ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
DOLO
Sumário


1. Na sua configuração atual, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura ou própria, de mera (in)atividade, uma vez que a apropriação deixou de integrar o tipo legal, pelo que o crime consuma-se na data em que terminar o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários, conforme disposição expressa do art. 5.º nºs 1 e 2 do RGIT.

2. Trata-se de um crime doloso (a negligência é punível como contraordenação pelo art. 114º do RGIT) e o tipo subjetivo não exige atualmente qualquer dolo específico ou elemento especial subjetivo do tipo, pelo que basta à sua consumação que a conduta omissiva do agente tenha lugar sob qualquer das formas de dolo a que se reporta o art. 14º do C. Penal.

Texto Integral


Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que corre termos no 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Silves foram acusados e sujeitos a julgamento A.., SA, NIPC .., com sede em Silves e J., gestor de empresas, natural da freguesia e concelho de Silves, nascido a 15 de Junho de 1957, casado, gestor de empresas, residente em Portimão, a quem o MP imputara a prática, em co-autoria material e concurso efectivo, de cinco crime de abuso de confiança fiscal, dois deles, previstos e punidos pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 , 4 e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias e os restantes três previstos punidos pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, 5 e 7 do mesmo diploma.

2. – Realizada a Audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual foi comunicada alteração não substancial de factos e da qualificação jurídica, como consta da respetiva acta, o tribunal a quo decidiu:
- Absolver a A..., SA da prática crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 , 4, 5, e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com referência à não entrega de IVA, relativo ao mês de Dezembro de 2006, no montante de € 196 284,43;

- Absolver a A.., SA da prática crime de abuso de confiança fiscal simples previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 , 4, e 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Dezembro de 2007, no montante de € 38 686,96;

- Absolver A..., SA da prática do crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 , 4, 5, e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Dezembro de 2008, no montante de € 89 341,89;

- Absolver o arguido J, da prática do crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 , 4, 5, e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Dezembro de 2006, no montante de € 196 284,43;

- Absolver o arguido J da prática do crime de abuso de confiança fiscal simples, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 , 4, e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Dezembro de 2007, no montante de € 38 686,96;

- Absolver o arguido J da prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 , 4, 5, e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Dezembro de 2008, no montante de € 89 341,89;

- Condenar a arguida “A..., SA pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal simples, previsto nos artigos 6.º, 7.º, nºs 1 e 3 e 105.º, n.º 1, 2, 4, 7 do RGIT, na pena de 200 (duzentos) dias de multa , com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Dezembro de 2008, no montante de € 8667,04;

- Condenar a arguida “ A..., SA ” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto nos artigos 6.º, 7.º, nºs 1 e 3 e 105.º, n.º 1, 2, 4, 5 e 7 do RGIT, na pena de 700 (setecentos) dias de multa, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Agosto de 2009, no montante de € 81594,43;

- Em cúmulo jurídico das penas parcelares de 200 (duzentos) dias de multa [supra 7] e 700 (setecentos) dias [supra 8], a arguida “A..., SA ” é condenada na pena única de 800 (oitocentos) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de € 4800,00 (quatro mil e oitocentos euros);

- Condenar o arguido J pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal simples, previsto nos nºs 1, 2, 4 e 7 do 105º do RGIT, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Dezembro de 2008, no montante de € 8667,04, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 4,00 (quatro euros), o que perfaz o montante de € 720,00 (setecentos e vinte euros).

- Condenar J. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto no artigo 105.º, n.º 1, 2, 4, 5 e 7 do RGIT, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Agosto de 2009, no montante de € 81594,43, na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses prisão, cuja execução fica suspensa por igual período, com a condição de arguido, no mesmo prazo, pagar a Administração fiscal a quantia de € 81 341,89 (oitenta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos), acrescida e respectivos acréscimos legais.

3. Inconformado, recorreu o arguido J, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

«CONCLUSÕES:

1ª Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Silves no processo n.º 385/09.3IDFAR, na parte em que foi condenado o ora Recorrente pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto no artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, 5, e 7 do RGIT, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Agosto de 2009, no montante de € 81.594,43 (oitenta e um mil, quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos), na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão, cuja execução fica suspensa por igual período, com a condição do ora Recorrente, no mesmo, prazo pagar à Administração Fiscal essa mesma quantia, acrescida dos respectivos acréscimos legais.

2ª É, porém, uma decisão com a qual o ora Recorrente não se conforma, porquanto a prova junta aos autos, designadamente, a certidão judicial do decretamento do arresto, impunha a sua absolvição, uma vez que de modo algum se poderá qualificar a conduta do Arguido como dolosa.

3ª De facto, conforme consta da certidão judicial junta aos autos foi decretado o arresto das quantias que se encontravam nas lojas da sociedade arguida, saldos bancários e, bem assim, fundo de tesouraria decorrente dos empréstimos contraídos junto da Caixa Geral de Depósitos e Banco Millenium BCP, o que, naturalmente, constituía a única fonte de receita da sociedade para honrar as suas obrigações, designadamente, de natureza tributária.

4ª Acresce que, os montantes objecto do arresto, designadamente, quantias em dinheiro que se encontravam nas caixas das lojas da sociedade arguida incluíam os montantes de IVA cobrado aos consumidores finais pelas vendas efectuadas, tal como os saldos bancários arrestados incluíam os fundos destinados a fazer face ao pagamento desse mesmo IVA.

5ª Conforme é entendimento unânime da doutrina e jurisprudência “o dolo do tipo consiste no conhecimento e vontade da acção típica” , sendo que em face do supra exposto resulta, pois, que o ora Recorrente não se encontrava em condições de “orientar a sua conduta” tanto mais que não tinha na sua disponibilidade os fundos para proceder ao pagamento do IVA respeitante ao mês de Agosto de 2009.

6ª Pelo que a conduta do ora Recorrente não se podia qualificar como dolosa e, em consequência, deveria ter sido absolvido da prática do crime de abuso de confiança fiscal agravado.

7ª Por outro lado, e sem conceder, no caso em que o Tribunal a quo não considerasse suficiente para se concluir pela referida impossibilidade do Recorrente dispor desses fundos, sempre se imporia que tivesse sindicado em concreto a extensão e os efeitos do decretamento do arresto na falta de pagamento do IVA respeitante ao mês de Agosto de 2009.

8ª Constitui jurisprudência unânime que “ninguém pode ser condenado quando existe um laivo de dúvida, ainda que mínimo, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação delituosa – “in dubio pro reo” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.11.2000, in Boletim do Ministério da Justiça, 500, 210).

9ª É que a culpa do Arguido não pode decorrer da mera circunstância da quantia de IVA não ter sido entregue, no prazo devido, nos cofres do Estado, sob pena da decisão recorrida estar ferida de inconstitucionalidade, por força do princípio da presunção de inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

10ª Em consequência, não podia o Tribunal a quo condenar o Recorrente pelo crime de abuso de confiança fiscal agravado nos termos em que o condenou, enfermando, pois, a sentença recorrida de erro na aplicação da lei.

11ª O mesmo se diga quanto à medida da pena e ao prazo concedido para regularização da dívida de IVA dos presentes autos.

12ª Com efeito, o Recorrente não tem antecedentes criminais, geriu o grupo A.. durante cerca quase três décadas e a falta de entrega de IVA ficou-se a dever apenas a dificuldades de tesouraria que o ora Recorrente se empenhou para tentar ultrapassar, chegando, inclusive, a responsabilizar-se pessoalmente por financiamento obtido para a sociedade.

13ª Não é, por isso, crível que existisse qualquer perigo de reincidência, pelo que a necessidade de advertência individual para que não volte a delinquir aqui não se colocará – mais ainda se atentarmos na idade do Recorrente, actualmente com 55 anos de idade.

16ª Quanto à necessidade de ressocialização, não se vislumbra, igualmente, que efeito é que a aplicação de uma pena privativa da liberdade pesada pode ter, porquanto o Arguido tem uma situação pessoal e familiar estabilizada e boa imagem comunitária.

17.ª Pelo que a condenação de um ano e sete meses foi mal decidida, devendo a pena ser reduzida para um período não superior a um ano.

18.ª Por último, também actuou mal o Tribunal a quo ao determinar um período de tempo tão reduzido para que seja regularizado o imposto para que o Recorrente possa beneficiar da suspensão de execução da pena que lhe foi aplicada.

19.ª Com efeito, o RGIT prevê que o período de regularização possa ser alargado até cinco anos.

20.ª Tendo o Tribunal a quo dado como provado que o Recorrente e a sua esposa foram declarados insolventes e que o plano de insolvência das empresas do grupo A... – na qual se inclui a sociedade arguida – estipula o pagamento de todas as dívidas à Fazenda Nacional.

21.ª Ora, nestas circunstâncias, a obrigação de regularizar o imposto ora em causa em apenas dezanove meses não é adequada ao caso concreto, pois, na prática, o Recorrente não terá meios para cumprir essa mesma obrigação.

22.ª O que manifestamente afecta a liberdade do ora Recorrente.

23.ª Pelo que, também nessa âmbito, a douta decisão recorrida não teve em conta a situação concreta do Arguido e as particularidades do caso, estando assim inquinada de erro na aplicação da lei.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»

4. – Notificado, o MP junto do tribunal a quo apresentou a sua resposta concluindo pela total improcedência do recurso.

5.- Nesta Relação, o senhor magistrado do MP concluiu no mesmo sentido.

6. – Cumprido o disposto no art. 417º nº2 CPP, respondeu o arguido pugnando pela procedência do seu recurso.

7. – A decisão recorrida (transcrição parcial):
« (…)

a) Matéria de Facto provada

1.
A sociedade arguida, A...- SA, tem como objecto social a importação, exportação e distribuição e comercialização de produtos alimentares, de higiene e limpeza e outros produtos de consumo particular em supermercados, representação de interesses e marcas de produtos nacionais e estrangeiros, compra e venda de imóveis, arrendamento exploração de hipermercados e administração de bens e serviços e encontra-se enquadrada no regime normal de IVA, com periodicidade mensal.
2.
O arguido J, foi até 13 de Outubro de 2009, administrador da arguida A...-SA, integrando igualmente a direcção da A...
3.
A sociedade arguida integrava o grupo de empresas liderado pela A.., sendo que era o arguido quem tomava todas as decisões de gestão do grupo e bem assim da sociedade arguida, definindo o rumo dos negócios, contactando com fornecedores e clientes e pagando aos primeiros e recebendo dos segundos e bem assim representando a sociedade arguida junto das repartições públicas.
4.
A sociedade arguida recebeu as seguintes quantias, resultantes da diferença entre o IVA liquidado aos clientes e o IVA facturado por terceiros e por si suportado e dedutível:

4.1) € 9449,54 (nove mil quatrocentos e quarenta e nove euros e cinquenta e quatro cêntimos), referentes ao mês de Dezembro de 2008, com data de vencimento a 10 de Fevereiro de 2009, tendo a declaração relativa a tal tributo sido remetida à administração fiscal, a 10 de Fevereiro de 2009;

4.2) € 81 594,43 (oitenta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos), referente ao mês de Agosto de 2009, com data de vencimento a 10 de Outubro de 2009, tendo a declaração relativa a tal tributo sido remetida à administração fiscal em 09 de Outubro de 2009.

5.
Os apuramentos de IVA nos montantes de € 196 289,43 (cento e noventa e seis mil duzentos e oitenta e nove euros), de € 38 686,96 (trinta e oito mil seiscentos e oitenta e seis euros e noventa e seis cêntimos)e de € 89 341,89 (oitenta e nove mil trezentos e quarenta e um euros e oitenta e nove cêntimos), aferidos com referência ao meses de Dezembro 2006, 2007 e 2008, respectivamente, resultaram de operações de regularização contabilística entre as várias empresas do grupo.

6.
A sociedade arguida, em data não concretamente, mas que é posterior a 10 de Fevereiro de 2009, firmou com a Fazenda Nacional acordo de pagamento em prestações do valor referido no ponto 4.1. tendo pago por conta desse mesmo montante a quantia de € 782,50 (setecentos e oitenta e dois euros e cinquenta cêntimos).
7.
A sociedade arguida foi notificada a 14 de Novembro de 2010 na pessoa administrador da massa insolvente e a 15 de Novembro de 2010 na pessoa do arguido para no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento das prestações em dívida, juntando prova aos autos do respectivo pagamento.
8.
Consta das notificações em 7, como estando, em dívida IVA referente ao mês de Dezembro de 2008, no montante de € 9449,54 (nove mil quatrocentos e quarenta e nove euros e cinquenta e quatro cêntimos) e IVA referente a Agosto de 2009 no valor de € 81341,89 (oitenta e um mil trezentos e quarenta e um euros e oitenta e nove cêntimos).
9.
A segunda das notificações referidas em 7, dirigia-se igualmente à pessoa do arguido J.

Mais se provou que:
10.
A não entrega à Administração fiscal dos montantes referidos em 4), na data do seu vencimento, se ficou a dever-se a dificuldades de tesouraria.
11.
O arguido J, tendo em vista o pagamento das dívidas das várias empresas do grupo que geria (incluindo das dívidas de natureza fiscal), procurou obter crédito junto da banca, nomeadamente da Caixa de Crédito Agrícola e do Millenium BCP.
12.
Em Janeiro de 2008, solicitou à Caixa de Crédito Agrícola um financiamento da ordem dos € 250 000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), tendo-se responsabilizado pessoalmente (e conjuntamente com a sua esposa) pelo seu pagamento.
13.
A 12 de Agosto de 2008, o arguido formalizou um pedido de empréstimo de € 3 000 000,00 (três milhões de euros) junto do Millenium BCP.
14.
E em Novembro de 2008 solicitou à Caixa de Crédito Agrícola a concessão de um novo empréstimo, desta feita da ordem dos € 400 000,00 (quatrocentos mil euros), o qual apesar de ter sido inicialmente autorizado, viria a não ser concedido com fundamento no facto do grupo A. ter dívidas (de natureza contributiva e ou fiscal) para com o Estado.
15.
Procurou ainda o arguido obter auxílio junto do Governo (nomeadamente junto Primeiro Ministro e do Ministério do Trabalho) com vista a gerir a crise económica que se instalara no grupo A.. e que atingia igualmente a sociedade arguida.
16.
O empréstimo que fora solicitado ao Millenium BCP em Agosto de 2008 apenas foi deferido no início do ano de 2009, tendo, igualmente, participado na sua concessão a Caixa Geral de Depósitos.
17.
Antes de concessão efectiva do financiamento referido em 16. foi solicitado, pelas entidades bancárias mutuárias (no caso o Millenium BCP e Caixa Geral de Depósitos), à Consultora D., a realização de um estudo, com o qual se visava aquilatar da viabilidade do grupo A., tendo o mesmo dado resposta positiva a essa mesma incógnita.
18.
Por exigência das instituições bancárias financiadoras, a D. ficou co-responsável pela tesouraria da sociedade arguida, competindo à referida consultora autorizar os pagamentos que se revelassem necessários.
19.
Com vista a dar satisfação à exigência referida em 18) o arguido subscreveu procuração, datada de 16 de Junho de 2009, a favor de T (responsável da D), conferindo-lhe poderes especiais, para conjuntamente com um membro da direcção em nome da A, abrir, movimentar a débito e a crédito quaisquer contas bancárias, passar e emitir cheques, ordens de pagamentos, transferências bancárias efectuar depósitos e levantamentos, extractos bancários, sendo os poderes conferidos pelo período de 4 meses.
20.
Em 25 de Agosto de 2009 foi subscrita pelo arguido, desta feita, a favor de N, também ele trabalhador da D, procuração idêntica a referida em 19) sendo os poderes em causa conferidos pelo período de 45 dias.
21.
A partir da intervenção da D (16 de Junho de 2009) o arguido, então Administrador da sociedade arguida, deixou de poder movimentar isoladamente as contas bancárias da sociedade e de fazer pagamentos, carecendo os referidos actos de prévia autorização da supra identificada consultora.
22.
Em relatório datado de 25 de Junho de 2009, efectuado pela D, tendo em vista a execução do projecto de Gestão de Tesouraria, fez-se consignar :

Todos os pagamentos seriam realizados através das contas Millenium/CGD, utilizando o sistema de confirming para os fornecedores principais.

Qualquer pagamento a realizar requereria a autorização electrónica do Gestor de Tesouraria e dos responsáveis da A..

Que deveria ser definido um orçamento global para ser gerido pela A.. para fazer face a emergências relacionadas com situações históricas – rendas em atraso, administração fiscal, acordos de pagamento no âmbito das injunções.
23.
A 12 de Outubro de 2009, o departamento financeiro da sociedade arguida informou a D de que se encontrava em dívida IVA, no montante de € 81 594,43 (oitenta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos), referente ao mês de Agosto de 2009.
24.
No dia subsequente, ou seja a 13 de Outubro de 2009, a sociedade arguida foi declarada insolvente passando os poderes de administração do seu património para o Administrador de Insolvência nomeado, o qual advertiu o arguido da impossibilidade da sociedade arguida, a partir daquela data, efectuar quaisquer pagamentos.
25.
A 23 de Agosto de 2009 foi decretado um arresto que visou a A.., CRL, tendo sido arrestadas as participações sociais que a mesma detinha na sociedade arguida e bem assim as quantias em dinheiro constantes das 12 lojas A, o acabou por agravar os problemas de tesouraria da A.... SA..
26.
O plano de insolvência relativo às empresas do grupo, aprovado em sede de assembleia de credores, previu o pagamento de todas as dívidas do grupo A à Fazenda Nacional
27.
Para além do valor referido em 6, não foram, contudo, até a presente data pagas quaisquer outras, encontrando-se ainda em dívida a totalidade do IVA referente ao mês de Agosto de 2009 (no valor de € 81594,43 , e o IVA referente a Dezembro de 2008 no montante de € 8667,04 a IVA, que se reporta mês de Dezembro de 2008.
28.
Todas as importâncias recebidas e não entregues à administração fiscal foram afectas a pagamentos necessários à laboração da sociedade e designadamente ao pagamento de salários.
29.
Ambos arguidos agiram de modo livre e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de não entregar a Administração fiscal os montantes referidos.
30.
Estavam certos, ademais, que o não pagamento das relatadas quantias que foram recepcionadas os faziam incorrer em responsabilidade criminal.
31.
Do certificado de registo criminal dos arguidos nada consta.
32.
J. e a sua esposa foram declarados insolventes por decisão datada de 18 de Abril de 2011 e transitada em julgado a 31 de Maio de 2011.
33.
J. geriu o Grupo A. durante cerca de quase três décadas.
34.
Foi igualmente Presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal
35.
O arguido é perspectivado, entre os seus amigos, como pessoa honesta, séria e dedicada cumpridora
36.
O arguido é gerente da empresa P., Limitada, sociedade que se dedica a venda de artigos de pesca desportiva.
37.
Exerce a gerência na referida sociedade a título não remunerado.
38.
O seu agregado familiar é composto pela esposa e pela sogra.
39.
A esposa do arguido encontra-se desempregada, sendo beneficiária de subsídio de desemprego, no montante de € 1200,00 (mil e duzentos euros).
40.
O arguido auferiu até ao mês de Abril do presente ano o montante mensal € 500,00 (quinhentos euros), pagamento que lhe era efectuado pelo auxílio prestado na administração da massa insolvente da A..
41.
O arguido é licenciado em gestão de empresas.

b) Matéria de Facto Não Provada:
Com interesse para a decisão da causa não ficaram por provar quaisquer factos que se não compaginam com a factualidade apurada, não se tendo nomeadamente logrado provar que:
1.
A sociedade arguida tivesse recebido e feito seus os seguintes montantes, resultantes da diferença entre o IVA liquidado aos clientes e o IVA facturado por terceiros e por si suportado e dedutível:

a) € 196 289,43, relativo ao IVA apurado com referência ao mês de Dezembro de 2006,
b) € 38 686,96, 43, relativo ao IVA apurado com referência ao mês de Dezembro de 2007,
c) € 89 341,89, relativo ao IVA apurado com referência ao mês Dezembro de 2008;
2.
Que a sociedade arguida com referência aos anos de 1997 e 2000 tenha beneficiado de um desconto de «rappel» de € 980 302,22, concretizado por meio de notas de credito emitidas pela central de compras E...- Companhia..., Limitada, onde se incluem 142437,07 a titulo de IVA, por referência ao valor das mercadorias vendidas naqueles exercícios.
3.
Que a D, a partir da sua intervenção, tenha gerido de facto e em exclusivo a sociedade arguida, podendo à mesmas ser imputado o não pagamento dos tributos em dívida, nomeadamente por a data cut –off - 22 de Junho de 2009 - (data a partir da qual não poderiam ser efectuados pagamento de dívidas pretéritas) visar , igualmente as dívidas fiscais.

Fundamentação da Matéria de Facto:
O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, atendendo nos dados objectivos fornecidos pelos documentos juntos aos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, destacando-se:

1- As declarações do arguido que explicou em que termos se processava a gestão da empresa da A, que esforços e diligências foram feitos no sentido de pôr termo às dificuldades de natureza económicas que se fizeram sentir no seio do grupo que geria e bem assim com vista à regularização de todas as dívidas, incluindo das fiscais

Referiu ainda que tinha conhecimento que o não pagamento das dívidas em causa constituam crime e que deu preferência ao pagamento dos salários por razoes éticas e humanitárias, mas também com o intuito de assegurar a própria laboração do grupo de empresas, sendo que foi a tardia intervenção da banca associada, à declaração de insolvência da sociedade arguida e das empresas do grupo, que acabaram por ser factores inviabilizadores o pagamento dos montantes devidos à Fazenda Nacional.

Esclareceu, igualmente, que nem todos os valores feitos constar na acusação correspondem ao efectivo recebimento de IVA.

Com efeito, referiu o arguido que os montantes de IVA apurados com referência aos meses de Dezembro tiveram na sua base notas de crédito e ou até expectativas de ganho que (podem até nem sequer se ter efectivado), mais explicitando que a liquidação do tributo em causa resultou da apresentação de declarações que visaram uma regularização contabilística, factualidade esta última que acabou, igualmente, por ser certificada pelo depoimento (algo nervoso mas espontâneo e como tal credível da testemunha) JV (técnico oficial de contas da A) que, inclusivamente, se reportou à existência de dois modelos de declarações (declarações do Modelo A e C) e aos propósitos e operações que estão na base da apresentação de um e de outro tipo de declaração.

. Embora as declarações do arguido estejam eivadas de um propósito defensivo e se tenham traduzido num discurso genérico, não nos parece que o mesmo tenha faltado à verdade sobre factos concretos sobre os quais prestou declarações, sendo certo que a sua versão do sucedido viria a ser certificadas, na sua generalidade, pelas demais mais testemunhas ouvidas e em parte também pela prova documental junta aos autos, pelo próprio arguido, a solicitação do tribunal.

Contudo, no que concerne aos exactos moldes em que ocorreu a intervenção da D não se logrou provar que esta mesma tenha obstado à realização de pagamentos a Administração Fiscal ou que tenha gerido em exclusivo a sociedade arguida a partir do momento em que e celebrado o acordo de gestão de tesouraria (já que esse factualidade acaba por não ser corroborada pela prova documental junta aos autos).

2- o depoimento de MB, apesar de espontâneo, isento e como tal credível, pouco relevo teve para a prova dos factos em discussão já que a mesma se limitou a certificar que a sociedade arguida fez envio das declarações periódicas de IVA sem que as mesmas fossem acompanhadas do respectivo meio pagamento. Identificou, igualmente, com referência ao meses de Dezembro as declarações de substituição e as datas em que foram entregues e bem assim em que termos recolheu a informação que verteu no parecer constante de fls 248 a 254. Mais referiu desconhecer que concretos valores de imposto apurado tiveram na sua base o efectivo recebimento de dinheiro ou de meios de pagamento equivalentes. Por último certificou ainda a depoente que foram feitas tentativas de pagamento, não se recordando, contudo, em que momento é que as mesmas tiveram lugar e a que montantes concretos se reportaram.

3- o depoimento de LA, trabalhador do departamento financeiro da sociedade arguida, o qual prestou um depoimento que se assemelhou verdadeiro, mas um tanto ou quanto vago, tendo o depoente certificado quer a intervenção da Banca, quer da D na gestão da tesouraria da sociedade arguida e feito referência à existência de uma data cut off, que situa entre Março em Junho (data a partir da qual estava a administração da sociedade interdita de fazer pagamento de dívidas passadas) .Por último referiu igualmente não ser do seu conhecimento que a D alguma vez tivesse recusado dar a sua autorização com vista à realização do pagamento de qualquer dívida de natureza fiscal.

4- o depoimento de SL, advogada, trabalhadora da sociedade arguida (representante dos trabalhadores no âmbito do processo de insolvência), que prestando um depoimento espontâneo contextualizado e que se revelou imparcial e como tal digno de crédito, referiu que depois de declarada a insolvência da sociedade arguida foi a administração da mesma advertida (pelo administrador de Insolvência) de que não poderiam ser realizados quaisquer pagamento, isto não obstante, à data, estar em curso a execução de acordos de pagamentos em prestações das dívidas fiscais e contributivas de várias empresas do grupo. Fez ainda referência ao facto de o plano de insolvência prever pagamento das dívidas fiscais e ao facto de as caixas das lojas A (e bem assim as suas participações sociais) terem sido arrestadas num âmbito de um aresto que visou a A. Por último, referiu que durante todo o verão de 2009 a D acompanhou a tesouraria autorizando a realização de pagamentos.

5- o depoimento de JS, Presidente da Caixa de Crédito Agrícola, tendo a presente testemunha de forma imparcial e contextualizada (e como também ela credível) explicitado esforços feito pelo arguido para tentar obter financiamento e as garantias prestadas.

6- os depoimento das testemunhas JM e JL apesar de se revelarem coerentes espontâneos e como tal credíveis, pouco relevo tiveram para prova dos factos em discussão, já que os mesmos prestaram depoimentos eminentemente abonatórias, descrevendo o arguido J como pessoa honesta, séria , dedicada, cumpridor da palavra e obrigações que assumia. Os únicos factos relevantes que viriam a ser atestados pelas ditas testemunhas reconduzem-se à circunstância de os mesmos terem confirmado que o arguido J foi presidente da Confederação de Comércio e de Serviços de Portugal e de nessa mesma veste ter encetado, por diversas ocasiões, dialogado com os membros do governo com vista a obter uma solução que fosse viabilizadora o Grupo A.

6 - Foi ainda Valorada a seguinte prova documental:
- autos de notícia de fls. 2 a 9;
- certidão permanente de fls. 38 a 42 e de fls. 330;
- notificações de fls 45 e 48, 145 e 150;
- elementos contabilísticos de de fls. 192 a 200
- - parecer de fls. 248 a 254 e documentação anexa de fls. 255 a 260.
- e-mails de fls. 333, 335, 337, 339, 341, 343; 443e 444, 459.
- cartas compromisso de fls. 433 e e ss e de 436.
- autorização de movimentação contas bancárias de fls. 432.
- procurações de fls.438 a 441 e de fls. 452 a 456
- relatório de gestão de tesouraria de fls. 445 a 450;
- autorização de fls. 457;
- certidões judiciais de fls. 464 a 453 e de fls. 496 a 518;
- resposta ao pedido de informação prestada pela Direcção de Finanças de Faro.

Já a matéria de facto não provada assim resultou por falta de referências probatórias ou por referências inseguras ou contraditórias não esclarecidas por melhor prova. Ou ainda por se se tratar de factualidade que embora tivesse sido objecto de confirmação genérica (por parte de algumas testemunhas – como sucedeu com os moldes em que decorreu a intervenção da D), acabou por ser infirmada pela consideração da prova documental junta aos autos (nomeadamente do relatório de gestão de tesouraria de fls. 445 a 450).

Resultou também não provada a matéria cujo contrário se demonstrou.
As condições pessoais do arguido resultaram das suas próprias declarações que o Tribunal reputou de credíveis.

A ausência de antecedentes criminais do arguido e da sociedade resultou da tomada em consideração dos CRCs juntos aos autos a fls. 380 e 381.

V – Fundamentação de Direito
A - O Tipo Legal de Crime
Dos Crimes Imputado aos Arguidos:

Vêm os arguidos acusados da prática, de cinco crimes de abuso de confiança fiscal, mais concretamente:

a) Dois crimes de abuso de confiança fiscal simples, previstos e punidos pelo artigo 105º, nºs 1, 2, 4 e 7 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprova o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT),.

b) Três crimes de abuso de confiança agravados, previstos e punidos pelo artigo 105º, nº1, 4, 5 e 7 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprova o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).

Estatui o referido artigo 105.º do RGIT que
“1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50.000,00, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Atenta a natureza do ilícito imputado aos arguidos é evidente que estamos perante a imputação aos mesmos de um ilícito que se insere na categoria mais genérica das infracções tributária.

Nos termos do Regulamento Geral das Infracções Tributárias (RGIT) constitui infracção tributária todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior. (Artigo 2º nº1 do RGIT).

Mais dispõe o artigo 5º, nº1 do do RGIT que «As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no nº3, acrescento o nº2 do mesmo normativo que «As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.

No que se reporta ao sujeito da prática da infracção tributária o mesmo pode ser uma pessoa singular ou colectiva (desde que se ache onerado com a obrigação de entrega do tributo) sendo certo que no que se reporta às pessoas colectivas importa ter presente o disposto nos artigos 6º nº1 e 7, nº1, ambos do RGIT, normas que prevêem uma espécie de responsabilidade criminal cumulativa.

Dispõe, assim, o art. 6º, nº1 do ambos do RGIT que quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.

As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.

Determina por sua vez o art. 7º nº1 e nº3 do RGIT que «a responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes».

Como refere o Professor Germano Marques da Silva, in «Direito Penal Tributário», pag. 108 e ss) «a responsabilidade das pessoas colectivas resulta de lhes serem imputadas as infracções cometidas pelos seus órgãos e representantes e que este cometa o facto em nome e em representação da pessoa colectiva. (…). mais referindo o Ilustre Professor que «A prática do crime em comparticipação é frequente quer no que respeita aos administradores ou gerentes das sociedades, sendo a administração plural, quer no que respeita a colaboradores qualificados das empresas (v.g. directores de serviço, técnicos de contas, revisores oficiais de contas).

Pelo que existindo administração ou gerência plurais no âmbito da orgânica da pessoa colectiva, importa desde logo, apurar quem no processo de formação da vontade societária, votou no sentido favorável à tomada de decisão da não entrega da prestação tributária devida, sendo só essa ou essas pessoas, conjuntamente com a sociedade (caso se logre provar que essa mesma decisão foi tomada no interesse da mesma ) podem ser responsabilizados pela prática do ilícito.

Por outro lado, é inquestionável que a responsabilização da pessoa jurídica (da sociedade) necessita da verificação da sua própria culpa.

Mas para que assim aconteça o legislador lançou mão de um mecanismo que radica na circunstância de a pessoa jurídica ser imputável graças ao “substractum” de uma pessoa física que a representa e que pratica o facto (criminoso) em seu lugar e no seu interesse, podendo dizer-se que aquela se “encarna” nesta.

É por isso que a vontade manifestada pelas pessoas que representam orgânica, voluntária ou legalmente a pessoa jurídica é por lei considerada a própria vontade desta.

Já no que respeita ao concretamente bem jurídico protegido com a incriminação prevista no art. 105ºdo RGIT o mesmo é o património do Estado, diríamos que não isoladamente considerado (pois assim s acharia legitimada a mera responsabilidade penal por dívidas) mas o património do Estado, com referência à relação fiduciária que a cobrança do imposto pressupõe.

Vejamos agora que concretas condutas omissivas podem ser qualificadas como crime

Ora, como é sabido, o imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) é um imposto que visa tributar o consumo de bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, sendo sujeitos passivos do mesmo, entre outros, as pessoas colectivas que, com carácter de habitualidade e independência, prestem serviços.

Este imposto é, desta forma, cobrado pelo sujeito passivo quando presta algum serviço a terceira pessoa, estando incluído no preço que o consumidor (seja ou não final) paga pela sua realização, sendo, posteriormente, entregue pelo primeiro à Fazenda Pública.

O tipo de ilícito aqui em causa pressupõe, assim, a violação da relação de confiança fundada na lei – o devedor [funcionando como um mero depositário do imposto pago pelos clientes (neste sentido Acórdão da Relação do Porto de 27 de Outubro de 2000, disponível em www.dgsi.pt )] liquida e retêm importâncias devidas a título de IVA, ficando obrigado a entregá-las ao credor tributário –, com “ressonância ético jurídica de natureza idêntica à que está subjacente no crime de abuso de confiança previsto no artigo 205.º do Código Penal” (Alfredo José de Sousa, in obra citada, página 103).

As quantias que são detidas a título de IVA não são, pois, propriedade de quem as retém ou deduz , mas da administração tributária, posto que o contribuinte, ao reter o imposto, age apenas em substituição do Estado, impendendo, desde logo e sobre si próprio, o dever de subsequente entrega à Administração Fiscal.

Pressupõe este delito uma relação em que intercedem três sujeitos:
a) o Estado -Administração Fiscal, titular do crédito do imposto;
b) o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído,
c) e, por último, um terceiro, o substituto, o único sujeito em posição de cometer o crime.

O artigo 105º tem em vista situações de substituição tributária, estando nós perante um crime omissivo, um crime de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito é antecedida de uma acção, de um comportamento actuante, positivo, de facere, consubstanciado numa conduta legal, de prévia dedução (obrigação de retenção), que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, figurando como um intermediário no processo de arrecadação da receita, constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do retido, consubstanciando-se na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária.

Assenta este crime, como também é comummente referido, numa conduta bifásica, seguindo-se a uma primeira fase de actuação perfeitamente lícita – a dedução – que funciona como seu pressuposto, uma outra traduzida numa omissão.

Assim sendo, constituem elementos objectivos do tipo:

Þ a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária recepcionada.

Þ que o agente estava legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei, após a reforma de 2008).

Já configuram condições objectivas de punibilidade, indicadas no n.° 4 do art.° 105.°, as seguintes:

Þ tiver decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega prestação

Þ a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

Para se consumar o crime, basta, agora, a mera violação do dever legal de entrega das prestações deduzidas ou retidas (ou anteriormente terem sido recepcionadas), que no entanto, insiste-se, não se confunde com qualquer intenção de apropriação.

Contudo, se não é exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007 p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13).

Não tendo existido, efectivo, recebimento do imposto em momento anterior à entrega, à administração tributária, da declaração periódica está afastada a possibilidade de preenchimento do tipo de ilícito do crime em análise.

Exige-se, por isso, que se demonstre o recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado.

Ou seja o dever legal de entregar as prestações devidas (por dedução) pressupõe sempre que estas tenham sido efectivamente recebidas.

Em síntese, o que se conclui é que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.

No plano doutrinário, são vários os Autores que excluem a tipicidade da conduta de omissão de entrega de IVA liquidado e não recebido (veja-se Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais. Análise dogmática e Reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra, 2006, páginas 124-126, Isabel Marques da Silva, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Coimbra, 2ª edição, 2007, pág. 168 e Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, 2010, págs. 257-266, e também a de Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra, 2011, págs. 51-64 e 101-106).

Pelo que a conclusão a retirar á a de que, efectivamente, não obstante o IVA liquidado ser exigível independentemente do seu recebimento, sucede que as consequências para a violação da obrigação de entrega da prestação tributária de IVA que não foi não recebido cingem-se à possibilidade de cobrança coerciva e ao dever de pagamento de juros.

A esse propósito, escreve Isabel Marques da Silva (Nullum Crimen…, págs. 262-263): «Pela nossa parte, não vemos, pois, como seja possível fazer caber a não entrega das prestações tributárias de IVA no nº1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias. O mesmo não se diga já do nº2 do mesmo preceito legal (…). Como dissemos já, o nº2 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias procede a uma extensão do tipo nele incluindo também a prestação tributária “(…) que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. O que permite considerar subsumível no tipo legal de crime a não entrega do IVA liquidado que tenha sido recebido. Mas apenas deste, como resulta expressamente do preceito. O recebimento da prestação tributária é, pois, em face do tipo legal de crime, pressuposto essencial do crime de abuso de confiança, sendo o que dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por tipicidade do facto».

No que diz respeito ao tipo subjectivo de ilícito, estamos perante um crime punido apenas a título de dolo, atento o disposto no artigo 13.º do Código Penal, o qual preceitua que “só é punível o facto praticado a título de dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.

O dolo é constituído pelo elemento intelectual (conhecimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito), e pelo elemento volitivo (que compreende a direcção de uma vontade para um determinado comportamento), sendo constituído por três modalidades.

Assim, nos termos do n.º 1 do artigo 14.º do Código Penal “age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar” (dolo directo em que o agente actua querendo a realização do facto criminoso). No seu n.º 2 encontramos previsto o dolo necessário, considerando-se que “age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta”, e ainda assim não se abstendo de o praticar. Por último, “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização” (dolo eventual).

Saliente-se que “para afirmar o dolo, basta a consciência marginal, não é necessária a consciência focal; basta a consciência liminar ou difusa, não é necessária a consciência clara ou de atenção; basta a consciência. Não é preciso que, no momento do facto, a atenção do agente incida clara e precisamente sobre o elemento da situação considerado. É suficiente para o dolo que se possa dizer que o agente dispõe da informação correspondente. Para se poder afirmar o dolo, basta que se prove que, em algum momento anterior, o agente adquiriu a informação relevante” (neste sentido, Simas Santos/Leal Henriques, Código Penal Anotado, 1º Volume, Editora Rei dos Livros, 2ª Edição, pág. 182).

No tipo de crime em causa nos autos, para o preenchimento do tipo subjectivo torna-se necessário que o agente tenha previsto e desejado não entregar as prestações a que sabia estar obrigado, pese embora soubesse que tal conduta é punida por lei.

Ora, no caso concreto, e atenta matéria de facto dada como provada e tendo, igualmente, em consideração as considerações teóricas supra tecidas, não podemos deixar de considerar que as condutas omissivas adoptadas pelo arguido em representação da sociedade arguida e que unicamente contendem com a simples não pagamento do valor de imposto liquidado, quando a essa mesma conduta não se acha associada à prévia retenção de quaisquer valores (sejam entregues em dinheiro ou por via de qualquer outro meio de pagamento) que lhe tenham sido efectiva e previamente entregues ou confiados, não consubstancia, pois, por falta de tipicidade, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal.

Pelo que se impõe a absolvição dos arguidos pessoa singular e colectiva, no que concretamente se que se reporta ao não pagamento de IVA relativo aos meses de Dezembro de 2006 (estando em causa o não pagamento do valor de € 196 289,43) de Dezembro de 2007 (período em que foi liquidado IVA € 38 686,96) e de Dezembro de 2008 (€ 89 341,89).

Por outro lado, levando em linha de conta que apenas os montantes de € 9449,54 (nove mil quatrocentos e quarenta e nove euros e cinquenta e quatro cêntimos) e de € 81 594,43 (oitenta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos), se reportam a IVA efectivamente recepcionado e retido ( por ser devido na sequência das operações comerciais realizadas) apenas quanto ao não pagamento desses mesmos valores pode, efectivamente, ser hipotisada a prática pelos arguidos dos ilícitos que lhes são imputados.

Vejamos, então de per si em que momento ocorreu a prática dos referidos comportamentos omissivos e a quem podem os mesmos ser imputados e a que titulo: doloso ou negligente.

Ora, o IVA referente ao mês de Dezembro de 2008 (liquidado em € 9449,54 e sendo devido apenas o valor de ) deveria sido declarado e pago até 10 de Fevereiro de 2009, sendo que foi exactamente, nessa mesma data foi remetida à administração fiscal a declaração com vista a sua liquidação ou apuramento.

No dia 10 de Fevereiro de 2009, não obstante a existência de problemas de tesouraria, a sociedade arguida era, indubitavelmente, e em exclusivo representada pelo arguido J..., pelo que a canalização do IVA retido para outros fins, nomeadamente para a realização de pagamentos a trabalhadores e ou fornecedores, com a sua consequente não entrega aos Cofres do Estado não pode deixar de ser considerada, sob o ponto de vista jurídico criminal, como típica, devendo a prática do crimes de abuso de confiança fiscal em causa (que foi cometido por via da omissão em análise) ser imputados quer ao arguido, quer à sociedade, dado que a conduta omissiva (ou seja o não entrega do tributo devido e anteriormente recepcionado) foi praticada em nome e no interesse da A....-, Limitada.

Já no que respeita ao IVA no montante de € 81 594,43 (oitenta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos) recebido e apurado com referência ao mês de Agosto de 2009, deveria tal tributo ter ido declarado e pagos até 10 de Outubro de 2009, data em que foi remetida à administração fiscal a declaração com vista à sua liquidação.

Ora , a 10 de Outubro de 2009, a sociedade arguida era ao nível da administração(e mais especificamente ao nível da sua tesouraria) objecto de uma gestão partilhada, sendo dirigida, não em exclusivo, mas também pelo arguido J.

Por outro lado, importa igualmente referir, que a sociedade arguida penas foi declarada insolvente a 13 de Outubro de 2009, pelo que último dos ilícitos a que fizemos alusão ainda se consuma durante o período em que o arguido representa e administra a sociedade (pois os seus poderes de administração apenas cessaram a 13 de Outubro de 2009)

E não obstante tal gestão ser controlada ou supervisionada pela Banca e pela D, a verdade é que é também ao arguido – enquanto legal representante da sociedade e atenta a existência de uma responsabilidade delitual cumulativa - que deve ser imputada a prática do ilícito crime de abuso de confiança agravado, porque era igualmente ao arguido a quem competia diligenciar pela entrega do tributo arrecadado.

Acresce, que não se logrou provar que a gestão da sociedade arguida estivesse permanecido apenas a cargo ou sob responsabilidade da D (sua administradora de facto) e esta mesma entidade tivesse recusado – no momento do seu vencimento (pois e neste momento que se consuma o crime) o pagamento de quaisquer dividas fiscais.

Pelo que é com referência às datas de vencimento do tributo – ou seja com referência a 10 de Fevereiro e a 10 de Outubro de 2009, - que tem se ser aferida a existência ou não de dolo, não podendo aferição do tipo subjectivo reportar-se, em termos cronológicos, às datas em que ocorreu a mera verificação das condições objectivas de punibilidade legalmente definidas (como pretende o arguido).

Os factos a que aludem o nº4 do art. 105 do RGIT são meras condições objectivas de punibilidade que nada tem haver com o preenchimento do tipo de ilícito do crime de abuso de confiança fiscal, pois a tipicidade fica preenchida com adopção de uma atitude omissiva (com a não entrega ) e com o conhecimento e vontade de adoptar tal comportamento.

Assim não faz qualquer sentido, pelo menos do ponto de vista jurídico, que o arguido venha afirmar que a sua conduta é, quando muito, negligente, pretendendo que o elemento subjectivo seja apurado, não aquando do momento em que se dá efectivo cometimento dos ilícitos, mas aquando da verificação de factos que apenas contendem com a punibilidade do comportamento adoptado.

A verdade é que logrou provar que a não entrega do IVA referente aos meses de Dezembro de 2008 e Dezembro de 2009 se deveu a um acto de vontade (ainda que condicionada pela realidade económica da sociedade arguida) do arguido pessoa singular (actuando na qualidade de legal representante da sociedade arguida), e que o mesmo tinha conhecimento que lhe estava vedado actuar nesses mesmos termos, tendo contudo aplicado os montantes recepcionados com vista a saldar dividas de outra natureza.

Tendo ainda em consideração que as omissões em causa foram praticadas por conta e no interesse da sociedade arguida (visou-se a assegurar que a mesma continuasse a laborar), pelo que também a sociedade é criminalmente responsável pelas mesmas, nos termos do disposto no artigo 6º e 7º, nº1 e 3 do RGIT.

Por último importa ainda referir que o facto de o arguido em momento posterior ao da declaração se insolvência da sociedade não poder gerir a tesouraria da mesma e facto que se afigura igualmente irrelevante, isto porquanto na sequência das omissões perpetrada passa, também ele, a ser autor material do crime, podendo obstar à sua punição (e bem assim à punição da sociedade arguida) desde que pague o montante devido ainda que à custa do seu património pessoal e o faça dentro dos prazos legalmente fixados para o efeito.

Por outro lado, o facto de a sociedade arguida ter sido declarada insolvente – em momento anterior aquele em que se mostram verificadas as condições objectivas de punibilidade - também não pode obstar a à sua punição, pois se assim fosse, bastaria comprovar em juízo a inexistência de solvabilidade (comprovada ou não judicialmente) para que qualquer sociedade ficasse isenta de responsabilidade.

Assim, sendo, e atenta a matéria de facto dada como provada, e o entendimento jurídico supra perfilhado, importa concluir que os arguidos, pessoa colectiva e singular, praticaram com a sua condutas omissivas dois crimes de abuso de confiança fiscal um simples (que contende com a não entrega de IVA no montante de 8667,04) e outro qualificado (e que se reporta a não entrega de IVA no valor de 81 594,43) devendo os mesmos, em consequência, ser absolvidos da prática dos demais crimes de abuso de confiança fiscal que lhe eram imputados e que se reportam ao não pagamento de IVA relativo aos meses de Dezembro de 2006 (estando em causa o não pagamento de IVA no valor de € 196 289,43) de Dezembro de 2006 (que respeita o não pagamento de IVA no valor de € 38 686,96) e de Dezembro de 2007 ( que contende, por sua vez, com o não pagamento de IVA no valor de € 89 341,89).

Tendo-se concluído, quer pela tipicidade objectiva quer subjectiva dos comportamentos supra descritos, vejamos agora se os mesmos são igualmente típicos.

C- Da não verificação de qualquer causa de exclusão da ilicitude

Alegou ainda o arguido J., na defesa que apresentou a verificação, no caso em analise, de uma causa de exclusão da ilicitude – mais concretamente a existência de conflito de deveres – causa essa que afirma , decorrer da circunstância de as quantias não entregues à administração fiscal terem sido afectas a pagamentos imprescindíveis à laboração da sociedade, designadamente pagamento de salários.

Prescreve o artigo 36º do Código Penal, sob a epigrafe «conflito de deveres» :

1- Não é ilícito o facto de quem, no caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfazer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem do dever a sacrificar.

A este propósito diremos que mesmo que se tivesse provado que as quantias em causa se destinaram só ao pagamento dos salários dos trabalhadores, a pretensão de um conflito de deveres não e de acolher, nem tem sido acolhida pela jurisprudência.

É entendimento dos nossos tribunais (Ac. STJ, de 15.1.1997, CJ, STJ, tomo II, pag. 190-194, do STJ, de 20-6-01, CJ, STJ, tomo II, pag. 227) que nada que nada permitir concluir que o dever de manter a empresa a funcionar, nomeadamente através do pagamento dos salários aos trabalhadores, é superior ao de cumprir as obrigações fiscais.

Embora existam no caso concreto dois deveres: um associado ao pagamento de impostos (e ao respeito pela relação de fedúcia que lhe subjaz) e outro ao pagamento de salários (e até de dívidas existentes para com fornecedores), certo que o primeiro dos dever, atento o facto de ter sido criminalizado é superior ao dever funcional de manter a empresa com os pagamentos em dia sejam eles de salários e ou de dividas de outra natureza.

De outra forma, estar-se-ia, até a distorcer as regras de concorrência – algumas empresas teriam vantagens a este nível não cumprindo as suas obrigações tributarias, relativamente às que o fazem escrupulosamente - e a incentivar ao não pagamento de impostos e a desvirtuar a própria componente social do tributo que não pode ceder de satisfação de interesses egoísticos ou de círculos mais apertados de pessoas

Ao não pagar contribuições devidas ao Estado, está-se a lesar o interesse geral, o da comunidade a que pertencemos.

É com as receitas provenientes dos impostos que o Estado, assegura os programas sociais, que são deficitários na sua maioria.

O dever de manutenção da laboração da empresa consubstancia, acima de tudo, um interesse particular, embora reflexamente possa haver interesse colectivo, económico e na manutenção de postos de trabalho.

O interesse geral é superior ao individual.

Não se verifica pois qualquer conflito de deveres.

Não se vê que uma norma ou princípio da ordem jurídica possa excluir a ilicitude dos comportamentos provados.

No âmbito do crime de abuso de confiança fiscal estamos perante a apropriação de um bem que se sabe ser alheio, o que não é permitido pela ordem jurídica.

É esta que estabelece a “graduação” dos valores em causa e não os tribunais perante as concretas situações: veja-se que ao contrário do que acontece com a não entrega das prestações tributárias, o não pagamento dos salários aos trabalhadores não é crime.

Pelo que, no caso concreto inexiste qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que há que concluir que os arguidos praticaram efectivamente os dois ilícitos a que supra fizemos alusão.
*
D – Escolha e da medida das penas a aplicar ao arguido J...
O crime de abuso de confiança fiscal abuso de confiança fiscal simples, previsto e punido pelos nº1, 2, 4 e 7 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprova o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), é punido no caso das pessoas singulares é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

Já o crime de abuso de confiança fiscal agravado, previstos e punidos pelo artigos 105º, nº 1,2 4, 5 e 7 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprova o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), apenas punido é com pena de prisão até 5 anos.

Pelo que, tendo em consideração que o ilícito primeiramente referido é punido alternativamente com pena de multa e de prisão importa desde já proceder à escolha da pena a aplicar.

Os critérios a atender na escolha de penas compósitas alternativas acham-se previstos no art. 70 º da CP. Segundo o referido normativo o Tribunal deve preferir a multa, sempre que esta pena realize de forma adequada e suficientes as finalidades da punição ou seja as finalidades de prevenção geral e especial (cfr. artigo 40, nº1 do CP).

Como escreve Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, in Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Notícias, pág.333.:“ Desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contra-fáctica das expectativas comunitárias.”

A escolha entre a pena de prisão e a pena de multa depende, assim, unicamente, de considerações prevenção geral e especial.

As exigências de prevenção geral (na suas modalidades positiva ou negativa) comportam uma dimensão essencialmente comunitária, encontrando-se directamente associadas à defesa dos bens jurídico-penais. As referidas exigências cumprem, no fundo, uma função reabilitadora da norma violada.

Quanto mais grave se revelar o crime (gravidade aferida em função do tipologia do bem jurídico protegido) e quanto mais repetida for (em termos estatísticos) a perpetração desse mesmo ilícito, com mais acuidade se farão sentir as exigências de prevenção geral.

Já as exigências de prevenção especial positiva, que por sua vez apresentam um cariz essencialmente pessoal, bolem exclusivamente com as necessidades de ressocialização do agente, havendo, neste plano, que atender à situação pessoal do arguido e a todos os demais aspectos susceptíveis de afirmar ou negar a sua (já efectiva ou expectável) inserção social.

Ora, no caso sub judice as necessidades de prevenção geral relativas ao crime de abuso de confiança fiscal são muito fortes dada a frequência com que crimes desta natureza são praticados, quase sempre com elevados prejuízos para a comunidade e sempre acentuando a desigualdade dos cidadãos no cumprimento de obrigações tributárias e na distribuição de responsabilidades sociais, com violação de um dever sem o qual não é possível justiça tributária e solidariedade social justa equitativa.

No que tange às exigências de prevenção especial as mesmas, atentos os factos apurados, não se fazem sentir com tanta acuidade (pois ao arguido J...não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais, beneficiando o mesmo de inserção familiar e social).

Pelo que entendo ser de optar, para sancionamento do crime de abuso de confiança simples praticado pelo arguido J... (ilícito previsto e punido pelos números 1, 2, 4 e 7 do art. 105º do Regime Geral das Infracções Tributarias, aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de Junho) pela pena não privativa da liberdade, o mesmo é dizer pela pena de multa.

Já no que se reporta à fixação da medida concreta das penas a aplicar ao arguido J. (de multa e prisão), importa atender desde logo ao preceituado nos nº1 e nº2 art. 71º da Código Penal.

De acordo com a disciplina ínsita no referido normativo, na determinação do quantum concreto da pena, deverá o julgador, operando no âmbito da moldura penal abstracta, atender, não só às exigências de prevenção (geral e especial) que no caso sub judice se façam sentir, mas também à culpa do agente (funcionando esta última como limite inultrapassável), assim como a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo, deponham a favor do agente ou contra ele, devendo considerar, nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta esteja destinada a reparar as consequências do crime; f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifesta no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação de pena.

A articulação, neste particular, entre as exigências de prevenção (geral e especial) e a culpa, faz-se observando o seguinte iter: primeiro) há que definir uma moldura de prevenção geral. “Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima – limite inferior e superior da moldura penal) o juiz face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção de reincidência), sem puder ultrapassar em caso algum a medida da culpa[1]

Explicitado que está o modus operandi da determinação da pena a aplicar, impôs-se, antes de avançarmos, esclarecer que no caso concreto as molduras penais abstractas a considerar na determinação das penas parcelares são as legalmente previstas nos respectivos tipos legais de crime, sem que ocorra qualquer alteração quer dos seus limites mínimos, quer dos limites máximos, isto porque, inexiste, em relação a qualquer um dos ilícitos, circunstâncias atenuantes ou agravantes a ponderar.

Lançando mão dos critérios disponibilizados pelo legislador para determinação da medida concreta da pena, desde logo se constata que no caso em apreço, e quanto ao o grau de culpa o mesmo é mediano, pois embora o arguido tenha actuado dolosamente, tendo optando por pagar outras dívidas em detrimento das fiscais, a verdade é que o fez num quadro em que eram manifestas as dificuldades económicas da sociedade arguida.

Por outro lado – e ainda com relevo ao nível da culpa - não é menos verdade que o arguido procurou - em representação da sociedade - obter financiamento com vista a regularizar das dívidas fiscais, (financiamento esse que até lhe viriam a ser concedido, mas ainda que tardiamente), tendo igualmente tentado obter uma solução para o problema ao nível governamental.

Na verdade, a falta de pagamento não teve em vista enriquecer o administrador da sociedade arguida ou mesmo criar uma vantagem para aquela que não fosse a necessária para poder ser mantida a sua laboração, os postos de trabalho e assegurar a subsistência da empresa propriedade da sociedade, sem o que não poderia sequer cumprir as suas obrigações contratuais (que colocou acima das obrigações legais fiscais)

De outro passo, há que ponderar a favor do arguido que para a situação deficitária da sociedade arguida, contribuiu também o agravamento das condições gerais do mercado e de concessão de crédito.
Com efeito, a sociedade arguida não logrou evitar a declaração de insolvência.

Desta feita, temos que atender:

- às actuais dificuldades financeiras da própria sociedade,
- à colaboração que o mesmo vêm prestando à empresa, sempre tendo acreditado na sua recuperação,
- ao facto de, na prática do crime, o arguido não ter agido na satisfação de interesses pessoais e egoístas, assim, sem intenção de enriquecimento do património pessoal e familiar (tendo de resto chegado a garantir e a responder pessoalmente e com o seu património por dívidas da sociedade).
- ao grau de ilicitude da conduta, que importa caracterizar como mediano porquanto os montante dos tributos efectivamente recepcionados e não entregues não se afiguram excessivamente elevados.

Acresce, que não são, igualmente, conhecidos antecedentes criminais ao arguido e que mesmo beneficia de integração social e familiar e também profissional, factos esses que tornam diminutas as exigências de prevenção especial, sendo contudo elevadas as exigências de prevenção geral, como supra foi referido.

Tudo ponderado, entende o Tribunal condenar o arguido, pela prática:

- de um crime de abuso de confiança fiscal simples, previsto e punido termos dos números 1, 2, 4 e 7 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e na pena de 180 (cento e oitenta ) dias de multa

- de um crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido termos dos números 1, 2, 4 e 7 da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprova o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses anos de prisão.

Quanto ao quantitativo diário afixar dispõe o n.º 1 do artigo 15º do RGIT, que, caso o arguido seja uma pessoa singular, a cada dia de multa corresponderá uma quantia que medeia entre €1 (um euro) e €500 ( quinhentos euros), e que o tribunal fixará em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

No caso concreto o arguido encontra - se, na presente data insolvente, embora ainda lhe sejam conhecidos rendimentos (ainda que parcos), pelo reputo adequado fixar o quantitativo diário em € 4,00 (quatro euros).

Dispõe o art. 77º, nº1 da Código Penal (aplicável ex vi art. 3ºdo RGIT) que se o agente tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única, cuja medida é aferida ponderando, conjuntamente, os factos e a personalidade do agente. ”.

Contudo, quando as penas aplicadas aos crimes que se acham numa relação concursal forem umas de prisão e outra de multa, a diferente natureza destas mantêm-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores (cfr. art. 73º, nº3 do Código Penal).

Ora, no caso vertente, porque as penas a cumular tem efectivamente natureza diversa, inexistindo apenas uma pena de cada uma das tipologias referidas, fica inviabilizada a operação de cúmulo jurídico, mantendo-se inalteradas as penas já fixadas.

Assim sendo, e ao abrigo do disposto nos artigos 77º, nº3 do Código Penal, o condeno o arguido J, numa pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses prisão e numa pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 4,00 (quatro euros), o que perfaz o montante de € 720,00.

D.1 - Da substituição da pena de prisão aplicada ao arguido
Ora, considerando a aplicação de uma pena de prisão não superior a dois anos de prisão, ao Tribunal cumpre ponderar a aplicação de uma pena de substituição e fixação, finalmente, desta, se for caso disso.

Assim sendo, há que ter em consideração que a escolha entre a pena de prisão e a pena de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial.

Importará, antes de mais, averiguar se ao caso em concreto será de aplicar alguma das penas de substituição da pena de prisão que no caso se cingem à suspensão da pena (cfr. artigo 50.º do Código Penal) e à prestação de trabalho a favor da comunidade (cfr. artigo 58.º do Código Penal).

Ora importa desde já referir que não se nos assemelha que a pena de prisão deve ser substituída por trabalho a favor da comunidade por tal se revelar incompatível com as exigências de prevenção geral.

Com efeito estamos perante comportamentos que do ponto de vista social revestem grande lesividade e são recorrentes, pelo que essa mesma factualidade exige a aplicação de pena mais severa do que a ora referida pena de substituição.

Vejamos agora se será de suspender a execução da pena aplicada.

O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente (mormente revelada através das circunstâncias em que o crime foi cometido), às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal).

Como se é referido pela jurisprudência o tribunal, deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável, baseada num risco prudencial, relativamente ao comportamento futuro do arguido, o qual não deve assentar, necessariamente numa certeza; basta uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição, e, consequentemente, a ressocialização, em liberdade, do arguido.

O arguido J foi tendencialmente colaborante na descoberta da verdade e não têm antecedentes criminais.

De alguma forma, a sociedade arguida foi vítima de factores de mercado que a arrastaram para dificuldades financeiras, tendo sido no âmbito destas que o arguido cometeu os factos delituosos.

Acreditou que, no futuro, poderia vir a pagar dívidas sociais, dando, aliás, algumas garantias pessoais de pagamento a diversos credores da sociedade.

A sociedade, insolvente, é agora gerida pelo administrador da respectiva massa, dando tendo o arguido J dado alguma colaboração.

Pelo referido e mais ponderando o que se considerou atenuante na determinação da medida concreta das penas, temos por manifestamente excessivo e injustificado conduzir o arguido a um cumprimento efectivo de prisão porquanto se mostra suficiente e adequada às finalidades da punição a simples censura do facto e a ameaça da pena.

Assim sendo, tudo ponderado nos termos do art.º 50.º, n.º 1, 4 e 5, do Código Penal e art.º 14°, do RGIT, decido suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido J , porém, sob a condição de, no mesmo período de tempo, o arguido pagar à Administração Tributaria a quantia monetária que se acha associada à pratica do ilícito sancionado com pena de prisão.

Contudo, e porque no caso concreto foi cumprida de modo deficiente, quanto ao crime de abuso de confiança fiscal em análise (crime de abuso de confiança fiscal na sua forma agravada) a comunicação a que alude o nº4 do art. 105º do RGIT, ou seja, o arguido apenas foi notificado para pagar o montante de € 81341, 00, quando estava em dívida o montante de € 81 594,43 (relativo a IVA recebido com referência ao Agosto de 2009), apenas deverá o mesmo ser condenado a entregar à Administração Fiscal o primeiro dos valores ora referidos, dado só quanto a esse valor se encontra preenchida a condição objectiva de punibilidade.
(…) »

Cumpre agora apreciar e decidir os presentes recursos

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso e poderes de cognição do tribunal ad quem.

Conforme é jurisprudência assente, os poderes de cognição do tribunal ad quem são limitados pelas conclusões da motivação de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a decidir pelo tribunal ad quem.

O arguido limita o seu recurso ao crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto no artigo 105.º, n.º 1, 2, 4, 5 e 7 do RGIT, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Agosto de 2009, no montante de € 81 594,43, pelo qual foi condenado na pena parcelar de 1 (um) ano e 7 (sete) meses prisão, suspensa por igual período, com a condição de O arguido, no mesmo prazo, pagar à Administração fiscal a quantia de € 81 341,89 (oitenta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos), acrescida dos respetivos acréscimos legais.

O arguido recorrente começa por alegar que não atuou com dolo porque em face do arresto decretado em 23.08.2009 viu-se impossibilitado de entregar à administração fiscal o montante de € 81 341,89 que recebera a título de IVA, o que, no seu entender, conduz à absolvição da prática do crime agravado em causa por falta de preenchimento do respetivo elemento subjetivo do tipo.

Subsidiariamente, pretende o arguido a determinação concreta da pena de prisão em medida inferior e o estabelecimento de um período para pagamento da quantia em dívida à administração fiscal superior ao fixado como condição da suspensão.

2.Decidindo.

2.1. – A pretendida absolvição por falta de dolo.

A este respeito o arguido alega que não estava em condições de orientar a sua conduta com vista à entrega à administração fiscal das quantias correspondentes a IVA que recebera, uma vez que não podia dispor das quantias em dinheiro existentes nas caixas das lojas da sociedade arguida nem podia movimentar as contas bancárias da sociedade, pois umas e outras encontravam-se arrestadas na data em que devia ter lugar aquela entrega, conforme consta da certidão judicial junta aos autos.

Por outro lado, entende o arguido que no caso de o tribunal a quo considerar não poder concluir pela impossibilidade de o arguido dispor de fundos para entregar à administração fiscal as quantias percebidas a título de IVA, devia ter indagado sobre a extensão e efeitos do decretamento do arresto sobre a falta de entrega do IVA respeitante ao mês de agosto de 2009, pelo que por força do princípio in dubio pro reo não podia o tribunal a quo ter condenado o arguido pelo crime de abuso de confiança fiscal agravado nos termos em que o fez.

Vejamos., antes de mais, os aspetos da configuração do tipo legal de abuso de confiança fiscal agravado p. e p. pelo art. 105.º do RGIT, mais relevantes para o caso concreto.

2.1.1. – O tipo objetivo

Nos termos do art. 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de junho « 1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.

3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.

4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1 200 dias para as pessoas colectivas.

6 – REVOGADO

7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária

Aceitando a formulação de Susana Aires de Sousa e Augusto Silva Dias no que respeita à natureza do bem jurídico em causa, afigura-se-nos que os crimes fiscais visam proteger o património tributário do Estado por via da obtenção completa das prestações tributárias, através do cumprimento dos deveres de colaboração impostos pela lei fiscal (Susana Aires, ob. Citada infra pp. 71 e 121) que, todavia, não constituem o bem jurídico protegido mas o «suporte normativo que assegura a proteção do bem» (Augusto Silva Dias, Os crimes fiscais…p. 47).

O art. 105.º tem em vista situações de substituição tributária, pois a prestação tributária é exigível de pessoa diferente do contribuinte, conforme se verifica paradigmaticamente com a entrega do IVA recebido.

Na sua configuração atual, o crime de abuso de confiança fiscal é um crime de omissão pura ou própria, de mera (in)atividade[2], uma vez que a apropriação deixou de integrar o tipo legal, pelo que o crime consuma-se na data em que terminar o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários, conforme disposição expressa do art. 5º nºs 1 e 2 do RGIT.

Trata-se de um crime doloso (a negligência é punível como contraordenação pelo art. 114º do RGIT) e o tipo subjetivo não exige atualmente qualquer dolo específico ou elemento especial subjetivo do tipo, pelo que basta à sua consumação que a conduta omissiva do agente tenha lugar sob qualquer das formas de dolo a que se reporta o art. 14º do C. Penal.

Em casos como o presente, o agente tem, assim, de representar os elementos do tipo objetivo, tal como este se encontra configurado, pelo que basta que, conhecendo o concreto dever de entregar a quantia deduzida a título de IVA não o satisfaça consciente e voluntariamente, ou seja, à representação do facto punível (conhecimento de que se encontra a declarar e entregar as quantias percebidas a título de IVA no prazo estabelecido na lei fiscal) acresce apenas a vontade da sua realização.

2.1.2. - Esta vontade de realização do facto típico corresponde ao chamado elemento volitivo do dolo e, em regra, é inerente ao conhecimento da situação típica objetiva e à sua realização.

No caso presente, o recorrente invoca falta de dolo por não ter possibilidade de dispor dos meios financeiros da sociedade necessários à entrega das quantias antes percebidas a título de IVA em virtude de estes meios se encontrarem arrestados desde 23 de agosto de 2009, conforme descrito sob o nº 25 dos factos provados.

a) Encontra-se provado, porém, que «Ambos arguidos agiram de modo livre e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de não entregar à Administração fiscal os montantes referidos» (nº 29 dos factos provados), de onde resulta que os arguidos agiram com dolo direto, pelo que a questão colocada é em primeira linha uma questão de facto, visto que ao pôr em causa o caráter doloso da sua conduta nos termos em que o faz, o arguido parece colocar em causa a decisão sobre a matéria de facto.

Todavia, o arguido recorrente não impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art. 412º nº3 do CPP, pois não invoca sequer aquele preceito e não faz nenhuma das indicações impostas por aquele nº3, maxime a indicação dos pontos de facto que eventualmente considerasse incorretamente julgados impugnados, sem a qual não pode sequer falar-se em impugnação naqueles termos que pudesse ser completada ou esclarecida nos termos do art. 417º nº3 CPP.

b)Assim sendo, a decisão proferida em matéria de facto apenas pode estar em causa por se verificar algum dos vícios previstos no art. 410º nº2 do CPP, matéria que passaremos a apreciar, apesar de o recorrente não referir igualmente aquele preceito, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso conforme entendimento comum na jurisprudência, que seguimos.

b.1. – In casu, afigura-se-nos que a motivação de recurso consubstancia invocação do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º nº 2 al. c) do CPP, que conforme expressamente referido no seu corpo, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pelo que não pode atender-se ao teor das provas que não resulte da sentença. O vício de erro notório na apreciação da prova verifica-se quando dos próprios termos da decisão recorrida, maxime da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, pode concluir-se que o tribunal a quo manifestamente violou normas de direito probatório, ou regras da experiência comum, nomeadamente o princípio da livre apreciação da prova ou in dubio pro reo.

Maria João Antunes entende verificar-se erro notório na apreciação da prova, “ sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no art. 127º do CPP, quando afirma que «a prova é apreciada segundo as regras da experiência». [3]

O art. 410º nº2 c) do CPP contempla, assim, os casos de erro grosseiro de julgamento da matéria de facto, evidente a partir do texto decisão recorrida, maxime da respectiva fundamentação, conjugado com as regras da experiência comum e as regras de direito probatório a respeitar na aplicação do direito.

Vejamos então se, como pretende o recorrente, dos termos do arresto decretado por decisão judicial de 23 de Agosto de 2009, a que se reporta o nº 25 dos factos provados e a certidão de fls 506 a 517 dos autos, resulta que não podia julgar-se provada a factualidade descrita sob o nº 29 dos factos provados relativa ao dolo, ainda que a resposta negativa a estes factos resultasse da aplicação ao caso do princípio in dubio pro reo.

Ora, confrontando o teor da decisão judicial que decretou o arresto com os demais termos da sentença recorrida não pode concluir-se, pela verificação daquele vício, pelas razões que, no essencial, são adiantadas pela resposta do MP em 1ª instância. As quantias arrestadas são as existentes à data do arresto nas caixas registadoras das 20 principais lojas da requerida A..., incluindo as lojas da arguida A., nada se dizendo sobre as quantias apuradas posteriormente em resultado do movimento comercial mantido após 23 de agosto de 2009, sendo certo que, em todo o caso, não resulta dos autos que a ora arguida e o arguido não pudessem dispor de outras quantias para além daquelas e dos saldos das contas bancárias e do fundo de tesouraria arrestados. Pelo contrário, encontra-se provado sob o nº 28 dos factos provados que «Todas as importâncias recebidas e não entregues à administração fiscal foram afetas a pagamentos necessários à laboração da sociedade e designadamente ao pagamento de salários», pelo que em face do texto da sentença e das regras da experiência o que pode concluir-se é que os arguidos dispuseram das quantias relativas ao IVA para outros fins e não que não pudessem ter entregue as mesmas à administração fiscal na data legalmente estabelecida, não resultando igualmente da sentença que se impusesse o apuramento de outros factos que, em rigor, o recorrente nem na motivação de recurso indica quais fossem, do mesmo modo que não resulta da sentença a existência de dúvida sobre a matéria em causa.

Assim sendo, não resulta da sentença o suposto vício de erro notório na apreciação da prova ou qualquer outro dos previstos nas als a) e b) do nº2 do art. 410º do CPP, pelo que improcede o recurso nesta parte.

2.2. - Da determinação concreta da pena de prisão.

O crime de abuso de confiança fiscal agravado praticado pelo arguido é punível com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos termos do art. 105º nº5 do RGIT. O arguido, que vem condenado na pena de 1 ano e 7 meses de prisão, pretende que a pena seja fixada em 1 ano, ou seja, no limite mínimo da moldura legal.

Alega para tanto que não tem antecedentes criminais, tendo gerido o Grupo A... durante cerca de quase três décadas e contando já com 55 anos de idade que o Tribunal a quo deu também como provado que a falta de entrega à administração fiscal dos montantes devidos a título de IVA se ficou a dever apenas a dificuldades de tesouraria, tendo ficado demonstrado o empenho do Arguido para tentar ultrapassar as mesmas, quer no âmbito dos contactos que desenvolveu junto das entidades financeiras, quer pedindo auxílio junto do Governo. Alega ainda que chegou a responsabilizar-se pessoalmente por financiamento que solicitou à Caixa de Crédito Agrícola e que tem uma situação pessoal e familiar estabilizada e boa imagem comunitária.

Se bem virmos, porém, estes fatores, que relevam para a determinação da medida da pena essencialmente do ponto de vista da prevenção especial, foram já ponderados pelo tribunal a quo, que considerou ainda o grau de culpa mediano, pois embora o arguido tenha actuado dolosamente, tendo optando por pagar outras dívidas em detrimento das fiscais, a verdade é que o fez num quadro em que eram manifestas as dificuldades económicas da sociedade arguida, agravadas pelas condições gerais do mercado e de concessão de crédito, considerando ainda que, na prática do crime, o arguido não agiu na satisfação de interesses pessoais e egoístas, assim, sem intenção de enriquecimento do património pessoal e familiar (tendo de resto chegado a garantir e a responder pessoalmente e com o seu património por dívidas da sociedade).

Há que ter em conta, porém, que no chamado modelo de prevenção doutrinariamente desenvolvido entre nós por F. Dias e Anabela Miranda Rodrigues e que se encontra acolhido no art. 40º do C. Penal, o limite mínimo da pena é dado pela medida indispensável à proteção de bens jurídicos, ou seja, pela satisfação das necessidades de prevenção geral, as quais no caso concreto não coincidem com o limite mínimo da moldura legal. O valor do IVA em falta é ainda considerável pois ultrapassa em mais de 30 000 euros o limite mínimo do crime agravado (cfr art. 13º do RGIT) e, sobretudo, há que ter em conta, como se enfatiza na resposta do MP em 1ª instância, que a proliferação de crimes fiscais e as consequências económicas que acabaram por acarretar para a situação financeira actual do Estado (embora não sejam a sua única causa), demandam a aplicação de penas que combatam eficazmente esses ilícitos e conduzam à consciencialização dos cidadãos sobre esse valores e acabem com a convicção gerada sobre a impunidade no cometimento dessas infrações.

Deste modo e tendo ainda em consideração que a pena concreta excede apenas em 7 meses o mínimo da moldura penal, cujo máximo é de 5 anos, não merece reparo a fixação daquela pena concreta em 1 ano e 7 meses de prisão, improcedendo o recurso também nesta parte.

2.3. Do estabelecimento de um período para pagamento da quantia em dívida à administração fiscal superior ao fixado como condição da suspensão.

O art. 14º nº 1 do RGIT, dispõe que «1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.».

O regime especial acolhido no art. 14º do RGIT impõe - depois de determinada a pena concreta de prisão e decidida a sua substituição por pena suspensa -, que o tribunal pondere e decida sobre o período da suspensão (tal como sucedia no regime geral antes da revisão de 2007) até ao limite de 5 anos, mesmo quando a medida concreta da pena seja inferior àquele limite.

O tribunal a quo decidiu fundamentadamente suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido recorrente, concluindo que o período da suspensão seria igual à pena fixada, sem outras considerações.

Entendemos, porém, que o arguido tem razão ao pretender que seja fixado na sentença um período de suspensão mais dilatado. Atendendo à situação económica espelhada na factualidade provada e ao montante em dívida, superior a 80 000 euros, será razoável considerar que só muito dificilmente o arguido logrará satisfazer aquela importância no prazo de 1 ano e 7 meses.

Ora, apesar de ser legalmente imposta, a sujeição da suspensão da prisão à condição de pagar a prestação tributária e acréscimos legais não deixa de ser orientada pelas razões de prevenção geral e especial que ditam a opção pela pena de substituição, sendo ainda de considerar a razoabilidade do cumprimento da obrigação a que se reporta o nº2 do art. 51º do C. Penal.

Assim e considerando, por outro lado, o potencial do arguido para a atividade comercial que a factualidade provada revela e, ainda, que a imposição de deveres desta natureza visa em especial reparar o mal do crime (cfr art. 50º do C. Penal), afigura-se-nos ajustado o período de 3 anos e 6 meses para que o arguido possa, efetivamente, proceder ao pagamento da quantia em causa, procedendo o recurso nesta medida.

III. Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, J, revogando a sentença recorrida na parte em que fixou o período de suspensão da execução da prisão em 1 ano e 7 meses e decidindo, em substituição, que este arguido vai condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto no artigo 105.º, n.º 1, 2, 4, 5 e 7 do RGIT, com referência à não entrega de IVA relativo ao mês de Agosto de 2009, no montante de € 81594,43, na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses prisão, cuja execução fica suspensa pelo período de 3 anos e 6 meses, com a condição de arguido, neste prazo, pagar à Administração fiscal a quantia de € 81 341,89 (oitenta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e quarenta e três cêntimos), acrescida dos respetivos acréscimos legais.

Sem custas, dado o decaimento parcial – cfr art. 513, do CPP.

Évora, 29.01.2013
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas
Carlos Jorge Berguete
_______________________________________________
[1] Acórdão do STJ de 12-09-2007, disponível em www.dgsi.pt

[2] Conclui nestes termos Susana Aires de Sousa, Os crimes Fiscais, Coimbra Editora, Reimpressão-2009, pp.131-2, que analisa a questão desde p. 121.

[3] Cfr anotação ao Ac STJ de 6.05.1992 in RPCC 4 (1994) p. 120