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LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
RECONHECIMENTO DE IDONEIDADE
Sumário
1. Na redacção actual da Lei n.º 5/2006, a condenação em pena de prisão superior a um ano, pela prática de crime doloso, com uso de violência é susceptível de, por si só, indiciar falta de idoneidade para a concessão da licença de uso e porte de arma de caça, exigindo-se que esta circunstância indiciante, autonomizada normativamente pelo seu peso e significância, englobe os três requisitos cumulativos enunciados.
2. No entanto, passaram a ser ainda susceptíveis de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença “outras razões devidamente fundamentadas”.
3. A condenação pela prática de crimes dolosos ou negligentes, mesmo que cometidos sem uso de violência e a que não corresponda pena superior a um ano, podem constituir factor atendível de ponderação e, concretamente, integrar essas “outras razões devidamente fundamentadas”.
4. As quatro condenações sofridas pelo arguido, duas condenações por crime de tráfico de estupefacientes e duas condenações por crime de condução sob o efeito de álcool, atenta a natureza dos crimes e a sua repetição, justificam a negação do reconhecimento de idoneidade para obtenção de licença de uso e porte de arma de caça.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. Nos autos de Pedido de Reconhecimento de Idoneidade n.º 69.01.0JELSB-I foi proferido despacho judicial de indeferimento do pedido formulado por F, de reconhecimento de idoneidade para concessão da licença de uso e porte de arma das classes C e D, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.ºs 2, 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio.
Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo que:
“1. O ora recorrente não se conforma com a decisão de indeferimento do reconhecimento da sua idoneidade para o uso e porte de armas das classes C e D.
2. O Tribunal a quo limitou-se a tomar em consideração o facto de o ora recorrente já haver sido condenado pela prática de crimes, como fundamento exclusivo para indeferir a sua pretensão.
3. Da análise das disposições da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, em contraposição com a já revogada Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, é possível concluir que o legislador eliminou a possibilidade de considerar automaticamente inidóneo para o uso e porte de arma, um cidadão que haja praticado um crime.
4. De facto, esta conclusão é o que é possível extrair, da eliminação do elenco dos tipos de crimes que constavam nos artigos 1.º, n.º 2, alínea c) e 3.º, da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, em contraposição à previsão genérica do artigo 14.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, segundo o qual, a prática de qualquer crime pelo requerente, passa apenas a ser considerado como indício de falta de idoneidade.
5. A idoneidade deve, assim, ser considerada casuisticamente e mediante a apreciação de um cotejo de fatores que possa ter efetivamente em causa a capacidade e aptidão para o uso e porte de arma, designadamente, a personalidade do requerente, o seu modo de vida, a sua integração familiar, social, profissional e todos os elementos que de um modo geral possam fazer prever (ou não) que o requerente, caso lhe seja concedida licença de uso e porte de arma, venha a fazer desta um uso conforme aos fins legalmente previstos.
6. Ao não proceder de acordo com esta avaliação casuística, o tribunal de primeira instância violou o disposto nos n.º 2 e 3 do artigo 14.º, por remissão do n.º 2, do artigo 15.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e fez mesmo uma interpretação materialmente inconstitucional de tal normativo, por violação do n.º 1 e 4, do artigo 30.º, da Constituição da República Portuguesa.
7. É que, segundo resulta tacitamente do despacho recorrido, que se louvou exclusivamente no parecer do Ministério Público, o facto de o requerente ter praticado ilícitos criminais (mesmo que já há muito anos atrás) imporia automaticamente – pois não é apresentada qualquer outra real e concreta justificação – a impossibilidade de ser reconhecido como pessoa idónea para efeitos de concessão de licença de uso e porte de arma de caça. Este entendimento configuraria a aplicação de um género de medida de segurança contra o requerente, que teria caráter ilimitado, para além de se traduzir em direta perda de um direito civil, em decorrência exclusiva da aplicação de uma sanção penal!
8. A própria natureza das armas que o requerente pretende vir a usar – armas de caça – deveria, quer em atenção ao enquadramento histórico e cultural da atividade venatória em Portugal, quer às apertadas regras quanto aos locais para a sua utilização e modos específicos de porte, tornar mais flexível o reconhecimento da idoneidade para os fins em causa. De facto, em situações como a vertida, só uma real evidência de falta de aptidão, de capacidade para o uso e porte deste tipo de armas, deveria obstar à pretensão do requerente.
9. Existem elementos nos autos que permitem concluir que o ora recorrente é pessoa idónea para o uso e porte de armas de caça, mais concretamente os elementos que foram constatados no relatório elaborado pela DGRS: o recorrente reside em casa própria, sem encargos, em ambiente familiar estável, com boa condição económica, tendo um casamento isento de problemas conjugais, sendo pessoa que não provoca desordem ou desacatos, bem considerada no meio social, consciente das regras de segurança e manuseio de armas…
10. De todo o modo e embora o tribunal ad quem possa suprir tal nulidade, facto é que o tribunal a quo proferiu um despacho nulo, por omissão de pronúncia (artigo 379º, n.º 1, alínea c), do CPP), na medida em que omitiu por completo qualquer referência a matéria provada ou não provada, ou qualquer menção aos factos que haviam sido invocados pelo requerente para fundamentar a sua pretensão, não os tendo, simplesmente apreciado!”.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:
“1. Não obstante o parecer favorável por parte da Direcção-Geral de Reinserção Social e da alteração que sofreu o regime legislativo, continua a ser nosso entendimento que lhe deve ser indeferido o requerido reconhecimento de idoneidade.
2. Veja-se, para tanto, o leque de condenações que aquele já sofreu, três no total, no âmbito de crimes de tráfico de estupefacientes e de condução de veículo em estado de embriaguez.
3. Encontra-se ainda acusado pela prática de mais um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, e 69º, nº 1, alínea a), ambos do C. Penal, no âmbito do Processo Sumário nº ---/12.3 GHSTC, o qual corre os seus termos neste Juízo de Instância Criminal, cuja audiência de julgamento se realizará no próximo dia 29 de Outubro de 2011.
4. Apesar de podermos considerar que o requerente está inserido social, profissional e familiarmente, a sua personalidade e a propensão para a prática de ilícitos criminais relacionados sempre com o álcool ou com estupefacientes parece-nos não ser compatível com a detenção e uso de armas de fogo.
5. Esteve bem a Mma. Juiz ao aderir ao nosso parecer no sentido de não ser possível neste momento formular um juízo positivo no sentido da idoneidade de F para detenção, uso ou porte de arma.
6. O facto da Mma. Juiz ter remetido na sua decisão a promoção e parecer do Ministério Público significa que faz parte integrante da mesma os fundamentos ali invocados, pelo que não se entende onde está a nulidade que alude o requerente.”
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
2. A decisão recorrida é do seguinte teor:
“F vem requerer o reconhecimento de idoneidade a fim de lhe ser concedida a licença de uso e porte de arma das classes C e D.
A este respeito, dispõe o artigo 14.°, n.º 3 (aplicável ex vi artigo 15.°, n.º 2) do Regime das Armas e suas Munições (aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro) que "no decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação. "
Por seu turno, resulta do n.º 2 do mesmo artigo que "(, .. ) é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão. ".
Ora, considerando os requisitos legais supra mencionados e os fundamentos do douto parecer emitido pelo Ministério Público a fls. 34 a 36, aos quais se adere, homologa-se o mesmo e, em consequência, indefere-se o requerido reconhecimento de idoneidade para concessão da licença de uso e porte de arma das classes C e D.
Notifique.”
Atendendo ao teor da decisão judicial, na parte em que remete para as razões do parecer do Ministério Público que a antecede, procede-se também a transcrição deste:
“Veio F requerer, nos termos do art. 150, n° 3, da Lei n° 5/2006, 23 de Fevereiro, que lhe fosse reconhecida a sua idoneidade, para fins de renovação de licença de uso e porte de arma, das classes C e D.
Dos autos principais resulta que:
- o requerente por acórdão proferido em 17 de Fevereiro de 2003, transitado em julgado no dia 24 de Janeiro de 2005, foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos arts. 21 ° e 25°, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos.
- tal pena foi declarada extinta a 4 de Março de 2009.
Dispõe o art. 15º, nºs. 1 e 2, da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro que:
"1. As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) demonstrem carecer da licença para a prática de actos venatórios de caça maior ou menor, para as licenças C ou D, respectivamente, e se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo;
c) selam idóneos;
d) sejam portadores de certificado médico;
e) sejam portadores do certificado de aprovação para uso e porte de armas de fogo.
2. A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos nºs. 2 e 3 do art. 14°.
Para efeitos da concessão da licença de uso e porte de arma é necessário averiguar a idoneidade do requerente. Pelo facto do requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença.
ln casu, o requerente, para além do acórdão a que foi condenado no âmbito do processo apenso, tem ainda outras duas condenações:
1. Por acórdão proferido no dia 26 de Setembro de 1997 âmbito do Processo nº ---/94.0 JGLSB, o qual correu os seus termos na Vara Criminal de Lisboa, foi o requerente condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão efectiva, e
2. Por sentença, transitada em julgado a 24 de Fevereiro de 2006, no âmbito do Processo Sumaríssimo n° ---/04.1 GELSB, o qual correu os seus termos no Tribunal Judicial de Odemira, foi o requerente condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292°, n° 1, do C. Penal, na pena de 70 dias de multa à razão diária de € 2,50, no montante total de € 175 e ainda na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses.
Em ambos os processos as penas já foram declaradas extintas: a primeira a 17 de Dezembro de 2002 e a segunda a 4 de Dezembro de 2006.
Nestes termos, e não obstante o parecer favorável que antecede elaborado pela Equipa do Alentejo Litoral da Direcção-Geral de Reinserção Social, é nosso entendimento que
- Pelo facto de ter já sido condenado por duas vezes pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, sendo que numa dessas condenações cumpriu pena de prisão efectiva (6 anos e 6 meses) e de na outra, apesar de ter sido punido em pena de prisão suspensa, apenas há pouco mais de 3 anos foi declarada extinta, não deverá ser reconhecida idoneidade ao requerente F em vista a obtenção de licença de uso e porte de arma das classes C e D”.
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente as questões a apreciar são as seguintes:
- Nulidade da decisão recorrida
- Verificação das condições de idoneidade para renovação da licença de uso e porte de arma de caça (arma das classes C e D).
(a) Da nulidade da decisão recorrida
O recorrente situa esta invalidade na circunstância do tribunal ter proferido decisão que desrespeita o formalismo imposto pelo art. 374º do Código de Processo Penal, o que, ainda na sua alegação, merece a cominação prevista no art. 379º do Código de Processo Penal.
Assim, defende que o “despacho é nulo, por omissão de pronúncia (artigo 379º, n.º 1, alínea c), do CPP), na medida em que omitiu por completo qualquer referência a matéria provada ou não provada, ou qualquer menção aos factos que haviam sido invocados pelo requerente para fundamentar a sua pretensão, não os tendo, simplesmente apreciado!”.
Como o próprio bem menciona, a decisão em crise é um despacho e não uma sentença (art. 97º, nº 1, als. a) e b) do Código de Processo Penal). Não está por isso sujeita, nem à disciplina do art. 374º do Código de Processo Penal, nem às consequências previstas no art. 379º do Código de Processo Penal.
Estes preceitos legais foram incorrectamente nomeados.
É certo que “os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão” (art. 97º, nº 5 do Código de Processo Penal), e que a fundamentação das decisões dos tribunais é imperativo constitucional (art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa).
Reconhece-se ainda que a chamada fundamentação por remissão dificilmente cumprirá no caso as exigências legais, para mais tratando-se de uma decisão de negação de determinada pretensão. A fundamentação está, pois, longe de ser exemplar. Acresce que a notificação da própria decisão “por remissão” foi efectuada desacompanhada da peça processual para a qual se remete.
No entanto, tal insuficiência (de fundamentação) constituiria uma irregularidade, a ser arguida de acordo com o regime previsto no art. 123º do CPP, já que a desconformidade legal não teria o alcance que a lei confere à insuficiência da fundamentação da sentença, como já se disse (art. 118º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal).
O recorrente teve ao alcance a possibilidade de obter a invalidade e consequente rectificação do despacho recorrido, e de assim acautelar exigências de defesa que eventualmente pudesse considerar preteridas.
Permitiu, contudo, a preclusão dessa iniciativa.
Também a deficiente notificação do despacho se deve considerar sanada, tanto mais que o recorrente não se viu impedido de o compreender e de o impugnar devidamente em recurso.
Por tudo, improcede a arguição de nulidade.
(b) Da verificação das condições de idoneidade para renovação da licença de uso e porte de arma de caça
O recorrente começa por afirmar que o Tribunal, ao negar-lhe o reconhecimento de idoneidade para concessão da licença de uso e porte de arma das classes C e D, valorou exclusivamente o facto de já ter sido condenado pela prática de crimes.
Argumenta ainda que o legislador de 2006 eliminou a possibilidade de considerar automaticamente inidóneo para o uso e porte de arma um cidadão que haja praticado um crime, que a idoneidade deve ser aferida casuisticamente e mediante a apreciação de um conjunto de factores nos quais se incluem a personalidade do requerente, o modo de vida, a integração familiar, social, profissional e todos os elementos que de um modo geral possam fazer prever (ou não) que o requerente, caso lhe seja concedida licença de uso e porte de arma, venha a fazer desta um uso conforme aos fins legalmente previstos.
À partida, dir-se-á que todas estas asserções são correctas: concretamente, a decisão recorrida elege o passado criminal do requerente como fundamento exclusivo do não reconhecimento da idoneidade; abstractamente, a inidoneidade não pode resultar automaticamente de condenação pela prática de crime, devendo o decisor atender a um quadro de circunstâncias que concretamente relevem para a decisão a proferir sobre a idoneidade.
No entanto, ao contrário do pretendido, as correctas asserções que o recorrente profere não conduzem às conclusões delas retira. Antes justificam a conclusão a que o tribunal chegou.
Com base naquelas premissas, o recorrente concluíra que, ao não ter procedido de acordo com a avaliação casuística que se impunha, “o tribunal de primeira instância violou o disposto nos n.º 2 e 3 do artigo 14.º, por remissão do n.º 2, do artigo 15.º, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro e fez uma interpretação materialmente inconstitucional de tal normativo, por violação do n.º 1 e 4, do artigo 30º, da Constituição da República Portuguesa”.
É certo que a decisão recorrida se fundamentou essencialmente, ou até exclusivamente, na circunstância do requerente ter sofrido condenações pela prática de crimes, como se reconhece.
Mas essa circunstância, de facto, apresenta-se concretamente inviabilizante da pretensão do recorrente.
Olhando o quadro legal, a condenação anterior pela prática de crime (não de qualquer crime, como veremos) representa o (único) elemento indiciante de idoneidade que a lei expressamente nomeia, destacando-o de outras causas ou razões, causas estas que a lei não especifica ou concretiza.
O que permite antecipar um critério de ponderação em que os antecedentes criminais podem assumir um específico peso. Não se revela pois, em princípio, nem ilegal nem inconstitucional a decisão sobre a (in)idoneidade quando assente neste único, mas eventualmente bastante, fundamento.
Tudo dependerá do concreto peso – quantitativo e/ou qualitativo – das concretas condenações sofridas pelo requerente.
A procura de um sentido normativo conforme às pretensões do legislador de 2006, no caso exteriorizadas de forma algo aberta e indeterminada (“entre outras razões devidamente fundamentadas”) recomenda partir da evolução legislativa mais recente. E a norma que mais directamente regula a situação concreta teve já três redacções.
Assim, a Lei nº 5/2006, de 23/02, que trata do Regime Jurídico das Armas e Munições, prevê no capítulo II, Secção I, os tipos de licença de uso e porte de arma ou detenção e os requisitos para a sua atribuição.
Ao que ora interessa, o art. 15º disciplina a concessão da licença C e D, estipulando o nº 1 que “as licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de actos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.”
Está apenas em causa, neste momento, a alínea c).
O nº 2 acrescenta que “a apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 14º ”.
O nº 2 do art. 14º, que sofreu duas alterações legislativas, dispunha na versão original: “sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, (…) é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime”.
Na redacção dada pela Lei nº 17/2009, de 6/05, passou a preceituar que “sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, (…) é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outros, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”.
Dispõe actualmente o mesmo nº 2 do art. 14º, na versão resultante da Lei n.º 12/2011, de 27/04, que “sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte (…) é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”.
Assim, na redacção actual, aplicável ao caso, uma condenação em pena de prisão superior a um ano, pela prática de crime doloso, com uso de violência é susceptível de, por si só, indiciar falta de idoneidade. Ou seja, constitui presunção de inidoneidade.
Exige-se que esta circunstância indiciante, que a lei autonomizou pelo seu peso e significância, englobe os três requisitos cumulativos enunciados. Não será já qualquer condenação a merecer destaque indiciante, como sucedia na redacção originária - “o facto de ao requerente ter sido aplicada condenação judicial pela prática de crime” -, mas apenas “o facto de o requerente ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão”.
O legislador reduziu o campo normativo dos efeitos de uma condenação anterior, mas simultaneamente ampliou os factores de ponderação casuística – “é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas…”.
Ou seja, se por um lado a condenação pela prática de qualquer crime já não permite, por si só e sem mais, indiciar desde logo a falta de idoneidade – redução teleológica que cremos pretender acautelar ou reduzir eventuais efeitos ou consequências para-automáticas das penas – exige-se agora a ponderação de outras (quaisquer) razões que no caso, justificadamente, possam influir na decisão.
A condenação pela prática de crimes dolosos ou negligentes, mesmo que cometidos sem uso de violência e a que não corresponda pena superior a um ano, podem constituir factor atendível de ponderação e, concretamente, integrar as “outras razões devidamente fundamentadas”.
No caso, o recorrente sofreu as condenações seguintes:
- Por decisão transitada em 26 de Setembro de 1997 (Processo nº ---/94.0 JGLSB), pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;
- Por decisão transitada em 24 de Janeiro de 2005, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado dos arts. 21 ° e 25°, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos (extinta a 4 de Março de 2009);
- Por decisão transitada em 24 de Fevereiro de 2006 (Processo Sumaríssimo n° ---/04.1 GELSB), pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez do art. 292°, n° 1, do C. Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 2,50, no montante total de € 175 e ainda na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses.
- Por decisão transitada em 29 de Novembro de 2012 (Processo Sumario n° ---/12.3GHSTC), pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez do art. 292°, n° 1, do C. Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 6,00 no montante total de € 540,00 e ainda na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses.
(Esta última condenação é posterior à decisão recorrida e foi proferida na pendência do recurso).
Está em causa a avaliação da idoneidade da pessoa para efeitos de licenciamento de utilização de arma de caça.
A avaliação sobre essa idoneidade – que traduzirá a capacidade ou qualidade para se ser titular de licença de uso e porte de arma e dela fazer adequado uso, consentâneo com os fins legais (assim, TRP 17.12.2008 e TRC 21.03.2012) – não pode apartar-se das concretas condenações sofridas pelo requerente.
É que o legislador proibiu a detenção, uso, porte e transporte de arma sob a influência de álcool ou de estupefacientes.
O Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei nº 5/2006) trata da proibição de detenção, uso e porte de arma na Secção III, preceituando no artigo 45.º que “é proibida a detenção, uso e porte de arma, bem como o seu transporte (…), sob a influência de álcool ou de outras substâncias estupefacientes ou psicotrópicas (…)” e que se “entende estar sob o efeito do álcool quem apresentar uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,50 g/l.”.
Assim, apesar do recorrente se apresentar familiar e profissionalmente inserido, essa integração social, por si só, não tem a virtualidade de afastar ou de atenuar o peso negativo das circunstâncias a que o tribunal atendeu. E que consistiram nas três condenações do requerente (a que entretanto se juntou uma quarta), que atenta a natureza dos crimes e a sua repetição, justificam por si só a dúvida séria sobre a idoneidade para obtenção de licença de uso e porte de arma de caça.
E este indeferimento da pretensão, que no caso se apresenta devidamente fundado, em nada contraria a Constituição, pois não atinge nenhum direito, liberdade ou garantia constitucionalmente consagrado.
Sobre a inexistência de um efeito automático das condenações sofridas pelo recorrente, cremos também não sobrar dúvida.
Do art. 30º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa decorre a proibição de que a lei faça corresponder automaticamente à condenação pela prática de um crime, a perda de direitos. Mas na situação presente não se verifica tal automaticidade, uma vez que não está em causa um efeito reflexo necessário de condenação, mas a intermediação de uma decisão ponderada de um juiz.
Também não ocorreria qualquer perda de direitos.
Como assertivamente se disse no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 43/2007, na sequência da jurisprudência já reconhecida do acórdão n.º 1010/96, tratando-se de uma actividade cujo exercício depende de licença, “não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa, independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis”.
Mais se refere que “a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades de precauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto que é genericamente proibido. Na verdade, a necessidade do licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício destas actividades, como é indiscutivelmente o caso do uso e porte de armas. Nada há, portanto, de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares.”
Inexiste violação de princípio ou norma constitucional, bem como outros motivos para alterar o sentido da decisão recorrida.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão.
Custas pelo recorrente que se fixam em 3 UC (arts. 513º nº1 do CPP).