CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Sumário


I. A cominação de que a desobediência à ordem emitida é punida com a pena prevista para o crime de desobediência é necessária para o preenchimento do tipo objetivo do crime p. e p. pelo art. 348º nº1 b) do C. Penal, mas tal não significa que toda a ordem emitida com esta cominação por autoridade ou funcionário competente, implique, ipso facto, o preenchimento do tipo.

II. Como se diz na fundamentação do AFJ 2/2013, a nota de subsidiariedade que se atribui ao crime previsto na al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal em resultado da articulação entre o princípio da legalidade e da necessidade de tutela penal significa, por um lado, que sempre que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências daquela mesma conduta, designadamente ao nível sancionatório (contraordenacional, disciplinar ou processual), deverá presumir-se, numa primeira abordagem, que rejeitou a criminalização do comportamento, e não deverá ser, pois, a autoridade ou o funcionário a substituir-se ao legislador.

III. Por outro lado, que uma vez que a cominação ad hoc a que se reporta aquela al. b) resulta de um ato de vontade individual e não normativo, só a análise de todo o circunstancialismo que rodeou a emanação da ordem poderá́ assegurar a necessidade de criminalização da conduta, em conformidade com o carácter de “ultima ratio” da intervenção penal.

IV. Assim, de novo em conformidade com a fundamentação daquele AFJ, mesmo que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências da conduta em causa, seja através de norma sancionatória não penal, seja através de disposição processual, o funcionário ou autoridade donde emana a ordem pode fazer a cominação ad hoc do crime de desobediência, se considerar fundadamente que a consequência prevista na lei pelo legislador se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso.

V. No caso concreto, a ordem emanada pela Câmara Municipal com invocação do disposto no nº1 do art. 348º al. b) do C. Penal não pode reputar-se legítima, porquanto a lei administrativa regula normativamente as consequência da conduta inadimplente do arguido e as consequências perniciosas do comportamento desobediente não assumem gravidade que fundamente materialmente a criminalização daquela conduta através da cominação ad hoc a que se reporta a al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal, pelo que não se mostra preenchido este tipo penal.

Texto Integral


Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório

1. – Nos presentes autos que correm seus termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Lagos, foi acusado pelo MP e sujeito a julgamento em Processo comum com intervenção do tribunal singular, A, n. a 11.10.1966 em Faro, a quem, o MP imputara a autoria material do crime consumado de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal.

2- Realizada audiência de julgamento, foi o arguido condenado, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de desobediência simples previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 7,5€ num total de 900€.

3. – Inconformado, veio o arguido recorrer extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem ipsis verbis:

«Concluindo:

1- O artigo 348º, nº 1 al b) do CP configura uma norma penal em branco.

2- As normas penais em branco violam o princípio da legalidade e tipicidade ou da determinabilidade da lei penal.

3- O artigo 348º, nº 1 al b), por abstracto e genérico, sem definição de conteúdo ou limite, viola a princípio da tipicidade ou da determinabilidade da lei penal.

4- Não pode ficar ao critério de um funcionário da administração pública determinar quando faz a cominação da desobediência.

5- Trata-se, porém, de um crime com tamanha amplitude que deve ser tendencialmente restringido às situações expressamente previstas em normativo legal, não podendo estar dependente do livre arbítrio de qualquer autoridade ou funcionário, sob pena de tratar-se de uma norma penal em branco de cariz inconstitucional, por ser violadora do princípio da legalidade, contido no art. 29.º, n.º 1 da C. Rep. Portuguesa – “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”.

6- Para que tal cominação seja feita, tem de haver dignidade penal na sua violação.

7- Consequentemente, enfermando o preenchimento do ilícito de inconstitucionalidade, deixa de ter suporte a punição da conduta apreciada nos autos. Impondo-se a total absolvição do arguido da contra-ordenação por que vem condenado.

8- Mesmo que assim não se entenda, e estando perante uma norma “norma penal em branco”, pelo que compete à autoridade judicial preencher esse espaço e definir o conteúdo, à luz do princípio da necessidade ou da ultima ratio do direito penal

9- Ora, estamos perante um caso sem qualquer relevância ou dignidade penal, sendo um mero capricho da administração pública que a ela recorrer para evitar ter de executar as suas decisões.

10- Por tudo isto deve a decisão ser revogada e o arguido absolvido dos factos de que vem acusado.»

4. – Também o MP recorreu no exclusivo interesse do arguido, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem ipsis verbis:

«Conclusões:

1. A Douta Sentença condenatória recorrida ao dar por verificados, in casu, todos os elementos do tipo objectivo do crime de desobediência, laborou em erro na interpretação que fez do disposto no art. 348º nº1 alínea b) do Código Penal, pois entendeu que - embora revelando não desconhecer que outros mecanismos legalmente previstos estariam, e estão sempre, ao alcance da administração para repor a legalidade urbanística e assim fazer cumprir – às custas do próprio administrado inadimplente – a ordem que lhe foi dirigida - a remoção em si mesma só é justificada se houver conduta desobediente (se o obrigado não cumprir dentro do prazo fixado, é o que diz o art. 157º nº2 do CPA) e se houver conduta desobediente há ilícito criminal (…).

2.Convocando o preceito legal incriminador cuja interpretação pela Sentença se põe aqui em crise, reconhece-se, in casu, que a ordem – de remoção de uma placa de ementas, uma placa publicitária e três vasos no passeio da via pública e junto ao restaurante do arguido - efectivamente existiu e dimanou de autoridade – administração local - com competência para a sua emissão, porém, faltou, para efeitos do preenchimento do tipo incriminador, validade substancial a tal ordem.

3. O crime de desobediência pressupõe a existência de uma ordem ou mandado substancialmente legítimos, constituindo este um dos elementos objectivos do crime.

4. Através da repressão jurídico-penal da desobediência quis o legislador tutelar eficazmente o interesse administrativo do Estado em garantir o acatamento dos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública (neste sentido, cfr. Acórdão da Relação do Porto de 20.05.87 CJ, ano XII, T.III, pg. 225).

5. Pelo que, o bem jurídico principal tutelado pela incriminação é o da autonomia intencional do Estado (nas palavras de Cristina Líbano Monteiro em anotação que deixou escrita in Comentário Conimbricense do Código Penal) pela necessidade de obter o acatamento de mandados legítimos.

6. Se através da punição da desobediência se promove o acatamento de determinadas ordens, ordens essas, em si mesmas, com finalidades específicas – nomeadamente as de protecção reflexa do bem jurídico ordem pública – então, caso existam outras formas de assegurar a protecção dessas finalidades, a cominação da desobediência com dignidade penal deixa de ser necessária.

7. Não existe qualquer disposição legal que comine com a prática de crime de desobediência, quem, intimado para o efeito, não acatar uma ordem da Câmara Municipal – a qual assim constituirá, em si, a cominação funcional da prática do crime - destinada à remoção de uma placa de ementas, de uma placa publicitária e de três vasos colocados sobre um passeio público.

8. Tendo em vista o carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, o âmbito de aplicação da alínea b) do nº1 do art. 348º do Código Penal, deve ser encarado de modo restrito, porquanto o inverso seria excessivo e legitimaria toda e qualquer ordem – até mesmo a arbitrária - emanada de uma autoridade estatal.

9. O crime de desobediência cominado funcionalmente só poderá ter-se por verificado quando, como lapidarmente referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Março de 1984, CJ, ano IX, tomo 2, 70: esteja (…) ”implícito o reconhecimento de que não existem outros meios de forçar o seu cumprimento, de modo a ser posta em cheque a autoridade que deu a ordem (…)”.

10. O contrário implicaria tornar o âmbito de aplicação do art. 348º do Código Penal, demasiadamente lato, conferindo legitimidade a toda e qualquer ordem emanada de uma autoridade, pensamento este que o legislador penal não quis expressar, pois o Direito Penal constitui a ultima ratio da política social e a sua intervenção só pode ser convocada nessa senda.

11. Existindo, como existem, no ordenamento jurídico, maxime no foro administrativo, mecanismos para garantir a regularização da situação urbanística, o despacho proferido pela autarquia, na parte em que cominou com a desobediência o desacatamento da ordem proferida, não constituiu uma ordem substancialmente válida e, subsequentemente, a sua inobservância não constitui crime de desobediência.

12. A autoridade do Município não resultaria beliscada e a obtenção do resultado pretendido pela ordem emitida estaria perfeitamente assegurado por outros meios – precisamente meios administrativos, o art. 157º nº2 do Código de Procedimento Administrativo – quanto sejam, o do recurso à remoção, pela Câmara Municipal de Lagos e no uso de poderes legalmente conferidos, dos objectos, sem a prévia licença, colocados pelo arguido à porta do restaurante que explora, e por conta do responsável pela sua colocação, o aqui arguido como, aliás, não deixou o Município de considerar ao referi-lo na notificação que efectuou ao mesmo.

13. A Douta Sentença condenatória aqui recorrida confundiu inadimplência com desobediência, em sentido estrito e próprio, ou seja, com o tipo de actuação desobediente que congrega dignidade penal.

14. O legítimo fim da manutenção e reposição da ordem pública através da incriminação de condutas inadimplentes, não pode ser desse modo alcançado, como o acabou por fazer a Sentença aqui recorrida, ao sufragá-lo, sob pena de a pretensão punitiva do Estado se banalizar.

15. A douta Sentença recorrida devia antes ter considerado que o tipo legal previsto na alínea b) do nº1 do art. 348º do Código Penal não foi integrado pela conduta do arguido, uma vez que a ordem que lhe foi dirigida não era substancialmente legítima, pois, para que o fosse, necessário seria ter-se por provado que a autarquia local não tinha ao seu alcance qualquer outro meio para fazer cumprir a ordem que dirigiu ao arguido, o que, in casu, manifestamente não se provou.

Termos em que entendemos dever ser revogada a decisão condenatória proferida pelo Mmo. Juiz a quo e substituída por outra que absolva o arguido da prática do crime de desobediência.»

5. Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou resposta no sentido da procedência do recurso interposto pelo arguido.

6. - Nesta Relação, a senhora magistrada do MP emitiu parecer no mesmo sentido.

7. - Transcrição (parcial) da sentença recorrida.

«- A - Factos provados -
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1p. O arguido dedica-se à exploração de um restaurante na cidade de Lagos denominado ‘---’, e no exercício da sua actividade colocou na via pública, no dia 4 de Abril de 2008, sem as competentes licenças municipais, uma placa de ementas, uma placa publicitária e três vasos.

2p. No dia 22 de Dezembro de 2008, o arguido foi notificado pela Câmara Municipal de Lagos “para de imediato remover todo o equipamento publicitário e mobiliário que não se encontra devidamente licenciado”, com a seguinte nota: “Mais se informa que em caso de incumprimento ficará sujeito às seguintes cominações legais: - Poderá ser efectuada queixa pela prática por parte de V.Exa de crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artº 348º do Código Penal com pena de prisão até um ano ou de multa até 120 dias; - A Câmara poderá substituir-se na remoção do equipamento não licenciado, imputando a V.Exa as respectivas despesas, nos termos do disposto no nº 2 do artº 157º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15/11”.

3p. No dia 22 de Maio de 2009, o arguido foi notificado pela Câmara Municipal de Lagos para “proceder à legalização da publicidade não licenciada”, com nota semelhante: “Mais se informa que em caso de incumprimento ficará sujeito às seguintes cominações legais: - Será efectuada queixa pela prática por parte de V.Exa de crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artº 348º do Código Penal com pena de prisão até um ano ou de multa até 120 dias; - A Câmara substitui-se na remoção das referidas estruturas, imputando a V.Exa as respectivas despesas, nos termos do disposto no nº 2 do artº 157º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15/11”.

4p. No dia 3 de Junho de 2009, o arguido mantinha as floreiras e as placas publicitárias na via pública, sem que para o efeito possuísse qualquer licença.

5p. O arguido, ao manter tais objectos na via pública sem que para o efeito tenha diligenciado pela obtenção da devida licença, sabia que estava a violar a ordem dada.

6p. O arguido quis, pois, faltar à obediência a uma ordem, que sabia ser legítima e emanada de autoridade competente, e que lhe foi regularmente comunicada.

7p. O arguido agiu de modo deliberado, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal.

8p. O arguido é isento de antecedentes criminais.

- B - Matéria não incluída

Não se apuraram outros factos com interesse para a decisão da causa. Não foram consignadas, igualmente, considerações gerais, nem foram incluídos factos implicitamente decorrentes de outros, e já explicitamente provados ou não provados na sede própria.

- C - Provas dos factos e sua análise -
1 - O arguido não prestou declarações por estar ausente.
(…)

III -
- F U N D A M E N T O S D E J U R E -
1 - O preceito legal em causa nestes autos é o do artigo 348º do Código Penal, maxime seu nº 1, cujo texto reza assim: «Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».

2 - Vista a acusação, temos que assume aqui especial acuidade a alínea b) do nº 1 do artigo citado.

3 - O texto da aludida alínea b) estatui que, inexistindo na lei preceito que especificamente puna como tal a conduta desobediente, pode a conduta ser ainda assim punida como crime de desobediência, desde que o agente receba a cominação de que a inobservância da ordem ou do mandado integrará esse crime.

4 - Que pretende a lei com esta lata formulação?

5 - Há que ponderar na ratio do preceito, que não é novo; o Código Penal, com efeito, aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886, dispunha no corpo do seu artigo 188º o seguinte: “Aquele que se recusar a prestar ou deixar de prestar qualquer serviço de interesse público, para que tiver sido competentemente nomeado ou intimado, ou que faltar à obediência devida às ordens ou mandados legítimos da autoridade pública ou agentes dela, será condenado a prisão até três meses, se por lei ou disposição de igual força não estiver estabelecida pena diversa”; seguiam-se três parágrafos distinguindo outras tantas situações específicas.

6 - A lei actual exprime, igualmente, a preocupação de punir comportamentos que ignorem a autoridade pública, que deliberadamente deixem de observar ordens legítimas emanadas de órgãos ou funcionários competentes, em objecto da sua competência.

7 -a - Está em causa a aplicação da lei, olhada na perspectiva da obediência dos destinatários da lei aos preceitos que nesta se contêm.

b - Infelizmente, o preceito claro e inequívoco do citado artigo 188º foi substituído pelo actual artigo 348º, cuja redacção ambígua, combinada com a galopante contestação da autoridade, que se verifica hodiernamente, gera confusões e distorções que, em alegações orais, a Acusação e a Defesa não deixaram de sublinhar, pugnando pela absolvição do arguido - vejamos se com razão.

8 -a - O artigo 348º em causa desdobra-se em três preceitos distintos: (a) um preceito integrador da definição e punição do ilícito (corpo do nº 1); (b) outro redundante e desnecessário (alínea a) do nº 1); e (c) um último, absolutamente necessário, mas formulado por modo a fazê-lo parecer abusivo (alínea b) do nº 1) - donde que este artigo seja, pois, um caso notável, dir-se-ia, de aliança da fome com a vontade de comer.

b - Diz a alínea a) do nº 1, com efeito, que a conduta será punida sempre que a lei o diga; não fora a indicação da pena abstracta no corpo do mesmo nº 1, e a sua alínea a) seria completamente tautológica; assim, só o é em parte, mas na medida suficiente para produzir estragos consideráveis.

c - As duas alíneas, com efeito, encontram-se redigidas de tal forma, que pode ser-se levado a crer - contra o mais básico senso comum - que as situações contempladas são, por um lado, a existência de lei autónoma e, por outro lado, a substituição de lei autónoma por cominação de autoridade ou funcionário, ficando a palavra destes equiparada a lei.

d - Temos, pois, um artigo redigido com uma infelicidade extraordinária, dado que gera a ideia de que a conduta é desobediente, porque o funcionário assim o diz, quando não é nada disso: a conduta é desobediente, porque desafia e afronta uma ordem ou um mandado legítimos; o papel do funcionário é, tão somente, o de chamar a atenção para essa circunstância.

e - Obviamente, importa não esquecer o determinado pelo artigo 9º, nº 3, do Código Civil: «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados»; no caso vertente, parece claro que o fito do legislador foi atribuir lógica e conteúdo às disposições legais que redigiu; neste sentido, a manifesta infelicidade da redacção utilizada não pode fazer esquecer uma realidade evidente: é que não foi propósito do legislador subtrair à alçada da lei um larguíssimo universo de comportamentos desobedientes, não especificamente arrolados em leis autónomas - tarefa impossível! - mas suficientemente desafiadores da lei e da ordem para merecerem punição como crime de desobediência, sob pena de ficar escancarado o portão, já demasiadamente largo, do repúdio da autoridade e da recusa de observância dos preceitos legais.

f - Torna-se claro que a intervenção do funcionário, transmitindo a cominação, passou a fazer parte dos pressupostos da punição, quando não haja lei autónoma; não faz, todavia, parte integrante do comportamento penalmente censurável - antes se reconduz a uma condição, hoc sensu, da punibilidade desse comportamento.

g - Pode perguntar-se, isso sim, por que motivo exige a lei a intervenção do funcionário, chamando a atenção para a natureza censurável da conduta; a verdade, porém, é que assim tinha de ser, depois de se dizer que é punível como crime de desobediência toda a conduta que a lei assim qualifique; criada, na verdade, esta estranha redundância, cabe perguntar o que sucede quando a conduta seja desobediente, mas não se mostre qualificada em lei autónoma como crime de desobediência; a resposta é conhecida, e vem plasmada na alínea b) do nº 1 do artigo 348º do Código Penal.

9 -a - Há ainda outra questão: que fazer, nos casos em que a autoridade ou o funcionário não façam a cominação? cabe-lhes escolher, arbitrariamente, os casos em que a fazem e os casos em que a não fazem? assim privilegiando uns e prejudicando outros, discricionariamente?

b - A autoridade ou o funcionário competentes cumprirão o seu dever, sempre que façam a cominação; e quando não a façam, faltarão ao seu dever, pois não são livres de denunciar ou não os crimes que presenciem ou que verifiquem: veja-se, aliás, o que dispõe o artigo 242º do Código de Processo Penal.

c - Sente-se o arguido prejudicado? Acha o arguido que outros fazem pior e nada lhes acontece? Se assim é, não fica o arguido exonerado da sua responsabilidade - mas pode participar criminalmente os casos que comparativamente o prejudiquem.

10 -a - Resta um problema: está no caso verificada a aludida condição de punibilidade? Foi feita, por autoridade ou funcionário competente, a cominação que a lei exige? Vejamos o que se extrai dos documentos de folhas 18 e 21, face à lei.

b - «Fazer a cominação», consoante dispõe a alínea b) do nº 1 do artigo 348º do Código Penal, consiste em transmitir ao agente o conhecimento de que a inobservância da ordem ou do mandado constitui crime de desobediência.

c -1. O exemplo mais imediato que pode formular-se decorre da aplicação do artigo 322º do Código de Processo Penal, conjugado igualmente com o seu artigo 85º; neste contexto, se o juiz ordenar a um cidadão do público que abandone as instalações, pode transmitir-lhe, se disso vir necessidade, que deverá cumprir a ordem que lhe é dada, sob a cominação de cometer um crime de desobediência.

2. O mais visto nos Tribunais é o caso do agente policial que ordena a certo condutor que circule, ou que abandone determinado local, designadamente por razões de segurança ou de regulação do trânsito; ou seja, perante o cidadão que pratica a contra-ordenação prevista no artigo 4º do Código da Estrada, o agente policial, obrigado a levantar o auto por contra-ordenação, ver-se-á porventura na contingência de, ainda assim, compelir o cidadão a fazer o que lhe é ordenado; de contrário, levantaria o auto de contra-ordenação, e permitiria que o cidadão deixasse o seu veículo em local inadequado, ou pior do que isso; não terá o agente, neste caso, qualquer opção: terá de manter a ordem que deu, e terá de comunicar ao cidadão que, se a não cumprir, incorrerá em crime de desobediência, nos termos da aqui sempre falada alínea b); a não ser assim, o cidadão desobediente passaria a fazer na estrada o que lhe desse na real gana, e nem é imaginável o caos que rapidamente se instalaria.

3. Mas é este caos que a Acusação e a Defesa, em uníssono, parecem propugnar nos presentes autos: deixar ao cidadão visado a “liberdade” de ocupar a via pedonal (e já agora, por que não a faixa de rodagem?) com mesas e cadeiras, sem licença camarária para tal, e na mais olímpica indiferença pelas ordens emitidas pela autoridade competente - algo próximo do que poderia chamar-se a “instauração do faroeste”...

4. Objectar-se-á que a Câmara Municipal de Lagos poderia ter, muito simplesmente, promovido a remoção das coisas a que se refere a sua ordem; mas a objecção não colhe, porque o poder de remover assenta nos pressupostos legais que justificam a qualificação dos factos como prática do crime de desobediência - e mais do que isso, a remoção em si mesma só é justificada se houver conduta desobediente («se o obrigado não cumprir dentro do prazo fixado», é o que diz o artigo 157º, nº 2, do CPA), e se houver conduta desobediente há ilícito criminal; resta assegurar a sua punibilidade, fazendo a cominação - lembrando, e é necessário dizê-lo, que a remoção pela Câmara não constitui sanção, tendo esta de ser imposta pelo Tribunal, pois a resolução da questão de fundo (remoção das coisas mencionadas) não coabita, ao mesmo nível, com a punição da conduta, punição essa que tem um fim correctivo e preventivo, autónomo em relação à finalidade prática visada pela ordem não obedecida.

11 - Logo, o arguido A, ao agir conforme se provou, cometeu o crime de que vem acusado, ou seja, constituiu-se autor material do crime doloso consumado de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, em abstracto, com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Quer o recurso do arguido, quer o recurso interposto pelo MP no exclusivo interesse do arguido, suscitam a questão penal substantiva de saber se a conduta deste não preenche os elementos objetivos de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº1 b) do CPP, em virtude de a notificação feita ao arguido pela Câmara Municipal, conforme descrito sob os nºs 2 e 3 dos factos provados, não conter ordem substancialmente legítima.

É esta a questão a decidir.

2. Decidindo.
2.1. – Seguindo, no essencial, a formulação de Lopes da Mota[1], o crime de desobediência previsto e punível pelo art. 348º do C. Penal tem como elementos objetivos do tipo (a) existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na aceção do art. 386º do C. Penal, impondo uma determinada conduta, um dever de ação ou omissão, (b) a sua legalidade material e formal, (c) a competência de quem a emite, (d) comunicação regular da ordem ao destinatário e (e) incumprimento da ordem ou mandado.

Para além disso, exige o tipo legal que o dever de obediência incumprido radique numa disposição legal que comine, no caso, a sua punição (al. a) do nº1) ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou funcionário a que se refere a al. b) daquele nº1, sendo certo que esta consideração da cominação pela autoridade ou funcionário como elementos do tipo (e não meras condições de punibilidade), será hoje generalizadamente aceite, tendo sido reafirmada na doutrina do AFJ do STJ 2/2013.

Significa isto que a cominação de que a desobediência à ordem emitida é punida com a pena prevista para o crime de desobediência é necessária para o preenchimento do tipo objetivo do crime e, concomitantemente, deve ser abarcada pelo dolo do agente, mas não que toda a ordem emitida com esta cominação por autoridade ou funcionário, implique, ipso facto, o preenchimento do tipo.

A ordem deve ser abrangida pela competência da autoridade ou funcionário que a emite e deve ser legítima, o que implica que a ordem ou mandado devem ser formal e materialmente legais, mas também, em princípio, que o legislador não tenha previsto em termos normativos as consequências da conduta inadimplente e que no contexto em que é proferida a ordem, o seu incumprimento atinja a dignidade penal e necessidade de pena pressupostas no art. 348º do C. Penal. Sem estas, pode a ordem mostrar-se funcionalmente adequada, nada obstando, portanto, à sua emissão e ao seu acatamento pelo destinatário do ponto de vista da prossecução do interesse público subjacente, mas o seu incumprimento não fará incorrer o inadimplente na prática do crime de desobediência p. e p. pela al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal.

Aqui entronca a questão concretamente discutida nos autos, ou seja, a de saber se a ordem da Câmara Municipal de Lagos para que o arguido adquirisse a licença camarária adequada ou retirasse os objetos da via pública, sob pena de desobediência (aceitando-se ser este o sentido da advertência de que será feita queixa por desobediência constante da notificação escrita em causa), é legítima, nomeadamente em função do princípio da legalidade penal, tal como a doutrina do AFJ 2/2013 o articula com a nota de subsidiariedade que tradicionalmente se atribui ao crime previsto na al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal, embora num outro sentido completamente diferente[2], atinente ao caráter de “ultima ratio” da intervenção penal, como ali se diz.

b) Na verdade, uma vez que nos casos daquela al. b) a cominação ad hoc resulta de um ato de vontade individual e não normativo, só a análise de todo o circunstancialismo que rodeou a emanação da ordem poderá́ assegurar a necessidade de criminalização da conduta(34), em conformidade com a Constituição.

Necessidade de criminalização da conduta através da cominação ad hoc, que deve ser perspetivada num duplo sentido, como decorre da doutrina daquele AFJ (independentemente das conclusões a que chega no caso concreto).

Por um lado - continuando a seguir a fundamentação do AFJ 2/2013 -, sempre que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências daquela mesma conduta, designadamente ao nível sancionatório (contraordenacional, disciplinar ou processual), deverá presumir-se, numa primeira abordagem, que rejeitou a criminalização do comportamento, e não deverá ser, pois, a autoridade ou o funcionário a substituir-se ao legislador. Conclui-se aí que só́ a ausência completa de qualquer expediente compulsivo previsto numa disposição legal, destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente, ou a previsão na lei de uma consequência, que se mostre na prática claramente insuficiente, autorizará a cominação ad hoc. Entende-se, porém, que não está vedada a cominação ad hoc do crime de desobediência, se a autoridade donde emana a ordem considerar, que a consequência prevista na lei pelo legislador, se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso. (Negrito nosso). Isto é, mesmo que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências da conduta em causa, seja através de norma sancionatória não penal, seja através de disposição processual, o funcionário ou autoridade donde emana a ordem pode fazer a cominação ad hoc do crime de desobediência, se a autoridade ou funcionário considerar fundadamente que a consequência prevista na lei pelo legislador se mostra manifestamente ineficaz, face às circunstâncias do caso.

A entender-se assim, porém, isto é, a considerar-se que a criminalização por via da cominação ad hoc a que se reporta a al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal pode ter lugar mesmo nos casos em que o legislador tenha previsto em termos normativos as consequências da conduta incumpridora ou desobediente do agente, parece-nos que aquela apenas será admissível em atenção às especiais necessidades de tutela penal ditadas pelas circunstâncias do caso concreto (e não de eventual lacuna normativa para toda uma categoria ou tipo de casos abstratamente definida)[3], em face das quais a incriminação se apresente fundadamente como indispensável para assegurar a tutela efetiva da autonomia intencional do Estado no caso concreto, enquanto bem jurídico protegido com a incriminação da desobediência.

Para além do princípio da necessidade de pena ou de tutela penal, parece-nos que esta exigência resulta de projeções do princípio da legalidade, nomeadamente do corolário da reserva de lei da AR em matéria de crimes e penas, na medida em que evita desse modo que através da norma aberta da al. b) do nº1 do art. 348º, a autoridade ou funcionário possa derrogar o enquadramento sancionatório da conduta positivamente traçado pelo legislador.

b) Por outro lado, sublinha-se no AFJ 2/2013, mesmo nos casos de ausência de norma sancionatória que preveja a conduta em causa ou de procedimento compulsório destinado a evitar as consequências perniciosas do comportamento desobediente, estas consequências, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, terão que ter uma gravidade compatível com a criminalização através da cominação ad hoc de autoridade ou funcionário, a que se reporta a al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal. Não é, pois, a mera ausência de previsão incriminadora ou sancionadora a título diverso que legitima a criminalização da conduta através da cominação de autoridade ou funcionário competente, exigindo-se ainda que a conduta a justifique materialmente, por imposição do mesmo princípio de intervenção mínima do direito penal, ou da necessidade da pena, que se extrai do nº2 do art. 18ª da CR e portanto da proporcionalidade entre a danosidade social da conduta e a reação.

3. Aplicando estes considerandos ao caso sub judice, impõe-se concluir que a ordem emitida pela Câmara Municipal é insuscetível de fazer incorrer o arguido no crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº1 b) do C. Penal porque independentemente de outros aspetos a que, todavia, não deixaremos de aludir, não é substancialmente legítima do ponto de vista do preenchimento do tipo legal.

Em primeiro lugar, a conduta do arguido que se traduziu em ter colocado e mantido na via pública, sem as competentes licenças municipais, uma placa de ementas, uma placa publicitária e três vasos (cfr nº1 dos factos provados) é suscetível de integrar contraordenações previstas no Regulamento da Atividade Publicitária e no Regulamento das Licenças para Ocupação da via Pública da Câmara Municipal de Lagos, disponíveis na Internet na sua versão atual, sendo certo que tal foi o entendimento dos serviços de fiscalização respetivos ao levantarem o auto de notícia de fls 11.

Por outro lado, conforme se enfatiza nos recursos interpostos, o art. 157º nº2 do Código de Procedimento Administrativo (CPA) aprovado pela Câmara Municipal prevê que na execução para prestação de facto fungível, se o obrigado não praticar o ato devido dentro do prazo fixado, a Administração optará por realizar a execução diretamente ou por intermédio de terceiro, ficando neste caso todas as despesas, incluindo indemnizações e sanções pecuniárias, por conta do obrigado.

Isto é - impõe-se concluir - a lei administrativa prevê as consequências da conduta omissiva do agente, nomeadamente na fase de execução com vista à reposição da situação de disponibilidade da via pública, pelo que deve considerar-se que o legislador rejeitou a criminalização do comportamento, tutelando de forma diversa o interesse público subjacente. Mesmo de acordo com a doutrina exposta na fundamentação do AFJ 2/2013, pelo menos deverá presumir-se que o legislador rejeitou a criminalização do comportamento, sendo certo que as circunstâncias concretas da situação de facto espelhada nos autos não é de molde a legitimar materialmente a incriminação do não acatamento da ordem emitida pela Câmara Municipal. Isto é, no caso concreto a autonomia intencional do Estado, enquanto bem jurídico protegido pela incriminação do art. 348º do C. Penal, não está especialmente carecida de tutela penal pelo que não pode a autoridade ou o funcionário “substituir-se” ao legislador provocando a criminalização da conduta incumpridora do arguido através da cominação a que refere a al. b) do nº1 do art. 348º C. Penal. A situação concreta não reclama tutela mais forte que a representada pela regulamentação legal, de natureza administrativa.

Concluímos, pois, em síntese, que a ordem emanada pela Câmara Municipal com invocação do disposto no nº1 do art. 348º al. b) do C. Penal não pode reputar-se legítima, porquanto a lei administrativa regula normativamente as consequência da conduta inadimplente do arguido e as consequências perniciosas do comportamento desobediente não assumem gravidade que a criminalização daquela conduta através da cominação ad hoc de autoridade ou funcionário a que se reporta a al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal, pelo que não se mostra preenchido aquele tipo penal procedendo ambos os recursos, com a consequente absolvição do arguido.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento aos recursos interpostos pelo arguido e pelo MP no exclusivo interesse daquele, revogando a sentença recorrida e decidindo, em substituição, absolver o arguido, A, da prática do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º nº1 b) do C. Penal que lhe vinha imputado.

Sem Custas

Évora, 29.01.2013

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas
Carlos Jorge Berguete

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[1] Cfr Crimes Contra a Autoridade Pública in Jornadas de Direito Criminal-CEJ, II, Lisboa 1998, pp 428-9.

[2] No sentido tradicional, afirma-se que o crime previsto na al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal tem caráter subsidiário, respeita às condutas não punidas por força de disposição legal que mande aplicar a pena do crime de desobediência (al. a) do nº1 do art. 348º C. Penal) ou que preveja outro ilícito de natureza penal ou não penal (v.g. civil, administrativo, disciplinar ou processual) – vd Lopes da Mota. Loc. citado.
[3] É, aliás, o AFJ 2/2013 a referir-se às circunstâncias do caso e ao circunstancialismo que rodeou a emanação da ordem, embora pareça considerar na uniformização de jurisprudência que cabe ali o vazio normativo suposto pelo acórdão para toda uma categoria ou tipo de casos (entrega de título de condução na sequência de condenação em pena acessória de proibição de conduzir) independentemente de quaisquer particularidades do caso concreto.

Na verdade, apesar de começar por afirmar que ao condenar o agente em proibição de conduzir o juiz pode ter condutas funcionais alternativas, incluindo fazer a cominação a que se reporta a al. b) do nº1 do art. 348º do C. Penal, o AFJ conclui que o juiz deve ordenar a entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348º, nº 1, al. b), do CP, o que valerá para todas as hipóteses de entrega do título de condução aí consideradas. Ou seja, se bem vemos a questão, supre-se a pressuposta lacuna de regulamentação legal resultante de se considerar que a lei penal não prevê que a falta de entrega do título de condução faz incorrer o condenado na prática de um crime de desobediência, estabelecendo de forma abstrata que em todos aqueles casos o juiz faça uma cominação que, por natureza, deve ter lugar face a situações concretas, casuisticamente diferenciadas, embora objetivamente fundamentadas, o que nos parece corresponder à melhor interpretação do art, 348º nº1 b) do C. Penal e parece afirmado na fundamentação do AFJ, como aludido.