DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
UNIDADE E PLURALIDADE DE INFRAÇÕES
Sumário


I. O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstrato, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas.

O que se pune, através da disposição incriminadora violada é a detenção – fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente – de armas de fogo, de munições ou de instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão – artigos 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.

II. Face ao consagrado no artigo 30.º do Código Penal, o número de armas e lote de munições detidas pelo Arguido não pode constituir o critério determinante para a contabilização do número de crimes de detenção de arma proibida pelo mesmo cometido.

O critério teleológico adotado pelo legislador, na destrinça entre a unidade e pluralidade de infrações, pressupõe o juízo de censurabilidade. Quer isto dizer que haverá tantas infrações, na realização do mesmo tipo legal de crime, quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.

III. Ora, no caso dos autos apenas se provou a detenção ilícita de uma arma de fogo, de munições e de um bastão extensível. Sem que se tenha apurado se tais objetos chegaram ao poder do Arguido em ocasiões distintas.

Pelo que não resta senão concluir estarmos perante um caso de detenção simultânea de diversas “armas” por parte de um mesmo individuo, não podendo afirmar-se mais do que uma resolução criminosa, a qual apenas integra um único crime de detenção ilegal, por tal conduta apenas ser suscetível de um único juízo de censura.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora


I. RELATÓRIO
No processo comum nº 91/09.9PFSTB, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, o Ministério Público acusou JM, casado, comerciante, nascido a 23 de julho de 1974, em Cabo Verde,..., residente...., em Setúbal, pela prática, em autoria material e em concurso efetivo,

- de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;

- de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, e 3.º, n.º 5, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;

- de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

Não foi apresentada contestação escrita.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, foi o Arguido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia global de € 2 250,00 (dois mil duzentos e cinquenta euros).

E foram declaradas perdidas a favor do Estado as armas apreendidas à ordem dos autos.

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, retirando da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:

«1. Por sentença, datada de 19 de Abril de 2012, a Meritíssima Juíza a quo absolveu o arguido da prática de dois crimes de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º n.º1 alínea d) do Código Penal e condenou pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86.º, n.º1 alínea c) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 450 dias de multa à taxa diária de 5,00€

2. Em resultado da prova produzida foram dados como provados todos os factos constantes da Acusação, tendo a Mm.ª Juíza, na apreciação da subsunção jurídica, decidido pela inexistência de um concurso efectivo de crimes.

3. Mais referiu na Sentença, ora em crise, que nos encontramos perante um concurso aparente de crimes.

4. O Código Penal, no artigo 30.º, não regula o concurso de normas, dependendo a resolução dos problemas jurídicos levantados, nesta sede, da aplicação das regras gerais de interpretação do tipo legal de crime.

5. O concurso aparente ou concurso legal de crimes consiste na subsunção formal dos factos a uma pluralidade de tipos criminais, bastando a aplicação de apenas uma das incriminações para punir o facto ilícito. As formas do concurso de normas são a especialidade a subsidiariedade e a consunção.

6. Não se afigura que o caso em concreto se reconduza a uma situação de subsidiariedade ou especialidade.

7. Acresce que, salvo o devido respeito, as várias alíneas do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro não estão numa relação de concurso ou de consunção, porquanto conteúdo dos factos descritos, em cada uma delas, não inclui ou exclui as demais e a punição da mais grave não esgota o desvalor da acção.

8. Com efeito, o legislador determinou que os elementos objectivos do crime de detenção de arma se consubstanciam na detenção, transporte, importação, na guarda, compra, aquisição a qualquer título ou por qualquer meio ou obtenção por fabrico, transformação, importação ou exportação, uso ou porte de cada uma das armas descritas nas diferentes alíneas.

9. Acresce que, tratando-se de um crime de perigo comum, em conformidade com a perigosidade da arma detida se previu penas abstractas diversas.

10. Aliás, se não pretendesse o legislador punir de forma autónoma a detenção das armas elencadas nas várias alíneas, não teria optado por descrever em diversas alíneas do preceito as condutas puníveis. Com efeito, bastava punir a detenção de quaisquer armas classificadas como proibidas no referido diploma legal – Lei n.º5/2006, determinando a mesma pena abstracta.

11. A conduta do agente ao deter armas de diversa natureza e de diferente perigosidade cria, em cada resolução, um perigo abstracto para os bens jurídicos protegidos pela norma. O agente sabe que não pode deter armas proibidas, mas é claramente capaz de distinguir os diferentes graus de perigosidade das mesmas.

12. Assim deter uma arma biológica ou material de guerra, por um lado, e um aerossol, por outro, não é uma conduta socialmente neutra, não sendo indiferente a posse de uma ou outra arma. A lesão da paz jurídica e a criação de perigo para os bens jurídicos em causa é manifestamente diferente e por isso deve ser punida de forma autónoma.

13. Na Sentença recorrida violou a Mm.ª Juíza o disposto no artigo 86.º, n.º1 alínea d) e c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, bem como o disposto no artigo 30.º do C.P.

14. Conforme resulta da motivação expendida, e das presentes conclusões, devia o arguido ter sido condenado pela prática de dois crimes de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 86.º, n.º1 alínea c) e d), da Lei n.º 5/2006, todos do Código Penal.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente,

Revogar-se a Sentença recorrida, substituindo-a por outra que acolhendo o entendimento expresso neste recurso condene o arguido pela prática dos crimes imputados na acusação.

V. Exas., no entanto, decidirão como for de

JUSTIÇA!»

Não houve resposta.

O recurso foi admitido.

v
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, a Senhora Procuradora Geral Adjunta, emitiu o parecer que consta de fls. 123 a 125 dos autos, onde afirma não se encontrar na prova produzida suporte para a tese defendida pelo Recorrente.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.

Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal[[2]].

O objeto do recurso interposto pelo Ministério Público, delimitado pelo teor das suas conclusões, reconduz-se ao número de crimes cometidos.

Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:

«No dia 8 de Abril de 2009, cerca das 2 horas e 40 minutos, conduzia o arguido o veículo automóvel de matrícula --- quando, na Rua José Pereira Martins, nesta comarca de Setúbal, lhe foi dada ordem de paragem por uma patrulha da PSP em acção de fiscalização.

Nessas circunstâncias, foi encontrada na posse do arguido, acondicionada junto ao banco do condutor, uma pistola de marca “Pietro Beretta”, de calibre 22, com 9 cm de cano e um comprimento total de 16 cm, bem como uma caixa contendo 51 munições calibre 22.

Tais arma e munições pertenciam ao arguido, o qual não era, nessas circunstâncias, titular de licença para uso ou porte de arma de qualquer natureza.

No mesmo local, encontrava-se também, igualmente pertença do arguido, um bastão extensível, com 48,5 cm de comprimento total.

O arguido detinha a referida arma e munições sem qualquer justificação para tal, de forma livre e voluntária, sabendo que, para adquirir ou deter as mesmas necessitava de ser titular de licença para uso e porte de arma e que a sua detenção sem essa licença consubstanciava um ilícito criminal.

Detinha, também, sem qualquer justificação para tal, o referido bastão extensível, sabendo que o mesmo não possuía qualquer aplicação definida e que podia ser utilizado como arma de agressão, sabendo, igualmente, que a detenção de tal objecto é proibida e a mesma configura ilícito criminal.

O arguido agiu de forma voluntária e livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.

Mais se apurou que:

A pistola que se encontrava no veículo encontrava-se com carregador introduzido e uma munição no seu alojamento.

O arguido explora juntamento com a sua esposa um estabelecimento comercial dedicado à actividade de restauração e bebidas, auferindo uma média de € 10,00 a € 20,00 diários.

O arguido vive com a esposa e cinco filhos de 25, 23, 18, 16 e 11 anos de idade.

O arguido tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade.

O arguido tem antecedentes criminais porquanto foi julgado e condenado no processo nº --/09.0PFSTB deste Juízo, por sentença de 14.06.2011, transitada em julgado em 30.09.2011, por factos ocorridos em 31.01.2009, pela prática de um crime de usurpação de direitos de autor, previsto e punido pelos artigos 195º, nº 1 e 197º do Código Penal, na pena de 265 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, num total de € 1.325,00

Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Nada mais se provou que seja relevante para a decisão a proferir

A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:

«A convicção do tribunal formou-se com base em toda a prova produzida nos autos e em sede de audiência de julgamento conjugada e criticamente analisada segundo as regras da experiência comum e juízos de normalidade.

Foi assim positivamente valorado o depoimento das testemunhas JG e JR, agentes da Polícia de Segurança Pública de Setúbal, os quais, relataram que no âmbito das suas funções de fiscalização abordaram o veículo conduzido pelo arguido tendo verificado que debaixo do banco do condutor se encontrava um volume, que retiraram, tendo constatado que se tratava de um pano contendo uma arma carregada. Dentro do veículo, encontraram ainda munições e um bastão extensível. A testemunha JG afirmou que ao ser confrontado com tais objectos o arguido afirmou que o bastão lhe pertencia e que se destinava à sua defesa pessoal, sendo que, a testemunha JR indagou directamente o arguido quanto à propriedade da arma tendo este afirmado que não lhe pertencia e que não era o único que conduzia aquela viatura.

Globalmente considerados, os depoimentos destas testemunhas afirmaram-se, emergentes de um conhecimento pessoal e directo da realidade dos factos sobre que depuseram, denotaram isenção, coerência e clareza, e incutiram convencimento.

Positivamente valorados foram, ainda, o auto de detenção de fls. 2 e 3, o auto de apreensão de fls. 10, as fotografias de fls. 12 a 15 e o resultado dos autos de exame e avaliação de fls. 40 a 42.

Relativamente às condições socio-económicas e profissionais do arguido, relevaram as declarações do mesmo que nesta matéria se revelaram credíveis.

No que concerne aos antecedentes criminais teve-se em conta o Certificado de Registo Criminal de fls. 71.

Finalmente, no que concerne aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos que nessa qualidade se descreveram

No que diz respeito ao enquadramento jurídico dos factos, consta da sentença que [transcrição]:

«O arguido encontra-se acusado da prática de três crimes de detenção de arma proibida.

Determina o artigo 86º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, na sua redacção inicial, aplicável à data dos factos, e no que ao presente importa, que:

“1- Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)

c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projécteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.

2 - A detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui, para efeitos do número anterior, detenção de arma fora das condições legais.” (sublinhado nosso)

Dispõe por sua vez o nº 3 do artigo 3º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, que, “São armas da classe B as armas de fogo curtas de repetição ou semiautomáticas”.

Trata-se de um crime de perigo abstracto mediante o qual se visa essencialmente tutelar a segurança das pessoas e igualmente dos seus haveres, o que de resto é corrente a todos os crimes de perigo comum.

Deste modo podemos afirmar que sendo o interesse protegido a segurança contra o risco de detenção de tais armas, bastará a adopção pelo agente de umas daquelas situações ou comportamentos anteriormente enunciadas, para ser posto em causa o bem jurídico aqui tutelado e tipificar-se o correspondente crime.

Ora, resulta dos factos provados que, no dia 8 de Abril de 2009, o arguido tinha na sua posse uma pistola de marca “Pietro Beretta”, de calibre 22, com 9 cm de cano e um comprimento total de 16 cm, bem como, uma caixa contendo 51 munições calibre 22 e um bastão extensível, com 48,5 cm de comprimento total, pelo que, dúvidas não restam acerca do preenchimento do elemento objectivo do tipo por banda do arguido.

Mais resultou provado que o arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pelo que se encontra igualmente preenchido, na modalidade de dolo directo, o elemento subjectivo do crime, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
*
In casu, uma vez que o arguido à data dos factos detinha mais do que uma arma proibida coloca-se a questão do concurso de crimes.

De facto, determina a o nº 1 do artigo 3º do Código Penal que, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.

Ora, o crime de detenção de arma proibida tutela uma vasta diversidade de bens jurídico (de que são exemplo, a vida, a integridade física, a tranquilidade, a liberdade, a paz social, o património) e visa prevenir o perigo de um número indeterminado de infracções penais, pelo que, o facto de o arguido em vez de na mesma circunstância de tempo e lugar deter não um único tipo de arma mas sim três tipos de arma proibida não alarga o âmbito de protecção jurídica prosseguida com tal incriminação.

Neste sentido, tem vindo a ser entendido pela doutrina e jurisprudência maioritária, e é também entendimento deste tribunal, que nos encontramos perante um concurso aparente de crimes.

Sobre o tema da unidade e pluralidade de infracções, Figueiredo Dias in, “Direito Penal, Parte Geral, I”, págs. 988 a 991), escreve «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes.»

E acrescenta que «será a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) da ilicitude, devendo reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa “a partir da consequência”, a existência de dois grupos de casos:

- o caso normal, em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis – hipóteses de concurso efectivo (do art. 30º,nº1), próprio ou puro;

- e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados – hipóteses de concurso aparente, impróprio ou impuro.

Com a consequência de que só para o primeiro grupo de hipóteses deverá ter lugar uma punição nos termos do art.77º, enquanto que para o segundo deverá intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida concreta da pena.

(…) Se apenas um tipo legal foi preenchido, será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que um e o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente».

Refere-se por sua vez no Acórdão da Relação do Porto de 12 de Maio de 2010, disponível em www.dgsi.pt:

«O facto de o agente desse ilícito deter mais do que uma arma aí descrita apenas pode significar uma culpa mais intensa, que terá relevância na determinação da pena [40.º, 71.º, n.º 1 C. Penal] e não que tenha cometido tantos crimes quantas armas tivesse em seu poder.

O mesmo se passa em relação à conduta do mesmo agente, que, mediante o mesmo desígnio criminoso, por deter armas de diversa natureza e classificação legal, tipifica os diversos sub-tipos do art. 86.º, da da Lei n.º 5/2006, a que correspondem quatro molduras penais distintas.

Nestes casos existe um concurso aparente de infracções, pois tipificando-se o crime de detenção ilegal de arma, num dos seus sub-tipos mais grave, não tem cabimento, face ao princípio da especialidade, que se pune tal conduta ainda por outro sub-tipo desse crime cuja moldura penal seja menos grave.»

Na verdade, ainda que a conduta do agente preencha simultaneamente a previsão de duas das alíneas do nº 1 do artigo 86º da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, como é o caso, sempre teremos de considerar que se tratam de sub-tipos de um mesmo ilícito criminal, pelo que, atenta a unidade da resolução criminosa do arguido deverá o mesmo ser punido apenas pela medida mais gravosa prevista pela alínea c) do citado preceito

v
Conhecendo.

i) Dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal

Restringida a cognição deste Tribunal da Relação à matéria de direito, importa desde já referir que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.

E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos neles considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1.ª Instância sobre a matéria de facto.

ii) Do número de crimes cometidos pelo Arguido

A lei substantiva penal vigente regula no seu artigo 30.º a problemática do concurso de crimes, do crime continuado e do crime único constituído por uma pluralidade de atos ou ações, traduzindo o pensamento desde há muito expresso pelo Professor Eduardo Correia, na sua obra “Unidade e Pluralidade de Infrações – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”.

Aí se consagra que

«1 – O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
(…)»

O preceito legal aludido não fornece uma definição do que seja o concurso de crimes, limitando-se a indicar um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes.

Numa primeira abordagem, pode dizer-se que a afirmação de um crime pressupõe uma resolução (decisão de praticar determinados atos), atos de execução e que estes preencham a previsão legal (integrem um tipo de crime previsto no Código Penal).

O n.º 1 do artigo 30.º do Código Penal contém duas partes, ambas reportadas a situações de pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente – na primeira parte dispõe-se que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos pela conduta do agente; na segunda parte declara-se que o número de crimes também se determina pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

Estamos, assim, respetivamente, perante os denominados “concurso heterogéneo” (realização de diversos crimes decorrente da violação de diversas normas incriminadoras) e “concurso homogéneo” (realização plúrima do mesmo crime decorrente de violações da mesma norma incriminadora).

Certo é que, quer na primeira quer na segunda situação descritas, o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só ação, como em vários factos ou ações. Efetivamente, a partir de um só facto ou de uma só ação podem realizar-se diversos crimes, por violação simultânea de diversas normas incriminadoras, bem como o mesmo crime plúrimas vezes, por violação da mesma norma incriminadora; tal como a partir de vários factos ou de várias ações pode realizar-se o mesmo crime plúrimas vezes, por violação repetida da mesma norma incriminadora, bem como diversos crimes, por violação de diversas normas incriminadoras.

Em qualquer destes casos, estamos perante concurso de crimes, já que o mesmo ocorre sempre que o mesmo agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos.

Mas não pode ficar-se por aqui, sendo certo que o crime é um facto humano, tipicamente ilícito e culpável e que o tipo de crime abrange o conteúdo global da norma incriminadora, isto é, o tipo legal objetivo e subjetivo.

E sendo toda e qualquer infração criminal constituída por três elementos – o facto típico, a culpabilidade e a punibilidade –, não basta produzir pelo modo previsto na mesma ou em várias disposições legais o evento jurídico de cada uma, sendo também necessário que relativamente a cada crime concorrente se verifique vontade culpável. É indispensável que cada crime seja doloso ou culposo e, nessa medida, punível.

No caso de pluralidade de infrações, distingue-se entre o concurso legal, aparente ou impuro e o concurso efetivo, verdadeiro ou puro.

No primeiro caso, verifica-se que a conduta do agente preenche formalmente vários tipos de crime, mas, por via de interpretação, conclui-se que o conteúdo dessa conduta é exclusiva e totalmente abrangido por um só dos tipos violados, pelo que os outros tipos devem recuar, não devendo ser aplicados.

Esses tipos de crime podem encontrar-se numa relação de especialidade [um dos tipos aplicáveis (tipo especial) incorpora os elementos essenciais de um tipo aplicável (tipo fundamental), acrescendo elementos suplementares ou especiais referentes ao facto ou ao próprio agente – situação em que deve ser aplicado o tipo especializado], de consumpção [o preenchimento de um tipo legal (mais grave) inclui o preenchimento de outro tipo legal (menos grave) – situação em que, por regra, deve ser aplicado o tipo mais grave], de subsidiariedade [certas normas só se aplicam subsidiariamente, ou seja, quando o facto não é punido por outra norma mais grave] e de facto posterior não punível [os crimes que visam garantir ou aproveitar a impunidade de outros crimes não são punidos em concurso efetivo com o crime de fim lucrativo ou de apropriação, salvo se ocasionarem um novo dano ao ofendido ou se dirigirem contra um novo bem jurídico].

No caso de concurso efetivo verdadeiro ou puro, entre os tipos legais preenchidos pela conduta do agente não se dá uma exclusão por via de qualquer das regras acabadas de enunciar, e as diversas normas aplicáveis surgem como concorrentes na aplicação concreta.

Dentro deste concurso faz-se a distinção entre o concurso ideal [quando mediante uma só ação se violam diferentes tipos (concurso ideal heterogéneo) ou se viola várias vezes o mesmo tipo (concurso ideal homogéneo)] e o concurso real [quando à pluralidade de crimes cometidos corresponde uma pluralidade de ações].

Resta referir que as relações entre normas que conduzem ao concurso legal aparente ou impuro não devem ser consideradas quando os bens jurídicos tutelados pelas normas violadas revestem natureza eminentemente pessoal.

Por último, importa ter presente que a regra constante no nº 1 do artigo 30º do Código Penal, para além das restrições resultantes do concurso aparente sofre, ainda, a restrição resultante do crime continuado.

A acusação imputa ao Arguidos, em concurso efetivo, três crimes de detenção de arma proibida.

O entendimento subjacente a semelhante enquadramento jurídico, se bem o alcançamos, traduz-se em imputar tantos crimes quantas as armas e lote de munições encontradas em poder do Arguido.

Entendimento que não se perfilha, face à factualidade apurada nos autos e que, sublinhe-se, não diverge da constante do libelo acusatório.

E que se passa a explicitar.

O crime de detenção de arma proibida é um crime de realização permanente e de perigo abstrato, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidade públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas.

O que se pune, através da disposição incriminadora violada é [entre o mais e na parte que nos interessa] a detenção – fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente – de armas de fogo, de munições ou de instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão – artigos 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.

E haverá tantos crimes quantas as resoluções criminosas.

Todavia, face ao consagrado no artigo 30.º do Código Penal, cujo alcance acima se referiu, o número de armas e lote de munições detidas pelo Arguido não pode constituir o critério determinante para a contabilização do número de crimes de detenção de arma proibida pelo mesmo cometido.

O critério teleológico adotado pelo legislador, na destrinça entre a unidade e pluralidade de infrações, pressupõe o juízo de censurabilidade. Quer isto dizer que haverá tantas infrações, na realização do mesmo tipo legal de crime, quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.

A pluralidade de infracções resulta, pois, para o mesmo tipo legal, da pluralidade de juízos de censura ou reprovação.

Ora, no caso dos autos apenas se provou a detenção ilícita de uma arma de fogo, de munições e de um bastão extensível.

Sem que se tenha apurado se tais objetos chegaram ao poder do Arguido em ocasiões distintas.

Pelo que não resta senão concluir que estarmos perante um caso de detenção simultânea de diversas “armas” por parte de um mesmo individuo, no caso o Arguido, não podendo afirmar-se mais do que uma resolução criminosa, a qual apenas integra um único crime de detenção ilegal, por tal conduta apenas ser suscetível de um único juízo de censura.

É este o raciocínio expresso na decisão recorrida.

Que não viola o disposto no artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, nem no artigo 30.º do Código Penal.

Pelo que a decisão recorrida não merece censura e o recurso improcede.

III. DECISÃO

Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra a sentença recorrida.

Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento.

v
Évora, 30 de Outubro de 2012

(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

______________________________________
(Ana Luisa Teixeira Neves Bacelar Cruz)

______________________________________
(Maria Cristina Capelas Cerdeira)
_________________________________________________
[1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].