da Relação do Porto, de 21/2/2011, P. 345/10.1TTPNF.P1.
É também este o entendimento que acolhemos.
É através da retribuição que aufere como contrapartida do seu trabalho, que o trabalhador faz face às suas despesas (de sobrevivência e outras) e aos seus compromissos. Logo, a omissão do pagamento da retribuição por mais de 60 dias, assume, por natureza, uma especial relevância e gravidade. Daí que se considere que o legislador, deliberadamente, quis proteger e tratar de modo diferente situações de incumprimento prolongado da obrigação de pagamento pontual da retribuição. Em tais situações, a culpa da entidade empregadora presume-se, não se admitindo prova em contrário. Ao trabalhador basta-lhe alegar e provar que a empregadora incumpre a sua obrigação de pagamento pontual da retribuição, por período, pelo menos de 60 dias.
Já em situações em que o incumprimento da aludida obrigação ocorre há menos tempo, funciona a presunção prevista no artigo 799º do Código Civil (presunção juris tantum), sendo admissível à entidade empregadora demonstrar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não emerge de culpa sua.
Com referência agora ao caso concreto, interessa-nos especificamente a situação contemplada no nº5 do artigo 394º do Código do Trabalho, porque foi essa a fundamentação apresentada pelo trabalhador para resolver com justa causa o contrato de trabalho que havia celebrado com a ré.
E, numa tal situação, ao trabalhador basta-lhe alegar e provar que o incumprimento da obrigação contratual de pagamento pontual da retribuição se prolongou por 60 dias, uma vez que, automaticamente, a falta se considera culposa, por força de uma presunção de culpa inilidível e que o comportamento culposo da empregadora tornou impossível a subsistência do contrato de trabalho.
A contagem do prazo de 60 dias inicia-se na data de vencimento da obrigação retributiva. Releva aqui a regra do artigo 278º, nº1 do Código do Trabalho, segundo a qual “o crédito retributivo vence-se por períodos certos e iguais, que salvo estipulação ou uso diverso, são a semana, a quinzena ou o mês de calendário”.
Reportando-nos agora ao caso concreto, resulta da factualidade assente, com relevo, o seguinte:
- o autor enviou à ré carta registada com aviso de recepção, datada de 5.4.2010, recepcionada pela ré no dia 8.4.2010, onde, além do mais, consta:
Assunto: Resolução de contrato de trabalho por salários em atraso, conforme o artigo 394º a 399º
Venho por este meio comunicar a vossa excelência que a partir da presente data procedo à resolução do meu contrato de trabalho celebrado com a empresa em 8/05/2007.
Pelo motivo de se encontrar em atraso os salários referentes aos meses de Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março sendo que já decorreu o prazo de 60 dias para regularização do mesmo”;
- a ré não pagou ao autor as retribuições relativas aos meses de Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010, bem como a retribuição correspondente a 8 dias de trabalho prestado pelo Autor no mês de Março de 2010.
Deste circunstancialismo factual resulta evidente que, que à data em que o autor enviou a carta de resolução do contrato de trabalho (5/4/2010), já tinha dois salários em atraso há mais de 60 dias (salários de Dezembro de 2009 e Janeiro de 2010, que se venceram no final desses meses).
Destarte, o autor logrou provar a existência de salários em atraso por período de 60 dias, ou seja, logrou provar que houve falta culposa de pagamento pontual da retribuição pela empregadora em relação às retribuições de Dezembro de 2009 e de Janeiro de 2010. Quanto à retribuição de Fevereiro e 8 dias de Março de 2009, em relação às quais ainda não havia um atraso de 60 dias (ou mais), presume-se a culpa no atraso, nos termos previstos pelo artigo 799º, nº1 do Código Civil, sendo certo que a ré não fez prova de que o atraso no pagamento dessas retribuições não proveio de culpa sua.
Encontram-se pois demonstrados, os dois primeiros requisitos supra enunciados para a verificação de justa causa de resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador.
Importa então apreciar a eventual verificação do terceiro requisito.
E, em nosso entender, para concluir se a conduta ilícita e culposa do empregador torna imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral, há que atender à factualidade assente.
Ao contrário do entendimento defendido pelo tribunal a quo, não se nos afigura que o trabalhador tivesse que alegar expressamente que se verificava a impossibilidade da subsistência da relação laboral.
A apreciação deste requisito deverá fazer-se em função dos factos assentes, dado que, ao ter tomado a decisão de fazer cessar o contrato de trabalho, está implícito que o trabalhador considerava impossível a manutenção daquela relação laboral.
E, com relevo, resultou assente a seguinte factualidade:
- o autor tem a categoria profissional de servente, auferindo, ultimamente, a retribuição mensal ilíquida de € 585,61;
- desde Dezembro de 2009 e até 8 de Março de 2010, a ré não satisfez a retribuição mensal ao trabalhador, sendo que, no período de 9 de Março a 4 de Abril (a carta de resolução é de 5 de Abril ), o autor não esteve a trabalhar, por ter estado de baixa médica.
Este conjunto de factos é indiciador de que o autor é pessoa de modesta situação social e económica e que o seu salário líquido mensal, será muito aproximado do salário mínimo nacional.
Ora, para quem tem que gerir um ordenado aproximado com aquilo que a legislação vigente considera o mínimo necessário para se fazer face às necessidades do dia-a-dia, certamente que a falta de pagamento pontual da retribuição prolongada, gera uma situação insustentável, e, como tal, torna impossível a manutenção do contrato de trabalho.
Mostra-se assim, também preenchido, no caso concreto, o terceiro dos requisitos supra enunciados.
Em suma, o autor logrou provar a justa causa para a resolução do contrato de trabalho, por si invocada.
Posto isto, importa passar ao conhecimento das consequências desta forma de cessação do contrato.
E, conforme já se referiu supra, “em caso de resolução do contrato de trabalho com fundamento no facto previsto no nº2 do artigo 394º, o trabalhador tem direito a indemnização, a determinar entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador, não podendo ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades”- art. 396º, nº1 do Código do Trabalho.
A fixação de um montante variável para a indemnização na resolução do contrato pelo trabalhador é uma transposição da regra fixada para a indemnização substitutiva da reintegração, nas situações de despedimento ilícito (cfr. artigo 391º do CT). Esta solução remonta ao artigo 443º do Código do Trabalho de 2003, embora a redacção nesse diploma fosse diversa, e, também, pouco clara, porque aí se estipulava que o trabalhador tinha direito a ser indemnizado “por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos”, mas depois estipulavam-se limites mínimos e máximos para a fixação da indemnização (entre 15 e 45 dias de retribuição- base e diuturnidades).
Devido a esta contradição, o artigo 443º do Código do Trabalho de 2003, foi criticado. Veja-se, por exemplo, Albino Mendes Baptista, A cessação do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador…, pags. 17 e 37 a 42.
Daí que a Comissão do Livro Branco das Relações Laborais, criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº160/2006, DR, 1ª série, de 30 de Novembro de 2006, tenha entendido que esta contradição deveria ser solucionada, de modo a que, se estabelecesse uma solução semelhante à que o artigo 437º do Código do Trabalho de 2003 consagrava, para os efeitos do despedimento ilícito, mas propunha-se que o valor da indemnização dentro do parâmetro máximo fosse afastado sempre que o trabalhador demonstrasse que os danos sofridos foram de montante superior.
Tal sugestão foi acolhida e consagrada no nº3 do artigo 396º do Código do Trabalho de 2009.
Assim, podemos afirmar que, segundo os critérios legais consagrados, a indemnização que é devida ao trabalhador pela resolução do contrato com fundamento em facto previsto no nº2 do artigo 394º do Código do Trabalho, deve ser determinada de acordo com a gravidade da ilicitude e da culpa do lesante, bem como dos danos efectivamente causados.
Aplicando este critério ao caso concreto, desde logo, não resulta dos factos assentes quaisquer específicos danos que o autor tenha sofrido devido ao comportamento ilícito da entidade empregadora, que originasse a concreta aplicação do nº3 do artigo 396º.
Assim, resta fazer uma ponderação sobre a antiguidade do trabalhador, o valor da retribuição que o mesmo auferia e o grau de ilicitude do comportamento do empregador.
O contrato de trabalho que vigorou entre as partes teve o seu início em 17 de Novembro de 2004 e cessou em 8 de Abril de 2010, tendo assim uma duração de cinco anos e quatro meses.
O autor auferia um vencimento mensal ilíquido de € 585,61, ou seja, em termos líquidos, ficaria aproximadamente com um salário mínimo nacional (o que não lhe permitia, certamente, fazer poupanças que atenuassem os efeitos de um período de salários em atraso)
Quanto ao grau de ilicitude do comportamento da ré, há que considerar que “o não cumprimento da obrigação do pagamento da retribuição ao trabalhador, mesmo que, objectivamente, não censurável de modo acentuado, representa uma das formas mais graves de incumprimento, ou de não pontual cumprimento do negócio jurídico aprazado entre o empregador e o trabalhador, do mesmo passo que representa um gravame situacional para este último”, (Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/11/2008, P. 08S1871, disponível em www.dgsi.pt.).
Deste modo e tudo ponderado, entende-se equilibrado fixar o quantum da indemnização devida ao trabalhador em 30 dias de remuneração base por cada ano completo de serviço, o que perfaz um montante global de indemnização de € 3.123,25.
Em suma, e face a todo o exposto, mostra-se procedente o primeiro fundamento de recurso suscitado.
Importa agora apreciar se são devidas ao trabalhador as retribuições relativas aos meses de Dezembro de 2009, Janeiro e Fevereiro de 2010, cujo pagamento o mesmo havia reclamado na petição inicial, mas que não integram a decisão de condenação proferida.
Ficou provado nos autos que a ré não pagou ao autor:
- As retribuições relativas aos meses de Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010;
- A retribuição correspondente a 8 dias de trabalho prestado pelo Autor no mês de Março de 2010;
- Os subsídios de férias e de Natal referente ao ano de 2009;
- Os proporcionais da retribuição referente às férias não gozadas pelo Autor no ano de 2010;
- Os proporcionais dos subsídios de férias e de Natal, referentes ao trabalho prestado pelo Autor no ano de 2010.
A sentença recorrida, porém, apenas condenou a ré no pagamento ao autor da quantia de € 1.610,42, a título de férias não gozadas, subsídios de férias e de Natal e proporcionais dos mesmos subsídios.
Todavia, são igualmente devidas ao autor as retribuições relativas aos meses de Dezembro de 2009, Janeiro e Fevereiro de 2010 (que são as únicas a que se referem as conclusões de recurso), perfazendo o valor em dívida o montante de € 1.756,83 (€ 585,31 x 3 meses).
Mostra-se assim igualmente procedente a segunda questão suscitada em sede de recurso e agora analisada.

Concluindo, entendemos que nos termos do artigo 394º, nº2, alínea a) do Código do Trabalho, ocorre justa causa para a resolução do contrato de trabalho por iniciativa do autor, com direito ao pagamento da correspondente indemnização e, ainda, ao pagamento das retribuições relativas aos meses de Dezembro de 2009, Janeiro e Fevereiro de 2010, que se mostram em dívida e que não integraram a condenação proferida pela 1ª instância, mostrando-se assim procedentes as conclusões de recurso.
V.Decisão
Nestes termos, acorda-se em dar provimento ao recurso e, consequentemente:
a) Revoga-se parcialmente a sentença recorrida, declarando-se que se verifica justa causa para a resolução do contrato de trabalho por iniciativa do autor;
b) Condena-se a ré no pagamento ao autor da quantia de € 3.123,25, a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho;
c) Condena-se a ré no pagamento ao autor da quantia de € 1.756,83, relativa a retribuições referentes aos meses de Dezembro de 2009, Janeiro e Fevereiro de 2010.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da ré.
Notifique.
Évora, 18 de Outubro de 2012
(Paula Maria Videira do Paço)
(José António Santos Feteira)
(João Luis Nunes)