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QUEIXA
EXERCÍCIO DE DIREITO
Sumário
1 - A queixa não está sujeita a forma, pode ser verbalmente transmitida e não exige qualquer sacrossanta formulação, apenas a existência de uma qualquer referência, simples que seja, de expressão de vontade de agir processualmente.
2 - O actual Código de Processo Penal atribui à queixa uma função volitiva e à denúncia a função de corporizar a “notícia do crime”. Se a denúncia é um elemento processual cognitivo da prática de um crime, a queixa tem de ser vista como um elemento processual volitivo.
3 - Assim, há uma diferença entre “queixa” e “denúncia”, aceitando-se que a “queixa” e a “denúncia” podem ser – e são bastas vezes – incorporadas num mesmo e único auto.
4 - A diversa natureza dos crimes na nossa ordem penal é uma forma de o legislador regular e equilibrar interesses e bens jurídicos sem recorrer ao princípio da oportunidade e o princípio da oficialidade exige previsibilidade, clareza e certeza. A interpretação de uma vontade presumida a que se recorra de forma sistemática implica, em maior ou menor grau, uma imprecisão e um corroer daquele princípio da oficialidade. [1]
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:
Nestes autos de Inquérito que corre termos nos serviços do Ministério Público de Portimão, por decisão instrutória lavrada a 07 de Outubro de 2011, o Mmº. Juiz do Tribunal Judicial de Portimão – JIC - lavrou despacho a rejeitar a acusação deduzida pelo MP relativamente a um crime de subtracção de menor p. e p. pelo artigo 249º, nº 1, al. c) e 3 do Código Penal contra o arguido PS.
*
Inconformado com aquela decisão a Digna Procuradora-Adjunta do Tribunal de Portimão interpôs o presente recurso, pedindo a sua procedência pela revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que pronuncie o arguido, com as seguintes conclusões:
A (essa) comunicação feita pela ofendida junto do O.P.C., independentemente da designação que lhe tenha sido atribuída constitui uma verdadeira queixa.
A designação que é atribuída a esse acto pelo O.P.C. não tem valor absoluto e não vincula o Ministério Público à mesma.
Se é certo que dos autos não resulta a expressão "desejo procedimento criminal contra", também é certo que não resulta a expressão contrária.
Nem sequer era exigível que o dissesse, bastando que tal intenção resulte inequivocamente dos autos, o que se verifica.
Tal manifestação de vontade resulta clara quando a ora ofendida se dirige à esquadra da P.S.P. a relatar os factos que estão na origem dos presentes autos imputando-os ao arguido, tendo o auto resultante da queixa apresentada verbalmente pela ofendida, perante O.P.C., sido reduzido a escrito (com menção das circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram e descrevendo-os de forma pormenorizada) e assinado pela própria, e confirmado pela atitude de colaboração com o prosseguimento do procedimento criminal, sujeitando-se a diligência de inquirição (mesmo depois de ter cessado a prática do crime) e oferecendo meios de prova.
A queixa exprime a vontade do titular do direito protegido de que seja instaurado procedimento criminal contra o autor dos factos ilícitos, contudo, a lei processual não estabelece qualquer forma específica para a prática desse acto.
Pelo exposto, considera-se que a douta decisão ao entender que não foi exercido o direito de queixa por parte da ofendida viola o disposto nos n. 1 a 3 do art. 49.° e n. 1 a 3 do art. 246.° todos do C.P.P.
Nestes termos, deverá ser alterada a douta decisão, dando provimento ao presente recurso.
*
O arguido apresentou resposta defendendo o decidido, com as seguintes conclusões:
A. Foi o arguido acusado pelo crime de subtracção de menor p. e p. pelo artigo 249.°, n." I alínea c) do C Penal.
B. Acto contínuo, requereu o arguido a abertura da instrução, invocando nulidades da acusação, bem como, a não verificação da prática do crime de que estava acusado pelo não preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo.
C. Realizado o debate instrutório, foi proferida decisão final instrutória que não pronunciou o arguido pelo crime de que estava acusado, devido ao facto do crime ter natureza semi-pública, e ter sido entendimento do Tribunal a quo que nos autos de inquérito, não se mostrava exercido o direito de queixa, da forma que a lei o prescreve, motivo pelo qual, não tinha o MP legitimidade para iniciar o procedimento criminal.
D. Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o MP invocando que dos factos constantes dos autos, decorre que a lesada manifestou inequivocamente a sua vontade em prosseguir com o procedimento criminal.
E. Os factos em análise são:
«Dos presentes autos resulta que no dia 30 de Setembro de 2010, pelas 11h50m, a ofendida dirigiu-se à esquadra da Polícia de Segurança Pública de Portimão com o intuito de dar conhecimento ao órgão de polícia criminal de que o arguido, em incumprimento do estabelecido no acordo de regulação das responsabilidades parentais, não tinha procedido à entrega do filho de ambos no prazo estabelecido.
Em 11 de Março de 2011 a ofendida foi inquirida no âmbito dos presentes autos, nos serviços do Ministério Público junto do Tribunal de Portimão, tendo esclarecido com maior rigor os factos denunciados em Setembro anterior na psp.
Em 21 de Março de 2011 a ofendida juntou aos autos requerimento a informar da identificação das testemunhas que tinham conhecimento dos factos que imputava ao arguido.»
F. Para se considerar que a lesada manifestou inequivocamente a sua vontade em prosseguir com o procedimento criminal, em rigor, o que é necessário é que, após o relato dos factos, ainda que expressamente não o seja dito ou mesmo perguntado, a lesada, proactivamente, demonstre designadamente por actos que pretende tal procedimento criminal.
G. Não comparecendo apenas no processo quando para tal é notificada,
H. Não indicando testemunhas quando tal lhe é solicitado.
I. Praticando apenas actos reactivos e não proactivos de quem, de forma inequívoca, pretende que um procedimento criminal prossiga,
J. Tal como, constituir-se assistente, por exemplo.
K. Razão pela qual, não se vislumbrando que a lesada tenha manifestado de forma inequívoca a sua vontade no procedimento criminal, bem andou o Tribunal a quo em ter proferido despacho de não pronúncia, devendo a decisão recorrida ser mantida in totum.
Nestes termos e nos mais de direito, Requer-se: que não seja dado provimento ao Recurso a que ora se responde, e em consequência, seja mantida a decisão recorrida. *
Nesta Relação a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
***** B - Fundamentação: B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho judicial recorrido:
É o seguinte o teor do despacho judicial de 12-04-2010:
“Relatório
1. Na sequência de despacho de acusação proferido pelo Ministério Público a fls. 124 e ss. Que lhe imputa a prática de um crime de subtracção de menor, p. e p. pela al. c) do n.º 1 do artigo 249.º do Código Penal, veio o arguido PS apresentar requerimento para a abertura de instrução pugnando, em consequência, pela prolação de um despacho de não pronúncia, aduzindo as razões de facto e de direito de discordância em relação ao despacho de acusação pela forma que consta a fls. 141 e ss.
2. No decurso da instrução foram juntos documentos e teve lugar o debate instrutório com respeito pelo formalismo legal como o atesta a acta de fls. 203 e ss., onde o Ministério Público pugnou pela prolação de um despacho de pronúncia e dessa posição dissentiu o arguido.
II. Saneamento.
O tribunal é o competente. Inexistem outras excepções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhece com excepção da que se aborda de seguida.
Da falta do pressuposto positivo da punição.
O Ministério Público deduziu acusação imputando ao arguido a autoria do crime de subtracção de menor nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 249º do Código Penal.
A mesma disposição legal consagra, no seu n.º 3, uma excepção ao princípio da oficialidade ao determinar que “o procedimento criminal depende de queixa”, vd. Artigos 48.º e 49º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
A queixa, nas palavras de Figueiredo Dias (1), é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada”.
Compulsados os autos não se vislumbra qualquer manifestação de vontade por banda da ofendida de sentido claro e inequívoco para que houvesse lugar ao procedimento criminal.
Razão porque falece a legitimidade ao Ministério Público para promover o exercício da acção penal mediante a dedução da acusação, nos termos conjugados do artigo 249º, n.º 3 do Código Penal e 48º e 49º, n.º 1 ambos do Código de Processo Penal.
Em face do exposto falta um pressuposto positivo da punição – queixa – que obsta à prossecução dos autos e determina, ao invés, o arquivamento dos mesmos.
Aqui chegados mostra-se prejudicada a análise das questões colocadas pelo arguido com relvado, neste momento de apreciação, para a invocada nulidade da acusação.
Decisão
Por tudo o exposto, decido NÃO PRONUNCIAR, o arguido PS como autor do crime de subtracção de menor, p. e p., pelo artigo 249º, n.º 1, al. c) e 3, do Código Penal, por julgar verificada a falta de legitimidade do Ministério Público para promover a acção penal ante a ausência do pressuposto processual queixa e, em consequência, determino o arquivamento dos autos nos termos do artigo 308º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Sem custas. Notifique.”. * B.2 - O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
A questão abordada no recurso reconduz-se a apurar, unicamente, se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por despacho que receba a acusação com base no pressuposto de que existe “queixa” para os efeitos previstos nos artigos 49º do Código de Processo Penal e 249º, nº 3 do Código Penal.
*** B.3 – A apreciação a fazer nestes autos deve incidir sobre a possibilidade de existência de um conceito de “queixa implícita” ou “presumida”, na medida em que até a digna recorrente aceita a inexistência de “queixa expressa”, por qualquer forma ou expressão, mais ou menos tabelar.
Definido desta forma o objecto do recurso, a resposta estaria dada, por ser intuitivo, antes de racional, que a expressão de vontade em processo penal se deve fazer de forma explícita na maioria dos casos em que o legislador ou o sistema exigem uma qualquer forma de expressão de vontade.
Considerando, no entanto, as razões de vitimologia processual que se surpreendem na argumentação da Digna Procuradora-adjunta recorrente e alguma jurisprudência permissiva de carácter mais “oficializante”, importa sustentar a razão para a improcedência do recurso.
O conceito, em si, suscita mais questões do que aquelas que resolve.
De facto, como se desiste de uma “queixa implícita”? Implicitamente? Existe “participação implícita” nos casos referidos pelo artigo 49º, nº 4 do Código de Processo Penal?
Qualquer “vontade” se pode presumir existente implicitamente para efeitos processuais, no caso de um OPC e o MP se esquecerem da natureza de um crime e se esgotar o prazo do seu exercício?
A diferença entre denúncia e queixa é uma excrescência processual, estando normas como o nº 2, al. a) do Código de Processo Penal implicitamente revogadas e sendo a diferença terminológica utilizada pelo legislador nos artigos 111º a 116º do Código Penal e 49º e 241º a 247º do Código de Processo Penal letra morta ou mero luxo incompreensível?
Se as primeiras questões jogam um papel retórico, esta última merece resposta explícita: não parece ser esse o entendimento da doutrina mais abalizada.
“Queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art. 111º e CPP, art. 49º).
A queixa distingue-se, assim, tanto da mera denúncia, como da acusação particular. Com efeito, a denúncia é uma simples comunicação, através da qual é levada ao conhecimento dos órgãos de perseguição penal a suspeita de que foi cometido um crime (Código de Processo Penal, arts. 241º e ss.). Por isso a denúncia pode ser feita por qualquer pessoa – sem prejuízo da existência de denúncia obrigatória para certas entidades e categorias de pessoas -, não está sujeita a qualquer forma especial ou a prazos dentro dos quais deva ser feita e oferece ao MP apenas uma das possíveis formas de adquirir a chamada «notícia do crime»”. [2]
Apesar do que se afirma – explicável pela referência implícita e subconsciente ao anterior Código de Processo Penal – em conhecidos códigos anotados, [3] há uma diferença entre “queixa” e “denúncia”, aceitando-se que a “queixa” e a “denúncia” podem – e são bastas vezes – incorporadas num mesmo e único auto.
Aquelas equiparações entre “denúncia” e “queixa” parecem assentar numa visão historicista e por referência à legislação processual penal anterior à vigência do actual Código de Processo Penal referida por Figueiredo Dias na sua versão de 1974 do Manual de Processo Penal – págs. 120-123 – e é bem expresso no artigo 3º do Dec-Lei nº 35.0007, de 13-10-1945 e no artigo 1º do Dec-Lei nº 41.074, de 17-04-1957, onde a queixa, a denúncia e a participação são equiparáveis.
O actual Código de Processo Penal, desde 1987, altera e afina este estado de coisas, atribuindo à queixa uma função volitiva e à denúncia a função de corporizar a “notícia do crime”.
Se a denúncia é um elemento processual cognitivo da prática de um crime, a queixa tem de ser vista como um elemento processual volitivo. Conhecimento e vontade são diversos, não obstante se poderem resguardar à sombra do mesmo acto processual.
E se recordarmos a “tripla função da queixa”, a vontade joga nelas, em todas elas, um papel fundamental: “descriminalização de facto” dependente da vontade do titular, a tutela das “relações pessoais” e a protecção da vítima. [4]
Presumir vontades é uma área de especial risco de erro. Presumir vontades em plena área de tutela da privacidade e das relações familiares é ainda mais arriscado. Presumir vontades no cerne da operacionalidade do princípio da separação de poderes e da oficialidade e legalidade pode ser um risco inaceitável num Estado de Direito.
Não nos parece que a distinção prática entre um crime público e outro semi-público possa ficar sistematicamente dependente de simples interpretação sobre uma vontade presumida.
A diversa natureza dos crimes na nossa ordem penal é uma forma de o legislador regular e equilibrar interesses e bens jurídicos sem recorrer ao princípio da oportunidade e o princípio da oficialidade, plenamente operativo, exige previsibilidade, clareza e certeza. A interpretação de uma vontade presumida a que se recorra de forma sistemática implica, em maior ou menor grau, uma imprecisão e um corroer daquele princípio da oficialidade.
Exige-se, por via disso, que a expressão de vontade se corporize em algo de diferente de uma figura que o legislador tratou de forma diversa e com diferente terminologia.
Em breve: denúncia não é queixa. Contém a denúncia algo que corporize a vontade? Se sim, existe queixa. Se não, não há acto volitivo processualmente relevante, apenas a notícia de um crime.
A já referida jurisprudência permissiva de carácter mais “oficializante” acaba por transformar em crime público qualquer crime que seja denunciado, desta figura de “conhecimento do crime” deduzindo ou presumindo a vontade de prossecução processual.
Isto é, os crimes de natureza semi-pública são transformados, na prática, em crimes públicos por mera interpretação empírica da vontade presumida do titular do direito.
Esta jurisprudência permissiva e de maior carácter público assenta na ideia de que uma denúncia, desde que não seja obrigatória (artigos 242º e 243º do Código de Processo Penal), corresponde sempre a uma queixa. É ver o acórdão desta Relação de 19-10-2004 (Proc. 592/04-1):
“I. É de considerar, segundo as regras da experiência comum, que a simples comunicação pela ofendida, de factos indiciadores do crime de violação, à autoridade policial, à qual se dirige após ter sido abandonada pelo violador, é suficiente para permitir a conclusão de que por aquela forma a ofendida pretendia que fosse exercido o procedimento criminal tanto mais que a ofendida logo na mesma noite da ocorrência dos factos, compareceu perante um inspector da Polícia Judiciária para recolha de vestígios biológicos, e no termo de consentimento assinado pela ofendida, expressamente se declara: “denunciante de um crime de violação, ocorrido nesta data, na comarca de …, cuja participação formalizou na GNR local.”
II. Assim, o Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal. Somente não teria legitimidade, se o auto de notícia tivesse sido lavrado apenas por imposição legal, nos termos do artº 243º do CPP, ou se a ofendida tivesse expressamente renunciado ao direito de queixa ou tivesse praticado factos donde a renúncia necessariamente se deduzisse.
III. Face à queixa da ofendida, posteriormente corroborada na colaboração processual e no propósito de continuação do procedimento criminal, constituindo-se até assistente nos autos, não procedem razões para o arquivamento do processo por ilegitimidade do Ministério Público.”
Na jurisprudência de cariz mais público há três constantes que se surpreendem: a necessidade de a adoptar por motivos de justiça concreta (considerar não apresentada a queixa redunda numa injustiça empiricamente “sentida” no caso concreto; um erro das entidades policiais que se não preocuparam, no momento próprio, em obter uma formalização da queixa; por fim, a necessidade sentida pelos tribunais de recorrer ao decurso posterior do processo (prestação de declarações, constituição como assistente, dedução do pedido cível) para justificar um acto de expressão de vontade inequívoca que deveria preexistir e ser auto-suficiente na sua formulação.
No acórdão do STJ de 26-03-2003 (proc. 02P4422), há uma constatação indesmentível, já afirmada pela doutrina e resultante da melhor leitura dos textos legais: que a queixa não está sujeita a forma. [5]
Acresce que pode ser verbalmente transmitida e não exige qualquer sacrossanta formulação, apenas a existência de uma qualquer referência, simples que seja, de expressão de vontade de agir processualmente, no dizer do Prof. Figueiredo Dias [6] “… por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto”.
Não será despiciendo afirmar que nos crimes semi-públicos e particulares o legislador não quer, explicitamente não quer, que o Ministério Público se comporte como se se tratasse de um comum crime público. E quer, necessariamente quer, uma expressão de vontade com algum foro de formalismo e certeza de existência por parte de pessoas certas.
Supõe mesmo um acervo de interesses intocável pelo Ministério Público no caso de crimes semi-públicos e particulares na titularidade de pessoas certas e determináveis (e mesmo crimes públicos no caso de certas instituições – artigo 130º da CRP) – artigos 49º, nº 3 e 52º, nº 2 do Código de Processo Penal e 113º do Código Penal.
Surpreende-se uma excepção a este regime rigoroso e tradicional na letra dos números 4 a 6 do artigo 113º do Código Penal por razões compreensíveis, não cabendo o caso dos autos nessa tipologia procedimental.
Tendo o legislador sido tão previdente e preciso na previsão deste acervo de exigências a rodear a figura do direito de queixa (diferenciando-o claramente da figura da “denúncia”), associado à previsão legislativa dos tipos penais e sua natureza, a mera possibilidade de construção da figura da “queixa implícita” ou “presumida” pode configurar-se como um atentado à teoria da divisão de poderes, operando-se por via interpretativa de uma expressão de vontade não claramente expressa, uma alteração da natureza do crime.
Não se estará a pôr em causa as escolhas legislativas, pondo em risco a própria natureza da tipologia penal laboriosamente criada pelo legislador e criando uma extensa área de incerteza no âmbito de aplicação do processo penal?
Em nosso entender a resposta é afirmativa.
Face a estas perplexidades e razões o recurso deve improceder.
C - Dispositivo:
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar o douto despacho recorrido.
Notifique. Sem custas.
Évora, 20 de Novembro de 2012 (Processado e revisto pelo relator)
João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz
___________________________________________________________________________
[1] - Sumariado pelo relator
[2] - Prof. Figueiredo Dias, in “As consequências jurídicas do crime – Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 1063, pág. 665.
[3] - V. g. Código de Processo Penal – Comentários e notas práticas, dos Magistrados do MP do Distrito Judicial do Porto, em anotação 4 ao artigo 49º, pág. 109, referindo o artigo 241º do Código de Processo Penal como uma concretização do artigo comentado. Igualmente no Código de Processo Penal Anotado de Simas Santos e Leal-Henriques se surpreende uma equiparação de queixa a denúncia, apesar de se afirmar a essencialidade da “vontade” para a perseguição penal (pág. 353).
[5] - “E começando-se pela invocada falta de legitimidade da demandante B para apresentar pedido de indemnização civil, há desde já a referir, sublinhando-se, que tendo o acidente ocorrido a 3.6.99, logo a 30.6.99 deu a saber ao tribunal pretender "deduzir pedido civil", sendo certo e inquestionável que ouvida em declarações no inquérito a 26.11.99 (fls. 53), expressa, clara e de um modo preciso referiu que "pretende procedimento criminal contra o arguido pelos ferimentos que sofreu". O que não deixa de enformar uma manifestação inequívoca e clara de vontade de procedimento criminal contra o arguido, de todo em todo traduzindo e consubstanciando o exercício do direito de queixa que lhe assistia. Como aliás vem entendendo a melhor e última jurisprudência, consignando-se que, mais do que a formal e a formatizada formulação de um pedido de procedimento criminal, vale como queixa e seu exercício toda uma manifestação clara e inequívoca de vontade do titular de tal direito em que se proceda criminalmente contra o arguido (vide Acs. Rel. Lx. de 21.10.99 - proc. 60019; de 9.7.92 - proc. 277783; da Rel. Coimbra de 18.1.96 - CJ, Ano XXI, Tomo I, 1996, pág. 42; da Rel. Lx. de 9.6.82 - CJ, Ano VII, Tomo 3, 1982, pág. 154, e Ac. STJ de 6.11.2002, Sumários de Acs. STJ, nº 65, pág. 58).
… Ainda quanto a este tema, importará dizer-se que quer do disposto no art. 49º do C.P.P., quer do exarado no art. 113º e seguintes do C.P., nada flui de preciso e de concreto no sentido de que o exercício do direito de queixa ou a própria queixa em si mesma tenha de assumir uma certa forma ou determinados contornos formatizados e concretos, sendo bastante que ao MP, entidade com competência para promover o procedimento criminal, o titular do direito de queixa manifeste clara e inequivocamente toda uma vontade de procedimento criminal.”.