Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
MEDIDA DA PENA
Sumário
I - Objectivamente, a negligência não prescinde da imputação do resultado à conduta do agente, dentro da problemática da causalidade, conquanto com as especificidades de assentar em facto meramente culposo e, assim, não decorrente de uma vontade de produção do resultado, mas fundado nessa violação do dever de cuidado a que, segundo as circunstâncias, aquele estava obrigado.
II - Assim, para que se verifique, necessário é que se conclua, em concreto, ter-se verificado omissão de deveres e de diligências a que, nas circunstâncias e segundo os seus conhecimentos pessoais, o agente está obrigado e que não tenha previsto, como podia, a realização do crime (negligência inconsciente) ou, tendo-a previsto, confiou em que não teria lugar (negligência consciente).
III - O subjacente dever de cuidado é, pois, apreciado objectivamente e em concreto, variando consoante as condutas perigosas em presença e as regras ou preceitos de cautela perante o tipo de conduta, revelando-se por manifestação interna e externa.
IV - A ideia mestra da causalidade, ou teoria da adequação, é a de limitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado, pelo que deve ser complementada pela análise da conexão do risco, no sentido de determinar os riscos a cuja produção pode ser razoavelmente referido o tipo objectivo do crime e concluir que o resultado só deve ser imputável à conduta, quando esta tenha criado ou aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico.
V – Assentando a negligência grosseira num juízo de censurabilidade mais elevado – ainda que mantendo-se no domínio da negligência mais geral -, a sua presença, ou não, tem de aquilatar-se pela dimensão que é fornecida pelos diferentes aspectos da ilicitude e da culpa com que, em concreto, se depare, quer pela intensidade de violação do dever de cuidado, quer pela exigibilidade ao agente de um comportamento diferente.
Texto Integral
Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
1. RELATÓRIO
Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santarém, deduzida acusação pelo Ministério Público e realizado o julgamento, o arguido AR foi condenado, por sentença de 10.11.2011, como autor de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na execução por período de igual duração.
Inconformada com tal decisão, a assistente, MR, interpôs recurso, formulando as conclusões:
« 1° - O arguido foi condenado pela prática do crime previsto e punido no art°137°-1 do CP na pena de 1 ano de prisão suspensa na execução por igual período.
2° - Todavia, os factos dados como provados tipificam a prática do crime agravado, o ilícito previsto e punido no art°137°- 2 do CP.
3° - Pelo que deve o arguido ser condenado nessa conformidade.
4° - Na determinação da medida da pena, além dos factores considerados na decisão recorrida, deverá ser sopesado o facto do arguido já ter antecedentes criminais e até uma condenação de pena de prisão cuja execução foi suspensa.
5° - E deve, então, ser aplicada pena em toda essa conformidade, revogando-se a sentença proferida relativamente ao ilícito praticado e quanto à pena da condenação.».
O Ministério Público apresentou resposta, concluindo: « 1.O Tribunal a quo condenou o arguido AR pela prática do crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137º, nº 1, do Código Penal (CP), na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
2. A Assistente MR considera que os factos dados como provados na sentença recorrida tipificam a prática do crime agravado, p. e p. pelo art. 137º, nº 2, do CP.
3.O MINISTÉRIO PÚBLICO considera, na esteira da orientação seguida pela decisão recorrida, que os factos descritos e dados como provados na sentença, atendendo aos elementos objectivos e subjectivos do tipo, integram a prática pelo Arguido, em autoria material, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art. 137º, nº 1, do CP, pelo qual vinha acusado.
4. Não resulta da matéria de facto provada, a nível da ilicitude, que o Arguido tenha assumido um comportamento especialmente perigoso, violando de forma pouco comum as regras de trânsito, ou, ao nível da culpa, que o Arguido tenha revelado uma atitude particularmente leviana ou de descuido, omitindo os mais elementares deveres de cuidado.
5.Assim sendo, afigura-se-nos que a conduta do Arguido em apreço não excedeu a violação dos deveres de cuidado e diligência que consubstanciam a negligência simples.
6.Importa ainda referir que o facto de Arguido conduzir com taxa de álcool no sangue superior ao limite a partir da qual é proibido conduzir, não constava da acusação pública, tendo-se procedido a uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, pelo que, se se considerasse que este novo facto conduziria à imputação ao Arguido do crime agravado pelo art. 137º, nº 2, do CP, estar-se-ia perante o caso de uma alteração substancial de factos, que levaria à aplicação do regime previsto no art. 359º, do CPP, com as legais consequências.
7.Mais alega a Assistente que, na determinação da medida da pena, além dos factores considerados pelo Tribunal a quo, deveria ser tido em conta o facto de Arguido já ter antecedentes criminais, onde se inclui uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, o determinaria a aplicação de uma pena de prisão não inferior a 3 anos.
8. Concordando-se com a qualificação jurídica adoptada na sentença recorrida, entendemos que a pena aplicada de um ano de prisão se mostra adequada e proporcional, em função da culpa do Arguido e das exigências de prevenção, quer geral quer especial, que no caso se fazem sentir, concordando-se, igualmente, com os fundamentos invocados para a suspensão da sua execução.
9.De resto, a informação, obtida em sede de recurso, de que o Arguido foi condenado, no âmbito de outro processo, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, não poderia ter sido valorada aquando da prolação da decisão recorrida, em 10/11/2011, uma vez que era desconhecida do Tribunal a quo, tendo sido averbada no CRC do Arguido apenas em 30/11/2011.
Nestes termos, não deverá ser dado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida, fazendo-se, desta forma, a costumada JUSTIÇA.».
O recurso foi admitido.
Neste Tribunal, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, o qual, porém, não se considera, atendendo a que foi requerida, pela recorrente, a realização de audiência – cfr. art. 416.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP).
Colhidos os vistos legais e realizada audiência, com observância do legal formalismo, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as cominadas com nulidade da sentença (art. 379.º do CPP) e as previstas no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19.10, publicado in DR I-A Série de 28.12.1995.
Reside, então, em apreciar:
A) – se os factos provados tipificam a prática do crime agravado p. e p. pelo art. 137.º, n.º 2, do CP;
B) – se, por isso, a pena deve ser alterada para medida mais elevada, fixada em 3 anos de prisão e, em qualquer caso, não suspensa na execução.
Consta da sentença recorrida: Factos provados: 1.- No dia 20 de Março de 2009, cerca das 18:15h, na estrada nacional n.º 114, na freguesia de Várzea, Perofilho, Santarém, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca Opel, modelo Kadett, de matrícula QE---, no sentido Santarém - Rio Maior, transportando como passageiro JA, seu filho, que seguia no lugar ao lado do condutor.
2.- O traçado desta via, ao aproximar-se do KM 70, antes de chegar à Ponte da Ribeira de Perofilho, apresenta uma inclinação descendente para o lado esquerdo de 3,2%, e encontra-se devidamente sinalizado com sinais de perigo de estreitamento da via e curva para o lado esquerdo, atento o sentido Santarém - Rio Maior.
3.- Tratava-se de uma sexta-feira, o piso apresentava-se em bom estado, sem areia ou gravilha e o tempo estava seco.
4.- O arguido ia a conduzir a uma velocidade não inferior a 70Km por hora, sendo que ia levar o seu filho JA aos treinos de ciclismo em Rio Maior, encontrando-se já atrasado.
5.- Ao chegar ao KM 70 e ao aproximar-se do marco do hectómetro 8 o arguido desfez a curva para a esquerda e, dada a velocidade imprimida, perdeu o controlo da viatura, a qual entrou em despiste para o lado esquerdo, atento o sentido de marcha.
6.- O veículo veio a embater a meio da parte lateral direita contra o pilar da Ponte da Ribeira de Perofilho.
7.- Com o impacto do veículo no pilar da ponte, este entrou no mesmo e pressionou o banco do passageiro onde seguia João Amaral para trás do banco do condutor, local onde o corpo ficou após a imobilização do veículo, a qual ocorreu já parcialmente dentro da valeta do lado esquerdo atento o sentido de marcha do veículo.
8.- Mercê do embate JA sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, toraco-abdominais, que foram causa directa da sua morte.
9.- Do embate resultaram para o veículo estragos na porta dianteira e traseira do lado do passageiro com maior incidência do meio para o lado direito, mostrando-se a porta direita totalmente introduzida no interior do veículo.
10.- Não existiam marcas de travagem no pavimento.
11.- Subsequentemente ao acidente de viação supra relatado no dia 20-03-2009 o arguido foi submetido no Hospital Distrital de Santarém pelas 20:54 horas ao exame da pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, pelo sr. agente da PSP, FC.
12.- Tal exame foi efectuado com o aparelho Drager 7100 MK III P, o qual acusou que o arguido era portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,03 g/l sangue.
13.- Na sequência do referido exame, o sr. agente FC comunicou o resultado do mesmo ao arguido e informou-o que poderia realizar de imediato contra prova recorrendo a novo teste por ar expirado ou através de análise de recolha de sangue, conforme documento junto a folhas 5, cujo teor se dá por reproduzido.
14.- O arguido declarou no referido documento, cuja cópia está a folhas 5, não pretender realizar contra-prova;
15.- O arguido sabia que conduzia nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra referidas com taxa de álcool no sangue superior ao limite a partir do qual é proibido conduzir e não obstante isso, não se inibiu de conduzir, tendo-o feito influenciado pelo álcool em excesso de que era portador o qual lhe diminuiu os reflexos e atenção com que conduzia;
16.- Nas circunstâncias de tempo e lugar supra mencionadas, o arguido conduzia o veículo com desatenção às condições da via e com imperícia influenciado pelo álcool que ingerira e imprimia uma velocidade que o impossibilitou de controlar o veículo de modo a não embater no pilar da Ponte da Ribeira.
17.- O arguido agiu da forma supra descrita sem sequer representar que dessa conduta poderia resultar a morte do passageiro, seu filho.
18.- O arguido, sendo titular de licença de condução, sabia e conhecia as normas estradais.
19.- O arguido sabia, igualmente, que a sua descrita conduta era proibida e criminalmente punida, o que não o demoveu de actuar como actuou.
20.- O Arguido exerce a actividade profissional de carpinteiro auferindo mensalmente cerca de 500 euros.
21.- O Arguido é divorciado, vive com uma senhora maritalmente em casa própria da senhora, tem um filho seu e da sua companheira com meses que está a cargo do Arguido e sua companheira.
22.- O certificado de registo criminal do Arguido junto a folhas 246 dos autos, datado de 30/8/2010, cujo teor se dá por reproduzido, não insere qualquer condenação sua.
Fundamentação da convicção: O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados na análise critica do conjunto da prova produzida.
O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados desde logo nas declarações do Arguido, que os confirmou quase integralmente, tendo igualmente prestado declarações quanto à sua situação pessoal social económica familiar e profissional, tendo-se o tribunal fundado também nas declarações do Arguido quanto a tais aspectos.
O Arguido apenas declarou em contrário aos factos provados que conduzia a uma velocidade de cerca de 50 a 60 quilómetros que não sabe se havia areia que não estava atrasado para os treinos não tinham hora de chegada o treinador esperava o que fosse preciso que o carro devia ter apanhado qualquer coisa na estrada a velocidade poderia ser 50 a 60 não devia de andar mais a velocidade não devia de ser muita ia entre os 50 60 mais coisa menos coisa, não tendo estas afirmações contrárias aos factos provados merecido credibilidade ao tribunal.
Efectivamente embora tenha dito que não estava atrasado tal afirmação foi contrariada pelo depoimento da testemunha FC, agente principal da PSP que afirmou que o Arguido após o acidente lhe disse que estava atrasado, o que consignou na participação do acidente a folhas 19 a 22 dos autos e por outro lado não é crível que, como o Arguido afirmou, não tinham hora de chegada o treinador esperava o que fosse preciso.
Relativamente à velocidade por um lado o Arguido ao afirmar que a velocidade poderia ser 50 a 60 não devia de andar a mais, a velocidade não devia de ser muita, ia entre os 50 60 mais coisa menos coisa não afasta que circulasse a velocidade não inferior a 70 quilómetros por hora velocidade que é por outro lado mais consentânea com a violência do embate e com o local em que o arguido situou o despiste em plena curva em local que dista do local da imobilização segundo o croquis pelo menos cerca de 47 metros, distância percorrida em despiste pelo veículo conduzido pelo Arguido o que revela velocidade pelo menos não inferior a 70 quilómetros por hora.
O Arguido referiu ainda não se recordar do exame de pesquisa de álcool no sangue e circunstâncias em que este se processou dadas como provadas, exame e circunstâncias que foram confirmadas pela testemunha FC, agente principal da PSP que procedeu ao referido exame e tem conhecimento directo de tais factos.
O tribunal fundou-se também no depoimento prestado pela testemunha FC, agente principal da PSP, que se deslocou ao acidente depois de este se ter dado e confirmou a participação do acidente por si elaborada junta a folhas 19 a 22 dos autos, o croquis por si elaborado e as medidas que tirou bem como o exame de pesquisa de álcool no sangue efectuado por si ao Arguido e circunstâncias em que este se processou dadas como provadas, no depoimento da Testemunha PO, agente da P. S. P. que declarou que houve a comunicação do acidente ele e o agente GV foram chamados ao local chegamos antes da testemunha FC tendo presenciado a posição do veículo após o despiste e a posição do corpo estava no carro do lado do condutor parte fora do carro e pernas dentro os bombeiros chegaram o arguido esteve junto dele estava nervoso verificou a posição do carro com a frente virada para a ribeira foi com o colega FC ao hospital e presenciou a realização do teste de alcoolemia feito ao arguido, afirmando que estava consciente do teste confirmou o croquis e fotos folhas 23 a 36 e 68 a 86 e 111 a 114 que são todas do local e do veículo conduzido pelo arguido.
O tribunal fundou ainda a sua convicção quanto aos factos provados nos depoimentos das testemunhas LO, Bombeiro Municipal estive no local chamado para prestar socorro e verificou que havia uma viatura ligeira que embateu numa das guardas da ponte e no qual se encontrava uma vítima já cadáver o corpo estava parte fora e parte dentro do carro atrás do banco do condutor as pernas dentro do carro e um médico já tinha dado o corpo como cadáver, AS, médica que estava de serviço na viatura médica de Santarém e foi chamada ao acidente de viação e ao chegar ao local constatou que estava uma viatura de Rio Maior que não tinha sido accionada para aquele acidente estava um carro fora da estrada tinha batido no pilar da ponte pelo que se via foi-me dito que estava um rapaz morto no carro pela tripulação dos bombeiros que tentou chegar ao arguido a ver se ele tinha ferimentos e visíveis não os havia constatando que ele estava muito agitado a deambular acabou por chegar uma ambulância e o arguido foi acompanhado ao hospital viu o corpo da vítima sendo visível um traumatismo craniano com afundamento dos ossos não havia sinais de vida, Testemunha LL, Bombeira de Rio Maior que relatou que quando eu ia a passar já se tinha dado o acidente e ainda não estavam os meios de socorro no local tendo providenciado pelo envio dos referidos meios observando que o veículo acidentado estava fora da estrada estava um ferido dentro do carro com paragem cardio respiratória e outro, o Arguido, fora que dizia o que é que eu fiz matei o meu filho andava para um lado e para o outro.
As testemunhas MB e MM, não têm conhecimento dos factos e depuseram exclusivamente quanto ao comportamento do Arguido que conhecem.
A Testemunha MA não presenciou o acidente tendo apenas confirmado ter recebido as mensagens transcritas a folhas 309 e 310, e tendo todas as testemunhas deposto com isenção.
O tribunal fundou-se ainda na análise dos documentos juntos a folhas 2, 3, 4, 5, 6, 14, 19 a 36, 42 a 44, 50, 68 a 86, 93 a 95, 106 110 a 114, 137, 246, 309 e 310, 326, 331, 334 a 339, 373 a 376, 380 a 385 386 a 392 dos autos, examinados em audiência de julgamento.
Enquadramento jurídico e medida da pena: Os factos descritos e dados como provados, considerando os elementos objectivos e subjectivos do tipo, integram os elementos essenciais da prática, pelo Arguido, em autoria material, de um crime de homicídio negligente previsto e punido pelo artigo 137, N.º 1, do Código Penal, crime pelo qual vinha acusado.
Efectivamente como se provou o Arguido conduzia nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra referidas com taxa de álcool no sangue superior ao limite a partir do qual é proibido conduzir, o que sabia, e não obstante isso, não se inibiu de conduzir, tendo-o feito influenciado pelo álcool em excesso de que era portador o qual lhe diminuiu os reflexos e atenção com que conduzia fazendo-o com desatenção às condições da via e com imperícia influenciado pelo álcool que ingerira e imprimia uma velocidade ao veículo que o impossibilitou de controlar o veículo de modo a não embater no pilar da Ponte da Ribeira, assim originando em exclusivo com esse seu comportamento o acidente estradal em apreço, que assim se ficou a dever a culpa exclusiva sua.
O referido crime de homicídio negligente praticado pelo Arguido é punido com uma moldura penal abstracta de um mês a três anos de prisão ou com pena de multa de 10 a 360 dias, (artigos 47 n.º 1 e 137 n.º 1 do código penal revisto pelo D.L. n.º 48/95, de 15/3.).
Com a entrada em vigor das alterações ao código penal introduzidas pela Lei n.º 77/2001., de 13/7., o crime de homicídio negligente praticado pelo Arguido deixou de ser punido com a pena de proibição de conduzir atenta a nova redacção dada ao art.º 69 nº1 al. a), do Código Penal, com base no qual se condenava em proibição de conduzir, pela referida Lei n.º 77/2001, quando tal preceito exige agora, no seu n.º 1, alínea a), para que se aplique a pena de proibição de conduzir, que o Agente seja condenado pela prática de um crime previsto nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal, o que não é o caso dos autos, não sendo igualmente aplicável a situação dos autos o disposto no art.º 69 nº1 al. b), do Código Penal, aplicável apenas a situações de actuação com dolo por parte do agente.
Importa agora determinar a pena concreta a aplicar ao Arguido.
Os critérios de determinação da pena encontram-se previstos nos artigos 70 e 71º, n.º 1 e 2, do C.P..
Ter-se-á, assim, em conta na determinação da pena concreta a aplicar ao Arguido o grau de intensidade do ilícito, considerando a respectiva natureza, elevado, as consequências gravosas resultantes da prática do ilícito, a situação social, económica, profissional, e familiar do Arguido que se provou.
Não pode deixar de se realçar as trágicas consequências do acidente, que ficou a dever-se a culpa exclusiva do arguido, muito embora o mesmo lhe seja imputável a título de negligência, e que depõem contra o Arguido.
Existem, a nosso ver, exigências próprias da prevenção geral que devem ser consideradas na punição dos crimes cometidos no exercício da condução de veículos na via pública por negligência com culpa exclusiva do Agente, como é o caso dos autos, em que sobrevêm a morte de um ser humano.
De facto este resultado mesmo que involuntariamente provocado é uma consequência demasiado grave não podendo deixar de ter grande relevância na determinação da medida concreta da pena e designadamente na opção entre a pena de prisão e a pena de multa em termos de se considerar que esta última não satisfaz em tais casos as finalidades da punição.
Pelo exposto entendemos que não se deve optar no caso concreto pela pena de multa na punição do Arguido.
Atendendo aos mencionados elementos de ilicitude e culpabilidade entende-se justo e adequado fixar a pena aplicável ao Arguido em um ano de prisão.
Uma vez que estamos perante um crime punível a titulo de negligência, no qual, por definição, não existe uma decisão do Arguido pré-ordenada ao cometimento do crime, a imediata privação da liberdade só deve ser em nosso entender decretada, existindo ponderosas razões ao nível da prevenção geral que determinaram a opção pela pena de prisão, se o comportamento anterior e posterior do condutor que causa o acidente em matéria de cumprimento das normas reguladoras de trânsito não justificarem tratamento diferente.
Em nossa opinião as necessidades próprias da prevenção geral não podem só por si justificar a efectiva privação da liberdade por parte do Arguido, quando, como no caso em apreço a personalidade do Arguido e o seu comportamento não imponham tal solução.
O artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do código penal não pode ser interpretado no sentido de não ser possível determinar a suspensão da pena se apenas as necessidades de prevenção geral do crime o impuserem, tal interpretação não é conforme a um sistema penal como o nosso centrado na culpa concreta do Agente e na adequação da punição à personalidade do Arguido e ao facto ilícito por si praticado.
No caso dos autos afigura-se-nos, face a personalidade do Arguido que transparece da matéria de facto provada - delinquente sem antecedentes criminais socialmente inserido - que a ameaça da pena e a simples censura do facto se mostram adequadas para afastar o Arguido da prática de outras infracções do mesmo ou de outro género.
Em face do exposto e ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.ºs 1 e 5, do código penal decide-se declarar suspensa a execução da pena aplicada ao Arguido pelo período de um ano.
Apreciando:
A recorrente não põe em causa a factualidade provada, nem da mesma decorre, conjugada com a análise crítica da prova, que padeçade algum vício da decisão, previsto no art. 410.º, n.º 2, do CPP, o qual, a existir, teria de resultar do texto dessa decisão e das regras da experiência comum.
Assim, sem necessidade de acrescido esclarecimento, a matéria de facto fixada dá-se como assente.
Passando, pois, ao objecto do recurso:
A) -
Preconiza arecorrente que a conduta do arguido seja integrada no crime de homicídio por negligência previsto no art. 137.º, n.º 2, do CP, que, por referência à existência de negligência grosseira, pune o agente com pena de prisão até cinco anos.
Para tanto, invoca as circunstâncias e condições em que o arguido conduzia o veículo, conferindo relevo ao facto provado em 17 (O arguido agiu da forma supra descrita sem sequer representar que dessa conduta poderia resultar a morte do passageiro, seu filho) e ao teor das mensagens transcritas a fls. 309 e 310 (referidas na motivação da convicção), para concluir que se tratou de acção particularmente perigosa do arguido, adstrito a especial dever de cuidado, não só por conduzir o veículo com o passageiro seu filho, como igualmente pela sinalização existente no local.
A negligência, definida no art. 15.º do CP, contém-se na culpa em sentido genérico, exprimindo um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente, que assenta na violação de deveres de cuidado, simultaneamente revestindo um juízo de facto e um juízo de valor, que deve ser apreciado à luz do grau de diligência exigível ao destinatário da norma, na perspectiva de uma culpa em abstracto, através do padrão do “bonus pater familias”, ou seja, de um homem médio e normal colocado nas circunstâncias que o caso mereça, sem, contudo, esquecer as capacidades individuais do agente.
Traduz a violação de um dever de cuidado, por acção ou omissão, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que, segundo as circunstâncias, o agente podia ter cumprido.
«O tipo de ilícito do facto negligente considera-se preenchido por comportamento sempre que este discrepa daquele queera objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente proibida» (Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, tomo I – “Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, Coimbra, 2004, pág. 634).
A ordem jurídica, ao impor esse dever objectivo de cuidado, está a afirmar, num plano normativo, o verdadeiro sentido onto-antropológico que liga o agir entre os homens.
E, quando em presença de acidentes de viação, como no caso sucede, relevante é, pois, a apreciação da violação das regras ou cautelas de que a lei procura rodear a circulação rodoviária, actividade que é, por natureza, perigosa.
Objectivamente, a negligência não prescinde da imputação do resultado à conduta do agente, dentro da problemática da causalidade, conquanto com as especificidades de assentar em facto meramente culposo e, assim, não decorrente de uma vontade de produção do resultado, mas fundado nessa violação do dever de cuidado a que, segundo as circunstâncias, aquele estava obrigado.
Assim, para que se verifique, necessário é que se conclua, em concreto, ter-se verificado omissão de deveres e de diligências a que, nas circunstâncias e segundo os seus conhecimentos pessoais, o agente está obrigado e que não tenha previsto, como podia, a realização do crime (negligência inconsciente) ou, tendo-a previsto, confiou em que não teria lugar (negligência consciente).
O subjacente dever de cuidado é, pois, apreciado objectivamente e em concreto, variando consoante as condutas perigosas em presença e as regras ou preceitos de cautela perante o tipo de conduta, revelando-se por manifestação interna e externa.
A perspectiva interna determinará o dever de representar ou prever o perigo para o bem tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo.
Por seu lado, o cuidado externo comporta três exigências:
- o dever de omitir acções perigosas que se mostrem propícias à realização do facto típico, em que cabem as acções empreendidas pelo agente que tenha falta de preparação ou capacidade para as levar a cabo;
- o dever de actuar prudentemente em situações perigosas, por comportarem, em si, um perigo inato, mas que são valiosas e indispensáveis do ponto de vista social e no actual contexto da vida em sociedade, em que entronca a margem de risco permitido;
- o dever de preparação e informação prévia relativamente à exigência de cada indivíduo se munir, anteriormente à acção que envolve um risco, dos conhecimentos que lhe permita empreendê-la com segurança.
A violação do dever de cuidado determina-se, pois, antes de mais, por critérios objectivos, dados pelas exigências postas a um homem avisado e prudente, na situação concreta do agente.
A extensão desse dever, se bem que reportada ao homem médio do círculo social ou profissional do agente, assenta igualmente num critério individualizador e subjectivo, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e as capacidades do agente.
Quanto ao subjacente conceito de causalidade, a que alude o art. 10.º do CP, tem em vista a apreciação da causa adequada a produzir o resultado, seja por acção, seja por omissão, perante a qual essa adequação tem de ser aferida segundo um juízo de “prognose póstuma”, o que significa, conforme Figueiredo Dias, ob. cit. pág. 310, que o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o normal acontecer das factos, a acção praticada teria como consequência a produção do evento. Se entender que a produção do resultado era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar.
E, como escreveu Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, Almedina, 2.ª edição, 1973, pág. 748. Em condições regulares, desprendendo-nos da natureza do evento constitutivo da responsabilidade, dir-se-ia que um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele.
A ideia mestra da causalidade, ou teoria da adequação, é a de limitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado, pelo que deve ser complementada pela análise da conexão do risco, no sentido de determinar os riscos a cuja produção pode ser razoavelmente referido o tipo objectivo do crime e concluir que o resultado só deve ser imputável à conduta, quando esta tenha criado ou aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico.
Conforme expressivamente salientou Claus Roxin, in “Problemas Fundamentais de Direito Penal”, a pág. 257 e seg., (…) a questão fundamental e decisiva é a seguinte: como se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente? Como método de resposta, proponho o seguinte procedimento: examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do arguido, e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido.
Feitas estas considerações de ordem geral, os critérios de imputação objectiva e subjectiva do crime ao comportamento do arguido estão claramente presentes.
Com efeito, o arguido conduzia o veículo a velocidade inadequada em razão da inclinação da via e da eminência de estreitamento da mesma, bem como da aproximação de uma curva, o que estava devidamente sinalizado, mas que desatendeu, motivo por que não logrou controlar a viatura e de modo a que esta não entrasse em despiste e embatesse violentamente no pilar da ponte, com a trágica consequência da morte do seu filho, que seguia a seu lado no veículo.
Acresce que se encontrava influenciado pelo álcool e diminuído, por isso, nos seus reflexos e atenção.
Violou imposições do Código da Estrada e a prudência que, no caso, lhe era exigida, com capacidade para ter agido de modo diverso, relativamente a resultado, nas circunstâncias, previsível e evitável.
Dúvida não se coloca, pois, quanto ao nexo entre o desrespeito pelas regras estradais e o dever de cuidado que a situação merecia e, mais se provou, que o arguido desprezou o dever de representação, ou de justa representação, do resultado verificado, sabedor dessas regras.
Indiscutivelmente, o crime de homicídio por negligência mostra-se cometido.
Não obstante, a recorrente – sufragando posição que manifestara no processo (acta da audiência de julgamento de 396/398) - pretexta que a negligência seja intensificada, não só ao nível da culpa, como também do ilícito, tida como grosseira, para o efeito do enquadramento no n.º 2 do referido art. 137.º.
Inexiste uma definição legal de negligência grosseira, embora, na parte especial do Código Penal, à mesma se aluda como fundamento de condição ou agravamento da punição (arts. 156.º, n.º 3, e 369.º, n.º 2).
Segundo Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Coimbra, 1971, pág. 430 (nota 2), “Ao lado da distinção negligência consciente - negligência inconsciente, mas independentemente dela, volta hoje a falar-se de uma negligência qualificada ou negligência grosseira (correspondente à antiga «culpa lata» latina ou à «Leichtfertigkeit» alemã) que daria lugar ou a uma punição particularmente grave dentro dos quadros da negligência ou mesmo a uma punição dentro da moldura penal dolosa, embora livremente atenuável” e, a pág. 443, “na negligência grosseira que deriva do desrespeito pelo particular dever de representação, que a prática do crime fundamental doloso envolve, reside a justificação para a pesada agravação da pena neles cominada”.
Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal - Parte General”, Granada, Comares, 1993, pág. 517, fazendo-a corresponder à negligência grave do Direito Civil, situa-a quando o agente infringiu, em medida não usualmente alta, o cuidado requerido, ou quando não prestou atenção ao que devia ser evidente para qualquer pessoa.
Refere Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 668/669, “Seguro é que a negligência grosseira constitui, em direito penal, um grau essencialmente aumentado ou intensificado de negligência. Para além disto, porém, é importante tanto de um ponto de vista prático-normativo, como construtivo-sistemático, decidir se o carácter grosseiro da negligência – conformador, sem dúvida, de uma realidade análoga àquela (quando não com ela coincidente) que a doutrina alemã traduz por Leichtfertigkeit – constitui exclusivamente uma forma qualificada da culpa negligente (nomeadamente, uma característica da atitude do agente que operaria preferentemente ao nível da culpa ou uma graduação do ilícito em função do especial dever de cuidado que sobre o agente recai, do perigo aumentado e(ou) da probabilidade e da especial frequência de verificação do resultado. A razão assiste – entre outros – a Roxin quando defende que o conceito implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito. A nível do tipo de ilícito torna-se indispensável que se esteja perante um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada. Mas daqui não pode concluir-se sem mais que também o tipo de culpa resulta, nestes casos, inevitavelmente aumentado, antes tem de alcançar-se a prova autónoma de que o agente revelou no facto uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.”.
Faria Costa, in “As definições legais de dolo e de negligência enquanto problema de aplicação e interpretação das normas definitórias em Direito Penal”, separata do vol. LXIX ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1993, pág. 375, entende-a como expressão de um alto e inqualificável teor de imprevisão ou de profunda ausência de cuidado elementar.
Refere o mesmo Autor, in “Direito Penal Especial”, Coimbra, 2004, pág. 95, que “será, com efeito, assim, sempre que a probabilidade de ocorrência daquele resultado se apresenta de tal modo evidente que o cidadão comum, medianamente consciente e cumpridor dos comandos normativos, teria, de forma clara, evitado a conduta violadora do dever de cuidado. Caberão assim equivocamente na categoria da negligência grosseira (…) também os casos em que, por força de um alto e inqualificável teor de imprevisão, forem desrespeitadas as mais evidentes regras de cuidado de perigo para com o Outro”.
Vem-se entendendo e, que se saiba, pacificamente, que a negligência grosseira não se verifica apenas, ou tendencialmente, nos casos de negligência consciente.
Neste âmbito, Faria Costa, ob. cit., pág. 95, aduz “… poder-se-ia pensar o comportamento negligente – a nosso ver erradamente – à luz de uma escala de valor ascendente: a negligência inconsciente encontrar-se-ia no extremo da menor gravidade, no centro estaria a consciente e, no limite do desvalor máximo, desvendar-se-ia a negligência grosseira. Uma tal compreensão em crescendo da negligência levar-nos-ia em conclusão de que a negligência grosseira, por força da sua localização naquela escala, teria de possuir as notas caracterizadoras da negligência consciente e algo mais que justificasse a exasperação do desvalor. Não seria, assim pensável a qualificação como grosseira de uma negligência – a inconsciente – vista como um minus à luz daquela gradação. Não se nos afigura, porém, adequada, por desconforme com a realidade, uma arrumação de tal modo espartilhada desta categoria dogmática que é a negligência. É, de resto, do mais elementar senso comum a ideia de que a imprevisão do resultado que a norma pretende evitar pode, em si mesma, ser muito mais desvaliosa…”
Outras formulações na doutrina, mas que não diferem, no essencial, das apontadas características (por isso, aqui, dispensando outras referências), podem consultar-se em “A Negligência Grosseira: Contributo para Discussão sobre a sua Autonomia Material”, de Selma Pereira de Santana, in “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra, 2003, págs. 571 e segs..
Na jurisprudência, podem citar-se, por significativos (acessíveis em www.dgsi.pt):
- o acórdão do STJ de 11.11.1998, cujo sumário refere: III. A negligência grosseira corresponde à antiga culpa ‘lata’ latina e apresentando grandes afinidades com a culpa temerária espanhola….constitui uma culpa qualificada pela falta de previsão, ponderação, atenção, diligência e cuidados mais elementares;
- o acórdão do STJ de 15.11.2001 (sumário): I. A negligência grosseira é uma forma qualificada de negligência que ocorre quando a violação dos deveres de cuidado e diligência que consubstancia a negligência simples assume uma mais intensa gravidade, quando os mais elementares deveres de precaução e prudência são de todo omitidos, quando o acto omissivo revela grande irreflexão ou ligeireza.
Assentando, pois, a negligência grosseira num juízo de censurabilidade mais elevado – ainda que mantendo-se no domínio da negligência mais geral -, a sua presença, ou não, tem de aquilatar-se pela dimensão que é fornecida pelos diferentes aspectos da ilicitude e da culpa com que, em concreto, se depare, quer pela intensidade de violação do dever de cuidado, quer pela exigibilidade ao agente de um comportamento diferente.
Como referido, a circunstância do arguido ter agido com negligência inconsciente (o que decorre do facto provado em 17), não afasta a susceptibilidade de existência da negligência grosseira, além do mais, tendo em conta, em concreto, o carácter de especial desvalor do resultado, com a morte do seu filho.
Cumprirá, então, ora, saber se, ao nível da ilicitude, a acção do arguido deve reputar-se como particularmente perigosa e com resultado de verificação altamente provável à luz da conduta que adoptou.
O arguido conduzia o veículo em excesso de velocidade, por se afigurar que era inadequada à circulação com segurança, atentando em que a via apresentava uma inclinação não despicienda e estava devidamente sinalizada, alertando para os perigos relacionados com o seu estreitamento e a aproximação de uma curva para o lado em que tinha essa inclinação.
Não obstante, o arguido continuou a sua marcha, em desconsideração das condições que se lhe deparavam, violando o disposto no art. 24.º, n.º 1, do Código da Estrada (CE), além de que estava influenciado pelo álcool que ingerira, cuja taxa revelada é já considerável (1,03 g/l), bem superior ao limite a partir do qual é tida como susceptível de comportamento contra-ordenacional muito grave (0,8 g/l, conforme art. 146.º, alínea j), do CE) e não distante de configurar-se como crime (art. 292.º, n.º 1, do CP).
Mostra-se que não regulou a velocidade como se lhe exigia, descurando que a devia ter moderado por circular em local assinalado com sinais de perigo e numa curva (art. 25.º, n.º 1, alíneas f) e i), do CE), ainda que não tendo excedido limite superior a 20 km/h ao legalmente permitido (cfr. art. 145.º, n.º 1, alínea c), do CE) e que o estado da via e as condições meteorológicas se apresentassem sem requerer especial cuidado.
Não existe qualquer referência ao trânsito no local, no momento, de outros veículos ou de pessoas, se bem que se tratasse de uma estrada nacional.
No tocante à probabilidade de verificação do resultado, afigura-se que, pese embora a conduta apurada, esta não atingiu uma dimensão de molde a que fosse altamente previsível que viesse a desencadear as consequências reveladas.
Ao invés, a situação reconduz-se, sim, à violação daquelas regras estradais, mas em grau que não é especialmente elevado, conquanto importante, para que essa previsibilidade se apresentasse quase como inevitável.
Se bem que, ao nível da velocidade, não fosse a adequada, não atingiu, nas circunstâncias, um desvalor que se perspective como conducente, segundo as regras da experiência, ao resultado verificado, de tal modo que a probabilidade deste se afigurasse como particularmente relevante, para o efeito em apreciação.
Não se descura que era acompanhada da influência negativa do álcool, mas, ainda assim, não resulta, com o rigor exigível, que, em concreto, os critérios de aferição da ilicitude devam ser tidos como especialmente qualificados.
Por seu lado, ao nível da culpa do arguido, a sua atitude também não assume, em nosso entender, uma particular leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, no sentido em que tivesse criado um alto perigo de acidente, mesmo atentando em que o seu filho seguia no veículo e que, por isso, uma maior exigibilidade de acatar os cuidados devidos se lhe impunha.
Aliás, conforme resulta do facto provado em 4, implícito à velocidade a que conduzia, estava o atraso do filho para os treinos de ciclismo e, da circunstância deste ter falecido, não decorre que a culpa deva, sem mais, ser particularmente desvaliosa.
Relativamente ao alegado teor das mensagens de fls. 309 e 310, enviadas pelo filho do arguido à namorada (testemunha M) pouco tempo antes do acidente, o mesmo relevou para o tribunal no apuramento da velocidade a que o veículo seguia, claramente inadequada, mas sem que daí se possa extrair algo mais quanto à ilicitude e à culpa do arguido que ficaram descritas.
Deste modo, os factos provados foram acertadamente enquadrados no crime p. e p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP, pelo que, nesta parte, o recurso improcede.
B) -
A aplicação ao arguido da preconizada pena de 3 anos de prisão tem subjacente que se tivesse entendido que a negligência grosseira se verificou.
Tendo o tribunal optado, e bem, pela aplicação de pena privativa da liberdade, corresponderia ao limite máximo previsto para o crime por que foi condenado, o que, desde logo, suscitaria o reparo do seu excesso, perante os critérios de determinação da pena concreta.
Segundo Fernanda Palma (“As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” em “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, AAFDL, 1998, págs. 25/51, e em “Casos e Materiais de Direito Penal", Almedina, 2000, págs. 32/33), «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral».
E, como é reconhecido, (1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais (Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral”, tomo I, Coimbra, 2004, pág. 81).
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável -, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.
Por seu lado, a culpa não é mais do que o juízo de apreciação e de valoração que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da sua validade lógica, ética ou do direito, conforme se expendeu no acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ Acs. STJ, ano IV, tomo II, pág. 168, funcionando como limite das considerações preventivas (limite máximo), ligada ao princípio do respeito pela dignidade da pessoa do agente.
Na sua ponderação global, a culpa revelada pelo arguido é, na verdade, considerável, situando-se, no âmbito do ilícito em apreço, num grau de censurabilidade não inferior à mediania, a que se exige resposta que não frustre a confiança na validade das normas correspondentes, de inegável relevância.
As exigências de prevenção geral são, na situação, as atinentes aos elevados índices de acidentes de viação e às consequências fatais ou de grande gravidade que daí derivam, associadas, em concreto, à perda de uma vida humana.
Por seu lado, as exigências de prevenção especial, ainda que, em concreto, menos elevadas, são também importantes, atentando em que o arguido denotou irreflexão na sua conduta, além do mais, descurando que estava influenciado pelo álcool e que transportava o filho.
Sem embargo de que a sentença seja deveras sucinta na respectiva fundamentação, entende-se que, de acordo com o disposto no art. 72.º, n.ºs 2 e 3, por referência ao art. 40.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CP, o grau da ilicitude e da negligência é considerável, o arguido em parte assumiu o seu comportamento, está socialmente inserido e não averbava, segundo o acórdão, qualquer condenação anterior.
Neste último aspecto, a recorrente veio juntar à motivação de recurso certidão de fls. 437/462, segundo a qual, por sentença transitada em julgado em 24.01.2011 (e assim anterior à prolação da sentença recorrida), o arguido sofreu condenação por crime de violência doméstica, cometido em 2009 (após a data dos factos “sub judice”), em pena de prisão suspensa na execução.
Tal não foi atendido na sentença, por não constar do registo criminal então disponível, sendo que, de acordo com a resposta do Ministério Público ao presente recurso, isso só foi averbado em 30.11.2011, ou seja, já depois da data da sentença.
Deste modo, nunca poderia o facto provado em 22 ter sido consignado de outra forma, correspondendo este, como é expresso, ao teor do certificado datado de 30/8/2010.
Seja como for, à data da prática do crime aqui em causa, o arguido não tinha antecedentes criminais e os factos respectivos são também anteriores àqueles por que sofreu a referida condenação.
Ponderando todo o circunstancialismo e com os parâmetros em presença, entende-se que a aplicação de pena em medida equivalente à média dos limites legais é proporcional à culpa do arguido e às finalidades da punição, pelo que a pena cominada é alterada para 2 anos de prisão, por mais justa.
A suspensão da sua execução tem a discordância da recorrente, estribada tão-só na existência da mencionada condenação, a que, como aludido, a sentença não poderia ter atentado.
Consubstancia-se como medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico, que tem a virtualidade, além do mais, de dar expressão a que a prisão (e sua execução) constitui “ultima ratio” da punição, apesar de limitada pela salvaguarda das referidas finalidades punitivas, obstando, assim, aos nefastos efeitos criminógenos que são comummente reconhecidos - v. art. 18.º, nº.2, da Constituição da República Portuguesa, e Anabela Miranda Rodrigues, in “Sistema Punitivo Português”, Revista “Sub Judice”, n.º 11, Janeiro/Junho.1996, pág. 32 (A principal linha de força a destacar aqui é que a prisão (…) deve ver a sua aplicação reduzida aos casos de cometimento de crimes mais graves em que uma reacção através de outras formas de pena não poderia assegurar o efeito essencial de prevenção geral desejado).
Do ponto de vista dogmático, é uma pena de substituição, pois é necessariamente aplicada em substituição da execução da pena de prisão concretamente determinada, revestindo a natureza de verdadeira pena e com carácter autónomo, com campo de aplicação, regime e conteúdo político-criminal próprios.
Por isso, a sua aplicação funda-se em critérios de legalidade e não de moralidade, havendo que respeitar as exigências legais para a sua aplicação, as quais, no essencial, se reconduzem à ideia da existência de prognóstico favorável quanto ao comportamento futuro do agente, sem esquecer todas as circunstâncias que na vertente da medida da pena, em concreto, se coloquem e que não colidam com as necessidades preventivas que se deparem.
Conforme Figueiredo Dias, in ”Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias, 1993, pág. 343, A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos -«metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo e, a pág. 501, Ela (a prevenção geral) deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico (…) como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
São, pois, razões de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, e não de culpa, que devem conduzir a apreciação acerca da aplicação, ou não, da suspensão da execução da pena (v. mesmo Autor, ob. cit., pág. 344 e, entre outros, o acórdão do STJ de 20.02.2008, no proc. n.º 08P295, em www.dgsi.pt), sem prejuízo da adequada análise das restantes vertentes que os factos e a personalidade do agente revelem.
Com efeito, a confiança da comunidade na validade das normas, se não pode ceder em limites que lhe retirem sentido na ponderação e concordância prática das finalidades e exigências em presença, não poderá, do mesmo modo, constituir parâmetro que impeça a realização das finalidades de política criminal que justificam e conformam o regime penal.
Assim, essa confiança é afirmada pela aplicação das penas adequadas pela sua violação, que traduza a interiorização e o respeito pelo sistema de valores fundamentais reconhecidamente aceites e, por isso, penalmente tutelados; mas, do mesmo modo, a comunidade deve sentir e compreender as opções de política criminal que se realizam através da formulação e aplicação do direito penal.
Porém, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo que o tribunal conclua por um prognóstico favorável à luz de considerações exclusivas de socialização do arguido, quando a essa suspensão se opuserem as finalidades da punição, nomeadamente as considerações de prevenção geral sob a forma daquelas exigências de defesa, pois que só por estas exigências se limita o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto (também, o mesmo Autor, ob. cit., pág. 344).
Para aplicação desta pena de substituição necessário se torna que o julgador se convença de que o facto cometido não está de acordo com a personalidade do arguido, que foi caso acidental, esporádico, ocasional, e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas, não olvidando que a pena de substituição não pode colocar em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos (mesmo acórdão do STJ de 20.02.2008)
.
Nisso residirá o referido prognóstico favorável de que a censura da conduta e a ameaça da prisão são suficientes para a satisfação das finalidades preventivas da punição, sem descurar que, em qualquer caso, se tratará de decisão baseada num risco prudencial, tanto quanto possível atenuado pela adequada valoração que todas as circunstâncias concretas ofereça.
O tribunal “a quo” sustentou a suspensão da prisão na personalidade do arguido, na ausência de antecedentes criminais e na sua inserção social.
Não se vê fundamento sério para afastar a aplicação dessa pena de substituição, já que, situando-se a pena ora decidida dentro do limite previsto no art. 50.º, n.º 1, do CP, a protecção das exigências preventivas e das finalidades da punição com isso não colide e os objectivos de socialização para isso confluem.
Afigura-se que, não obstante a gravidade dos factos, a sujeição do arguido a prisão, com carácter efectivo, é desnecessária, face aos aspectos de personalidade que é possível detectar e à inexistência de elementos seguros para concluir que reiterará conduta similar àquela em que incorreu, a que acresce que a inevitável carga emocional da perda do seu filho, e por sua culpa exclusiva, já de si será bem dissuasora.
O período de suspensão da execução corresponderá, nos termos legais (art. 50.º, n.º 5, do CP), à duração da prisão.
3. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se:
- conceder parcial provimentoao recurso interposto pela assistente e, assim,
- em substituição, condenar o arguido na pena de 2 (dois) anos de prisão suspensa na execução por período de igual duração;
- no mais, manter a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, com a taxa de justiça em soma correspondente a 4 UC.
Processado e revisto pelo Relator.
Évora, 20 de Dezembro de 2012
Carlos Berguete Coelho
João Gomes de Sousa
Fernando Ribeiro Cardoso - Presidente desta Secção Criminal -