FRAUDE FISCAL
INDEMNIZAÇÃO POR CESSAÇÃO DO VINCULO LABORAL
REGIME DE TRIBUTAÇÃO
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário


1. O dever declarativo previsto no artigo 57º do CIRS e passível de ser “ocultado” para efeitos de integração no artigo 103º do RGIT não abrange aquilo que a legislação fiscal (no caso o artigo 2º, nº 4 do CIRS) estatuir não ser tributável.

2. O art. 2º nº 4 do CIRS prevê um regime especial de tributação que beneficia as importâncias atribuídas pela cessação do vínculo laboral, excluindo da tributação uma determinada quantia calculada com base na antiguidade e no valor da retribuição laboral auferida nos últimos doze meses, factos que se torna essencial apurar para concluir pela existência de responsabilidade criminal e para a aplicação do disposto no artigo 103º do RGIT, designadamente o seu nº 2. [1]

Texto Integral


Acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal da Relação de Évora:

A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal correu termos o processo comum singular supra numerado no qual os arguidos:

A, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, nascido a 30.11.1955, casado, médico, residente na Quinta do Anjo, Palmela,
e
B, natural da freguesia de São Lourenço, concelho de Portalegre, nascida em 14.09.1957, casada, psicóloga, residente na Quinta do Anjo, Palmela,

foram, condenados:

O arguido A. pela prática, em co-autoria, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo Art.º 103.º/ n.º 1/ alíneas a) e b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de €10,00 (vinte euros), no montante global de €2.000,00 (dois mil euros).

A arguida B pela prática, em co-autoria, de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo Art.º 103.º/ n.º 1/ alíneas a) e b) do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 200 (duzentos e cinquenta) dias de multa à razão diária de €5,00 (cinco euros), no montante global de €1.000,00 (mil euros).
e no mais legal.

Aos arguidos havia sido imputada a prática, em co-autoria, de um Crime de Fraude Fiscal, p. e p. pelo Art.º 103.º/ n.º 1/ alíneas a) e b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho – versão aplicável à data dos factos).
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A arguida B. não se conformando com a decisão, interpôs o presente recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1– A decisão é nula, por violar os artigos 374º, 379º e 410º do CPP.

2– Desde logo, a decisão não conheceu questões que deveria apreciar, não valorando, ignorando mesmo, os documentos de fls. 134, 137 139, 159 a 161, 281 a 285, 293 a 306, 310 e 319 a 320 e os despachos interlocutórios de fls. 287, 289 e 313 a 314.

3 – Se o tivesse feito, o tribunal concluiria e levaria ao elenco da matéria dada como provada, os seguintes factos:

- A arguida, no ano de 2004, na sequência da decisão de fls.281 a 285 (sentença do tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra), do acordo de Fls. 159 a 161 e do ofício de fls 274, optou pela não reintegração, cessando o contrato de trabalho, e recebeu do Município de Castelo de Vide a quantia de € 85.006,05, sendo €31.018,05 refentes a salários não recebidos e subsídios de Natal e Férias e € 53.988,00 referentes a indemnização por não reintegração.

- Ficou assim por entregar à Fazenda Nacional, imposto no montante total de € 13.281,56.

4 – De harmonia com o artigo 2º, nº 4, alínea b) do CIRS, com a redacção vigente à data, não estavam sujeitos a tributação os valores indemnizatórios que não excedessem 1,5 do valor médio das retribuições sujeitas a imposto, multiplicado pelo número de anos ou fracção de antiguidade, Considerando tal regra, e levando em conta que a arguida foi admitida em 1996, temos que estaria isenta de tributação qualquer indemnização que não excedesse o valor de, aproximadamente, €111.000,00.

5 – Deduzindo o valor da indemnização da verba oficiosamente inscrita como rendimento do trabalho da arguida (€85.006,05), resulta um saldo de €31.018,05, que constitui o valor de rendimentos correcto e que deveria constar da declaração oficiosa de correcção, efectuada pela Administração Fiscal.

6- Tendo em consideração esse rendimento, e procedendo a nova liquidação respeitante ao agregado familiar, obtém-se um valor de imposto a pagar de € 13.281,56.

7 – Esse montante não o atinge patamar de punibilidade do crime p. e p. no artigo 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

8 - De igual forma, a sentença é nula por contradição insanável entre os fundamentos e a decisão tomada.

9 – De acordo com os artigos invocados a fls. 22 da sentença, as conclusões da folha seguinte são absolutamente contraditórias.

10 - Da fundamentação apresentada apenas se pode decidir em sentido contrário ao que foi feito.

11 – A decisão peca ainda por erro notório na apreciação da prova, nomeadamente, dando como provados factos contrariados quer pelos documentos juntos aos autos, a fls 134, 137,139, 159 a 161, 281 a 285, 293 a 306, 310 e 319 a 320, quer pelos despachos interlocutórios de fls. 287, 289 e 313 a 314, quer pelas declarações da arguida, B (gravado na sessão de 8/11/11).

12 - Ainda, o depoimento da única testemunha, C (gravado na das sessão 22/11/12) não merece qualquer credibilidade.

13 - Pelo que, neste ponto urge reapreciar a prova gravada.

14 -A decisão tomada é absolutamente contraditória com os documentos existentes nos autos a fls 134, 137, 139, 159 a 161, 281 a 285, 293 a 306, 310 e 319 a 320, decisões interlocutórias de fls. 287, 289 e 313 a 314, e depoimento da arguida.

15 – Basta a valoração de tais documentos, despachos e depoimentos para se conclui pela inexistência do ilícito penal, nos termos dos artigos 2º, nºs e 3 e 4 e 103º do RGIT.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, reapreciando-se a prova gravada, nomeadamente, os depoimentos da arguida e da testemunha C (sessões de 8 e 22 de Novembro de 2011, respectivamente).
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A Digna magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Setúbal respondeu defendendo o decidido.

O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação apôs visto nos autos.

Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal (artigo 423 do CPP).
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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. O arguido A. com o NIF xxxx é um sujeito passivo em sede de IRS registado na categoria B, pelo exercício da actividade “Médico Cirurgião”, enquadrado no regime simplificado em sede de IVA, sendo tributado em IRS, na área da Repartição de Finanças de Palmela.

2. A arguida B., com o NIF xxxx, casada com o primeiro arguido, é um sujeito passivo em sede de IRS registada na categoria A.

3. Os arguidos procederam à entrega da declaração de IRS (declaração Modelo 3) referente ao ano de 2004, conforme obrigação decorrente do Art.º 57.º do CIRS, em 25.05.2005.

4. Na declaração entregue pelos arguidos na Repartição de Finanças de Palmela, apenas foram declarados rendimentos obtidos pelo sujeito passivo A., nomeadamente rendimentos de trabalho dependente, no Anexo A, no valor de €28.649,40 e rendimentos de trabalho dependente, no Anexo B, referente a prestações de serviços no valor de €35.516,07.

5. Do cruzamento dos valores declarados no Modelo 3 com os valores declarados pelas entidades patronais dos dois arguidos, no âmbito do Modelo 10, Anexo J, da Declaração Anual, obrigação prevista no Art.º 119.º/ n.º 1/ alínea c) do CIRS, foi possível apurar que:

- a arguida B não declarou rendimentos de trabalho dependente no valor de €85.006,05, que lhe foram pagos, no ano de 2004, pela Câmara Municipal de Castelo de Vide;

- o arguido A não declarou rendimentos provenientes da categoria B, Modelo 6, conforme recibos verdes emitidos e recebidos no ano de 2004, no valor de €7251,08.

6. Ficou, assim, por entregar à Fazenda Nacional, imposto no montante total de €32.203,46, valor este apurado através da quantificação dos rendimentos ocultados.

7. Com esta conduta, os arguidos enquanto sujeitos passivos que compõem o mesmo agregado familiar, obtiveram uma vantagem patrimonial ilícita no valor de €32.203,46, imposto este, resultado da ocultação de rendimentos perante a Administração Fiscal.

8. Assim, agiram os arguidos voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei, que tinham a obrigação legal em sede de IRS de declarar à Fazenda Nacional todos os rendimentos provenientes do trabalho, realizado no ano de 2004, tendo assim obtido, através das suas condutas, uma vantagem e enriquecimento patrimonial indevido no montante de €32.203,46, montante com que se locupletaram e utilizaram em proveito próprio.

9. Pelo que, bem sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

10. A arguida quando recebeu o montante de € 85.006,05, que lhe foram pagos, no ano de 2004, pela entidade pagadora de rendimentos, em virtude da anulação de uma decisão de aposentação compulsiva, perguntou à sua advogada se teria que declarar tais montantes ao que esta respondeu que não.

11. A Câmara Municipal de Castelo de Vide emitiu uma declaração para efeitos de IRS no montante de €85.006,05 e enviou em nome da arguida B para a morada...., Setúbal.

12. A arguida não recebeu a declaração da Câmara Municipal de Castelo de Vide uma vez que já não residia na morada aí indicada.

13. O montante de imposto liquidado, com recurso aos montantes não declarados, e não pago pelos arguidos deu origem a processo de execução fiscal que culminou na venda de um imóvel propriedade dos arguidos.

14. Para pagamento da dívida fiscal, a Fazenda Nacional vendeu judicialmente a casa de habitação dos arguidos.

15. Os arguidos instauraram acção de anulação da venda da sua casa de habitação pela Fazenda Nacional, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.

16. O arguido é médico-cirurgião, trabalha para empresas de medicina do trabalho e para o Serviço Nacional de Saúde.

17. A arguida é psicóloga, mas não exerce a sua actividade profissional.

18. O arguido é casado com a arguida e vivem juntamente com três filhos.

19. O arguido tem mais dois filhos de outro casamento e paga pensão de alimentos para os dois filhos.
20. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

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B.1.2 - Não há factos não provados.
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B.1.3 - E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:

“A convicção do Tribunal em relação aos factos provados e não provados acima descritos fundou-se no conjunto da prova, junta aos autos, apreciada criticamente à luz das regras da experiência comum e da nossa livre convicção, nos termos do disposto no Art.º 127.º do Código de Processo Penal e a prova produzida em sede de audiência de julgamento.

Teve, assim, o Tribunal em consideração as declarações prestadas pelo arguido A, que em parte mereceram alguma credibilidade, referindo o mesmo ao tribunal que não teve intenção de provocar danos ao Estado. Tinha uma pessoa que o ajudava a preencher a declaração de IRS e não foram declaradas duas verbas, no valor total de €7251,00 respeitantes a recibos verdes, houve um lapso da pessoa que o ajudava a tratar do IRS e o arguido esqueceu-se de lhe entregar a caderneta dos recibos verdes.

Não se recorda se foi notificado pelas finanças para rectificar a declaração de IRS. Mas foi-lhe concedido um prazo para pagar o que devia ao Estado, mas os seus rendimentos não lhe permitem pagar a dívida ao fisco, porque tem cinco filhos e paga duas pensões de alimentos. Entretanto, a sua casa de habitação foi penhorada pelo fisco e foi vendida, mas foi intentada uma acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada para anular a venda da casa.

Mais esclareceu que nos anos anteriores ao ano de 2004, o arguido já auferia os mesmos rendimentos do Serviço Nacional de Saúde e das entidades privadas.

Pela arguida B foi referido ao tribunal que recebeu o montante de €85.006,05, porque teve um processo disciplinar na Câmara Municipal de Castelo de Vide, entretanto recorreu para o Tribunal Administrativo de Coimbra e ganhou o processo e o dinheiro que recebeu foi uma parte remuneração, porque esteve a trabalhar sem receber, e a outra parte foi paga a título de indemnização e foi-lhe informado pela advogada que tratou do processo que não era necessário declarar esse rendimento em sede de IRS.

As declarações da arguida mereceram alguma credibilidade, no entanto não ficou convencido o tribunal que a arguida não declarou o valor recebido, porque foi informada que não tinha que o declarar, desde logo, porque a arguida foi notificada pelo fisco, para regularizar a situação, mas não o fez até à presente data.

Teve ainda o Tribunal em consideração o depoimento da testemunha C, Inspectora Tributária, a qual prestou declarações de forma isenta, escorreita e credível, relatando ao Tribunal que elaborou o parecer técnico constante dos autos, tendo tratado a informação recolhida. A mesma esclareceu o Tribunal que houve ocultação de rendimentos sujeitos a IRS. O arguido A ocultou rendimentos sujeitos a recibos verdes, no montante total de cerca de €7.251,08. A arguida B ocultou uma indemnização de €85.006,05 que está sujeita a tributação em sede de IRS, nos termos do Art.º 2.º/ n.º 3 do CIRS, indemnização essa que lhe foi paga pela Câmara de Castelo de Vide.

Mais disse que a fls. 133 dos autos consta uma declaração emitida pela Câmara Municipal de Castelo de Vide, na qualidade de entidade patronal da arguida, a atestar que pagou o valor nela aposto. A indemnização foi paga alguns anos depois do exercício do trabalho, logo está correcto não ter sido tributado o imposto pela Câmara Municipal, não havendo qualquer retenção na fonte.

Mais esclareceu a inspectora tributária que, o valor respeitante à indemnização tinha que ser declarado em sede de IRS para ser tributado e que nos recibos da entidade patronal está explicado a que se referem os pagamentos, dando como exemplo o caso do subsídio de alimentação que não é tributado e isso foi tido em consideração pelo fisco. Todo o valor da indemnização foi englobado para ser tributado.

Referiu também que houve um pagamento coercivo de €11.000,00 respeitante a juros e para o valor restante foi executado um bem imóvel, mas entretanto deu entrada no Tribunal Administrativo de Almada uma acção de anulação da venda da casa. O valor do capital em dívida é de €32.000,00.

O tribunal teve ainda em consideração o ofício, constante de fls. 274, enviado pela Câmara Municipal de Castelo de Vide que especifica os valores que pagou à arguida e a que título, constando do mesmo que foram pagos no ano de 2004, os seguintes montantes:

- € 24.686,79 a título de encargos do pagamento do vencimento de 2002 e 2003;

- € 6331,26 para pagamento de subsídio de férias e de natal de 2002 e 2003 e férias não gozadas de 2003;

- € 1228,39 a título de subsídio de refeição de 2002 e 2003;

- € 27.454,93 para pagamento de parte de indemnização a pagar conforme acordo de 20.05.2004;

- € 26.553,07 para pagamento de parte da indemnização a pagar conforme o acordo de 20.05.2004.

Os restantes € 15.147,03 foram pagos no ano de 2003.

Mais considerou o tribunal para o apuramento dos factos provados, o auto de notícia elaborado pela Divisão de inspecção tributária III, da Direcção de Finanças de Setúbal, constante de fls. 36 a 37 dos autos, resultando do mesmo que os arguidos, não obstante terem entregue a declaração modelo 3 de IRS, omitiram no ano fiscal de 2004, ao não terem declarado no anexo A, rendimentos do trabalho dependente no valor de €85.006,05 relativamente à arguida B e no anexo B, prestações de serviços no valor de €7.251,08, relativamente ao arguido A.

Constam também dos presentes autos os recibos verdes, emitidos pelas entidades para as quais o arguido A prestou serviços e que não foram declarados na declaração de IRS, respeitante ao ano de 2004, apresentada pelos arguidos.

Pelo tribunal foi também tido em consideração o Parecer elaborado pelo Núcleo de Investigação Criminal da Direcção de Finanças de Setúbal, constante de fls. 200 a 207, do qual consta que os arguidos procederam à entrega da declaração de IRS, vulgar declaração Modelo 3, referente ao ano de 2004, conforme obrigação decorrente do Art.º 57.º do CIRS, em 25.05.2005. Na declaração entregue apenas foram declarados rendimentos obtidos pelo sujeito passivo A. O mesmo declarou rendimentos de trabalho dependente, no Anexo A no valor de €28.649,40 e rendimentos de trabalho independente, no Anexo B, referente a prestações de serviços de €35.516,07.

Do cruzamento dos valores declarados no Modelo 3 com os valores declarados pelas entidades patronais no designado Modelo 10, Anexo J da Declaração Anual, obrigação prevista na alínea c) do n.º 1 do Art.º 119.º do CIRS, verificaram os Serviços de Inspecção que B não declarou rendimentos de trabalho dependente no valor de €85.006,05 e que o sujeito passivo A não declarou rendimentos provenientes da categoria B, recibos modelo 6, vulgarmente designados por recibos verdes, no valor de €7.251,08. Desta correcção resulta imposto a entregar ao Estado no valor de €32.203,46.

Resulta ainda do Parecer, a fls. 203 dos autos, que a arguida B em sede de inspecção tributária foi confrontada com a obrigação declarativa e de pagamento do montante apurado a título de imposto de €32.203,46, tendo sido remetida correspondência para o seu domicílio fiscal para o efeito e mesmo assim, não corrigiu a arguida de forma voluntária os valores declarados até à emissão do parecer.

Relativamente ao arguido A é referido no Parecer que a sua conduta é semelhante à da arguida B, na medida em que em sede de acção inspectiva o arguido foi informado que a sua conduta constituía uma forma de evasão fiscal e até à emissão do parecer o arguido nada fez para repor os danos causados à Administração Fiscal.

Conclui o parecer, a fls. 205, que a correcção aos rendimentos declarados com base na prova documental junta gerou, conforme liquidação junta ao inquérito um imposto a entregar nos cofres do estado no montante de €32.203,46, montante este para o qual se encontra instaurado no Serviço de Finanças de Palmela, o Processo Executivo n.º 2208200901006630 com vista à cobrança da dívida que ascende a €38.825,10 com juros compensatórios incluídos.

Resulta ainda da prova documental junta aos autos, corroborada pelas declarações da testemunha C, inspectora tributária, que a casa de habitação dos arguidos foi vendida judicialmente para pagamento da dívida fiscal, mas entretanto os arguidos intentaram acção de anulação da venda no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.

O tribunal considerou, deste modo, que resultou provado que o arguido A e a arguida B procederam à entrega da declaração de IRS, vulgar Declaração Modelo 3, referente ao ano de 2004, conforme obrigação decorrente do Art.º 57.º do CIRS, em 25.05.2005.

Na sobredita declaração apenas foram declarados rendimentos obtidos pelo arguido A. O mesmo declarou rendimentos de trabalho dependente no Anexo A, no valor de €28.649,40 e rendimentos de trabalho independente, no Anexo B, referente a prestação de serviços de €35.516,07.

Efectuado o cruzamento dos valores declarados no Modelo 3 com os valores declarados pelas entidades patronais no designado Modelo 10, Anexo J, da Declaração Anual, obrigação prevista na alínea c) do n.º 1 do Art.º 119.º do CIRS, verificaram os Serviços de Inspecção que a arguida B não declarou rendimentos de trabalho dependente no valor de €85.006,05 e que o arguido A não declarou rendimentos provenientes da categoria B, recibos modelo 6, vulgarmente designados por recibos verdes no valor de €7.251,08. Resulta, assim, da correcção dos rendimentos, o apuramento do valor de €32.203,46 a título de imposto.

Considerou também provado o tribunal que o arguido A. omitiu o valor de €7.251,08, intencionalmente, sabendo perfeitamente o arguido que tinha recebido esse valor a título de serviços prestados e que nessa medida estava obrigado a declarar esse valor à administração tributária.

Não acreditou o tribunal na versão que o arguido apresentou em sede de julgamento no sentido de que se esqueceu de entregar a caderneta dos recibos verdes à pessoa que o ajudava a preencher a declaração de IRS, até porque, conforme o próprio arguido referiu ao tribunal, já nos anos anteriores à data dos factos em causa nestes autos, o arguido já auferia os mesmos rendimentos do Serviço Nacional de Saúde e das entidades privadas.

Pelo que, o arguido sabia perfeitamente qual o montante global que devia declarar na declaração de IRS respeitante ao ano de 2004, já que nos anos anteriores os rendimentos que auferiu tinham sido os mesmos, conforme declarou o arguido.

No que tange à conduta da arguida B, o Tribunal considerou que resultou provado que a mesma não declarou rendimentos de trabalho dependente no valor de €85.006,05, conforme já se aludiu supra, formando o tribunal a sua convicção com base quer nas declarações da arguida que confirmou ao tribunal que recebeu da Câmara Municipal de Castelo de Vide essa importância, sendo que esta entidade patronal veio esclarecer o tribunal que o valor de €85.006,05 dizem respeito, mais especificamente a: €24.686,79 foram pagos a título de encargos do pagamento do vencimento dos anos de 2002 e 2003; o valor de €6.331,26 para pagamento de subsídios de férias e de natal de 2002 e 2003 e férias não gozadas de 2003; €1228,39 a título de subsídio de refeição de 2002 e 2003; €27.454,93 foram para pagamento de parte de indemnização a pagar conforme o acordo de 20.05.2004; €26.553,07 foram para pagamento de parte de indemnização a pagar conforme o acordo de 20.05.2004; os restantes €15.147,03 foram pagos no ano de 2003.

O tribunal não deu qualquer relevância ao facto de a arguida alegar em sede de audiência de julgamento que desconhecia que tinha que declarar o rendimento de €85.006,05, em virtude de ter sido informada por uma advogada que a isso não estava obrigada. Este argumento não vence, e desde logo não vence, porque conforme consta do auto de notícia elaborado pelo serviço de finanças e do parecer elaborado pela inspectora tributária, a arguida foi informada pela administração tributária que estava em falta a declaração desse rendimento, mas ainda assim a arguida nada fez para suspender o processo tributário, desembocando o processo na venda judicial da casa dos arguidos, a qual foi concretizada conforme documentos constantes dos autos, no entanto os arguidos intentaram acção de anulação da venda do imóvel no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.

Alegou ainda a arguida em sede de julgamento que o valor que recebeu da Câmara Municipal de Castelo de Vide, no montante de €85.006,05, não está sujeito a tributação em sede de IRS, nos termos do Art.º 2.º/ n.º 4 do CIRS.

Analisada a liquidação de IRS elaborada pela Direcção de Finanças de Setúbal, demonstrada a fls. 200 a 206 dos presentes autos, o tribunal considerou como válida e fundamentada a liquidação de imposto efectuada, à luz do Art.º 2.º/ n.º 4 do CIRS, tendo sido apurado o imposto no valor de €32.203,46 (trinta e dois mil, duzentos e três euros, quarenta e seis cêntimos).

A arguida agiu com intenção de ocultar o montante de €85.006,05, na medida em que a mesma foi avisada pelo serviço de finanças que não foi declarado esse montante na declaração de IRS e que estava legalmente obrigada a fazê-lo, pelo que não vinga o argumento que desconhecia que tal rendimento estava sujeito a tributação em sede de IRS. Se a arguida não declarou esse rendimento foi porque, simplesmente, não o quis fazer.

Relativamente às condições socioeconómicas teve o Tribunal em consideração as declarações prestadas por ambos os arguidos.

No que tange à ausência de antecedentes criminais dos arguidos teve o tribunal em consideração os Certificados de Registo Criminal dos arguidos constantes dos autos”.
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B.2 – Cumpre conhecer.
Este tribunal da Relação tem competência para conhecer de facto e de direito (Artigo 428.º do Código de Processo Penal).

Como é sabido, a impugnação ampla da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal, a incidir sobre os erros de julgamento e sobre a prova produzida em audiência de julgamento, apresenta quatro pressupostos essenciais aplicáveis ao caso concreto:

a) – A observância pelo recorrente do ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância – al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

b - A especificação das provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam. Não apenas o relativo do “possível”, sim o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção - al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

c) - Por referência ao consignado em acta, esta entendida em sentido amplo e aqui com o significado de “gravações” sonoras, com indicação concreta das passagens em que assenta a fundamentação, por impossibilidade de beneficiar da oralidade e da imediação - nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal;

d) - a reponderação de facto pela Relação não constitui um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;

Em resumo, ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só é possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º].

A recorrente indica dois tipos de prova a fundar a sua impugnação factual: pessoal (testemunha) e real (documentos).

Quanto à primeira, a testemunha inquirida, a recorrente limita-se a afirmar a sua falta de credibilidade, olvidando o impugnar concreto do seu depoimento.

Como se afirma no acórdão do STJ de 15-12-2005 (Proc. 2.951/05, sendo relator o Cons. Simas Santos) (IV) “se o recorrente impugna somente a credibilidade da testemunha deve indicar os elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, pois ela, quando estribada em elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova e logo reexaminada em recurso.”.

Ou seja, “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” – Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 Março 2002 (Relator: Santos Cabral, Processo 3580/01).

Ora, a recorrente não cumpriu nenhum dos ónus a que se encontrava obrigada relativamente ao depoimento testemunhal, pelo que o tribunal de recurso – com este fundamento probatório – não pode alterar a matéria de facto.

Já o poderá fazer com fundamento nos documentos indicados pela recorrente e constantes dos autos na medida em que a sua análise, associada ao texto da decisão recorrida, às regras da experiência comum e às presunções naturais, o permita.

Assim, cumprirá apreciar, face às conclusões da recorrente:

1 - Da nulidade da decisão, designadamente por omissão de pronúncia quanto a questões suscitadas no processo;

2 – Do erro na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal;

3 – Da contradição entre a fundamentação e a decisão nos termos do disposto no artigo 410º, nº 2, al. b) do Código de Processo Penal;
*
B.3 – É inatacável a apreciação de direito efectuada pelo tribunal recorrido em sede de subsunção da conduta ao tipo penal em presença.

De facto, a comprovar-se a conduta dos arguidos a mesma é punível pelo artigo 103.º, nº 1, als. a) e b) do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias - Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 60-A/2005, de 30/12), segundo o qual “constitui fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, por (a) ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar ……. das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável, ou (b) ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária”.

Também não oferece dúvidas que os arguidos estavam vinculados ao dever declarativo previsto no artigo 57º do CIRS na redacção do Decreto-Lei n. 198/2001, de 3 de Julho, sendo certo que a situação dos autos já demonstra que os arguidos não estavam dispensados de declarar, conforme se deduz da letra do artigo 58º do mesmo diploma.

Isto - este dever de declarar - não abrange, no entanto, aquilo que a legislação fiscal (no caso o artigo 2º, nº 4 do CIRS) estatuir não ser tributável.

Daí que duvidemos que esse dever declarativo seja óbvio relativamente a todas as quantias auferidas pela arguida e, por via disso, que o tribunal recorrido dispusesse – e o processo já disponha - de todos os factos necessários a uma decisão de direito.

Quer-nos parecer que o regime jurídico fiscal aplicável ao caso sub judicio é o resultante do disposto nos artigos 57º, 58º e 2º, nº 1 e 3, al. e), 4, 5, 6 e 7 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), com a redacção dada a esses preceitos pelo Decreto-Lei n. 198/2001, de 3 de Julho, na estrita medida em que a Lei nº 16-A/2002, de 31 de Maio - e no que refere a tais normativos - apenas alterou o nº 13 do artigo 2º daquele Código.

De qualquer forma, vigente à data da prática dos factos na definição do regime dos rendimentos do trabalho dependente é a constante desse diploma, que se transcreve:

Artigo 2.º
Rendimentos da categoria A

1 — Consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de:

a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;

3 — Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente:
…..
e) Quaisquer indemnizações resultantes da constituição, extinção ou modificação de relação jurídica que origine rendimentos do trabalho dependente, incluindo as que respeitem ao incumprimento das condições contratuais ou sejam devidas pela mudança de local de trabalho, sem prejuízo do disposto no nº 4;
…..
4 — Quando, por qualquer forma, cessem os contratos subjacentes às situações previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 1, mas sem prejuízo do disposto na alínea d) do mesmo número, quanto às prestações que continuem a ser devidas mesmo que o contrato de trabalho não subsista, ou se verifique a cessação das funções de gestor, administrador ou gerente de pessoa colectiva, as importâncias auferidas, a qualquer título, ficam sempre sujeitas a tributação na parte que exceda o valor correspondente a uma vez e meia o valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses, multiplicado pelo número de anos ou fracção de antiguidade ou de exercício de funções na entidade devedora, salvo quando nos 24 meses seguintes seja criado novo vínculo profissional ou empresarial, independentemente da sua natureza, com a mesma entidade, caso em que as importâncias serão tributadas pela totalidade.
5 – …

6 — O regime previsto no nº 4 não é aplicável às importâncias relativas aos direitos vencidos durante os referidos contratos ou situações, designadamente remunerações por trabalho prestado, férias, subsídios de férias e de Natal.

7 — As importâncias referidas no nº 4 serão também tributadas pela totalidade quando o sujeito passivo tenha beneficiado, nos últimos cinco anos, da não tributação total ou parcial nele prevista.
8 - …
…..
14 - …..”

Ora, é no âmbito de aplicação concreta desta norma que a arguida vem a arguir todos os vícios que constam do seu recurso.

No essencial, o seu argumentário substancial resume-se nas suas conclusões 4ª a 7ª:

4 – De harmonia com o artigo 2º, nº 4, alínea b) do CIRS, com a redacção vigente à data, não estavam sujeitos a tributação os valores indemnizatórios que não excedessem 1,5 do valor médio das retribuições sujeitas a imposto, multiplicado pelo número de anos ou fracção de antiguidade. Considerando tal regra, e levando em conta que a arguida foi admitida em 1996, temos que estaria isenta de tributação qualquer indemnização que não excedesse o valor de, aproximadamente, €111.000,00.

5 – Deduzindo o valor da indemnização da verba oficiosamente inscrita como rendimento do trabalho da arguida (€85.006,05), resulta um saldo de €31.018,05, que constitui o valor de rendimentos correcto e que deveria constar da declaração oficiosa de correcção, efectuada pela Administração Fiscal.

6- Tendo em consideração esse rendimento, e procedendo a nova liquidação respeitante ao agregado familiar, obtém-se um valor de imposto a pagar de € 13.281,56.

7 – Esse montante não atinge patamar de punibilidade do crime p. e p. no artigo 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Assim, essencial se torna apurar, sem sombra de dúvidas, quais as quantias que são devidas a título de “quaisquer indemnizações resultantes da constituição, extinção ou modificação de relação jurídica que origine rendimentos do trabalho dependente”, porquanto só essas estão sujeitas ao regime mais favorável resultante do número quatro do preceito, quantias que estarão excluídas de tributação e do dever de declaração caso não atinjam o limite ali previsto, o “uma vez e meia o valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses, multiplicado pelo número de anos ou fracção de antiguidade ou de exercício de funções na entidade devedora”.

E, temos que reconhecer, nem a decisão recorrida contém todos os factos necessários à aplicação da citada norma, nem a sua apreciação crítica factual e de direito permite perceber como foi tal norma aplicada (melhor diríamos, desaplicada na passagem ao caso concreto, não obstante claramente referida pelo tribunal recorrido em tese geral) por referência aos valores pagos à arguida em 2004.

Assim, a indemnização recebida pela arguida e resultante da extinção da relação jurídica que originou rendimentos do trabalho dependente só estará sujeita a tributação na parte que exceda o valor correspondente a “uma vez e meia o valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses, multiplicado pelo número de anos ou fracção de antiguidade ou de exercício de funções na entidade devedora”.

Ora, estes são elementos que o tribunal recorrido não apurou e não levou aos factos provados, sendo essenciais para a aplicação da norma.

Desde logo a antiguidade da arguida na Câmara Municipal de Castelo de Vide, já que só é possível a aplicação do nº 4 daquele preceito sabendo a sua antiguidade. [2]

Ora, daqui decorre a necessidade de estabelecer de forma clara, em sede factual, a antiguidade da arguida e a natureza dos pagamentos efectuados, bem com o seu montante nos doze meses anteriores à cessação do vínculo laboral.

É certo que o tribunal recorrido faz referência a (parte, supõe-se, de) tais montantes na sua fundamentação factual ao referir que a Câmara Municipal de Castelo de Vide “especifica os valores que pagou à arguida e a que título, constando do mesmo que foram pagos no ano de 2004, os seguintes montantes:

- € 24.686,79 a título de encargos do pagamento do vencimento de 2002 e 2003;

- € 6331,26 para pagamento de subsídio de férias e de natal de 2002 e 2003 e férias não gozadas de 2003;

- € 1228,39 a título de subsídio de refeição de 2002 e 2003;

- € 27.454,93 para pagamento de parte de indemnização a pagar conforme acordo de 20.05.2004;

- € 26.553,07 para pagamento de parte da indemnização a pagar conforme o acordo de 20.05.2004.

Os restantes € 15.147,03 foram pagos no ano de 2003.

Ou seja, os factos foram apreciados na audiência de julgamento mas, não obstante decisivos para a conformação jurídica do caso e invocados pela defesa, não foram levados aos factos provados, sim à motivação de facto.

Isto é, parte dos “factos” determinantes para a solução jurídica encontrada estão “escondidos” na motivação factual.

Haverá, pois, que levar aos factos provados as quantias pagas e sua natureza, excluindo o montante devido a título de subsídio de refeição (não tributável) e corrigindo o montante devido a título de indemnização (26.533,07 € e não 26.553,07 € [3]), sem que daí resultem quaisquer limitações de carácter processual, na medida em que invocados pela defesa.

Assim, haverá que colocar os “factos” no local próprio e atribuir-lhes essa natureza de “factos provados” – facto provado e não considerando factual (e não se trata de simples formalismo, mas de ponto essencial na economia dos autos) – como de fundamentar devidamente porque razão eles lá surgem, algo que este tribunal pode fazer já que os autos contêm a prova necessária.

Esta fundamentação terá que se reconduzir à documentação recebida da Câmara Municipal de Castelo de Vide, documento de fls. 274 (ofício da CMCV) e documentos de fls. 158 a 175.

Haverá que levar, portanto, aos factos provados:

“Em 2004 a CMCV pagou à arguida, pelo menos, os seguintes montantes com reflexo fiscal:

- 24.686,79 € a título de encargos do pagamento do vencimento de 2002 e 2003;

- 6331,26 € para pagamento de subsídio de férias e de natal de 2002 e 2003 e férias não gozadas de 2003;

- 27.454,93 € para pagamento de parte de indemnização a pagar conforme acordo de 20.05.2004;

- 26.533,07 € para pagamento de parte da indemnização a pagar conforme o acordo de 20.05.2004.
Num total de 85.006,05 €”.

Mas falta determinar ainda, com a devida certeza judicial, “o valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses”, tal como previsto naquele número 4 do artigo 2º do CIRS.

Dois factos – antiguidade relevante e valor médio das remunerações – que se impõe apurar e cuja ausência não permite a decisão de direito.
*
B.4 – Desta forma se conclui que outro será o vício contido na sentença recorrida, o de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, este contido na al. a) do nº 2, do artigo 410º do Código de Processo Penal.

E, porque assim é, não há que curar de uma eventual nulidade de sentença por omissão de pronúncia, já que considerar tal vício sempre imporia a ficção de considerar como provados todos os factos essenciais para a decisão da causa.

Pela mesma razão se torna despiciendo falar em erro na apreciação da prova.

Não há, pois, que reduzir a censura ao tribunal recorrido à mera nulidade a que seria aplicável o nº 3 do artigo 410º do Código Penal, sim censurá-lo em sede de apreciação e fundamentação probatória.

Destarte, não se trata de declarar nulo o acórdão recorrido sim, nos termos do artigo 426º, nº 1 do Código de Processo Penal – e não sendo possível decidir da causa – de determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente a parte do objecto do processo, julgamento esse a efectuar nos termos do artigo 426º -A do Código de Processo Penal.

Naturalmente que este Tribunal considerou a possibilidade de atender à “liquidação” de fls. 320, ficcionada pelos serviços de finanças a pedido - e bem - do tribunal recorrido, que reconduziria estes autos a uma pura e simples absolvição criminal por aplicação do disposto no artigo 103º, nº 2 do RGIT, na redacção dada pela Lei nº 60-A/2005, de 30-12, como bem referido pelo tribunal recorrido.

Mas se é certo que podemos já considerar errada a liquidação efectuada pelos serviços de finanças de Setúbal no montante de 32.203,46 € e constante de fls. 185-188, porque nela se incluiu a totalidade dos montantes auferidos a título de indemnização pela cessação do vínculo laboral, também não podemos considerar como já intocável a liquidação ficcionada de fls. 320 por desconhecermos a sua antiguidade e o total auferido pela arguida nos 12 meses anteriores à cessação do vínculo laboral.

Apurados esses dois dados, caberá ao tribunal recorrido decidir se estará correcta a liquidação de fls. 320 ou se será de solicitar àqueles serviços de finanças nova liquidação em função dos valores de indemnização - já apurada num montante global de 53.988,00 € (27.454,93 € + 26.533,07 €) – e que neste momento não é possível determinar se será de excluir totalmente da liquidação (se for inferior a uma vez e meia o valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses pela arguida) ou se será de incluir na parte em que exceder aquele limite.

Estabelecer estes factos revela-se essencial para apurar do âmbito do dever declarativo e da aplicabilidade do nº 2 do artigo 103º do RGIT e, assim, da punibilidade criminal da conduta.

Admitindo que a impugnação da liquidação melhor seria se efectuada no próprio processo executivo tributário, nada obsta à sua consideração nestes autos no âmbito do direito de defesa dos arguidos, que se não exclui por via da eventual existência daquele processo, e se revela determinante para apurar da punibilidade da conduta.

Destarte, não obstante por razões diversas das invocadas pela recorrente, é procedente o recurso interposto, já que as restantes questões suscitadas supõem a prévia resolução deste vício e, como tal, ficam prejudicadas.

***
C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso e, em consequência:

a) - Dão como provado:

“Em 2004 a CMCV pagou à arguida, pelo menos, os seguintes montantes com reflexo fiscal:

- 24.686,79 € a título de encargos do pagamento do vencimento de 2002 e 2003;

- 6.331,26 € para pagamento de subsídio de férias e de natal de 2002 e 2003 e férias não gozadas de 2003;

- 27.454,93 € para pagamento de parte de indemnização a pagar conforme acordo de 20.05.2004;

- 26.533,07 € para pagamento de parte da indemnização a pagar conforme o acordo de 20.05.2004.
Num total de 85.006,05 €”;

b) - Apresentam como fundamentação factual os documentos de fls. 274 (ofício da CMCV) e documentos de fls. 158 a 175;

c) - Determinam o reenvio do processo para novo julgamento relativamente a parte do objecto do processo - a parte relativa ao apuramento dos factos necessários à aplicação do disposto no número 4 do artigo 2º do CIRS, designadamente, a antiguidade da arguida e a natureza dos pagamentos efectuados, bem com o seu montante nos doze meses anteriores à cessação, isto é, “o valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses”, tal como previsto naquele número 4 do artigo 2º do CIRS - ao abrigo do disposto nos artigos 410º, nº 2, al. a) e 426º e 426º - A do Código de Processo Penal.

Sem custas (elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Évora, 20 de Novembro de 2012

João Gomes de Sousa

Ana Bacelar Cruz

[1] - Sumariado pelo relator

[2] - Refere o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 11-05-2004 (Processo nº 06002/01 - Contencioso Tributário) que:

1. “O art. 2º nº 4 do CIRS prevê um regime especial de tributação que beneficia as importâncias atribuídas pela cessação do vínculo laboral ou pela cessação do exercício de funções de gestor, administração ou gerência, excluindo de tributação uma determinada quantia calculada com base na antiguidade ou no número de anos de exercício daquelas funções.

2. Porque a antiguidade constitui um conceito laboral, é no direito laboral que deve procurar-se a solução da questão de saber a antiguidade estabelecida no contrato de trabalho se impõe apenas inter partes, não obrigando terceiros, ou se ela se impõe também à A. Fiscal para efeitos de aplicação do art. 2º nº4 do CIRS, sabido que constitui doutrina corrente (actualmente consagrada no art. 11º da LGT) que sempre que nas normas fiscais se empreguem termos próprios de outros ramos do direito, devem os mesmo ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.

3. O direito laboral prevê um conceito amplo de antiguidade ao permitir que seja tomado em linha de conta o tempo de serviço e a categoria já alcançados noutras entidades patronais, por forma a que ele seja admitido sem prejuízo da antiguidade ali adquirida, pois que tal não é proibido nem pelas normas referidas no nº 1 do art. 12º da LCT nem pelos princípios da boa fé, sendo uma prática atendida nalguns Instrumentos de Regulamentação Colectiva e Trabalho e nos usos da profissão do trabalho e das empresas.

[3] - “O código EUR ou o símbolo € colocam-se depois do montante, separados por um espaço. Esta regra aplica-se a todas as línguas com excepção do inglês cujo código vem antes do montante”. Guia de estilo - Centro de Informação Europeia Jacques Delors, in http://ftp.infoeuropa.eurocid.pt/database/000021001-000022000/000021583.pdf#page=15, 12-11-2012, pelas 08.39.