TRANSPORTE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONTRATO
SEGURO
Sumário

- Constando de cláusula da apólice de seguro, não estarem abrangidos “os prejuízos sofridos pelos objectos seguros, quando se prove que o sinistro ocorreu por excesso de carga ou deficiência de estiva da responsabilidade do segurado”, compete à seguradora a prova da deficiente estiva.
- A queda de carga transportada no semi-reboque, em consequência de uma travagem e guinagem, quando o veículo descreve curva apertada e devido a uma manobra de um outro veículo que circulava à sua frente, constitui ocorrência abrangida pelo contrato de seguro, não podendo concluir-se sem outra factualidade, pela deficiente estiva.

Texto Integral

Acordam na Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

A , SA intentou a presente acção ordinária contra T Lda. e Companhia de Seguros…, pedindo que ambos sejam solidariamente condenados a pagar a quantia de 91.324,11€.

Para tanto alegou que convencionou com a 1.ª ré, contra remuneração, o transporte 2 contrapesos de 10 toneladas e de 1 contrapeso de 7,5 toneladas. A dado momento do percurso, ocorreu um acidente de viação, tendo o veículo transportador derrapado e embatido nos rails de protecção, o que motivou a quebra de dois contrapesos, que se partirem em 3 e dois pedaços. As gruas para as quais os mesmos se destinavam ficaram paradas, o que lhe provocou um grande prejuízo.

Contestou a ré T…, alegando que a queda dos contrapesos se ficou a dever a uma manobra inopinada do condutor de um veículo que não foi possível apurar, o qual determinou o despiste do veículo que lhe pertencia. Mais impugnou que os contrapesos tivessem ficado impossibilitados de exercer o fim a que se destinavam, referindo também que a responsabilidade pelo pagamento de uma eventual indemnização á autora seria da responsabilidade da ré seguradora, em virtude do contrato de seguro entre ambos celebrado.

A ré Companhia de Seguros contestou alegando que o dano não resultou de um acidente de viação, mas sim de um deficiente travamento e piamento da mercadoria transportada, pelo que tal facto já não está abrangido pelo contrato de seguro celebrado entre os réus.

Realizado e julgamento o Mº Juiz, respondeu à matéria de facto e proferiu sentença nos seguintes termos:

“ Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condena-se a ré T…, Lda. a pagar à autora as seguintes quantias:

- a quantia de 47.389,39€, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde 01/03/04 até efectivo e integral pagamento;

- a quantia de 5.000€, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Mais se absolve a ré Companhia de Seguros, SA dos pedidos formulados.”

Inconformada a ré Talismã e a autora interpuseram recurso de apelação da sentença, admitidos com efeito devolutivo.

Em conclusões levanta a ré as seguintes questões:

- Erro de apreciação da prova, no que toca aos itens 24 e 27, quanto ao modo como decorreu o acidente. A queda dos pesos ocorreu depois do embate nos rails.

- Cobertura do acidente pela apólice. No caso ocorreu um acidente de viação, embora sem embate.

- A Causalidade deve estender-se a todo o iter do sinistro, ainda que este tenha efeito final cortado, desde que durante o iter se tenha manifestado uma causalidade adequada à produção dos danos.

- Não excepcionamento das deficiências de estiva nas condições particulares adicionais ao contrato de seguro.

- Deve atender-se ao invocado em 11 a 14 da contestação, no sentido de que a carga foi efectuada pelo pessoal da autora recorrida.

A autora conclui em síntese:

- No ponto 24 deveria dar-se como assente apenas que “ a queda aludida em 4) ocorreu no momento em que o tractor/semi-reboque transportador efectuou uma manobra de recurso, nomeadamente quando travou e guinou bruscamente, conforme referido em 10.

- Responsabilização da seguradora por força da cobertura genérica do artigo 3º das condições Gerias da Apólice.

Sem contra-alegações.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos, ouvida a prova, há que conhecer do recurso.

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Vêm considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal “a quo”:

1 – A autora dedica-se, como a sua firma indica, ao comércio e aluguer de gruas, enquanto a 1ª R. se dedica à actividade de transportador de bens e mercadorias.
2 - Na segunda semana de Novembro de 2003, a A. acordou com a 1ª R., contra remuneração, o transporte de contrapesos, sendo o local de carga em Braga e o local de descarga no Freixieiro, Porto.
3 - No dia 15 de Novembro de 2003, a 1ª R. procedeu à carga dos contrapesos da A. em Braga, num camião com semi-reboque, veículos com as matrículas 83-89-RA e AV-15612, respectivamente.
4- No acesso à A3, no sentido Braga Porto, dois contrapesos de dez toneladas cada caíram do veículo transportador.
5 - No dia 20.11.2003 a A. remeteu à 1ª R. a comunicação constante de fls. 17.
6 - Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º6250/601658/62 a 1ª R. transferiu para a 2ª R. o risco de transporte de objectos efectuados entre as várias localidades de Portugal Continental, incluindo o efectuado com recurso aos veículos aludidos em 3), incluindo-se entre os riscos cobertos a cláusula especial de transportes terrestres e aéreos (cfr. doc. de fls. 36 cujos demais termos se dão por integralmente reproduzidos, e fls 351 com alegação de recurso).
7 - A cláusula especial referida em 6) inclui entre os riscos cobertos os resultantes de choque ou colisão entre o veículo transportador e outro veículo ou obstáculo, estando excluídos da cobertura da apólice os prejuízos sofridos pelos objectos seguros quando se prove que o sinistro ocorreu por excesso de carga ou deficiência da estiva da responsabilidade do segurado (cfr. doc. de fls. 68, cujos demais termos aqui se dão por integralmente reproduzidos).
8 - Na sequência do sinistro a A. trocou correspondência com as RR., nos termos constantes dos documentos de fls. 19 a 35, cujo teor se dá por reproduzido.
Da base instrutória
9 - Os contrapesos aludidos em D) destinavam-se a servir de base de estivação da grua “Liebherr” modelo LTM – 1400, por forma a permitirem, juntamente com outros contrapesos, o levantamento de 400 toneladas de peso.
10 - No local aludido em 4-) o veículo transportador travou e guinou bruscamente.
11- E foi embater nos rails de protecção da auto-estrada.
12 - Em consequência da queda referida em 4) um dos contrapesos partiu-se em três pedaços e o outro contrapeso partiu-se em dois pedaços.
13- A 1ª R. transportava cada um dos contrapesos amarrados a duas cintas. 14 - No estado aludido em 12-), os contrapesos tornaram-se imprestáveis para assegurar o funcionamento da grua “Libherr” LTM 1400, de quatrocentas toneladas, não sendo passíveis de reparação.
15 - Pela operação duma grua como a “Liebherr” LTM 1400 a A. factura aos seus clientes € 300.00 por hora, sem IVA.
16 - Alguns dias após o acidente, a A. viu-se obrigada a encomendar à “Liebherr Ibérica” contrapesos de substituição.
17 - A empresa fornecedora adiantou que o prazo de entrega dos contrapesos seria de 6 a 8 semanas e que o custo de transporte dos mesmos ascenderia a € 1.750,00.
18 - Assim que os contrapesos ficaram disponíveis na sucursal em Portugal da “Liebherr Ibérica” a A. comunicou o facto à “Gairiscos”, empresa de peritagens da 2ª R., referindo, em 06.01.2004, que os contrapesos ali se encontravam para serem levantados contra o respectivo pagamento.
19 - A autora não pôde proceder ao levantamento dos contrapesos por não dispor da quantia de cerca de € 50.000,00 necessária para o efeito, sendo que só em 1 de Março de 2004 logrou dispor dos meios financeiros necessários para proceder ao levantamento dos contrapesos.
20 - Tendo, para o efeito, procedido ao pagamento da quantia de € 19.036,51, sem IVA, por cada um dos dois contrapesos adquiridos, acrescido de 1.750,00€, sem IVA, a título de transporte dos contrapesos adquiridos.
21 - Em consequência do supra descrito, a autora não pode utilizar a grua “Liebherr” LTM 1400” durante 108 dias, na sua capacidade máxima, apenas a tendo podido utilizar com uma capacidade de 100 toneladas.
22 – Tal grua era a única da autora com 400 toneladas e era muito requisitada. 23 - Pela operação duma grua de capacidade de carga de 100 toneladas, a A. factura 99,00 € por cada hora.
24 - A queda aludida em 4-) ocorreu por se terem partido as cintas de lona que seguravam os dois contrapesos de 10 toneladas cada, o que ocorreu no momento em que o conjunto tractor/semi-reboque transportador efectuou uma manobra de recurso, nomeadamente quando travou e guinou bruscamente, conforme referido em 10-).
25 - Quando o motorista do veículo transportador acedia à A3, em Celeirós, sentido Braga/Porto, um veículo ligeiro guinou para a esquerda na sua frente, tendo feito um semi-pião no acesso à A3, ameaçando imobilizar-se de forma perpendicular na via.
26 - A actuação referida em 25-) obrigou o motorista da 1ª R. a efectuar uma travagem violenta e a guinar o veículo por si conduzido para o lado oposto, tendo a travagem culminado com o embate do veículo no rail de protecção da via.
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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 684º, n.º 3 e 690º do CPC o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Questões a apreciar:

- Erro de apreciação da prova, no que toca aos factos 24 e 27, quanto ao modo como decorreu o acidente. A queda dos pesos ocorreu depois do embate nos rails.
- Cobertura do acidente pela apólice. No caso ocorreu um acidente de viação, embora sem embate.
- A Causalidade deve estender-se a todo o iter do sinistro, ainda que este tenha efeito final cortado, desde que durante o iter se tenha manifestado uma causalidade adequada à produção dos danos.
- Não excepcionamento das deficiências de estiva nas condições particulares adicionais ao contrato de seguro.
- Deve atender-se ao invocado em 11 a 14 da contestação, no sentido de que a carga foi efectuada pelo pessoal da autora recorrida.

Quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

- Erro de apreciação da prova, no que toca aos itens 27, 28 e 41 da BI (factos 24 e 27).
Teor dos itens:
27 – A queda aludida em E) ocorreu por se terem partido as cintas de lona que seguravam os dois contrapesos de 10 toneladas cada.
Resposta: provado.
28 – O que ocorreu no momento em que o conjunto tractor/semi-reboque transportador efectuava uma curva acentuada à esquerda ao entrar na A3 em Celeiros.
Resposta: provado que tal queda ocorreu no momento em que o conjunto tractor/semi-reboque transportador efectuou uma manobra de recurso, nomeadamente quando travou e guinou bruscamente, conforme referido em 3).
41 – Os factos referidos em 38º e 40º levaram ao deslizamento e desprendimento da carga.
Resposta: Provado o constante a 27º e 28º sendo que o deslizamento e desprendimento da carga ocorreu antes do embate do veículo nos rails.

Sustenta-se que do depoimento de João… resulta outra realidade. Refere o recorrente que a queda resultou também do embate, referindo que deve ser considerado provado que:
“A queda dos contrapesos ocorreu na sequência ou no decurso de uma manobra de recurso do veículo pesado, a qual, entre o mais consistiu numa travagem violenta, guinada e em embate nos rail frente direita do tractor”.
Relativamente à queda dos pesos, refere-se na fundamentação apenas o depoimento da testemunha João…, motorista da ré recorrente, único que presenciou os factos.
Consta da fundamentação:
“Ora, do depoimento da testemunha João … ressalta que o mesmo afirmou que teve de efectuar uma manobra de recurso, em virtude de um veículo automóvel se ter atravessado à sua frente. Mais referiu que depois de ter travado e guinado bruscamente embateu nos rails (tal facto não foi referido anteriormente por este quando inquirido pelos peritos das seguradoras), tendo sentido a mercadoria a desprender-se, embora não conseguindo referir se tal desprendimento se sucedeu antes ou depois do embate nos rails. Confrontando tal depoimento com as fotografias juntas aos autos, nomeadamente a fotografia de fls. 199, que é bastante esclarecedora, temos que não é possível que os contrapesos se tenham soltado aquando do embate nos rails, sendo que tal facto tem de ter sucedido antes. Com efeito, a testemunha João confirmou que o veículo que conduzia é o constante da fotografia de fls. 199, sendo que se repararmos na altura do reboque e na altura dos rails, vemos que o reboque tem uma altura superior ao dos rails. Além disso, os contrapesos encontravam-se situados num plano mais elevado em relação aos referidos rails. Ora, com estas dimensões, e atento os danos causados nos rails e na estrada (vide mesma fotografia de fls. 199), é impossível que os contrapesos apenas se tenham desprendido e caído aquando do embate do veículo e do reboque nos rails, pois que, se assim fosse, não teriam provocado os danos que causaram, antes tinham caído directamente na ribanceira que se pode verificar a fls. 200. Logo e atento aqueles danos, que foram causados pela queda do contrapeso (o do asfalto é evidente), temos que concluir que a queda dos contrapesos aconteceu antes do embate nos rails. “
Do depoimento, além do referenciado na supra transcritas fundamentação, retira-se ainda que, segundo aquele, o tractor bateu junto ao estribo, guarda-lamas. Referiu ainda que a carga estava bem feita, embora não feita por si. Já tinha transportado contrapesos várias vezes. Estavam apertados tal como faria o depoente, e ainda hoje faz. Se a carga estivesse mais amarrada, referiu a testemunha, arrastaria reboque tractor e tudo. Referiu que ao fazer o desvio é natural que se desse o desprendimento, não esclarecendo devidamente se a queda se deu antes ou depois do embate. Entre o local da guinada e o rail o espaço era mínimo.
Quanto à questão da queda ter ocorrido antes ou depois do embate, não é possível fazer um juízo com um grau de probabilidade exigível (“com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas da espécie, para convencer o julgador (que conhece as realidades do Mundo e as regras da experiência que neles se colhem) da verificação ou realidade do facto”).

O raciocínio explanado na fundamentação poderá ter ocorrido. Mas, considerando a dinâmica própria dos sinistros, não é de descartar a possibilidade de a queda ter ocorrido após o embate, basta pensar num choque em ângulo recto, ou obliquado, e teremos a possibilidade de queda dos pesos no pavimento na sequência de tal embate.

O que não pode questionar-se, porque tal é de uma lógica elementar, é que as cintas rebentaram – circunstância que só por si não implica má estiva -. Se não rebentassem, com a inércia do peso da carga, todos o veículo, incluindo semi-reboque, poderia ser arrastado, o que tudo dependeria do movimento (velocidade) a que o veículo circulava. É crível de todo o modo; conjugando a velocidade (presumindo uma velocidade normal, atento o local), com uma travagem e guinada; que tal tipo de carga, tendo em conta a sua massa, adquira movimento de inércia capaz de rebentar as cintas ou arrastar o veículo. Atente-se em que o veículo está a curvar, conforme foto a fls. 199; (embora ainda não na parte mais acentuada da via); o que impulsiona a massa para fora, facto agravado com a guinada. Por outro não se demonstra convincentemente que a estiva não fosse adequada. Para uma estiva adequada não é necessária “prisão” da carga ao reboque de tal sorte no caso de esta entrar em inércia arraste consigo o reboque, como se de um só corpo se tratasse. Tal, aliás, só agravaria os danos.

Assim alteram-se as respostas questionadas nos seguintes termos:

Itens 27 e 28 - A queda aludida em E) ocorreu no momento em que o conjunto tractor/semi-reboque transportador efectuou uma manobra de recurso, nomeadamente quando travou e guinou bruscamente, conforme referido em 3), tendo-se partido as cintas de lona que seguravam os dois contrapesos de 10 toneladas cada.

41 –Provado apenas o constante da resposta dada aos itens a 27º e 28º.

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Importa agora verificar da responsabilidade da seguradora.
Na decisão considerou-se ter ocorrido um acidente de viação, o que não é contestado. Com base no facto de a carga ter caído antes do embate, entendeu-se não se encontrarem cobertos pela apólice os danos advindos da perda da carga. Refere-se que a travagem e guinagem, embora manobras de recurso, se enquadram dentro de uma condução normal de um veículo, pelo que por si só não deveriam provocar a queda da carga, concluindo-se que esta estava mal acondicionada e consequentemente integradas na exclusão prevista no nº 2 da Cláusula especial de Transportes Terrestres e Aéreos (deficiência de estiva).
Consta da nº2 aludido:
“ Não estão cobertos por esta apólice, os prejuízos sofridos pelos objectos seguros, quando se prove que o sinistro ocorreu por excesso de carga ou deficiência de estiva da responsabilidade do segurado”.
Resulta do contratado que compete á seguradora a prova da deficiente estiva, o que no caso não se mostra demonstrado.
Não obsta a este entendimento a redacção da cláusula aludida (parecendo abranger apenas os casos de capotamento, choque, colisão). Careceria de sentido não abranger o sinistro em que, pela perícia do condutor, tais consequências não chegam a ocorrer, tanto mais que a este compete, na medida do possível, minorar os danos. Seria, como se refere nas alegações, interpretação absurda.
Vejam-se aliás as condições gerais, juntas com as alegações, em que se alude à responsabilidade por “acidentes” terrestres.
Conclui-se pela responsabilidade da seguradora.
Procedem consequentemente as apelações.
DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento aos recursos, alterando-se o decidido, condenando-se ambas as rés solidariamente, nos termos constantes da sentença recorrida.
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Custas nesta instância pela ré seguradora
As de primeira instância por autora e rés na proporção de decaimento.