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BURLA TRIBUTÁRIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
Sumário
I – O crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87.º do RGIT, exige, para o seu preenchimento, um comportamento activo do agente, não se bastando com conduta omissiva do mesmo. II – Ao agente que, depois de lhe ter sido legitimamente concedido o subsídio de desemprego pelos Serviços da Segurança Social e passando a recebê-lo, não comunicou posteriormente a alteração das condições que estiveram na base da concessão desse subsídio, apenas pode ser imputada contra-ordenação por preterição da obrigação legal dessa comunicação nos termos dos arts. 42.º e 64.º do Dec. Lei n.º 220/2006, de 03.11.
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I
O Ministério Público deduziu acusação e requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, do arguidoA, (melhor identificado a fls. 48), a quem imputou a prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, doravante designado por RGIT), com base nos seguintes factos:---
“1- O arguido entregou nos Serviços da Segurança Social no dia 3/11/2009, um requerimento de “Prestações de Desemprego”, anexando ao mesmo declaração emitida pela sua anterior entidade patronal, certificando que o que motivou o seu estado de desemprego foi “cessação por caducidade de contrato de termo certo.
2- Com a entrega destes documentos na Segurança Social, o arguido comunicou perante os Serviços daquela entidade uma situação de desemprego total e involuntário, constituindo-se o arguido, consequentemente, no direito de receber dos Serviços de Segurança Social quantias monetárias a título de “subsídio social de desemprego”.
3- Passando então o arguido a receber mensalmente as respectivas prestações
da Segurança Social e a esse título.
4- No dia 15/10/2010 e no âmbito de uma acção de fiscalização, o arguido foi
identificado no estabelecimento denominado “BAR BANK” em Albufeira, por aí se encontrar a exercer uma actividade profissional remunerada, como “Porteiro de 1ª”,desde 18/03/2010, recebendo como contrapartida da sua actividade a retribuição mensal de 800€.
5- Permitiu-se assim o arguido, a partir do dia 18/03/2010, com a sua conduta, receber indevidamente as prestações relativas ao Subsídio Social de Desemprego, enquanto simultaneamente, auferia a remuneração relativa à prestação da sua actividade profissional como “Porteiro de 1ª”, no estabelecimento denominado “BAR BANK”.
6- Criando na Administração da Segurança Social a convicção que a sua situação de desemprego ainda se mantinha, quando na verdade ela já não existia.
7- Com esta encenação, logrou o arguido receber assim indevidamente, de Março a Outubro de 2010 e a título de Subsídio Social de Social de Desemprego, a quantia de 5.335,86 € da Administração da Segurança Social.
8- O arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente.
9- Bem sabia que enquanto estivesse a receber prestação de subsídio social de
desemprego não podia desempenhar qualquer actividade profissional remunerada.
10- Todavia, tendo retomado a sua actividade de trabalho remunerado, o arguido não comunicou tal facto à Segurança Social, como sabia estar obrigado, o que fez com que esta entidade continuasse a processar e a entregar-lhe quantias em dinheiro correspondentes ao subsídio social de desemprego.
11. Durante tal encenação, o arguido estava ciente que não tinha qualquer direito a receber subsídio social de desemprego e que em consequência do seu comportamento iria levar a Segurança Social a entregar-lhe quantias em dinheiro, assim conseguindo apoderar-se das mesmas e integrá-las no seu património, o que efectivamente aconteceu.
12- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.”.---
Na sequência da notificação da acusação, o arguido veio requerer a abertura da instrução tendo em vista a suspensão provisória do processo, pelo período máximo de 2 anos, com a obrigação de demonstrar nos autos o reembolso integral da quantia de € 5.335,86.---
Porém, realizada aquela, o Mmº Juiz de Instrução veio a proferir decisão de não pronúncia, por entender não se verificarem suficientes indícios da prática pelo arguido dos factos descritos na acusação e do crime que lhe foi imputado.---
Inconformado com tal decisão, o Digno Magistrado do Ministério Público veio interpor recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que aprecie a suspensão provisória do processo, obtida que está a concordância do Ministério Público, do arguido e da assistente, ou na eventualidade do Mmº Juiz de Instrução do Tribunal a quo entender que não estão verificados os pressupostos daquele instituto, que pronuncie o arguido pelo crime aqui em causa e nos precisos termos em que foi acusado pelo Ministério Público, mandando-se depois prosseguir os autos para julgamento, concluindo a sua motivação recursiva nos termos seguintes:---
“1 - A douta decisão instrutória proferida pelo Mmº JIC do Tribunal “a quo” enferma do vício de incorrecta interpretação do direito aplicável ao caso concreto.
2 - O crime de burla tributária, previsto no art.º 87º do Regime Geral das Infracções Tributárias, não é refractário à conduta por omissão, desde que se encontrem verificados os pressupostos do art.º 10º do Código Penal.
3 - A conduta omissiva do beneficiário do subsídio de desemprego, por via da não comunicação da alteração das condições que estiveram por base na atribuição do respectivo subsídio, configura um meio fraudulento adequado e idóneo para determinar a administração da segurança social a representar uma realidade inexistente, para os efeitos do preceituado no art.º 87º, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias.
4 - Sobre o beneficiário do subsídio de desemprego, impende o especial dever jurídico de comunicar à administração da segurança social qualquer facto susceptível de determinar a cessação do pagamento das prestações do subsídio de desemprego.
5 - O especial dever jurídico de comunicar à administração da segurança social, qualquer facto susceptível de determinar a cessação do pagamento das prestações do subsídio de desemprego, nos termos do preceituado no art.º 42º, nº 2, alí. a), b) e c), do Decreto-lei nº 220/2006, de 03/11, integra o pressuposto de aplicação do art.º 10º, nº 2 do Código Penal.
6 - O beneficiário que aufere subsídio de desemprego e que se emprega em momento posterior à sua atribuição, não comunicando esse facto à administração da segurança social, dentro do prazo estabelecido para o efeito, nos termos dos art.º 42º, nº 2, ali. a) e nº 3, do Decreto Lei nº 220/2006, de 03/11, incorre na prática do crime de Burla Tributária, p. e p. no art.º 87º do Regime Geral das Infracções Tributárias, independentemente do valor de que se locupletou.
7 - O Mmº JIC do Tribunal “a quo” deveria na sua douta decisão instrutória ter dado como suficientemente indiciado que o arguido A cometeu o crime de Burla Tributária, nos termos conjugados dos art.º 10º, nº2 do Código Penal e artigo 87º, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com referência ao art.º 42º, nº 2, ali. a), do Decreto-Lei nº 220/2006, de 03/11, e consequentemente, apreciar o pedido de suspensão provisória dos autos ou, não concordando com a mesma, proferir decisão de pronúncia.
8 - Ao não ter este entendimento, proferindo decisão de não pronúncia, o Mmº JIC do tribunal “à quo” violou as disposições conjugadas dos art.º 10º, nº2 do Código Penal e artigo 87º, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com referência ao art.º 42º, nº 2, alí. a), do Decreto-Lei nº 220/2006, de 03/11 e do art.º 308º do Código de Processo Penal.”.---
Notificados os restantes sujeitos processuais, não houve resposta por banda do arguido e da assistente.---
Admitido o recurso, o Mmº Juiz de Instrução manteve a decisão recorrida e determinou a remessa dos autos a esta Relação.---
Nesta Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, aderindo às razões expostas pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, concluindo que o recurso deve merecer provimento.---
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta.---
Foram colhidos os vistos legais.---
Foi realizada a conferência.---
Cumpre apreciar e decidir.---
II
Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e das nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do preceituado nos artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, ambos do citado diploma.---
Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que no caso em apreço, o Digno Magistrado do Ministério Público pretende ver sindicada e revogada a decisão instrutória de não pronúncia e que o Mmº Juiz a quo aprecie o pedido de suspensão provisória do processo e que, caso aquele entender que não estão verificados os pressupostos daquele instituto, que pronuncie o arguido pelo crime aqui em causa e nos precisos termos em que foi acusado pelo Ministério Público, mandando-se depois prosseguir os autos para julgamento.---
III
O despacho/decisão de que se recorre, na parte que releva ao conhecimento das elencadas questões, encontra-se exarado e fundamentado nos seguintes termos:---
“Cumpre decidir, agora, da verificação dos requisitos e pressupostos da pretendida suspensão provisória do processo.
Como dispõe o art. 281º, nº 1, do Cód. P. Penal:
"1- Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
(...).".
Manifestamente, o primeiro requisito para que possa haver lugar à suspensão provisória do processo é que estejamos perante "crime (...) punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão".
Por outras palavras, a decisão de suspensão provisória do processo não prescinde de um juízo positivo no sentido de que dele resultam indícios suficientes da prática pelo arguido de "crime (...) punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão".
E bem se compreende esta exigência, já que a suspensão provisória do processo importa também a aplicação de "reacções jurídico-penais que, não revestindo a natureza de penas, se consubstanciam, todavia, em seus equivalentes funcionais" (Fernando Torrão, A Relevância Político-Criminal da Suspensão Provisória do Processo, Almedina, 2000, pág. 193).
Sem um juízo prévio no sentido de que foram recolhidos indícios suficientes da prática de crime não é possível a suspensão provisória do processo, tanto mais que em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta o procedimento prossegue com a dedução de acusação, ou com uma decisão de pronúncia, caso a suspensão tenha sido decretada na fase de instrução.
Ora, no caso dos autos, atento o seu objecto, está em causa a questão de saber se foram recolhidos, ou não, indícios suficientes da prática pelo arguido A de factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, nº 1, do RGIT.
Todavia, compulsando o objecto dos autos, deles resultam apenas indícios de que:
1. O arguido A entregou nos Serviços da Segurança Social, no dia 03/11/2009, um requerimento de “Prestações de Desemprego”, anexando ao mesmo, declaração emitida pela sua anterior entidade patronal, certificando que o que motivou o seu estado de desemprego foi “cessação por caducidade de contrato a termo certo”.
2. Com a entrega destes documentos na Segurança Social, o arguido comunicou perante os Serviços daquela entidade uma situação de desemprego total e involuntário, constituindo-se o arguido, consequentemente, no direito de receber dos Serviços de Segurança Social quantias monetárias a título de “subsídio social de desemprego”.
3. Passando então o arguido a receber mensalmente as respectivas prestações
da Segurança Social e a esse título.
4. No dia 15/10/2010 e no âmbito de uma acção de fiscalização, o arguido foi
identificado no estabelecimento denominado “BAR BANK” em Albufeira, por aí se encontrar a exercer uma actividade profissional remunerada, como “Porteiro de 1ª”,desde 18/03/2010, recebendo como contrapartida da sua actividade a retribuição mensal de 800€.
5. Tendo o arguido retomado a sua actividade de trabalho remunerado a partir de 18/03/2010, contudo, não comunicou tal facto à Segurança Social, como sabia estar obrigado, razão pela qual esta entidade continuou a processar e a entregar-lhe as quantias correspondentes ao subsídio social de desemprego.
6. Permitiu-se assim o arguido, a partir do dia 18/03/2010, receber indevidamente as prestações relativas ao Subsídio Social de Desemprego, enquanto simultaneamente, auferia a remuneração relativa à prestação da sua actividade profissional como “Porteiro de 1ª”, no estabelecimento denominado “BAR BANK”.
7. Logrou, assim, o arguido receber assim indevidamente, de Março a Outubro de 2010 e a título de Subsídio Social de Social de Desemprego, a quantia de 5.335,86 € da Administração da Segurança Social.
8. O arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente.
9. Bem sabia que enquanto estivesse a receber prestação de subsídio social de
desemprego não podia desempenhar qualquer actividade profissional remunerada.
10. O arguido estava ciente que, a partir do momento em que retomado a sua actividade de trabalho remunerado, não tinha qualquer direito a receber subsídio social de desemprego e que, não comunicando a cessação do seu estado de desemprego à Segurança Social, esta entidade continuaria a entregar-lhe o referido subsídio, como foi o caso, tendo o arguido se apoderado dos respectivos montantes que continuou a receber.
11. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
12. O arguido, entretanto, solicitou plano prestacional para pagamento da nota de reposição dos valores recebidos indevidamente, o qual foi deferido a 06/01/2011, vencendo-se a última prestação no mês de Janeiro de 2014.
13. O arguido tem cumprido esse plano de restituição a prestações dos referidos valores que recebeu indevidamente.
14. Do Certificado do Registo Criminal do arguido não constam quaisquer condenações.
15. Da base de dados da Procuradoria-Geral da República não consta qualquer decisão de suspensão provisória do processo, a respeito do arguido.
Os factos indiciados sustentam-se no auto de notícia de fls. 31, na ficha de identificação de trabalhador de fls. 32, no relatório da acção inspectiva que consta a fls. 34 e 35, nas declarações dos Serviços da Segurança Social que constam a fls. 36 e 46, no teor do relatório preliminar e Parecer Final lavrados pelo Departamento de Fiscalização do Instituto da Segurança Social (fls. 3 a 8, e 23 a 30), tal como, na documentação junta pela defesa a fls. 70 e 71, no teor do CRC junto a fls. 99, e na informação extraída da base de dados de suspensões provisórias do processo (fls. 100).
A questão que agora se coloca é a de saber se tais factos são ou não susceptíveis de preencher os elementos típicos do crime de burla tributária por cuja prática está o arguido acusado.
Ora, ao nível da conduta típica prevista no art. 87º, nº 1, do RGIT, o que ali se pune é o comportamento de quem “por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro”.
Ou seja, o agente terá que usar de meio fraudulentos para conduzir a administração da segurança social à atribuição da prestação, e essa atribuição terá que ser consequência da utilização daqueles meios fraudulentos.
Contudo, no caso dos autos, o subsídio de desemprego já fora atribuído (com o deferimento do requerimento para, precisamente, a atribuição do subsídio) anteriormente, quando o arguido passou – em Março de 2010 – a exercer uma actividade profissional remunerada sem que tenha então comunicado esse facto aos serviços da Segurança Social.
Mais ainda, a burla tributária pressupõe a utilização de um meio fraudulento, que não se confunde com uma mera omissão declarativa por banda do agente.
Neste sentido, veja-se o Ac. da Relação de Évora de 08.11.2005, disponível in http://www.dgi.pt, com o qual concordamos na íntegra, e que, perante situação fáctica idêntica, decidiu que:
“A conduta imputada ao arguido não integra o crime que o Ministério Público lhe imputou na acusação, burla tributária, pois não estão presentes os respectivos pressupostos, podendo, contudo, integrar a prática de uma contra-ordenação, p. e. p. nos termos do art.9.º , alin. b) do DL n.º 64/89, de 25 de Fevereiro, com referência aos art. 50 n.º1, alin. a), 2 e 3 e 54 n.º3 do DL 119/99, de 14 de Abril.
Na verdade, o crime de burla tributária, aqui em causa, está estruturado como um crime de resultado, aparecendo como um verdadeiro tipo de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada (e não livre), mas, simultaneamente, estabelece elementos integradores mais formais.
Não se confundem, por isso, os seus elementos típicos com os do tipo de fraude fiscal.
São elementos constitutivos deste crime de burla tributária os seguintes:
- Uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;
- Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
Como escrevem Jorge Lopes de Sousa e M. Simas Santos, in Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2.ª Edição, pag. 547, aproxima-se este tipo legal do crime de burla previsto no art. 217 do Código Penal, no entanto, não refere expressamente o erro ou engano provocado, elementos que, não obstante, estão presentes na referência aos meios fraudulentos, os susceptíveis de provocar astuciosamente o tal erro ou engano.
De acordo com a configuração do tipo, exige-se o uso de um meio fraudulento “activo” ou seja uma conduta astuciosa comissiva que directamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente.
No caso, o arguido requereu e obteve dos serviços da Segurança Social subsídio social de desemprego,por considerar enquadrar-se numa situação de desemprego involuntário, não realizando qualquer actividade profissional, preenchendo igualmente todos os restantes requisitos estipulados no DL 119/99, sendo-lhe atribuída, a esse título (…).
Em Janeiro de 2003 o arguido obteve emprego e passou a exercer uma actividade profissional por conta de outrem, mas não comunicou esse evento aos Serviços da Segurança Social, como era seu dever, o que, a ter feito, determinaria a suspensão do pagamento das prestações do subsídio social de desemprego, que lhe havia sido atribuído (cf.art.37 n.º1, alin. a) do Decreto-Lei n.º 119/99).
Por isso, o arguido continuou a receber quantias em dinheiro correspondentes ao aludido subsídio social de desemprego que lhe havia sido atribuído, guardando-as e gastando-as em proveito próprio, até ao dia 9 de Janeiro de 2004, data em que foi detectada a situação e corresponde ao termo de duração do subsídio que lhe havia sido atribuído.
(…)
Afigura-se-nos que só a utilização de meios fraudulentos determinantes de ilegalidade relativa à atribuição, ao montante ou ao período de concessão das prestações de desemprego pode configurar o ilícito penal prevenido no art. 87 n.º1 do RGIT.
E a atribuição das prestações de desemprego depende da apresentação do requerimento à instituição de segurança social, instruído nos termos do referido DL n.º119/99, precedida da inscrição do trabalhador como candidato a emprego no centro de emprego da área da sua residência (cf. art.61 e ss).
Parece-nos necessário para verificação do crime de burla tributária que o estado de erro ou engano do sujeito passivo tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção, isto é, usando de um meio enganoso ou fraudulento para enganar ou induzir um erro.
Não configura o crime de burla tributária a situação configurada na acusação pública, pois, como refere o senhor juiz “a quo”, “temos sem dúvida uma conduta ilícita do arguido: a não comunicação da alteração da situação que determinou a atribuição da pensão social. Contudo, a omissão do arguido não determinou qualquer acto de atribuição patrimonial por parte da administração da segurança social. A administração já tinha atribuído a prestação. O pagamento em prestações constitui apenas uma forma de cumprimento da obrigação a que a Segurança Social se vinculou para com o arguido.
A conduta omitida pelo arguido não era idónea à atribuição patrimonial, mas tão-somente à continuação do pagamento da prestação de subsídio social de desemprego que havia sido atribuída até ao termo da concessão.
Não sendo referido na acusação qualquer facto que revele a utilização de meios fraudulentos na atribuição do subsídio social de desemprego é a mesma manifestamente infundada.
A conduta imputada ao recorrente estaria melhor talhada para preencher o crime de fraude à segurança social previsto pelo art. 106 do RGIT, que refere – sem as concretizar, como o faz o n.º1 do art. 103 relativamente à fraude fiscal – as condutas que podem configurar aquele delito.
Porém, as condutas dos beneficiários da segurança social que visem o recebimento indevido, total ou parcial, de prestações ou benefícios, só relevarão criminalmente se a vantagem patrimonial ilegítima obtida ou que se pretendia obter for de valor superior a €7500.
E (…) a quantia obtida pelo arguido, com a omissão do dever de comunicação do início do exercício da sua actividade profissional, foi apenas de € 4.387,41.
Em conclusão: a conduta imputada ao arguido apenas é passível de configurar a prática por este de uma contra-ordenação, p. e p. nos termos acima referidos.”.
É também este o caso dos autos, já que a conduta do arguido não é de igual modo possível de enquadrar no crime de fraude à segurança social previsto pelo art. 106 do RGIT, dado que o valor do subsídio de desemprego que recebeu indevidamente é inferior ao limiar de punibilidade deste ilícito criminal (€ 7.500,00).
A nosso ver, com o devido respeito pela posição contrária, face aos indícios colhidos nos autos, não estamos perante a infracção criminal a que alude o M. Público.
Inexistem indícios da prática daquele crime de burla tributária.
Tanto basta para que dos autos não decorram indícios suficientes da prática de factos que integrem aquele ilícito criminal, pelo que não se encontram, a nosso ver, preenchidos os requisitos da suspensão provisória do processo, nomeadamente, e desde logo, a recolha de indícios suficientes da prática de "crime (...) punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão".
Não é por isso sequer viável o recurso à pretendida suspensão provisória do processo.
Em sua decorrência, entende-se, pois, que não se verificam indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos descritos na acusação e do crime que lhe vinha imputado, mais não restando do que a prolação de uma decisão de não pronúncia.
Em conformidade, decide-se não pronunciar o arguido A, quanto à prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87°, n° 1, da Lei n° 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias).
Sem custas.
Notifique.
Transitada esta decisão, comunique, com certidão da mesma, aos serviços de fiscalização da Segurança Social, para efeitos contra-ordenacionais.”.---
IV
Como decorre da decisão recorrida, o Mmº Juiz de Instrução não aplicou a suspensão provisória do processo reclamada pelo arguido e que havia merecido acolhimento do Ministério Público e da assistente, por entender faltar um dos requisitos supostos por esse instituto – a prática de um crime pelo arguido.---
Na verdade, o Mmº Juiz de Instrução entendeu que os factos indiciados nos autos não configuravam o crime de burla tributária que o Ministério Público lhe imputou e, nessa conformidade, proferiu despacho de não pronúncia.---
Como suporte da sua decisão convocou o Acórdão desta Relação, de 8 de Novembro de 2005, proferido no processo nº 1598/05-1, relatado pelo Exmº Srº Juiz Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso, e disponível em www.dgsi.pt/jtre.---
Vejamos:---
Em obediência aos princípios da legalidade e da tipicidade, impõe-se começar por verificar se a conduta em causa corporiza qualquer ilícito penal: para a conduta humana assumir a dignidade de um crime, é indispensável que coincida formalmente com a descrição feita em norma incriminadora. Não basta, pois, que alguém tenha cometido um facto anti-social, merecedor da reprovação pública, se esse facto escapou à previsão do legislador. Isto, sem esquecer que o direito penal constitui sempre a ultima ratio.---
Cabe, assim, à lei, e só a ela, especificar quais os factos ou condutas que constituem crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, optando o legislador por fazê-lo através de modelos ou tipos que têm como função aferir se determinados comportamentos humanos se amoldam ao desenho arquitectado pelo legislador, deve a acção tida como censurável ser típica, isto é, corresponder a um dos «esquemas» ou «delitos-tipo» objectivamente descritos na lei penal.---
Analisado o tipo do crime de burla tributária, tal como configurado no artigo 87º, do RGIT, conclui-se que os elementos que preenchem e informam a respectiva tipicidade são os seguintes: (i) A prática de factos que consistam em falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos; (ii) Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.---
A norma incriminatória aqui em causa está estruturada como um crime de resultado, apresentando-se como um verdadeiro tipo de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada (porque a ofensa ao bem jurídico decorre como consequência de uma determinada forma de comportamento, não um qualquer, é o tipificado na norma), mas, ao mesmo tempo, erige elementos integradores mais formais.---
E o nº 4 do mesmo preceito determina um critério de solução definitiva das situações de concurso de normas, em abono da especialidade (de natureza patrimonial tributária e não comum) dos valores tutelados em causa, afastando-o (designadamente no tocante ao concurso com os crimes de burla comum dos artigos 217º e 218º, do Código Penal ou da falsificação).---
Não se desconhecendo as posições veiculadas por alguma jurisprudência e doutrina acerca do cometimento de alguns crimes de burla por omissão, que na motivação do recurso são aportadas, afigura-se-nos que o crime aqui em causa resiste a esse entendimento, pois exige actos positivos do agente, ou seja, (como se afirma no Acórdão acima mencionado) «meio fraudulento “activo”»,ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que directamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente, que, aproveitando-se da circunstância da vítima desconhecer a nova realidade, continua a receber as prestações que lhe foram atribuídas. Neste sentido também se dirige o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.01.2011, proferido no processo nº 370/06.7TACBR.C1 e os Acórdãos desta Relação de 31.01.2006, (relator Domingos Duarte), in CJ, Ano XXXI, pág.257 e 258, e de 13.01.2009, (relatora Maria José Nogueira), in CJ, Ano XXXIV, tomo I, pág.277 e 278. Em sentido contrário, o Acórdão desta mesma Relação de 7.02.2006, (relator Rui Maurício), publicado no mesmo tomo da CJ, pág.258 a 261 [- É um crime só praticado por erro ou engano sobre factos que o agente provocou, como o afirmam Carlos Adérito da Silva Teixeira e Sofia Margarida Correia Gaspar, no estudo publicado em “Comentário das Leis Extravagantes, vol. II, Edição UCE, pág. 413. O meio enganoso tem de ser a causa efectiva pela qual a administração se encontra em erro.].---
No caso em apreço, é imputado ao arguido a prática de um crime em virtude de não ter declarado o início de trabalho remunerado e, por isso, ter continuado a receber o subsídio social de desemprego que lhe havia sido atribuído pelos serviços competentes da Segurança Social.---
Temos, sem dúvida, uma conduta ilícita do arguido, a ocultação à Segurança Social de um facto – o reinício da sua actividade profissional, por conta de outrem, como porteiro. O arguido tinha o dever legal de comunicar à Segurança Social, no prazo de 5 dias úteis, a alteração da situação que determinou a atribuição da prestação do subsídio social de desemprego, de harmonia com o disposto nos nºs 2, alínea a) e 3 do artigo 42º, do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3 de Novembro, o que não fez.---
Porém, a conduta omitida pelo arguido, posto que ilícita, não configura qualquer “encenação”, como se diz na douta a acusação, pois, aquela, na sua raiz etimológica pressupõe uma conduta activa (preparar um cenário para uma representação ou dispor as coisas com o fim de iludir) e também não era idónea à atribuição patrimonial, mas tão-somente à continuação do processamento e pagamento da prestação de subsídio social de desemprego que já lhe havia sido atribuída, em prestações mensais durante determinado prazo, o que não teria acontecido se a alteração superveniente da sua situação laboral fosse prontamente comunicada. [Conforme decorre do nº 1 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3/11, “A reparação da eventualidade de desemprego dos beneficiários abrangidos pelo regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem é efectivada mediante a atribuição de prestações”. Essas prestações só são atribuídas a requerimento do beneficiário, posto que este reúna as respectivas condições de atribuição.].---
Não obstante reconhecermos a validade de alguns dos argumentos aduzidos pelo Digno Magistrado do Ministério Público, a verdade é que perfilhamos o entendimento de que o crime de burla tributária não pode ser cometido por omissão.---
De facto, como dizem Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, no estudo acima referido, “o simples silêncio do arguido não configura, em nosso entender, um meio fraudulento, e a burla, como já referimos, é um crime de execução vinculada. Por outro lado, este crime pressupõe uma conduta activa por parte do agente, que dirige a sua actuação no sentido de enganar a administração estadual.[E não meras condutas omissivas do agente, aspecto que obsta à tese defendida pelo Ministério Público da equiparação da omissão à acção, nos termos do art. 10.º do Código Penal, o que encontra fundamento na parte final do n.º1 do citado preceito, “salvo se outra for a intenção da lei”.]
Acresce que a lei refere expressamente que a conduta do agente "determina" a atribuição da prestação. Ora, querendo abranger as condutas em que o agente omite circunstâncias modificativas supervenientes, o legislador teria de admitir que a conduta do agente era apta a "manter" a prestação já atribuída, o que não é o caso. Na burla tributária, o legislador concretizou a "matriz" dos meios fraudulentos e fê-lo com referência, unicamente, a condutas activas declarar falsamente, falsificar, adulterar. Não comunicando estes factos novos, o agente aproveita-se do engano em que administração se encontra, não tendo, contudo, sido ele o autor desse logro.”.---
E para sancionar o incumprimento por parte do beneficiário do dever legal de comunicação, aqui em causa, o legislador instituiu sanções contra-ordenacionais.---
Na verdade, o artigo 64º, nº1 do citado Decreto-Lei nº 220/2006, preceitua que “constitui contra-ordenação punível com coima de € 100 a € 700 o incumprimento dos deveres para com os serviços ou instituições de segurança social previstos no nº 2 do artigo 42”, podendo, ainda, ser aplicada ao beneficiário, simultaneamente com a coima a que houver lugar, a sanção acessória de privação de acesso às prestações de desemprego pelo período máximo de dois anos, contado a partir da decisão condenatória definitiva, nos termos do artigo 65º do mesmo diploma legal.---
Tal contra-ordenação é tramitada segundo o regime das contra-ordenações no âmbito dos regimes de segurança social (cfr. artigo 64º, nº 4, do citado Decreto-Lei, da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro e, na parte não revogada do Decreto-Lei nº 64/89, de 25 de Fevereiro).---
O regime que se encontra estabelecido vem na linha do já previsto nos artigos 50º e 54º, nº 3, do Decreto-Lei nº 119/99, de 14 de Abril, que o Decreto-Lei nº 220/2006, no seu artigo 86º, veio revogar.---
Ressalvado, pois, o devido respeito por diferente opinião, cremos que a situação configurada nos autos não integra o crime de burla tributária, por que o arguido foi acusado (sendo que, dado o valor da quantia em causa - € 5.335,86 -, se encontra, desde logo, afastada a eventualidade da prática do crime, p. e p. pelo artigo 106º, do RGIT),pelo que tal conduta omissiva imputada ao arguido apenas o poderá fazer incorrer na prática de uma mera contra-ordenação.---
Por isso que, em nosso entender, bem andou o Mmº Juiz de Instrução a quo ao não aplicar a suspensão provisória do processo visada pelo arguido, por falência desde logo, de um dos pressupostos (constituírem os factos indiciados a prática de crime – cfr. artigo 281º, do Código de Processo Penal) e, bem assim, ao emitir despacho de não pronúncia, por os factos em questão não serem subsumíveis a qualquer norma jurídico-criminal, pois resultaria inevitavelmente com a submissão do arguido a julgamento, porque inútil, numa flagrante violência e injustiça para o mesmo.---
Assim, o despacho/decisão recorrida não pode deixar de ser mantido.---
V
Nos termos do preceituado no artigo 522º, nº 1, do Código de Processo Penal não há lugar a custas.---
VI
Decisão
Nestes termos acordam em:--- A) - Negar provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público e, consequentemente, manter a decisão revidenda nos seus precisos termos.--- B) - Não serem devidas custas.---
(Texto processado e integralmente revisto pela relatora)
Évora, 7 de Dezembro de 2012
Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares
Fernando Paiva Gomes Monteiro Pina