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REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
NULIDADES
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Sumário
1. Tendo sido rejeitado liminarmente, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução, a omissão de pronúncia sobre nulidade praticada em sede de inquérito, invocada em tal requerimento, não conduz à nulidade de falta de instrução.
2. A omissão de pronúncia no despacho recorrido sobre um dos crimes referidos no RAI constitui mera irregularidade, dependente de arguição nos 3 dias subsequentes a contar da notificação desse despacho (art.123.º, nº1, do CPP), o que não tendo acontecido, conduz à sanação do vício.
3. O requerimento de abertura da instrução não pode ser dirigido contra desconhecidos, pois a acusação contra incertos é indubitavelmente nula, nos termos estatuídos nos art.283º nº3 al. a) e 308º nº2, do CPP.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
RELATÓRIO.
Decisão recorrida.
C.. –...Ldª, com sede ..., em Redondo, participou criminalmente contra P, C, J e outros (desconhecidos), atribuindo-lhes a prática dos crimes de introdução em lugar vedado ao público, furto e dano simples, pp., respectivamente, pelos arts.191º, 203º e 212º, todos do Código Penal.
Teve lugar o inquérito, findo o qual o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, nos termos do nº1 do art.277º do CPP, por entender que a factualidade denunciada nas duas participações apresentadas, independentemente da respectiva prova, é insusceptível de integrar a prática de qualquer daqueles crimes.
Notificada desse despacho, a ofendida/queixosa veio simultaneamente requerer a sua constituição como assistente e a abertura da instrução, imputando aos denunciados a prática dos mencionados crimes de introdução em lugar vedado ao público, furto e dano simples, pp., respectivamente, pelos arts.191º, 203º e 212º, todos do Código Penal.
Admitida a intervir como assistente, por despacho da Exmª Juiz de Instrução, proferido em 11/6/2012, foi liminarmente rejeitado o requerimento de abertura da instrução, por inadmissibilidade legal.
Recurso.
Inconformado com esta decisão, dela recorreu a assistente, pugnando pela sua revogação e substituição por outro que ordene a abertura da instrução, rematando a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
A) A assistente, no requerimento de abertura de instrução, suscitou, a nulidade, prevista na al. a), do nº.1, do art.120º do CPP – Vd. arts.12º a 26º do requerimento de abertura de instrução, não apreciada pela Meritíssima Juiz “a quo”;
B) A assistente veio ainda a imputar aos denunciados, a prática de um crime de furto, p. e p. no art. 203º do C.P, não tendo sido apreciada a factualidade vertida sobre tal ilícito, como era seu dever – Vd. art.17º do CPP;
C) Verifica-se uma nulidade insanável de falta de instrução, de acordo com o prescrito na al. d), do art.119º do CPP, com as consequências previstas no art.122º do CPP, i.e., a invalidade do douto despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução, apresentado pela assistente;
D) O requerimento de abertura de instrução, apresentado pela assistente, ora recorrente, reúne os requisitos exigidos pelo art.287º, nº.2 do CPP, com referência ao art.283º, nº.3, alíneas a) e b) do CPP;
E) Mas mesmo que não reunisse, seria sempre passível de convite de aperfeiçoamento, em virtude do douto Acórdão de Uniformização de jurisprudência ser manifestamente inaplicável, in casu;
F) Salvo o devido respeito, a Meritíssima Juiz “a quo” violou o correcto entendimento, nomeadamente, do disposto nos artigos 20º e 32º da CRP e ainda dos artigos 287º, nº.2 e 283º, nº.3, als. a) e b), do CPP.
Face ao sobredito, deverá ser revogada a decisão recorrida.
Contra-motivou o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do despacho impugnado.
Nesta Relação o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer também no sentido de ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
Cumprido o disposto no nº2 do art.417º do CPP não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTAÇÃO.
Objecto do recurso. Questão a examinar.
Estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (art.412º nº1, do CPP), as questões que importa examinar e que reclamam solução consistem em saber:
1.º Se o despacho recorrido enferma de omissão de pronúncia e se as patologias que o recorrente lhe aponta configuram as nulidades por si invocadas e quais as suas consequências;
2º. Se o requerimento para abertura da instrução satisfaz ou não os requisitos legalmente exigidos e qual a consequência da sua eventual não observância.
O despacho recorrido no segmento que aqui importa considerar é do seguinte teor:
«A assistente veio requerer a abertura de instrução, assim reagindo contra o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público, constante de folhas 209 a 220.
No entanto, o requerimento de abertura de instrução de folhas não obedece aos requisitos exigidos pelo artigo 287.º do Código de Processo Penal, pelo que não poderia conduzir a um despacho de pronúncia válido.
De facto, em caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público o requerimento de abertura de instrução tem que, além do mais, satisfazer as exigências legalmente previstas para a acusação.
E a esse respeito preceitua o n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 283.º, n.º 3”.
Nos termos do referido artigo 283.º, n.º 3, als. a), b) e c), a acusação contém obrigatoriamente as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.
E a acusação tem que incluir esses elementos sob pena de nulidade, conforme estatui o mesmo preceito, pelo que também estes têm que constar obrigatoriamente do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.
Analisando o requerimento de abertura de instrução de fls. 225 e ss., entende-se que o mesmo não satisfaz os requisitos apontados para a acusação, porquanto não são desde logo identificados o agentes dos crimes por cuja pronúncia se pugna, sendo certo que não há arguidos constituídos nos autos.
Nem sequer por referência às queixas encontramos tal identificação. Na descrição dos factos a assistente vai aludindo a algumas pessoas, que refere serem arguidos, mas dos quais não resulta dos autos que tenham tal qualidade e quais os respectivos elementos de identificação. No que concerne à Sociedade...., Lda.ª, não se alcança se se pretende, em concreto, a incriminação dos legais representantes da pessoa colectiva, que não vêm identificados.
Por outro lado, não é feita uma descrição circunstanciada de factos que integrem o crime de dano e de introdução em lugar vedado ao público, quer ao nível da imputação objectiva (não há alusão à que se trate de propriedade vedada e ao modo de introdução na mesma ou a actos de destruição/danificação de árvores ou frutos) quer ao nível do elemento subjectivo dos crimes (onde apenas se refere que os arguidos recusaram abandonar o local e restituir a azeitona, o que fizeram tendo consciência que a mesma era propriedade da assistente).
E o Juiz de Instrução encontra-se vinculado aos factos alegados na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, sob pena de nulidade da decisão instrutória – cfr. art. 309.º, do Cód. Proc. Penal.
Não se mostra admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento nestas situações – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 7/2005.
Assim, por inadmissibilidade da abertura desta fase processual, indefere-se o requerimento de abertura de instrução.
Custas pela assistente, fixando-se a taxa em 2 Uc’s.
Notifique.»
Analisemos a 1ª questão enunciada.
Alega a recorrente que no requerimento de abertura da instrução suscitou a nulidade prevista na al. a), do nº1, do art.120º do CPP, que o JI não apreciou no despacho recorrido pelo que, na sua óptica, tal omissão de pronúncia constitui a nulidade insanável de falta da instrução, de acordo com o prescrito na al. a), do art.119º do CPP.
Vejamos.
É inquestionável que ora recorrente no requerimento de abertura da instrução pretextou que verificar-se-ia a nulidade prevista na al. a), do nº1, do art.120º do CPP, invocando para tal, que o MºPº no decurso de inquérito omitiu diligências, que diz essenciais para a descoberta da verdade, sem que tenha concretizado quais seriam essas diligências.
Por outro lado, é também irrefutável que o JI no despacho recorrido não conheceu dessa questão.
Liminarmente há que sublinhar que naquele requerimento a requerente não concretiza, como se lhe impunha, qual ou quais as diligências que foram omitidas, que a seu ver seriam essenciais para a descoberta da verdade, limitando-se a uma alegação genérica e abstracta.
Por outro lado, é completamente errado o enquadramento normativo do vício invocado feito pela requerente, pois o nº1 do art.120º do CPP, nem sequer tem qualquer alínea.
Supomos que o recorrente pretenderia invocar a nulidade prevenida na al. c), no nº2, do art.120º do CPP.
Mas se era essa a sua intenção, sempre se dirá que de qualquer forma, a sua pretensão seria votada ao insucesso.
Resulta do disposto no art°120° do CPP, com a epígrafe
"Nulidades dependentes de arguição" que
"l - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
2 - Constituem nulidades pendentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reputarem essenciais para a descoberta da verdade."
Dispõe-se o citado art.120º, nº2, al. d) do CPP que constitui nulidade dependente de arguição "a insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de diligências que pudessem reportar-se essenciais para a descoberta da verdade".
Esta norma tem dois segmentos. No primeiro, refere-se a «insuficiência do inquérito ou da instrução»; no segundo, a «omissão posterior de diligências que pudessem reportar-se essenciais para a descoberta da verdade». Isto é, a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade (seja qual for o alcance que isso tenha), só constitui nulidade se for posterior ao inquérito ou à instrução. Durante estas duas fases processuais esta norma apenas comina com o vício da nulidade a «insuficiência do inquérito ou da instrução».
Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, a insuficiência do inquérito ou da instrução "é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve.
Assim, só se verifica esta nulidade quando se omita um acto que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa" - Curso de Processo Penal, II, 3ª edição, págs.84/85. Aliás, este autor interroga-se sobre a utilidade desta nulidade num processo em que a lei não impõe, em geral, a prática de quaisquer actos típicos de investigação.
A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito ou da instrução por insuficiência.
Aliás, como atrás dissemos, a requerente nem sequer concretizou qual ou quais as diligências que foram omitidas e muito menos indica o fundamento legal que a(s) prescreveria como obrigatória(s), pelo que essa questão sempre seria improcedente.
De qualquer modo, a não apreciação pelo JI da apontada questão, em caso algum acarreta a nulidade prevista na al. d) do art.119º do CPP.
Na verdade, no caso vertente a omissão de pronúncia sobre aquela questão, não acarreta a nulidade de falta de instrução prevista em tal norma.
Com efeito o requerimento de abertura de instrução onde a questão foi suscitada, foi rejeitado liminarmente por inadmissibilidade legal, pelo que não tendo sido aberta a fase de instrução, ficou prejudicado a apreciação daquela.
Como bem assevera o MºPº na contra-motivação apresentada na 1ª Instância, citando o Acórdão da Relação do Porto de 11 de Maio de 2011, disponível em www.dgsi.pt, não pode o JIC, nem deve, saltar etapas. Isto é, não pode analisar a questão da nulidade, qualquer que ela seja, sem que o requerimento para a abertura de instrução preencha os requisitos formais exigidos: “E (o RAI) foi indeferido por inadmissibilidade, o que se verifica, sendo esta a questão a decidir seguidamente. A circunstância de hipoteticamente a assistente ter razão, não tendo apresentado um RAI viável, conduz a que não seja possível a este tribunal conhecer as questões que o TIC não conheceu. O recurso é do despacho do JIC de indeferimento do RAI e não uma sindicância do inquérito.
É também evidente que o despacho impugnado, lamentavelmente não se debruçou sobre o crime de furto, omitindo sobre ele qualquer apreciação.
O nº1 do art.205º, da Lei Fundamental, exige que as decisões que não sejam de mero expediente tem de ser fundamentadas na forma prevista na lei.
Como é sabido, os arts.374º, nº2 e 379º, nº1 do CPP regem para a sentença, não sendo aplicáveis no caso da decisão sob recurso.
Este dever de fundamentação das decisões judiciais, acentuado na 4ª revisão constitucional (Lei nº1/97, de 20/9), consta reafirmado no invocado art.97º nº4, do CPP, nos termos do qual os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Com isto se pretendeu, fundamentalmente, por um lado, conferir força pública inequívoca (autoridade e convencimento) aos referidos actos e, por outro, permitir a sua fundada impugnação.
Porém, a omissão de apreciação da factualidade vertida no requerimento de abertura da instrução sobre o crime de furto, constitui uma mera irregularidade.
É sabido que (ressalvado o caso da sentença em que regem, como atrás dissemos, os arts.374º, nº2 e 379º do CPP), os demais actos decisórios não fundamentados padecem processualmente de mera irregularidade – arts.118º, nº2 e 123º do CPP.
Assim, apesar do mencionado despacho enfermar desse vício, essa irregularidade só determinaria a invalidade do acto a que se refere (e dos termos subsequentes pelo mesmo inquinados) se tivesse sido arguida pelo recorrente nos 3 dias subsequentes a contar da notificação desse despacho (art.123º nº1, do CPP), o que não tendo acontecido, sempre se terá por sanado o vício.
Prosseguindo.
Cumpre agora examinar se procedem os fundamentos invocados no despacho recorrido, que suportam essa decisão, sobre a inobservância dos requisitos legais do requerimento de abertura da instrução.
Como é sobejamente sabido, a instrução que é uma das fases preliminares do processo penal, visa, como dispõe o art.286º nº1, do CPP, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Deduzida acusação, ou arquivado o inquérito pelo Ministério Público, os sujeitos processuais afectados por tais actos com os quais, conforme os casos, se encerra uma outra das fases preliminares do processo - o inquérito - , podem fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar o inquérito; a instrução tem, assim, carácter facultativo - artigo 286°, n°2, do Código de Processo Penal.
A instrução constitui uma fase judicial (a direcção da instrução compete a um juiz de instrução criminal - artigo 288°, n°1, do Código de Processo Penal), formada pelo conjunto de actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo, e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório - artigo 289°, n°1, do mesmo diploma.
A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, conforme a natureza do acto que os afecte e que lhes confira o interesse em fazer comprovar judicialmente o acto de encerramento do inquérito: o arguido pode requerer a instrução no caso de ter sido deduzida acusação, e o assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, no caso de arquivamento, isto é, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação - artigo 287°, n°1, alíneas a) e b) do referido diploma.
A estrutura acusatória do processo exige, porém, que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzidas acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.
Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura da instrução: "tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura da instrução", como refere o n°4 do artigo 288° do Código de Processo Penal.
O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.
Este requerimento, embora não sujeito a formalidades especiais, deve conter, mesmo em súmula, os elementos que são enunciados no artigo 287°, n°2, do mencionado diploma: a indicação "das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende levar a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros se espera provar, sendo-lhe aplicável ainda o disposto no art.283º nº3 als. b) e c).
O requerimento, sendo livre de fórmulas, não o é de conteúdo material vinculante.
Deste modo, constituem elementos essenciais ao requerimento para abertura da instrução a enunciação das razões de facto e de direito da discordância em relação à decisão de acusação ou de arquivamento.
Porém, não tanto pelas fórmulas, mas pelo conteúdo, o requerimento para abertura da instrução terá de ser necessariamente diverso conforme o arguido pretenda fazer comprovar judicialmente a decisão de acusar, ou o assistente pretenda fazer intervir o juiz de instrução para confrontar a decisão de arquivamento.
Destinando-se o inquérito a investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262º, n°1, do Código de Processo Penal), esta decisão há-de ser tomada quando o Ministério Público considerar encerrado o inquérito e avaliar a existência (ou inexistência) de indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.
A acusação fixa então doravante no processo os termos da questão submetida a decisão (a vinculação temática), tanto que, mesmo quando requerida instrução pelo arguido, e comprovada judicialmente a decisão de acusar, o despacho de pronúncia não pode pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação.
Mas, sendo assim no que respeita à decisão de acusação, de modo simétrico tem de ser no que respeita ao requerimento do assistente no caso de arquivamento: o pressuposto da vinculação temática do processo só pode ser constituído pelos termos desse requerimento, que há-de definir as bases de facto e de direito da questão a submeter ao juiz.
Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há, assim, uma similitude processual de função, e por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução no caso de não ter sido deduzida acusação.
Deste modo, o requerimento do assistente não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório: o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação, que é a acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida pelo Ministério Público (cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, "Curso de Processo Penal", vol. III, pág, 141).
O requerimento do assistente, não sendo uma acusação em sentido processual-formal, deve, pois, constituir processualmente uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo (da instrução), e por isso, os termos e os limites dos poderes de conhecimento e de decisão do juiz de instrução - artigos 308° e 309° do Código de Processo Penal (cf, vg. o ac. do STJ de 23 de Maio de 2001, proc. 151/01, e de 20 de Junho de 2002, in proc.4250/01, acessíveis em www.dgsi.pt).
A instrução não constitui uma base para o exercício da acção penal, nem um suplemento autónomo de investigação.
Assim, o requerimento do assistente com que pretenda, de modo processualmente necessário, útil e eficaz, fazer abrir a fase de instrução, e definir o seu objecto, tem de conter, ainda que de forma sintética, a narração dos factos que fundamentem a aplicação de uma pena, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, e quaisquer outras circunstâncias relevantes – art.283°, n°3, do Código de Processo Penal, tendo em vista o que dispõem os art.303º n°3, 308° e 309° n°1 do mesmo diploma.
O requerimento formulado pela recorrente, com que pretendeu fazer declarar aberta a fase da instrução, não participa a nosso ver das características de uma acusação em sentido material, como aliás, não respeitando, por isso, as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo artigo 287°, n°2, com referência ao art.283º nº3 als. b) do Código de Processo Penal.
Com efeito, a ora recorrente requereu a abertura da instrução contra “todos os denunciados/arguidos” (sic).
Trata-se de uma fórmula remissiva.
No caso ninguém foi constituído arguido, pelo que nos remete para as denúncias apresentadas, por forma a saber contra quem é requerida a instrução e quem pretende ver pronunciado.
A primeira participação que consta dos autos foi apresentada contra P e esposa C, residentes na Rua..., em Setúbal, J, residente em Redondo,...e outros (desconhecidos).
Existe uma segunda formulada contra Legais representantes da sociedade “Sociedade..., Ldª, cuja identidade desconhece, assim como a sede e o seu NIF, JJ e D, casados entre si, residentes em Redondo, ...e F, residente em Redondo, ....
Obviamente que a alusão a outros (desconhecidos), bem como a referência vaga aos legais representantes daquela sociedade cujo NIF e sede não foram indicados, não constituem indicações bastantes para identificação contra quem é deduzida a instrução e de quem se pretende obter pronúncia pelos crimes em questão.
Na verdade, a acusação contra incertos é indubitavelmente nula, nos termos estatuídos no art.283º nº3 al. a) e 308º nº2, do CPP, pelo que não oferece qualquer dúvida a impossibilidade de serem pronunciados incertos.
Assim, relativamente a estes o requerimento de abertura da instrução enferma da deficiência apontada no despacho recorrido, que contudo, já não acompanhamos quanto aos demais sujeitos referidos, sendo aqueles elementos suficientes por forma a permitir a sua identificação.
Todavia, a assistente praticamente limita-se a manifestar a sua discordância com a posição tomada pelo Ministério Público no despacho de encerramento do inquérito, alheando-se completamente do ónus que sobre si impendia de descrever os factos concretos subsumíveis, aos elementos objectivos e subjectivos dos crimes de dano e de introdução em lugar vedado ao público, pp., respectivamente, pelos arts.212º e 191º do C. Penal.
Na verdade, perscrutando esse requerimento, não se vislumbra a narração, ainda que sintética, de factos com aptidão para fundamentarem a aplicação de uma pena aos denunciados, que estão devidamente identificados, pelo cometimento desses crimes.
Ao contrário do que preconiza a recorrente, salvo o devido respeito, a densa e prolixa exposição que consta do requerimento de abertura da instrução, está longe de satisfazer a exigência decorrente na citada norma relativamente à narração sintética dos factos.
Num processo com estrutura acusatória, como é o nosso, a determinação do objecto do processo assume a maior relevância.
Neste caso o objecto do processo é fixado pelos os factos descritos no requerimento da abertura da instrução, que como já dissemos, deve constituir uma acusação alternativa.
São esses os factos a que alude a al. b) do nº3 do art.283º do CPP, que devem constar da acusação, sob pena desta ser nula e do requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente no caso do Mº Pº no final do inquérito ter determinado o arquivamento dos autos.
Todavia, a exigência ditada por este preceito não se contenta com qualquer descrição de factos, mas com a narração de factos objectivos, concretos e determinados que fundamentem a imputação de um crime certo e determinado a alguém devidamente individualizado.
Vejamos.
Preceitua o artigo 212.º do Código Penal, que comete o crime de dano “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia”.
São, assim, elementos do tipo:
- a destruição, danificação, desfiguração ou inutilização;
- de coisa materialmente apreensível, corpórea e autónoma;
- e alheia - atingindo o domínio exclusivo do proprietário sobre a coisa.
O bem jurídico protegido com esta incriminação surge individualizado, quer como um direito à integridade da coisa na sua própria substância – a proibição de destruir, danificar ou desfigurar –, quer como um direito à utilização respectiva – proibição de tornar a coisa inutilizável. Consequentemente, o dano tipicamente relevante – ‘lato sensu’ – poderá referir-se, tanto à própria integridade da coisa, como à sua específica funcionalidade.
Para que determinada conduta possa ser subsumida à materialidade objectiva do tipo incriminador é necessário que, pelo agente, seja praticada determinada actividade, consistente na destruição, danificação, desfiguração ou inutilização de coisa alheia, sendo irrelevante o meio pelo qual o crime é cometido.
Lido e relido o requerimento de abertura da instrução, não se vislumbra a alegação de factos consubstanciadores de alguma dessas actividades.
Nos termos do art.191º do C. Penal comete o crime de introdução em lugar vedado ao público “Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou actividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.”
Relativamente a este crime como é referido no despacho sob censura e como também reconhece a recorrente, no requerimento de abertura da instrução, dele não consta desde logo qualquer alusão à que se trate de propriedade vedada e ao modo de introdução na mesma – elemento objectivo do tipo.
Em ambos os casos trata-se de crimes de natureza dolosa.
No que concerne ao elemento subjectivo – dolo - importa salientar que se trata de crimes dolosos, uma vez que se exige que o agente tenha actuado com conhecimento dos elementos da factualidade típica e determinado pela vontade, directa, necessária ou eventual de realização do tipo legal de crime.
Também não descortinamos que no requerimento de abertura da instrução tivesse sido alegado este elemento subjectivo.
É inquestionável que do requerimento de abertura da instrução não consta a alegação deste elemento, sendo que a alegação do dolo não é uma simples fórmula jurídica sem conteúdo útil, mas matéria de facto e, como se referiu, elemento constitutivo daqueles crimes.
Enquanto elemento constitutivo daqueles crimes, o dolo não se presume, devendo, isso sim, de constar expressamente daquele requerimento.
Tão pouco, a circunstância do dolo, pela sua própria natureza subjectiva, ser um fenómeno da vida interior do indivíduo, e por isso insusceptível de demonstração directa, não dispensa a sua concreta alegação.
É que uma coisa é a prova do dolo, outra bem diferente é a sua alegação em concreto.
Aliás, nos termos do disposto na al. b), do nº3, do art. 283º, do CPP, não há lugar à existência de factos implícitos.
Assim, também não se pode ter como implícita ou subentendida no requerimento de abertura da instrução aquele elemento – dolo.
Na verdade, é hoje indefensável no direito penal a ideia de «dolus in re ipsa», que sempre resultaria da simples materialidade da infracção.
Como salienta o prof. Figueiredo Dias, in RLJ, 105, pag. 142, como a autoridade que lhe é sobejamente reconhecida, a moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo.
Estas patologias, em qualquer caso, sempre comprometeriam a pronúncia pela prática de tais crimes.
Como atrás dissemos, o requerimento de abertura da instrução porque definidor e limitador do próprio processo, deve utilizar a veste de uma verdadeira acusação, enformando-a, perfilando-se e apresentando-se substancialmente como uma acusação alternativa, natural e consequentemente descrevendo e exarando factos concretos e objectivos, que sustentam e justificam uma eventual aplicação das sanções prevenidas nas normas que se imputam como violadas.
Efectivamente, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução não contem todos os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada; não tem aptidão processual para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.
Na verdade, as deficiências intrínsecas apontada ao dito requerimento, dado que não respeita o disposto no art.287º nº2, com referência ao art.283º nº3 b), do CPP, não materializando todos os factos susceptíveis de integrarem os elementos objectivos e subjectivo dos mencionados crimes, sem dúvida alguma que tal requerimento não se projecta como uma acusação alternativa.
Assim, a exposição que consta do mencionado requerimento, pelos motivos já referidos, não contem essa descrição, equivalendo aquela à falta de narração, uma vez que não tem aptidão para definir nos moldes atrás mencionados o objecto do processo.
Efectivamente, o requerimento que a assistente apresentou para abertura da instrução não contém os elementos essenciais à função processual que lhe é assinalada; não tem aptidão processual para tal finalidade, o que equivale a dizer que não pode cumprir a função processual a que estaria vocacionado.
Na verdade, no contexto formal e de termos concretos em que foi formulado, dado que não respeita o disposto no art.287º nº2, com referência ao art.283º nº3 b), do CPP, não se materializando objectiva e individualizadamente as condutas ilícitas que se imputam, indexando-as aos seus elementos objectivos e subjectivos, sem dúvida alguma que tal requerimento teria de ser rejeitado, pois não se projecta como uma acusação alternativa.
Em termos processuais tudo se passa como se não tivesse havido requerimento, o que determina a impossibilidade de abertura da fase de instrução.
Aliás, e quanto à estrutura e valência em si do requerimento para a abertura de instrução não são poucos os arestos que se lhe têm referido, citando-se, a título de exemplo, o Ac. da Rel. de Lisboa de 20.5.97 (C.J. XXII - Tomo 3 - pág. 143), onde se exara: "O requerimento do assistente para abertura da instrução, no caso de arquivamento do processo pelo MP, é que define e limita o respectivo objecto, de processo, a partir da sua formulação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa. Assim, e além do mais, deverá dele constar a descrição dos factos que fundamentam a eventual aplicação de uma pena ao arguido e a indicação das disposições penais incriminatórias". O que, convenhamos, de todo em todo não acontece no caso em apreço, pelo que, e realmente, e na linha de toda uma alargada corrente jurisprudencial, se pode falar em falta de objecto (vide Ac. Rel. Évora de 14.4.95 - C.J. XX, II, pág. 280; Ac. Rel. Lx. de 9.2.2000 - C.J. XXV, Tomo I, pág. 153; Ac. Rel. Porto de 5.5.93 - C.J. XVIII - Tomo III, pág. 243 e Ac. STJ de 27.2.02 - proc. 3153/01-3ª).
Relativamente à consequência processual derivada de um requerimento deficiente nos termos supra expostos, a jurisprudência encontrava-se dividida até há algum tempo atrás.
Assim, enquanto uma corrente jurisprudencial advogava que nessas circunstâncias o requerimento deveria ser liminarmente rejeitado, outra preconizava que previamente deveria o assistente ser convidado a suprir as deficiências e se não o fizesse é que poderia ser rejeitado.
É abundante a jurisprudência produzida num e noutro sentido, sendo por demais conhecidos os argumentos expendidos em defesa de uma e de outra das opiniões em confronto, que nos dispensamos de citar, por actualmente ser desnecessário, uma vez que o STJ, através do acórdão de 12/5/2005, proferido no proc.nº430/2004 – 3ª Secção, publicado no DR, Série I-A, nº212, de 4/11/2005, que merece a nossa adesão e que por isso secundamos, veio uniformizar a jurisprudência no sentido de que «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287º, nº2 do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Relativamente à força vinculativa desta espécie de acórdãos, dispõe o nº3 do art.445º do CPP que a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão, competindo ao Ministério Público recorrer, obrigatoriamente, de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo STJ, sendo o recurso sempre admissível (art.446º nº1, do CPP).
A razão de ser desta disposição radica na conveniência de uniformização da jurisprudência, em nome da unidade do direito e da segurança jurídica, fazendo intervir o STJ sempre que as decisões dos tribunais inferiores não acatem a jurisprudência fixada por aquele tribunal (Cfr. Maia Gonçalves, in CPP Anotado e Comentado, 12ª Edição, pag.839).
Por isso, a discordância da decisão do pleno das secções do STJ impõe que – como escreve António Abrantes Geraldes, in Valor da Jurisprudência Cível, Col. Jur. Ac. STJ, Ano VII, tomo dois, pag.5 e ss – se abandone “uma postura de arrogância intelectual e que se fundamentem as divergências com argumentos porventura não utilizados ou rebatidos pelo STJ e que, por si só, tenham a virtualidade de motivar os tribunais superiores, em caso de recurso, a reponderar a doutrina assumida anteriormente”.
Aliás, nem sequer é de considerar fundamento novo para afastar a normal autoridade e força persuasiva da jurisprudência fixada para uniformização, o entendimento do juiz que divergindo da doutrina fixada, se apoia exclusivamente nos argumentos das decisões que motivaram o acórdão uniformizador e na declaração de voto de vencido (cfr. Ac.RP, de 10/10/2001, proc.739/93, acessível em www.dgsi.pt).
Ora, salvo devido respeito, no caso em apreciação, a recorrente não invoca um único argumento susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução preconizada pelo mencionado acórdão do STJ.
Por outro lado, à semelhança de situações passadas idênticas à que aqui nos ocupa, continuamos a seguir a referida jurisprudência uniformizadora fixada no mencionado acórdão do STJ, não vislumbrando qualquer motivo para não continuarmos a seguir essa orientação.
Por todo o exposto, e sem mais desenvolvidas considerações que se justifiquem, o recurso tem inevitavelmente de improceder, mantendo-se o despacho impugnado.
DECISÃO.
Nestes termos e com tais fundamentos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.
Pagará a assistente/recorrente 4 UC’s de taxa de justiça (arts.515 nº1 al. b) do CPP).