FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FOTOCÓPIA A CORES E PLASTIFICADA
Sumário


1. O documento, para efeitos de direito penal, é a declaração e não o objeto ou suporte material da declaração.

2. Existe fabrico de documento falso quando o agente forja, na íntegra, um documento que não existia, ou seja, o agente fabrica um documento que não existia desde a sua origem.

3. Há falsificação ou alteração de documento quando o agente vicia um documento preexistente, alterando em parte o seu conteúdo, inserindo-lhe novos factos ou suprindo dizeres.

4. Não comete o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º n.º1, al. c) e n.º3 do CP, o agente que exibe uma fotocópia a cores e plastificada de carta de condução obtida no seu pais de origem, destinada a comprovar habilitação legal para conduzir, que lhe veio a ser reconhecida pela ANSR, com referência a data anterior aos factos sob julgamento.

Texto Integral


I
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Silves, o arguido Oleh xx, foi julgado como se estivesse presente (art.º 333.º, n.º 2 e 3, do Código de Processo Penal) e foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª c) e 3, do Código Penal, na pena de 100 dias de multa à razão diária de 2 €, isto é, na multa de 200 €.

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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1. O arguido foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo n.° 256.°/1, al. c) e n.° 3 do Código Penal (na redacção anterior às alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 04/09), na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 2,00 (dois euros), perfazendo a quantia total de € 200,00 (duzentos euros).

2. Foi igualmente condenado nas custas do processo.

3. É primário;

4. Concretamente, foi o arguido foi condenado, por ter-lhe sido apreendida uma cópia da sua carta de condução do país de origem, ou seja a Ucrânia.

5. Cópia dum original que veio a entregar nos serviços da antiga DGV, para troca da sua carta de condução pela portuguesa.

6. O Tribunal "a quo", na formação da sua convicção, atendeu às declarações da testemunha ouvida, aos documentos juntos aos autos, inclusive o que demonstra que o arguido era titular de licença de condução que o autorizava a conduzir veículos ligeiros como o que conduzia, desde 1994.

7. Assim sempre se dirá que um dos elementos objectivos do crime não estaria preenchido, ou seja o do arguido obter para si benefício ilegítimo, pois o mesmo estava de facto habilitado para a condução do veículo com que circulava.

8. Ora quando o douto Tribunal a quo dá como provado "que o arguido era titular de licença de condução no seu país de origem", estando por isso habilitado ao exercício da condução, teremos de concluir pelo não preenchimento dos elementos do crime pelo qual veio a ser condenado, urna vez que o mesmo prevê, expressamente no seu tipo, de que da actuação do arguido deve resultar para si um benefício ilegítimo.

9. Ora ilegítimo nunca seria uma vez que o arguido era titular de carta de condução.

10. Tudo conjugado, tal deveria ter levado à absolvição do arguido dos crimes de que se encontrava acusado.

11 Ao não proceder da forma descrita supra, ou seja, não absolvendo o arguido, terá o douto Tribunal "a quo" violado as disposições conjugadas dos artigos n ° 256.º/1 al. C)e n.° 3 do Código Penal.

Nestes termos, e nos mais que serão objecto do douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo a decisão recorrida revogada, e substituída por outra que absolva o arguido, ora recorrente — Oleh xx - pela prática de um crime de falsificação de documento, com as legais consequências.

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A Ex.ma Procuradora Adjunta do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:

1. O legislador impôs requisitos ou condições processuais ou adjectivas para a impugnação da matéria de facto provada em primeira instância, disciplinando assim o direito ao recurso.

2. Assim, o recurso da matéria de facto não constitui um segundo julgamento, e muito menos se destina a limitar o princípio da livre apreciação da prova consignado no art. 127.º, do Código de Processo Penal.

3. Não alegando que o tribunal decidiu contra a prova produzida ou contra as regras da experiência, não pode o recorrente opor à decisão da Mma. Juiz a quo a sua convicção e reclamar do tribunal de recurso que adira à sua versão, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova.

4. O tribunal a quo delimitou os factos provados e não provados e indicou as provas correspondentes, examinando-as de forma crítica e ponderada, atribuindo credibilidade ao depoimento da testemunha e aos documentos e exame pericial juntos aos autos. Apoiou-se, para tanto, nas máximas da experiência e nas elementares regras da lógica.

5. Assim, entende-se que o tribunal a quo não considerou indevidamente provado o facto de a carta de condução apresentada pelo arguido quando da fiscalização ser falsa nem deixou de considerar como provados factos que o deveriam ter sido.

6. Como é sabido, o crime de falsificação de documento inclui um elemento típico subjectivo: a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo.

7. Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado.

8. Sendo certo que não se exige para a verificação deste ilícito, que se verifique o prejuízo efectivo de outra pessoa ou do Estado, nem o benefício ilegítimo do agente ou de terceira pessoa e nem mesmo o cometimento de outro crime.

9. Não obstante o tribunal a quo não ter logrado apurar em concreto os motivos que ditaram a posse e utilização do documento falso pelo arguido, certo é que concluiu, com base nas regras da experiência e do normal acontecer, que o arguido detinha aquele documento para o apresentar às autoridades em caso de fiscalização no âmbito da condução e, deste modo, gerar a convicção geral, resultante da natureza autêntica de tal documento, de que estava habilitado a conduzir veículos a motor.

10. Afigura-se-nos assim que a factualidade dada como provada pelo tribunal a quo preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de falsificação de documento, p. e p. no art. 256.º, n.º 1, al. c) e n.º 3, do Código Penal, inexistindo qualquer erro de interpretação ou violação da norma penal em apreço.

Conclui-se, assim, que a douta decisão recorrida fez uma correcta apreciação da matéria de facto e uma correcta aplicação do direito, não havendo violação de qualquer dispositivo legal, pelo que é claramente infundado o recurso interposto.

Nestes termos deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, como será de inteira Justiça.
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Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:

-- Factos provados:

a) No dia 24.08.05, na Avenida Beira Mar, em Armação de Pêra, ao ser interceptado pela GNR quando procedia à condução do veículo de matrícula RJ---, foi apreendido ao arguido a "carta de condução" n.° xxx, emitida na Ucrânia, em 16.08.03, na qual se encontra aposta a sua fotografia e onde constam os seus elementos de identificação;

b) Na sequência dessa apreensão, a aludida "carta de condução" foi remetida à DGV e por se terem suscitado dúvidas quanto à sua autenticidade foi realizado exame pericial tendo-se concluído pela sua falsidade;

c) O arguido previu e quis conduzir o referido veículo e utilizar a aludida carta de condução, que apresentou às autoridades bem sabendo que a mesma não tinha sido emitida pela entidade competente na Ucrânia, e que, desse modo, molestava a fé pública de que gozam as cartas de condução regularmente emitidas e ludibriava as autoridades públicas quanto à sua habilitação para conduzir;

d) O arguido sabia que a sua conduta lhe estava vedada por lei e não se inibiu de a realizar;

e) O arguido não tem antecedentes criminais;

f) O arguido é titular da licença de condução emitida em Portugal onde consta averbado o início da habilitação para condução de veículos ligeiros desde 29.04.1994.
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-- Factos não provados:

Não ficaram por provar quaisquer factos.
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Fundamentação da convicção:

A convicção do tribunal sobre a matéria de facto provada resultou:

a) das declarações da testemunha P, militar da GNR que abordou o arguido solicitando-lhe os documentos. Por desconfiar da genuidade da licença de condução apresentada pelo arguido, este militar remeteu a mesma à DGV (actual ANSR) que concluiu pela falsidade da mesma, declarações estas que foram proferidas com espontaneidade e coerência, merecendo a credibilidade do tribunal.

b) dos documentos de fls.5 e 6, 18 a 22, 44 e 232 a 238.

c) No mais, a prova produzida estribou-se na documentação junta pelo arguido, na pessoa do seu defensor (o arguido foi julgado na ausência) que confrontada com o print da ANSR pode confirmar a habilitação do arguido para conduzir desde 1994.

Desconhece o Tribunal as razões que levaram o arguido a apresentar carta de condução falsa quando lhe foi reconhecida a licença em Portugal com efeitos a partir de 1994 (certamente por referência aos dados do seu país de origem) – fls. 234.A única motivação eventualmente prender-se-á com o exercício da condução no hiato de tempo antes da legalização da sua licença de origem, o que de todo o modo não foi apurado.

III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.

Atendendo à matéria de facto assente como provada, às conclusões do recurso, a que do teor do relatório de exame de fls. 20 resulta que o “documento” em questão é uma impressão electrofotográfica policromática integral, obtida numa máquina de tecnologia Minolta e que o documento não revela vestígios nítidos de manipulação da imagem do titular, nem de viciação do seu preenchimento, que de fls. 44, aonde o “documento” está, se constata que o mesmo se encontra plastificado, que de fls. 233 a 238 se verifica, tal como consta da fundamentação da convicção da sentença recorrida, que a ANSR confirma a habilitação do arguido para conduzir desde 1994 e que lhe foi reconhecida a licença em Portugal com efeitos a partir de 1994 (certamente por referência aos dados do seu país de origem), a única questão posta ao desembargo desta Relação é a seguinte:

Se cometeu o crime de uso de documento falsificado, p. e p. pelo art.º 256.º, do Código Penal, o agente que, para provar à autoridade fiscalizadora que tinha habilitação legal para conduzir, exibiu uma fotocópia a cores e plastificada da sua carta de condução, que realmente existia e era válida e legítima.

Vejamos:

Sendo certo que as alterações que foram feitas aos art.º 255.º e 256.º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4-9, não alteram a decisão do presente processo, prescreve o art.º 255.º al.ª a), do Código Penal, em qualquer das redacções que sobre a data dos factos se sucederam no tempo e citado apenas na parte que agora interessa ao caso:

(…) considera-se:

a) Documento: a declaração corporizada em escrito (…) inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente (…)

E da leitura do art.º 256.º resulta que:

Existe fabrico de documento falso quando o agente forja, na integra, um documento que não existia, ou seja, o agente fabrica um documento que não existia desde a sua origem.

Há falsificação ou alteração de documento quando o agente vicia um documento preexistente, alterando em parte o seu conteúdo, inserindo-lhe novos factos ou suprindo dizeres.

O nosso direito penal consagra uma noção ampla de documento, pois abrange não só os documentos com força probatória plena mas também os restantes tipos de documentos escritos. No entanto a criminalização está restringida aos documentos que comportem declarações de factos falsos e juridicamente relevantes.

Da noção de documento retira-se que o documento tem de ser apto a provar facto juridicamente relevante. Assim o documento deve desde o seu início constituir um meio de prova, ainda que só lhe seja conferido em momento posterior.

O documento para efeitos de direito penal é a declaração e não o objecto ou suporte material da declaração.

Diferentemente do que sucede no direito civil, em que o documento é o objecto no qual se incorpora uma declaração (art.º 362.º do Código Civil).

Ora, focando-nos no caso dos autos, a declaração constante da fotocópia a cores e plastificada de que o arguido tinha carta de condução era verdadeira, correspondia à verdade, narrava um estado, aptidão ou circunstância que realmente existia. O suporte aonde essa declaração constava é que era inidóneo a provar a veracidade da declaração que continha. Mas recorde-se que, para efeitos de direito penal, o documento é a declaração e não o objecto ou suporte material da declaração.

Pelo que o comportamento do arguido não integra o cometimento do crime de falsificação de documento ou de uso de documento falsificado.

Aliás que actualmente é vulgar sobretudo os estudantes jovens e os idosos andarem não com os documentos verdadeiros, como a Carta de Condução e o Cartão de Cidadão, mas com fotocópias a cores plastificadas recortadas como se fossem os originais, isto com receio de serem assaltados e ficarem sem os originais e temerem o uso criminoso que depois lhes seja dado. Mas já andam com o passe dos transportes verdadeiro.

Ora se os cidadãos em causa forem ao banco levantar dinheiro com a fotocópia plastificada do Cartão de Cidadão, não são presos em flagrante delito do crime de falsificação de documento ou uso de documento falsificado; o que lhe acontece é que não conseguem levantar dinheiro com a fotocópia – para isso vão ter de levar o original (por isso é que andam com o original do passe dos transportes).

E se forem apanhados numa operação stop da Brigada de Trânsito e não levarem consigo a carta de condução “original” mas só a cópia plastificada da mesma, o que cometem é… a contra-ordenação p. e p. pelo art.º 85.º, n.º 1 al.ª b) e 4, do Código da Estrada:

1 - Sempre que um veículo a motor transite na via pública o seu condutor deve ser portador dos seguintes documentos:

(…)
b) Título de condução;

(…)
4 - O condutor que se não fizer acompanhar de um ou mais documentos referidos nos n.ºs 1 e 2 é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300, salvo se os apresentar no prazo de oito dias à autoridade indicada pelo agente de fiscalização, caso em que é sancionado com coima de (euro) 30 a (euro) 150.

Aliás que o mesmo se passará com o uso de cópia plastificada do Cartão de Cidadão (n.º 1 al.ª a) e 4, do mesmo preceito legal).

Claro que quem exibir cópia plastificada de algum documento de identificação pessoal corre o risco de cair na suspeita do interlocutor de que se trate de documento falsificado. E até é natural que um OPC mais cauteloso ou desconfiado apreenda a plastificação como indício desse crime; mas constatado posteriormente de que a cópia corresponde efectivamente ao respectivo documento do portador, cai por terra o indício (e a cópia deve ser devolvida ao portador: art.º 186.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Que foi o que aconteceu nos presentes autos. Constatou-se, porém e no entretanto, que a ANSR atribuíu ao arguido uma carta de condução portuguesa em substituição da que desde 1994 legítima e validamente tinha, tirada no país de origem do arguido.

Procede, pois, o recurso.

IV

Termos em que, concedendo provimento ao recurso, se decide absolver o arguido Oleh xx do cometimento do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1 al.ª c) e 3, do Código Penal, pelo qual fora condenado.

Não é devida tributação (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

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Évora,07-12-2012

(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)

João Martinho de Sousa Cardoso
Ana Barata Brito