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FALSO TESTEMUNHO
Sumário
I – Não basta para a condenação por crime de falsas declarações que se prove que a testemunha, em dois momentos distintos, fez depoimentos contraditórios que mutuamente se excluem. II – É necessário que se demonstre que houve desconformidade entre a palavra (ou palavras) e a verdadeira história e que, no momento em que o prestou, a testemunha sabia que afirmava como verdadeiro um facto inexistente. III – Com efeito, tem que resultar da acusação (ou dos factos provados, através dos artºs 358º) qual foi, de facto, o acontecimento verdadeiro, e não apenas que o arguido, então como testemunha, produziu dois depoimentos distintos, o que só constitui crime se houver alegação e prova de que ele conhecia a verdade dos factos e que, intencionalmente, a perverteu (fosse quantas vezes fosse!). IV – A contradição entre o dito pela testemunha (uma ou mais vezes) e a realidade objectiva, da qual tinha ciência e consciência; ou a contradição entre o dito pela testemunha e aquilo que ela viu, ouviu ou entendeu, é que configura o crime.
Texto Integral
Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
TRIBUNAL RECORRIDO
Tribunal Judicial de Braga – 2º Juízo Criminal
ARGUIDO/RECORRENTE
A
RECORRIDO
O Ministério Público
OBJECTO
O Ministério Público acusou o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punível pelo artigo 360º nºs 1 e 3 do C. Penal.
Veio a ser condenado, como autor material de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360, nº 1 do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa a € 5,00 (cinco euros) por dia.
É desta decisão que vêm interposto recurso, pois o recorrente defende que a sentença ao condenar por factos diversos dos descritos na acusação é nula, por violação dos artigos 379º nº 1 b) e 359º ambos do CPP, pelo que deve decretar-se a nulidade da sentença por condenar o arguido por factos que alteram substancialmente os descritos na acusação.
MATÉRIA DE FACTO
A decisão recorrida assentou na seguinte matéria de facto: 1. No dia 6 de Julho de 2006, o ora arguido depôs como testemunha perante o agente principal da PSP C, da Secção BIC-D, da PSP de Braga, incumbido da prática de actos de investigação do inquérito que originou o processo comum colectivo n.º 97/05.7PEBRG, da Vara Mista de Braga, em que era arguida, entre outros, N, … 2. Em tal depoimento, o aqui arguido declarou, então, que: .. “…é consumidor de heroína e cocaína há cerca de 15 anos”. No dia 27-12-05, pediu ao seu irmão …para o trazer ao Bairro Social das Enguardas, nesta cidade de Braga, a fim de comprar heroína. Deslocou-se ao primeiro prédio quem sobe, do lado direito entrando na primeira porta e subiu até ao segundo andar lado esquerdo, bateu à porta e foi atendido por uma cigana, aparentando ter 20/25 anos, com o cabelo loiro, a quem pediu dois pacotes de heroína …” esta “veio-lhe entregar a droga, pagando-lhe 10 euros”. 3. A pessoa referenciada em tal depoimento era a arguida N, tanto mais que a reconheceu pelo respectivo “cliché fotográfico constante de fls. 283” que então lhe foi exibido. 4. Todavia, na audiência de julgamento do referido processo comum colectivo realizada no dia 9 de Abril de 2008, neste tribunal da comarca de Braga, após ter prestado juramento e ser advertido das consequências penais da eventual prestação de falso depoimento, o aqui arguido, que ali mantinha a qualidade de testemunha, afirmou, em suma, que não tinha comprado heroína no dia em causa (27-12-05) no Bairro Social das Enguardas e que não conhecia sequer a arguida N. 5. O depoimento prestado em sede de inquérito e o prestado em audiência são contrários entre si, sendo um deles desconforme com a realidade. 6. O arguido sabia que um desses depoimentos não era conforme à realidade e, não obstante, quis mesmo assim prestá-lo nesses termos, no âmbito de um processo crime, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante a entidade competente. 7. Agindo livre voluntária e conscientemente. 8. O arguido já foi condenado uma vez, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, praticado em 01.03.42004, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 18 meses de prisão cuja execução ficou suspensa por 2 anos, com regime de prova, por sentença transitada em julgado em 13.06.2005. Pena essa que foi já julgada extinta. Para além do que não tem outros antecedentes criminais.
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FACTOS NÃO PROVADOS Não se apuraram os demais factos constantes da acusação que não tenham sido supra referidos ou que com eles estejam em contradição, designadamente: A) Que fosse o depoimento prestado em audiência de julgamento aquele que não era conforme a realidade. Que o arguido tenha pretendido obstar a que contra a arguida N se produzisse prova do tráfico de estupefacientes que lhe era imputado.
MOTIVAÇÃO/CONCLUSÕES
São as seguintes as conclusões do recurso:
1. O Ministério Público acusou o arguido, porquanto: No dia 6 de Julho de 2006, o ora arguido depôs como testemunha perante o agente principal da PSP C, da Secção BIC-D, da PSP de Braga, incumbido da prática de actos de investigação do inquérito que originou o processo comum colectivo n.º 97/05.7PEBRG, da Vara Mista de Braga, em que era arguida, entre outros, N, residente…. Em tal depoimento, o aqui arguido declarou, então, que: - “…é consumidor de heroína e cocaína há cerca de 15 anos” - “ No dia 27-12-05, pediu ao seu irmão …para o trazer ao Bairro Social das Enguardas, nesta cidade de Braga, a fim de comprar heroína. Deslocou-se ao primeiro prédio quem sobe, do lado direito entrando na primeira porta e subiu até ao segundo andar lado esquerdo, bateu à porta e foi atendido por uma cigana, aparentando ter 20/25 anos, com o cabelo loiro, a quem pediu dois pacotes de heroína …” esta “veio-lhe entregar a droga, pagando-lhe 10 euros”. A pessoa referenciada em tal depoimento era a arguida N, tanto mais que a reconheceu pelo respectivo “cliché fotográfico constante de fls. 283” que então lhe foi exibido. Todavia, na audiência de julgamento do referido processo comum colectivo realizada no dia 9 de Abril de 2008, neste tribunal da comarca de Braga, após ter prestado juramento e ser advertido das consequências penais da eventual prestação de falso depoimento, o aqui arguido, que ali mantinha a qualidade de testemunha, afirmou, em suma, que não tinha comprado heroína no dia em causa (27-12-05) no Bairro Social das Enguardas e que não conhecia sequer a arguida N. Com este depoimento contrário ao que depusera em sede de inquérito e que sabia não ser conforme com a realidade pretendeu o arguido obstar a que contra a arguida Naida se produzisse prova do tráfico de estupefacientes que ali lhe era imputado. Actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2. Com efeito da acusação resultam apenas factos suficientes para preencher um único delito, isto é, apenas foram carreados para a acusação os factos relativos ao tipo objectivo do crime de falsas declarações – depoimento em audiência de julgamento e depoimento em sede de inquérito - contudo no que respeita ao elemento subjectivo – dolo – apenas foram alegados factos quanto ao primeiro depoimento, nada sendo dito quanto às declarações prestadas em sede de inquérito dado que optou a acusação por definir que o momento da consumação do crime foi em julgamento.
3. Deste modo a sentença ao considerar provado que: O arguido sabia que um desses depoimentos não era conforme à realidade e, não obstante, quis mesmo assim prestá-lo nesses termos, no âmbito de um processo crime, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante a entidade competente.
4. está a alargar ao primeiro depoimento os factos respeitantes ao elemento subjectivo do tipo de crime e que não constavam, quanto a este, da douta acusação proferida.
5. Assim, e resumidamente, os factos constantes da acusação são somente:
- o teor das declarações proferidas em inquérito – elemento objectivo
- o teor do depoimento em audiência de julgamento – elemento objectivo
- que com o depoimento prestado em julgamento, contrário ao que depusera em sede de inquérito e que sabia não ser conforme com a realidade pretendeu o arguido obstar a que contra a arguida N se produzisse prova do tráfico de estupefacientes que ali lhe era imputado.
- que ao prestar o depoimento em audiência de julgamento agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6. Da conjugação de tais factos nunca poderia o Tribunal concluir como o fez na douta sentença proferida ao dar como provado que “O arguido sabia que um desses depoimentos não era conforme à realidade e, não obstante, quis mesmo assim prestá-lo nesses termos, no âmbito de um processo crime, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante a entidade competente.”
7. Ao decidir assim aditou a Tribunal a quo factos que não constavam da acusação proferida, designadamente:
“O facto do arguido saber que o depoimento em inquérito poderia não ser conforme com a realidade e mesmo assim te-lo prestado enquanto testemunha.”
8. Da acusação era unicamente imputado ao arguido um testemunho falso em julgamento, e arrolados os factos capazes de preencher os elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime, mas unicamente quanto a tal depoimento,
9. pelo que não se tendo provado que o depoimento prestado em julgamento era falso, tinha o arguido de ser absolvido.
10. Eventualmente em busca da sempre almejada justiça material pretendeu o Tribunal a quo convolar os factos, considerando tratar-se somente duma alteração não substancial,
11. esquecendo contudo, no modesto entendimento do arguido, que aditou aos factos provados os necessários para preencher o elemento subjectivo do tipo de crime – o dolo, consciência da falsidade do depoimento prestado em inquérito.
12. Ora, o art° 1 ° n°1 al .f) do C.P.P. define alteração substancia os actos como "aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis".
13. A primeira vez que no Cód. Processo Penal se fala de alteração substancial dos factos é nos art°s 284° n°1 e 285° n°3 (fase da acusação) e não é por acaso. E que, como ensina Figueiredo Dias Direito Processual Penal – Coimbra Editora, 1974, pág. 145., "objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado (…). E a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal (…).
Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, facilmente se aprendem quando se pense que ela constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido (…) que assim se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os seus direitos de contraditoriedade e audiência; e quando se pense também que só assim o Estado pode ter a esperança de realizar os seus interesses de punir só os verdadeiros culpados".
14. Assim, o conhecimento do juiz fica limitado pelo objecto da acusação e o arguido sabe que é destes factos e apenas deles que se tem que defender.
15. Daqui resulta que ao deduzir acusação se está a delimitar e definir o âmbito de conhecimento do juiz e a dar a conhecer ao arguido os factos que lhe são imputados e dos quais tem que se defender. E nesta fase que bem se evidencia o denominado efeito da vinculação temática que integra os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo se deve manter o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade (segundo o qual o processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade) e da consumpção (segundo o qual o processo se considera irrepetivelmente decidido) Cfr. Figueiredo Dias, obra citada.
16. A questão é saber se o novo facto implica ou não alteração do objecto do processo. Isto porque, repete-se, num processo de cariz acusatório como o nosso, "o objecto do processo constitui uma verdadeira e mais importante garantia de defesa, visto que é ele que limita a extensão da cognição e portanto os próprios limites da decisão"Frederico Isasca – Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, pág. 230.
17. Como escreve este mesmo autor, pág. 112., a questão essencial é saber até que ponto o facto processual ou o objecto do processo se pode estender sem perder a sua identidade, ou seja, saber que outros factos se podem adicionar ao facto processual sem que com essa alteração se passe para um diferente objecto do processo.
18. Segundo Robalo Cordeiro Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal – Centro de Estudos Judiciários., o conceito de crime diverso é-nos dado por um "critério misto normativo-social, que parte da identidade ou coincidência fundamental dos bens jurídicos – logo, dos tipos legais de crime – sem perder de vista as realidades da vida, mantendo-se por isso igualmente atento à valoração social dos factos."
19. Assim, encontrar-nos-emos perante o mesmo crime quando "os factos provados em julgamento, no seu relacionamento com os acusados, dão lugar a uma situação de concurso aparente ou de continuação criminosa, formando com eles uma unidade em sentido jurídico-normativo (sem deixar de admitir-se que o crime possa ter-se por "diverso" quando os novos factos imprimirem ao conjunto um tónus social marcadamente distinto); e bem assim nos casos em que se mantém firme a incriminação, embora com alteração dos factos que lhe servem de apoio; alteração, entenda-se, não essencial, por forma que continuam passíveis do mesmo juízo de valoração social.
20. Em contrapartida, afirmar-se-á a diversidade de crimes quando o material fáctico colhido em julgamento redunde numa situação de concurso efectivo, real ou ideal (salvo, porventura, se a censura social se mantiver idêntica); e ainda quando diferindo essencialmente ou estruturalmente do que serviu de suporte à acusação, transmite agora uma realidade diferente e impõe, em consequência, uma diferente avaliação social, sem prejuízo de manter-se eventualmente a sua qualificação jurídica."
21. Frederico Isasca Obra citada, pág. 144 e segs. defende um critério mais alargado – ao critério social defendido pelo autor anterior, "adiciona" o da identidade da imagem social.
22. Assim, "decisivo será, quer a valoração social, quer a imagem social do acontecimento ou comportamento trazido a juízo e consequentemente, a forma como o pedaço de vida é representado ou valorado do ponto de vista do homem médio — da experiência social, se se preferir -, quer a salvaguarda da posição da defesa do arguido. Sempre que ao pedaço individualizado da vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos."
23. No caso dos presentes autos é manifesto que a alteração verificada é substancial, pois que na acusação deduzida ao arguido era imputada uma falsidade de testemunho em audiência de julgamento, conforme extracto da acusação: Com este depoimento contrário ao que depusera em sede de inquérito e que sabia não ser conforme com a realidade pretendeu o arguido obstar a que contra a arguida Naida se produzisse prova do tráfico de estupefacientes que ali lhe era imputado. Actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
24. Tendo sido condenado por cometer efectivamente um crime de falsidade de testemunha, contudo já não em audiência de discussão e julgamento porque – extracto da sentença: “O arguido sabia que um desses depoimentos não era conforme à realidade e, não obstante, quis mesmo assim prestá-lo nesses termos, no âmbito de um processo crime, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante a entidade competente.” 25. ao decidir de tal modo se verifica uma alteração substancial de factos por serem aditados os factos relativos ao dolo, à consciência do arguido de que estava a prestar um depoimento não conforme com a verdade aquando do depoimento em sede de inquérito, factos que não constam da acusação.
26. A sentença ao condenar por factos diversos dos descritos na acusação é nula, por violação dos artigos 379º nº 1 b) e 359º ambos do CPP, pelo que deve decretar-se a nulidade da sentença por condenar o arguido por factos que alteram substancialmente os descritos na acusação.
RESPOSTA
O Digno Procurador-Adjunto responde ao recurso, fazendo-o para defender o julgado, aduzindo essencialmente o seguinte:
Na verdade, como se vê da acusação a fls 57 e 58, depois de aí se descrever, em pormenor e no essencial, os depoimentos que o arguido prestou na fase de inquérito e de julgamento, apontou-se para a falsidade deste último depoimento.
Porém, a douta sentença recorrida, perante a contradição existente entre os depoimentos prestados pelo arguido, concluiu que um desses depoimentos não era conforme à realidade, perfazendo, assim, um juízo alternativo de avaliação do momento em que foi produzida a falsidade: ou no inquérito, ou no julgamento.
E em rigor, esta conclusão é inquestionável.
“Com efeito, o arguido mentiu num dos depoimentos, sendo tal mentira relevante em termos penais e resultando despiciendo pesquisar em que momento o fez.
Não se diga que tal indagação é necessária: é certo que o momento será importante para se aferir, por exemplo, de uma prescrição; mas por outro lado, o que interessa pesquisar é a razão da mentira, como foi proferida, como ocorreu e quando existiu (sendo lícito deixar em aberto o momento concreto, pois que de uma das vezes foi o crime cometido).
O arguido prestou, em dois momentos processuais distintos, depoimentos contraditórios e antagónicos. Só que o tribunal não logrou apurar em qual dos dois momentos o arguido mentiu; porém, esse hiato só releva, como já se viu, para a determinação do momento da consumação do crime, sendo porém certo que este está consumado: com efeito, num dos momentos o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual está acusado, assim prestando depoimento falso, dolosamente.” Cfr. Ac. da Relação do Porto de 21/02/2007, com o nº convencional JTRP 00040058, pesquisado em www.dgsi.pt/trp)
Aliás, “a certeza sobre a data de consumação do crime não é requisito indispensável ao preenchimento do tipo-de-ilícito”, como se afirma no Ac. da mesma Relação proferido no recurso nº 4016/04-4.
Por outro lado, não pode olvidar-se que a Mª Juíza “a quo” deu oportuno cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 1 do CPP relativamente à alteração dos factos descritos na acusação no sentido de poder vir a considerar provado que “o depoimento prestado em sede de inquérito e o prestado em audiência são contrários entre si, sendo um deles desconforme com a realidade” e que “ o arguido sabia que um desses depoimentos não era conforme à realidade e, não obstante, quis mesmo assim prestá-lo nesses termos, no âmbito de um processo crime, ciente que o fazia na qualidade de testemunha e perante a entidade competente.” cfr. acta da audiência de fls 78 a 80
Tudo isto no pressuposto que se nos afigura ser o correcto de estarmos perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação (e não de uma alteração substancial como pretende o recorrente). Neste sentido cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 22-12-2006 e 21/02/2007, com os nºs convencionais 0644016 e 040058 supra citados.
Ora, mostrando-se cumprido o disposto no art. 358º, nº 1, do Código de Processo Penal e tendo o arguido requerido prazo para preparar a defesa relativamente a essa alteração, o que lhe foi deferido (Cfr. Fls 79 e 80), a douta sentença em crise não enferma da apontada nulidade.
PARECER
Nesta instância, também o Ilustre PGA entende que o recurso deve improceder.
PODERES DE COGNIÇÃO
O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, sem prejuízo do conhecimento oficioso nos termos do artº 410º, nº 2 do mesmo Código, do qual serão as citações sem referência expressa.
QUESTÕES A DECIDIR
As questão a decidir são as que emergem do sumário acima feito.
FUNDAMENTAÇÃO
O recorrente centra o seu recurso, como se disse, na defesa sobre a alteração a que o Tribunal procedeu ser substancial e, por isso, ter-se verificado uma nulidade.
Porém, mais que isso - e, aliás, prejudicando-o -, tem que se dizer que o arguido não cometeu nenhum crime, e que até nem deveria ter sido sequer acusado.
Com efeito, não resulta dos autos qual foi, de facto, o acontecimento verdadeiro, mas tão somente que o arguido, então como testemunha, produziu dois depoimentos distintos, o que só constitui crime se houver alegação e prova de que ele conhecia a verdade dos factos e que, intencionalmente, a perverteu (fosse quantas vezes fosse!).
Sobre o que se deve entender como falso testemunho, há duas teorias: a objectiva e a subjectiva.
Para a primeira, há falso testemunho quando o que foi dito não corresponde ao efectivamente sucedido; para a segunda, é falso o que não está em correspondência com o que a testemunha percebeu.
Num caso, faz-se referência ao que realmente aconteceu; no outro, ao que a testemunha viu, ou melhor, à sua percepção dos factos.
A contradição entre o dito pela testemunha e a realidade objectiva, da qual tinha ciência e consciência; ou a contradição entre o dito pela testemunha e aquilo que ela viu, ouviu ou entendeu, é que configura o crime.
Sobre o tema, no Comentário Conimbricense, pág. 477, diz Medina de Seiça que caso a narração do declarante se afaste do acontecido, isto é, daquilo que o tribunal, em face da produção da prova, tenha dado por acontecido, ela é falsa.
Este passo, lido assim mesmo, é susceptível de gerar confusão, tendo que ser lido como subentendendo-se que, depois de um Tribunal ter dado como provados determinados factos sobre os quais uma testemunha depôs de modo diferente, se vem a apurar que a testemunha conhecia a realidade que o Tribunal deu como provada e que, provando-se que essa realidade era a verdadeira, de livre vontade e intencionalmente, a ocultou.
Ora, no caso, o Ministério Público não afirmou nem provou quais eram os factos reais e, por isso, qual foi o depoimento falso: apenas diz que em momentos diferentes, o ora arguido disse coisas diferentes, sem que se faça qualquer confronto com uma versão verdadeira dele conhecida.
Na fundamentação, a Mmª Juíza refere que cotejadas as posições assumidas pelo arguido em dois momentos processuais distintos daquele processo, verifica-se uma contradição entre o declarado num dado momento processual e em momento posterior, bem como uma desconformidade entre a palavra e a verdade histórica, o que, salvo melhor opinião, é o suficiente para afirmar o preenchimento do tipo objectivo de ilícito.
Ora, não é assim: apenas se prova que o arguido prestou dois depoimentos contraditórios, mas não se provou desconformidade entre a palavra e a verdade histórica, pois não se diz qual ela foi.
A verdade que se busca para determinação do elemento típico do crime de falso testemunho não é a verdade formal, mas sim a que corresponde a um dado acontecimento histórico conhecido de quem depõe e que é intencionalmente negado, ou do conhecimento de um facto inexistente que intencionalmente se afirma como verdadeiro.
Levar a incriminação, sem mais, às situações em que as testemunhas dizem coisas diferentes em momentos distintos (e sabe-se, às vezes, em que circunstâncias!!!), era fazer com que, por absurdo, houvesse crimes de testemunho falso às centenas, todos os dias, por esses Tribunais fora.
O art. 360.º, n.ºs 1 do Cód. Penal prescreve que, quem, como testemunha (…) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento (…) falsos, é punido… Falso é, aqui, o contrário de verdadeiro, ou seja, para se dizer que um depoimento é falso é preciso confrontá-lo com os factos verdadeiros, não bastando que uma testemunha preste depoimentos contraditórios (um ou mais!!!) entre si: sem aquele confronto, há apenas depoimentos divergentes mas não necessariamente contrários à verdade.
Um exemplo poderá, crê-se, esclarecer melhor as coisas.
Imaginemos que a testemunha António, além de outros toxicodependentes, comprou droga a Bento, que por isso foi constituído como arguido e que, como tal, respondeu e foi condenado.
No inquérito desse processo, à GNR, o António disse que comprou a droga a Carlos; à Polícia Judiciária veio a dizer que comprou a droga a Eduardo; depois, já perante o Ministério Público, disse que, afinal, comprara a droga a Francisco; e, finalmente, em julgamento, acabou por testemunhar que a droga foi comprada a Gustavo.
No julgamento, veio a dar-se como provado que o Bento se dedicava ao tráfico de droga, vendendo-a a outros compradores que não ao António.
Como é óbvio, o António mentiu das quatro vezes em que prestou depoimento, isto é, fez, por quatro vezes, depoimentos contraditórios entre si, sendo certo que, por dever ou por juramento, deveria ter dito a verdade, mas não a disse. E daí?
Nenhum daqueles depoimentos foi verdadeiro, pois esse era o de que a droga foi comprada a Bento.
Mas, só por isso, isto é, por ter mentido quatro vezes e por ter ocultado o facto verdadeiro, não pode ser punido: a punição só pode ocorrer se a acusação disser que ele, António, declarou, em momentos diferentes, que comprou droga a Carlos, a Eduardo, a Francisco e a Gustavo, mas, afinal, provou-se que ele a comprou a Bento e que, bem sabendo disso, prestou aqueles depoimentos contraditórios e falsos.
Só assim é que se prova que ele traiu o valor do depoimento, isto é, apesar de ele se esconder em declarações não correspondentes com a verdade, o Ministério Público mostrou-lhe, provando o facto verdadeiro, que os depoimentos que ele fez foram falsos. Não foram apenas contraditórios e mentirosos: foram contrários à verdade que lhe foi demonstrada.
Enquanto não se lhe demonstrar a verdade e que ele a conhecia, …não se pode dizer, com rigor, que fez um (ou mais) depoimentos contrários à verdade.
Em resumo: em qualquer situação (adira-se à teoria objectiva ou à subjectiva da falsidade, tanto importa), é sempre imperioso que se demonstre o contrário daquilo que foi declarado (de uma ou de todas as versões) e, mais que isso, que se alegue e demonstre que a testemunha, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou.
No caso, nada disto resulta sequer indiciado, pelo que o arguido deve ser absolvido.
ACÓRDÃO
Pelo exposto, e ainda que por razões diferentes das invocadas, acorda-se em se julgar procedente o recurso, absolvendo-se o arguido da acusação.
Sem custas.