REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
CASO JULGADO
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
Sumário


1. Transitado em julgado o despacho de rejeição da acusação, enferma do vício de inexistência a decisão judicial posterior que, reapreciando a questão, receba a acusação e designe dia para julgamento”.[1]

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I. Inconformado com a sentença que, no processo 366/08.4TAODM.E1, o condenou – pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p.p. pelos artºs 107º e 105º, nº 1, ambos do RGIT – na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob condição de entrega ao ISSS, I.P., nesse prazo, da quantia de € 6.838,87 e juros legais, recorreu o arguido AF, com os demais sinais dos autos, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas a partir do respectivo suporte informático):

«1 - nos presentes autos, tudo quanto foi processado a partir de 21 de Setembro de 2010, data em que transitou em julgado o Despacho proferido em 13 de Julho que rejeitou a Acusação e considerou prejudicada em sede do processo penal, a apreciação do pedido de indemnização civil deduzido a fls. 389 e SS – é nulo e de nenhum efeito.

2 - o referido Despacho transitou em julgado a essa data e passou a constituir caso julgado formal.

3 - era vedado ao Ministério Público repetir a Acusação pelos mesmos factos contra o mesmo arguido com a mesma qualificação jurídica.

4 - o Mmº Juiz não deveria ter recebido a Acusação repetida, no Despacho de Saneamento que proferiu em contradição com o que foi decidido no Despacho de 13 de Julho.

5 - a Acusação de fls. 419 e segs, recebida através do Despacho de fls. 440 e dos autos, é exactamente igual àquela que foi deduzida a fls. 376 a 380 e que foi rejeitada por Despacho de fls. 409 a 423, proferido em 13 de Julho de 2010.

6 - o douto Despacho proferido a fls. 440-441, viola o disposto no artº 29º , nº 5 da Constituição da República Portuguesa e as regras processuais referentes aos efeitos do caso julgado – artº 494 - b) e i) do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo penal.

7 - por cautela de patrocínio, para o caso de improcedência desta matéria, o arguido considera que os factos dados como provados nos pontos 13, 14, 15, 16 da al. A) do ponto II da douta sentença em recurso - Fundamentação Fáctica não têm conexão com o processo, ultrapassam os seus limites e não têm suporte fáctico, pelo que a sentença proferida pela Mmª Juíza a quo padece de vício de insuficiência de prova - al. b) do nº 2 do artº 410º do CPP.

8 - a pena aplicada ao arguido não tem em conta factos significativos que importava considerar, tais como: o esforço do arguido em repor as verbas à Segurança Social, as dificuldades de mercado desde 2003, o montante, já pago, os acordos de pagamento, o facto de o arguido se encontrar em trabalho dependente e não (s)e encontrar em posição de continuar a praticar o crime, o montante da dívida, relativamente, diminuto comparado com outras dívidas de montantes muito mais elevados.

9 - não existe nada nos autos que permita concluir pela personalidade desresponsabilizadora do arguido, pela elevadíssima ilicitude, pela conduta altamente reprovável do arguido, pelo dolo grave, pela continuação da actividade delituosa.

10 - não há suporte nos autos para as conclusões da Mmª Juíza recorrida relativamente às praticas usuais dos empresários portugueses, às práticas usuais dos empresários alentejanos para camuflarem comportamentos ilegais e fugir ao pagamento de dívidas e contribuições sociais, especialmente, no que toca ao arguido.

11 - a sentença não usou, a nosso ver indevidamente, o preceituado no artº 70º do CP que dá preferência à pena de multa sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção.

12 - as conclusões que tirou a Mmª Juíza para afastar a aplicação deste preceito nada têm a ver com personalidade do arguido e os factos dos autos, devendo ser inconsequentes para o arguido.

Assim,

-o Despacho proferido em 13 de Julho de 2010 deverá ser interpretado corno constituindo caso julgado, anulando-se todo o processado, posteriormente, inclusivamente, a douta sentença que condenou o arguido;

- em caso de não conformação do Venerando com esta interpretação, deverá a sentença recorrida ser considerada viciada por insuficiência de prova e substituída por outra na qual o arguido seja condenado pelo crime que praticou dentro dos limites da Acusação e ser-lhe substituída a pena por sofrida por pena de multa».

Respondeu a Digna Magistrada do MºPº na 1ª instância, defendendo a extemporaneidade do recurso e, a assim se não entender, a sua improcedência, extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas a partir do respectivo suporte informático):

«1ª. O arguido AF veio recorrer de facto e de direito da sentença que o condenou pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à segurança social, p. e p. pelos arts. 107º e 105º, nº 1, do RGIT, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na execução por igual período, condicionada à obrigação de o arguido, nesse prazo, entregar ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social, IP a quantia indemnizatória devida (6.838,87 €, acrescida de juros moratórios à taxa legal).

Para o efeito e conforme se extrai das conclusões formuladas, o arguido alegou que:

- o processado é nulo em virtude de o despacho de fls. 440-442 violar o disposto no art. 29º, nº 5, da CRP e as regras processais referentes aos efeitos de caso julgado – art. 494º, b) e i) do CPC aplicável subsidiariamente.

- a decisão recorrida padece do vício de insuficiência de prova previsto no art. 410º, nº 2, b), do CPP quanto aos factos provados nos pontos 13 a 16 da decisão da matéria de facto.

- É excessiva a condenação na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução com a condição de pagar a indemnização devida ao “ISS, IP”, devendo ser condenado em pena de multa, pelo que violou o disposto no art. 70º do CPP.

Conclui pedindo que a anulação de todo o processado e, subsidiariamente, a condenação em pena de multa.

2ª. Considerando o âmbito do presente recurso, que se delimitou supra, entende-se que o mesmo não deve ser admitido por duas ordens de razões:

- versando o recurso sobre a matéria de facto, não foi cumprido o ónus de especificação previsto nos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP, pois que o recorrente se limita a indicar os factos que considera incorrectamente julgados, sem indicar a razão pela se impunha decisão diferente e sem indicar as provas cuja renovação pretende, pelo que nessa parte não deve ser admitido o recurso do arguido;

- sendo inadmissível o recurso sobre a matéria de facto e, consequentemente, a reapreciação da prova gravada, o prazo de recurso é de 20 dias, pelo que o presente recurso, apresentado no dia 07.11.2011, 30 dias (mais 1 dia útil) após o depósito da sentença (ocorrido a 04.10.2011), é extemporâneo e deve ser rejeitado – arts. 411º, nº 1 e 3, do CPP.

Sem prescindir e por dever de ofício, acrescenta-se que:

3ª. O despacho que, nos termos do art. 311º do CPP, rejeita a acusação aprecia apenas aspectos formais da mesma, o que não impede que, sanadas as respectivas deficiências, seja deduzida nova acusação e que o agente venha a ser julgado, para apreciação da matéria factual descrita na acusação, caso a responsabilidade criminal ainda não se mostre extinta (por prescrição, morte, indulto, perdão genérico ou amnistia).

4ª. Se quisermos fazer um paralelo com o processo civil (em que merece destrinça o caso julgado formal do caso julgado material), transitado em julgado o despacho de rejeição da acusação, o mesmo assume força de caso julgado formal, pois que o arguido não é “absolvido” dos factos descritos na acusação rejeitada. Dito de outro modo, poderá equiparar-se a rejeição da acusação a uma decisão de “absolvição da instância” e não a uma “absolvição do pedido”. Aliás em processo civil, a decisão de absolvição da instância não impede que seja instaurada nova acção, com a mesma causa de pedir, desde que já não contenha os vícios julgados no despacho saneador.

5ª. Inexiste violação do disposto no art. 29º, nº 5, da CRP, por o arguido apenas ter sido sujeito a julgamento uma única vez, nestes autos, pelos factos da acusação deduzida a fls. 420-423, recebida por despacho de fls. 440-441, relativamente aos quais foi proferida a decisão condenatória ora posta em crise.

A verdade é que ainda que tenham sido deduzidas duas acusações nos autos, a primeira foi rejeitada (sem efeito) e a segunda é que foi apreciada pelo tribunal a quo.

6ª. A considerar-se que a nova acusação de fls. 420 a 423 ou o despacho de fls. 440-441 são nulos, tal não constituiu uma nulidade insanável, visto não integrar o disposto no art. 119º do CPP. Assim, consubstancia apenas uma irregularidade ou uma nulidade sanável, a qual nunca foi invocada a não ser agora em sede de recurso, pois que o arguido, devidamente notificado, nem sequer requereu a abertura de instrução nem apresentou contestação.

7ª. Nos termos do art. 410º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal, existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando tal vício ressalte da mera leitura da sentença, sem que se socorra a elementos exteriores a esse texto, e existe quando os factos dados como provados não são suficientes para a decisão de direito, ou seja, para o preenchimento dos elementos do crime em apreço, situação que no caso não se verifica.

8ª- O arguido recorrente promulga a existência de erro de julgamento, esgrimindo que o Tribunal a quo alicerçou a sua decisão sobre a matéria de facto provada nos factos 13 a 16 (não incluídos na acusação) apenas no seu conhecimento funcional, aplicando incorrectamente as regras de experiência comum.

9ª- Sucede que o Tribunal recorrido explicou exactamente em que consistia o seu conhecimento funcional, quer directamente ao arguido, quer na própria fundamentação da matéria de facto. E, confrontado directamente pela “Mma. Juiz a quo” com os factos que já conhecia relativamente à gestão das escolas de condução pertencentes ao núcleo familiar do arguido, o arguido respondeu a tais questões e nunca lhe foi cerceado o direito de requerer o que tivesse por conveniente, nomeadamente ao abrigo do art. 340º, do CPP, direito que não exerceu.

10ª- O arguido admitiu os factos base relativos à sucessão de empresas, quem era o sócio-gerente de cada uma delas e os bens que vendeu à nova empresa do filho, sendo que destes elementos, conjugados com as regras de experiência comum, o Tribunal a quo extraiu os factos descritos em 14 a 16 e que o arguido não aceitou frontalmente.

11ª. A sentença recorrida mostra-se fundamentada, valorou correctamente a prova produzida em julgamento, aplicou correctamente as regras de experiência comum, não enferma de nenhum outro vício e concorda-se com o juízo feito no sentido de que a referida pena suspensa é a mais adequada à realização das finalidades de prevenção geral e especial, pois que a ilicitude e a culpa do arguido são elevadas, bem como são elevadas as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no âmbito dos crimes fiscais e contra a segurança social.

12ª. Termos em que a sentença recorrida não enferma de qualquer vício e, consequentemente, deve ser mantida.

Por tudo o exposto, deve:

- ser rejeitado o recurso interposto pelo arguido AF, por extemporâneo, ou, assim não se entendendo,

- deve tal recurso improceder e, em consequência, manter-se a douta sentença proferida pelo tribunal de 1ª Instância».

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pugnando pela improcedência do recurso. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve resposta.

II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP [2] - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se:

a) é extemporâneo, como tal devendo ser rejeitado, o recurso interposto pelo arguido?

b) o despacho de fls. 440, que recebeu a acusação e designou dia para julgamento, violou as regras relativas aos efeitos do caso julgado?

c) deve ser modificada a matéria de facto provada em 1ª instância, dando-se como não assente o factualismo constante dos pontos 14 a 16 da sentença recorrida?

d) é desadequada a pena de prisão, suspensa na sua execução, aplicada ao arguido, devendo ser o mesmo punido com multa, em obediência ao estatuído no artº 70º do Cod. Penal?

O tribunal recorrido deu como assente a seguinte factualidade:

1. O arguido tem o NIF xxxxx e dedica-se ao ensino de condução automóvel.

2. Com o início da aludida actividade, pela Segurança Social foi-lhe atribuído o número xxxxxx.

3. Ao longo da sua actividade, o arguido laborou com um número variável de trabalhadores ao seu serviço, numa relação de trabalho subordinado, aos quais pagou os respectivos salários e entregou as correspondentes folhas de remuneração.

4. O arguido descontou nos salários que pagou aos trabalhadores inscritos no regime geral as cotizações devidas por eles à Segurança Social.

5. Porém, reteve as contribuições respeitantes aos meses de Novembro de 2005, Março 2006 e Junho de 2007 a Março de 2008 referentes aos trabalhadores inscritos no regime geral e aos membros dos órgãos estatutários.

6. O arguido reteve os seguintes montantes:

- Novembro 2005 €389,28 Regime Geral
- Junho 2007 €477,96 Regime Geral
- Julho 2007 €477,96 Regime Geral
- Agosto 2007 €784,87 Regime Geral
- Setembro 2007 €784,87 Regime Geral
- Outubro 2007 €713,52 Regime Geral
- Novembro 2007 €713,52 Regime Geral
- Dezembro 2007 €709,54 Regime Geral
- Janeiro 2008 €541,27 Regime Geral
- Fevereiro 2008 €610,89 Regime Geral
- Março 2008 €635,19 Regime Geral

7. O arguido não efectuou a entrega destes montantes à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte aquele a que se reportam, nem nos noventa dias subsequentes.

8. No dia 3 de Março de 2009, foi o arguido notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 6 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, no entanto, não procedeu ao pagamento voluntário das contribuições devidas à Segurança Social, quer no prazo de 30 dias, quer posteriormente.

9. A quantia efectivamente retida nos salários pagos e não entregue à Segurança Social ascende a € 6.838,87 (seis mil, oitocentos e trinta e oito, oitenta e sete cêntimos).

10. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, nas circunstâncias acima referidas, em nome e no interesse da empresa que geria.

11. Bem sabendo que ao não entregar, nos noventa dias subsequentes ao termo do prazo legalmente fixado para o pagamento das contribuições, as quantias que por força do pagamento de salários retiveram por caberem à Segurança Social, integrando-as, indevidamente, nos meios financeiros da empresa, à qual as importâncias em causa não pertenciam, nem delas podia dispor, agia em detrimento daquela entidade.

12. Agiu o arguido reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos actos criminosos, favorecidos pelas mesmas circunstâncias exteriores e servindo-se dos mesmos métodos que, sucessiva e repetidamente, se foram revelando aptos para atingir os fins.

13. Não desconhecia o arguido que tal conduta é proibida e punida.

14. À data dos factos, o arguido explorava uma escola de condução sita em Vila Nova de Milfontes, enquanto a sua esposa era sócia de uma empresa que explorava uma outra escola de condução sita em Odemira.

15. Devido a um avolumar de dívidas, o arguido e a sua esposa constituíram uma nova empresa, cujo sócio gerente é um seu filho (com a firma T..., Lda.), a qual se dedica à mesma actividade anteriormente explorada pelo arguido e pela empresa de que era sócia a sua esposa, tendo transferido vários dos bens pertencentes a essas empresas para a nova empresa constituída em nome do filho.

16. Formalmente, o arguido é trabalhador da empresa T..., Lda. pelo que aufere uma remuneração mensal de €750,00.

17. O arguido reside com a esposa, em casa própria;

18. Tem o 9.º ano de escolaridade;

19. Não tem antecedentes criminais.

O tribunal recorrido entendeu que, com relevância para a boa decisão da causa, não resultaram como não provados quaisquer factos. E desta forma explicou o seu processo de motivação:

«O Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações do arguido, o qual confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em conta o teor do certificado de registo criminal junto aos autos, e quanto às suas condições socioeconómicas as declarações do arguido. Note-se que, embora o arguido tenha começado por tentar apresentar uma visão muito reduzida da sua actividade comercial e desculpabilizar a sua conduta com uma situação de concorrência aparentemente imprevisível, à medida que ia sendo confrontado com os factos que já eram do conhecimento funcional da ora signatária resultantes da tramitação de processos laborais e cíveis (executivos) quanto às dívidas das empresas e à constituição simultânea e sucedânea de empresas constituída em nome de membros do mesmo agregado familiar, o arguido foi obrigado a assumir que efectivamente a sua esposa era sócia da F. ... Lda., empresa com um grande aglomerado de dívidas, e que o seu filho era o sócio único da T..., Lda ..

No mais, bastam as regras de experiência comum para se perceber que nenhum filho segue as pisadas dos pais para constituir uma empresa para exercer uma actividade que, relativamente aos seus progenitores, aparentemente não teria sido lucrativa e teria sido altamente prejudicial, e que a constituição simultânea e sucedânea de empresas distintas cujos sócios são diferentes membros do mesmo agregado familiar mais não é - e não foi no caso concreto - do que um esquema tendente à transferência de património entre empresas e, dessa forma, a ludibriar os credores, mantendo postos de trabalho e remunerações para esses mesmos membros, ora sócios gerentes ora supostos trabalhadores dessas empresas».

III. Decidindo:

a) É extemporâneo, como tal devendo ser rejeitado, o recurso interposto pelo arguido?

O prazo para interposição do recurso é de 20 dias e conta-se, tratando-se de sentença (como é o caso), do respectivo depósito na secretaria – artº 411º, nº 1, al. b) do CPP.

Se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, tal prazo é elevado para 30 dias (nº 3 do mesmo dispositivo).

O arguido esteve presente em audiência (para a qual foi regularmente notificado) – fls. 478/479 e 522.

E assim sendo, foi notificado da sentença no dia em que foi lida (e, de seguida e no mesmo dia, depositada), isto é, em 4/10/2011 – artºs 372º, nº 4 do CPP – nessa data se iniciando o prazo para interposição do recurso.

A considerar-se que o prazo de recurso era de 20 dias, o mesmo terminava em 25/10/2011, ou no dia 28/10/2011, com pagamento de multa; a considerar-se que o prazo de recurso era de 30 dias, o mesmo terminava em 4/11/2011, ou no dia 9/11/2011, com pagamento de multa.

O recurso foi interposto em 7/11/2011 (1º dia útil após o termo do prazo de 30 dias – 5 e 6/11/2011 corresponderam a Sábado e Domingo, respectivamente - tendo o recorrente pago quantia correspondente a 1/2 UC, pela apresentação tardia), isto é, para além do prazo de 20 dias (ainda que com multa), dentro de prazo de 30 dias (com multa).

Tudo está, pois, em saber se o recurso em causa foi interposto ao abrigo do disposto no nº 4 do artº 411º do CPP, ou não.

Dito de outra forma: tudo está em saber se o recurso tem por objecto a reapreciação da prova gravada.

É que só neste caso se justifica o alargamento do prazo. Quer dizer: só quando o recurso tem em vista a reapreciação da prova gravada faz sentido dilatar o prazo para interposição do recurso, precisamente para permitir ao recorrente tempo suficiente para, ouvindo as gravações, identificar as concretas passagens dos depoimentos que, na sua opinião, impõem decisão diversa da recorrida.

E é isto que, em rigor, pretende o recorrente: a reapreciação da prova gravada, mais precisamente, das suas próprias declarações, transcrevendo excertos das mesmas [3] de onde conclui que não podia a Mª juíza a quo ter dado como provada a matéria de facto contida nos pontos 14 a 16 do factualismo assente, ainda para mais afirmando que a sua convicção assentou precisamente em tais declarações.

Mas entende a Digna Magistrada do MºPº na 1ª instância que o recorrente não impugna a matéria de facto de forma correcta, com obediência aos requisitos enunciados no artº 412º, nº 3 do CPP.

Consequentemente, não poderia beneficiar do prazo alargado a que se refere o nº 4 do artº 411º do CPP.

Salvo o devido respeito por melhor opinião, a invocada incorrecção no modo como o recorrente impugnou a decisão em matéria de facto poderá ter consequências ao nível da validade substancial da pretensão; não pode, contudo, constituir fundamento para concluir pela intempestividade do recurso. De outro modo, partiríamos do fim para o princípio, numa inversão de procedimentos alheia a qualquer lógica de raciocínio: primeiro, curava-se de saber da regularidade formal da pretensão; só depois se apreciaria da tempestividade de um recurso, cuja regularidade formal já havia sido apreciada.

Isso, como bem se refere no Ac. STJ de 11/1/2012 (rel. Pires da Graça), citado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação e acessível in www.dgsi.pt, “seria querer legitimar a causa pelo efeito, o princípio pelo fim, decidir da extemporaneidade do recurso depois de conhecer do mesmo na sua regularidade formal, depois de formular juízo crítico sobre a delimitação processual do seu objecto de harmonia com os pressupostos legais do seu exercício, enfim, determinar a tempestividade do recurso pela perfeição ou conformidade legal do modo de exercer o direito ao recurso”.

Daí que seja nosso entendimento que, pretendendo o recorrente impugnar a decisão em matéria de facto e pedindo a reapreciação da prova gravada, o cumprimento defeituoso da especificação exigida no nº 3 do artº 412º do CPP poderá determinar o não conhecimento do recurso, nessa parte, mas não tem consequências na determinação do prazo de interposição do recurso (num sentido semelhante, cfr. Ac. RG de 19/9/2012, rel. Maria Luísa Arantes, www.dgsi.pt).

E porque assim é, pretendendo o recorrente, in casu, impugnar a decisão proferida em matéria de facto e solicitada que se mostra a reapreciação da prova gravada, é de concluir que o prazo de que dispunha para interpor recurso era de 30 dias. Tendo o mesmo dado entrada no 1º dia útil subsequente ao termo desse prazo e tendo o recorrente pago a multa a que alude o artº107º-A, al. a) do CPP, resta concluir pela sua tempestividade.

b) O despacho de fls. 440, que recebeu a acusação e designou dia para julgamento, violou as regras relativas aos efeitos do caso julgado?

Sumariemos os factos necessários à resolução desta questão:

1. Em 20/4/2010, o Magistrado do MºPº deduziu acusação contra o ora recorrente, imputando-lhe a prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p.p. pelos artºs 105º, nº 1 e 107º, ambos do RGIT, porquanto o arguido terá retido nos salários que pagou aos seus trabalhadores as cotizações por eles devidas à Segurança Social, relativas aos meses de Novembro de 2005, Março de 2006 e Junho de 2007 a Março de 2008, no montante global de € 6.838,37, não procedendo contudo à sua posterior entrega.

2. Remetidos os autos para julgamento, o Mº juiz do Juízo de competência genérica de Odemira lavrou, em 13/7/2010, despacho onde, considerando que o artº 105º, nº 1 do RGIT é aplicável, na íntegra (que não, apenas, na sua parte final), aos crimes de abuso de confiança em relação à Segurança Social, por força da remissão operada pelo artº 107º, do mesmo diploma legal, considerou descriminalizada a conduta do arguido [4]. Em consequência, posto que os factos por cuja autoria o arguido vinha acusado não constituíam crime, julgou a acusação manifestamente infundada (artº 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. d) do CPP) e rejeitou-a em conformidade.

3. Do teor desse despacho foram todos os intervenientes processuais notificados. Concretamente, foi-o o Magistrado do MºPº em 21/7/2010.

4. Desse despacho não foi interposto qualquer recurso.

5. Em 27/9/2010, o Magistrado do MºPº “renovou” a acusação já anteriormente formulada, imputando ao arguido a prática do mesmo crime, fundada nos mesmos factos que haviam originado a acusação rejeitada e apenas introduzindo, como nota prévia, uma referência ao entretanto publicado Ac. Uniformização de Jurisprudência nº 8/2010, publicado no DR de 23/9/2010 [5].

6. Os autos foram novamente remetidos à distribuição no Juízo de competência genérica de Odemira. E a Mª juíza proferiu despacho recebendo a acusação (e o pedido cível entretanto deduzido) e designando dia para julgamento.

Estes são os factos.

E deles é possível concluir que no momento em que foi proferido o despacho de fls. 440 (onde se recebeu a acusação e designou dia para julgamento) já há muito havia transitado em julgado o despacho proferido em 13/7/2010, no qual a mesmíssima acusação (pelos mesmos factos e com a imputação do mesmo ilícito penal) havia sido rejeitada.

É inegável, pois, que no despacho de fls. 440 violou a Mª juíza a quo o caso julgado formado com a decisão proferida em 13/7/2010.

E aqui chegados:

Entende a Magistrada do MºPº que o despacho a que alude o artº 311º do CPP respeita apenas a aspectos formais da acusação, que não impede que, sanadas tais deficiências, venha a ser deduzida e recebida nova acusação.

Não tem, porém, razão.

Como nesta Relação já se decidiu (Ac. RE de 6/3/2012, rel. António Latas, www.dgsi.pt), a al. d) do nº3 do art.º 311º do CPP, que prevê a rejeição da acusação “se os factos não constituírem crime”, abrange «as hipóteses em que, não se verificando incongruência entre a factualidade descrita e o tipo penal indicado, aqueles factos não constituam qualquer crime. Os factos descritos não integram infração de natureza criminal no momento em que é proferido o despacho previsto no art.º 311º, quer por terem deixado de a assumir, quer porque nunca constituíram crime, independentemente de integrarem ou não infração de diferente natureza, sem que tal conclusão resulte da mera insuficiência de articulação de factos típicos, reconhecível pelo simples confronto com o tipo penal indicado na acusação. Nestas hipóteses da al. d), tal como a interpretamos, não faz sentido a devolução dos autos ao MP em termos semelhantes aos das restantes alíneas, pois nada há a alterar na acusação, que não é formalmente deficiente mas antes materialmente infundada por pretender sujeitar-se o arguido a julgamento por factos que não são puníveis como crime. Ao MP restará, pois, impugnar o despacho judicial de rejeição da acusação com aquele fundamento e se o mesmo vier a ser confirmado, formar-se-á caso julgado sobre a questão, extinguindo-se o procedimento criminal com o consequente arquivamento dos autos» (subl. nosso).

Ora, transitada em julgado a decisão de rejeição da acusação, que consequências terá a prolação de decisão posterior, de sentido contrário?

Diz a Magistrada do MºPº (com o apoio do Exmº Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação) que a considerar-se nulo o despacho proferido em segundo lugar, tal nulidade não é insanável, posto que não integra o elenco das previstas no artº 119º do CPP.

E teríamos assim que, porque não arguida em tempo tal nulidade, coexistiriam nos autos duas decisões transitadas em julgado, em sentido diametralmente oposto.

Não nos parece que assim possa ser.

Proferido um despacho onde, ao abrigo do disposto no artº 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. d) do CPP, o juiz rejeita a acusação por a considerar manifestamente infundada, em face da irrelevância criminal dos factos nela constantes, esgotado fica o seu poder jurisdicional quanto a tal matéria (artº 666º, nºs 1 e 3 do CPC, ex vi do artº 4º do CPP).

Ao MºPº restava, caso dela discordasse, interpor recurso dessa decisão.

Não o tendo feito, não era lícito ao juiz reapreciar a questão já objecto de decisão.

Nos termos do disposto no artº 675º do CPC (ex vi do artº 4º do CPP), “havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar” (nº 1); “é aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual” (nº 2).

E assim sendo, é de concluir nos mesmos termos em que o faz a Relação do Porto, no seu Ac. de 14/12/2011 (rel. Pedro Vaz Pato), www.dgsi.pt: “uma sentença ou um despacho proferidos em ofensa ao caso julgado não podem deixar de ser inexistentes e, por isso, insusceptíveis de ser validados, eles próprios, pelo caso julgado. Não pode ser de outro modo. Há duas decisões contraditórias e só uma delas poderá, verdadeiramente, ter força de caso julgado, que será a primeira (artigo 675º do Código de Processo Civil). A segunda será, por isso, inexistente”.

Ou, e dito de outra forma:

Esgotado o poder jurisdicional com a prolação da decisão de 13/7/2010, a decisão de fls. 440, datada de 8/11/2010, foi proferida por quem para tal não possuía jurisdição sendo, por isso, inexistente. É que, como doutamente se decidiu no Ac. STJ de 6/5/2010 (rel. Álvaro Rodrigues), www.dgsi.pt, “tal falta de jurisdição, por se tratar de vício essencial da sentença ou despacho, determinante da invalidade do acto, não constitui uma nulidade stricto sensu mas inexistência jurídica da citada decisão, que é outra forma de invalidade para além da nulidade” [6].

Inexistente a decisão que recebeu a acusação e designou dia para julgamento, inválidos são os actos subsequentes dela dependentes, particularmente o julgamento realizado e a sentença proferida, tudo se passando como se o processo tivesse tido o seu termo com a decisão de rejeição de acusação, transitada em julgado – artº 122º, nº 1 do CPP.

E assim decidindo, prejudicado fica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

IV. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, declarando inexistente o despacho de fls. 440 e, por isso, inválidos e de nenhum efeito todos os termos subsequentes, designadamente a audiência e a sentença subsequentes.

Sem tributação.

Évora, 20 de Dezembro de 2012 (processado e revisto pelo relator)

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Sénio Manuel dos Reis Alves

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Gilberto da Cunha

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[1] - Sumariado pelo relator

[2] Obviamente, sem prejuízo das questões que oficiosamente importa conhecer, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do STJ, de 19/10/1995, DR 1ª Série, de 28/12/1995).

[3] E tanto basta para se considerar cumprida a exigência formulada no artº 412º, nº 3, al. b) do CPP, conforme Ac. de fixação de jurisprudência nº 3/2012, de 8/3/2012, DR, I série, de 18/4/2012.

[4] Posto que o valor retido não era superior a € 7.500,00.

[5] Onde, como é sabido, foi fixada jurisprudência no sentido contrário ao defendido pelo Mº juiz do Juízo de competência genérica de Odemira, no despacho proferido em 13/7/2010.

[6] No mesmo sentido, cfr. Ac. RP de 15/12/2010 (rel. Machado da Silva), www.dgsi.pt.