SERVIDÃO DE PASSAGEM
ESCRITURA PÚBLICA
FALTA DE REGISTO
TRANSMISSÃO DO PRÉDIO
Sumário


O direito de servidão de passagem constituído por contrato, mediante a forma de escritura pública, não registado, transmite-se juntamente com a venda do imóvel beneficiário e é oponível ao adquirente por via sucessória do prédio serviente.

Sumário da relatora

Texto Integral


Acordam, em audiência, os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
1- Relatório
Em 1.10.2010, no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, L… intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumária, contra M… e J…, pedindo a condenação dos réus na restituição da posse, correspondente ao direito de servidão de passagem de carro e a pé, que confronta a norte, com o prédio do requerente e que se encontra inserido no prédio que coube aos requeridos por sucessão hereditária, e que confronta a poente com a estrada nacional, tendo a largura de três metros e o comprimento de 30 metros, e que fica realizada no sentido poente-nascente e à extrema sul do prédio, bem como na remoção da vedação e paletes de tijolos e tudo o mais que bloqueie o acesso e uso da servidão de passagem.
Pede também que, os réus sejam condenados a absterem-se de quaisquer actos que, no futuro, possam estorvar o uso pleno da alegada servidão de passagem e ainda que seja decretado o pagamento de uma multa no valor de € 50,00 a titulo de sanção pecuniária compulsória, por cada dia que o autor esteja impedido de usar a sua servidão e finalmente que os réus sejam condenados a reconhecer a servidão de passagem sobre o seu prédio, devendo assinar a requisição da inscrição da servidão de passagem, ou em alternativa, ser suprida tal assinatura pelo Tribunal.
Alega, em síntese, ser o legítimo possuidor e proprietário do prédio urbano sito na EN 252, o qual confronta a norte com o imóvel pertencente aos réus, tendo adquirido o seu imóvel a A… por um valor superior ao do mercado, em virtude do mesmo incluir uma servidão de passagem situada no imóvel dos réus, o qual estes, por sua vez, adquiriram via sucessória.
Mais alegou que, o anterior proprietário do seu imóvel e o anterior do imóvel dos réus celebraram entre si uma escritura pública de constituição de servidão de passagem, de pé e de carro, servidão essa que foi por si adquirida.
Alegou ainda que, a referida passagem sempre foi utilizada desde a sua constituição pelos anteriores proprietários e, posteriormente, pelo autor, até meados de 2006, quando os réus bloquearam a entrada com uma vedação, paletes de tijolo e entulho, impedindo assim o acesso do autor à garagem.
Contestaram os réus, invocando, para além de impugnarem a factualidade alegada pelo autor, a excepção dilatória da ilegitimidade do autor, assim como a ineptidão da petição inicial.
Alegaram, em síntese, que a servidão de passagem constituída entre A… e J… resultou dos laços de amizade e vizinhança que os unia, com vista a facilitar o cultivo de todo o terreno do primeiro sem destruir parte das sua culturas, utilizando este apenas carros de bois.
Mais alegam que, as transmissões hereditárias da propriedade de J…, foram efectuadas sem quaisquer encargos ou registo de servidão, nem os referidos herdeiros permitiram quer ao autor, quer ao anterior proprietário o uso da referida servidão, encontrando-se a mesma vedada ao público.
Alegam ainda que, o autor tem acesso à garagem através dos dois portões virados para a EN 252, com acesso à via pública, não tendo este qualquer necessidade premente para usar a alegada servidão.
As excepções foram julgadas improcedentes e foi elaborado o despacho com os factos assentes e a base instrutória.
Realizou-se a Audiência de Discussão e Julgamento da causa com observância dos formalismos legais.
Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolveu os réus quanto aos pedidos condenatórios deduzidos na petição inicial.
Inconformada com a sentença, o autor interpôs o presente recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso:
«Em Matéria de Facto
O Tribunal deveria ter considerado provado a alínea K) J… procedeu á escritura de constituição de servidão de passagem pelo seu prédio a A… devido aos laços de amizade que os unia, mas também porque receava que não o deixassem passar no caminho do prédio serviente.
Alínea I) deveria o Tribunal, considerar provado que apesar do terreno não ter sido vendido por valor superior aplicado na zona por incluir um corredor de passagem, era provavelmente difícil do vender sem a referida passagem que lhe permitisse o uso e acesso do terreno, sem o qual não teria qualquer utilidade económica
Quanto á aplicação do Direito.
O Tribunal violou o conceito de terceiro em sede de registo, a jurisprudência dita-nos o conceito de terceiro ” Terceiros, para efeitos do disposto do artº 5º do CRP (- anteriormente art.º 6), são os adquirentes de boa-fé de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa. – Acórdão uniformizador nº3/99 de 18-05.
Pois entende o Tribunal que o ora Recorrente é terceiro, mas em conformidade com a jurisprudência entende o Recorrente que não é terceiro nesta relação, porque não adquiriu de um transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa, pois só houve um transmitente e um comprador. Não houve dualidade de compradores, nem venda de direitos incompatíveis.
Inclusive o Tribunal não fundamenta porque considera o A. terceiro., assim violou o art.º668, nº1 alínea b do C.P.C, por falta de fundamentação, a sentença é nula.
O Tribunal recorrido omitiu ainda por não se pronunciar á excepção no disposto do art.º 7, nº 2 alínea C) – servidão aparente, pois era obrigação pronunciar-se sobre todas as questões colocadas ao Tribunal, sendo que não o fez, pelo que a sentença é nula.- artº 668 , nº 1 alínea d)
Aplicando correctamente o art. 7 nº 2 alínea c) do DL 47611, de 28-03-1967, o Tribunal recorrido deveria considerar procedente a Acção condenando os Réus nos precisos termos peticionados, porque a servidão de passagem constituída por contrato era permanente, e visível, sendo igualmente uma servidão aparente, constando inclusive de imagens de mapa cadastral camarário, e Google, tendo até á destruição efectuada conforme referido em requerimento dirigido ao Tribunal, mantido sinais de uso de servidão.
NOS TERMOS EXPOSTOS E NO MAIS QUE O DOUTO SUPRIMENTO DE V.EXAS SUGERIR, DEVE REVOGAR-SE A DECISÃO PROFERIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA POR NULIDADE, E QUANTO Á MATÉRIA DE FACTO, SER ALTERADA DE IGUAL MODO, DANDO-SE PROVIMENTOÁ PRESENTE APELAÇÃO NOS TERMOS SUPRA REQUERIDOS,E ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA»
São os seguintes os Factos dados como provados na 1ª instância:
A) O autor tem descrito a seu favor a aquisição do prédio urbano sito na Estrada Nacional n.º 252, no lugar do Montesinho, freguesia e concelho de Palmela, na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º 4704 do livro B-16, extratado para a ficha n.º 10859 da mesma freguesia e inscrito na matriz predial urbana 11184, que proveio do art. 783, por Ap. 17 de 2000/07/24.
B) O autor adquiriu o prédio supra descrito a A… e C…, por escritura pública outorgada em 30/05/2000, pelo valor de dez milhões de escudos.
C) Por escritura pública outorgada em 9/04/1973, no Cartório Notarial do Montijo, J… e M… acordaram com A… e C… um escrito titulado “constituição de servidão”, onde os primeiros contraentes se obrigaram a ceder o gozo e a fruição de uma passagem de pé e de carro sobre o prédio que lhe pertencia aos segundos, em contrapartida do pagamento da quantia de mil escudos, que os primeiros outorgantes declaram já terem recebido.
D) Declararam, igualmente, que a referida passagem teria a largura de 3 m e o comprimento de 30 m, localizada no sentido poente-nascente e à extrema sul do prédio pertencente aos primeiros outorgantes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o 19009, fls. 100, verso do livro B-64 e inscrito na matriz sob o art. Rústico 1684.
E) Ainda no referido documento, obrigaram-se os primeiros contraentes a «manter a servidão completamente livre e desocupada a fim de não estorvar o livre acesso para o prédio dominante».
F) Os réus têm descrito a seu favor a aquisição por sucessão hereditária de M…, que, por sua vez, adquiriu por partilha de herança de J…, o prédio urbano para construção, descrito na Conservatória de Registo Predial de Palmela sob o n.º 03081, na freguesia e concelho de Palmela, com a matriz predial urbana n.º 7218, conforme respectivamente Ap. 32/29112001 e Ap. 16/120790.
G) O prédio urbano descrito em f) foi desanexado do prédio n.º 02992, que correspondia ao prédio rústico indicado em d).
H) Aquando da venda do prédio urbano sito na Estrada Nacional n.º 252, no lugar do Montesinho, freguesia e concelho de Palmela, na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º 4704, A… deu ao autor a escritura publica com a servidão indicada em c).
I) Desde a sua constituição a passagem foi utilizada pelos donos do prédio descrito em a), designadamente por A… e pelo autor, no decurso da construção da sua moradia, sem oposição dos réus até determinado momento não apurado, mas próximo do decurso das obras de construção da moradia do autor.
J) Em momento indeterminado, mas posterior ao referido em i), os réus colocaram na passagem uma vedação de arame no acesso, assim como paletes de tijolos e um poste de betão armado, o que impede o autor de usar o caminho para aceder a uma das entradas para a garagem.
K) J… permitiu o uso de uma passagem pelo seu prédio a A… devido aos laços de amizade que os unia, mas também para este aceder directamente à via pública sem precisar de arruinar as suas culturas.
L) Esse caminho dava acesso aos terrenos de J… e à casa de habitação da sua filha.
M) O autor construiu um muro na estrema do seu prédio com a via publica, com um portão que permite o transito de veículos automóveis entre a estrada nacional e a garagem, sendo que esta tem dois portões virados para a estrada nacional.
E foram considerados como não provados, na 1ª instância os seguintes factos:
I) O prédio descrito em a) foi vendido por um valor superior ao do aplicado na zona por incluir um corredor de passagem (Foi respondido “prejudicado” pela resposta em 1).
II) O uso dessa passagem facilitava a A… o cultivo do seu prédio.
III) O uso da passagem limitava-se ao seu uso a pé e por veículos de tracção animal.
IV) Após a morte de J…, os seus herdeiros não permitiram que os donos do prédio descrito em a) usassem mais a referida passagem, Encontrando-se, desde essa altura, o prédio vedado da via publica.
V) Desde 1994 que o prédio do autor se encontra vedado do lado da estrada nacional, onde se encontrava o acesso.
VI) O autor construiu um muro de separação do seu prédio do pertencente aos réus.

2 – Objecto do Recurso:
Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684º, nº 3 CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil (Significa isso que, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso):
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação?
- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia?
- Impugnação da matéria de facto;
- Impugnação de direito: saber se a servidão de passagem constituída, (por contrato, outorgado por escritura pública, não registada) a favor do imóvel pertencente ao autor, se manteve com a transmissão dos imóveis – por venda e por herança – continuando a onerar o prédio.

3. Análise do recurso:
3.1 - Da nulidade da sentença por falta de fundamentação (artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil);
Afirma a recorrente que a sentença é nula por falta de fundamentação.
Vejamos:
Nos termos do art. 668º nº 1 al. b) do CPC «a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Entendemos que, só estamos perante tal caso numa situação em que exista total ausência de fundamentação ou que esta esteja de tal forma insuficiente que não permita ao destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão – neste sentido, entre muitos outros, Ac. STJ de 2.03.2011, proc. nº 161/05 e Ac. RC de 17.04.2012, proc. nº 1483/09.9 TBTMR.C1.
Ora, da leitura da decisão em causa, apreendem-se suficientemente as razões da mesma, podendo porém discordar-se delas, o que é coisa diferente.
Tanto basta para improceder a invocada nulidade com base neste fundamento.

3.2 - Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, (artigo 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil);
Vem também o recorrente invocar a nulidade baseada na omissão de pronúncia relativa “à excepção no disposto do art. 7º nº 2 al. c) –servidão aparente”.
Nos termos do art. 668º nº 1 al. d) do CPC «a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.»
O dever de pronúncia diz respeito a “questões” colocadas e não aos argumentos jurídicos utilizados.
A sentença tem que resolver os todos os problemas que se colocam, o que é diferente de esgotar e rebater todos os pontos de argumentação configuráveis, como é o caso da não abordagem de um preceito legal, que no entender do recorrente deveria ter sido mencionado.
Não podem confundir-se as “questões”, que a sentença tem que conhecer e a que está limitada, com os factos alegados pelas partes ou os argumentos utilizados, que obviamente não terão que ser todos discriminadamente mencionados e individualmente debatidos – sendo-o apenas na medida do que for necessário para os fins em vista.
Como já esclareceu o STJ, no seu Ac. de 11.11.1987 BMJ 371º p. 374: “A nulidade prevista na alínea d) do nº1 do artº 668º do C.P.C. consiste apenas na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o não conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelas partes”.
Em suma: A sentença recorrida não enferma das nulidades que a recorrente lhe aponta.

3.3 - Da impugnação de Facto:
Vejamos o quadro legal que permite a alteração da matéria de facto:
Nos termos do art. 712º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos: A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”.
Segundo o seu nº 2:
“No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”
Nos termos do seu nº 3:
“A Relação pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1ª instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1ª instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes” (artigo 712º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos).
Nos termos do seu nº 4:
“Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão”.
Nos termos do seu nº 5:
“Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade”.
Embora existam divergências na interpretação, quanto à amplitude da possibilidade de reapreciação de facto pelo Tribunal da Relação, pensamos que se impõe a alteração caso exista um erro de julgamento objectivável, ou seja, que se manifeste em razões de julgamento objectivas e por isso impugnáveis que possam ser afastadas ou alteradas numa apreciação do tribunal superior.
Pretende o autor que se considere provada a alínea K) (pensamos que se refere à al. K dos factos provados na sentença, embora não explique) com o seguinte teor – J… procedeu á escritura de constituição de servidão de passagem pelo seu prédio a A… devido aos laços de amizade que os unia, mas também porque receava que não o deixassem passar no caminho do prédio serviente.
E pretende que na alínea I) (pensamos que dos factos não provados) o Tribunal considere provado o seguinte teor: «apesar do terreno não ter sido vendido por valor superior aplicado na zona por incluir um corredor de passagem, era provavelmente difícil do vender sem a referida passagem que lhe permitisse o uso e acesso do terreno, sem o qual não teria qualquer utilidade económica».
Vejamos o que ficou provado na 1ª instância a este propósito:
«K) J… permitiu o uso de uma passagem pelo seu prédio a A… devido aos laços de amizade que os unia, mas também para este aceder directamente à via pública sem precisar de arruinar as suas culturas.»
E foi dado como não provado:
«I) O prédio descrito em a) foi vendido por um valor superior ao do aplicado na zona por incluir um corredor de passagem.»
Assim, do confronto dos dois textos verifica-se que a alteração pretendida se traduz em :
Afirmar que «J… procedeu á escritura de constituição de servidão», facto que já consta da al. C) dos factos provados e por isso é desnecessário repetir;
E em acrescentar «mas também porque receava que não o deixassem passar no caminho do prédio serviente.»
Em vez de:
«mas também para este aceder directamente à via pública sem precisar de arruinar as suas culturas.»
Ora, tal facto não está quesitado, nem alegado, pelo que não pode proceder a impugnação.
Quanto ao referido em I) – certamente dos factos não provados - só pode tratar-se (embora o recorrente não explique) da resposta ao quesito 2º que foi a seguinte “Prejudicado pela resposta a 1º”
Ou seja, consta da resposta ao quesito 1º que “deu” e isso afasta o teor do quesito 2º, que pressupõe a compra.
Mas o recorrente nem sequer pede que ao quesito 2º seja dada uma resposta positiva. Pede mais, pois pede que seja considerada provada matéria não alegada, não quesitada e ainda por cima conclusiva - “era provavelmente difícil do vender sem a referida passagem que lhe permitisse o uso e acesso do terreno, sem o qual não teria qualquer utilidade económica” pelo que, sem necessidade de mais considerações, vai indeferida a alteração em causa.
Para além disso, sempre se dirá que a nosso ver, os motivos que estiveram na base da decisão da celebração da escritura e a provável dificuldade de venda do terreno sem o direito de servidão, são factos que não influenciam, a nosso ver, o sentido da decisão.
Nestes termos, improcedem as conclusões do recorrente relativamente à alteração da decisão sobre a matéria de facto, pelo que se considera definitivamente fixada a matéria de facto tida por provada na primeira instância.

3.4 – Impugnação de direito:
Na presente acção, pretende o autor o reconhecimento e a restituição de uma servidão de passagem.
Os réus, por sua vez, negam a existência dessa servidão de passagem, alegando que foi permitida a passagem pelo anterior proprietário apenas a título da amizade e relação de boa-vizinhança existente e com a transmissão dos imóveis em questão, não mais foi permitido o uso dessa passagem, nem ao autor, nem ao anterior proprietário.
Vejamos:
A lei define a servidão predial como o encargo imposto num prédio, o chamado prédio dominante, em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente, designado prédio serviente (artigo 1543º do Código Civil).
Trata-se, pois, de uma restrição ao direito de propriedade sobre o prédio dito serviente, isto é, ao direito de gozo do respectivo proprietário, ou seja, implica um direito real limitado, sendo oponível não só ao proprietário do prédio serviente como também, de harmonia com o princípio da inerência, aos seus futuros adquirentes.
Com efeito, no âmbito dos direitos reais prevalece o princípio da inerência do direito à coisa que “consiste em a coisa estar de tal maneira afectada pelo direito que não pode ser desvinculado deste na ausência de causa legal” – vide O. Ascensão Dir. Civ. Reais, 4ª ed. P. 60.
E continua o mesmo Autor:
«Por força da inerência a coisa continua a ser objecto de direito real mesmo que «passe por mil mãos».
É à consequência da inerência que se designa “sequela”.
A sequela que decorre da servidão “permite invocar o direito real contra quem quer que seja que retenha a coisa”, in Oliveira Ascensão, Ob. cit. P. 552.
As servidões prediais pode ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família, e as legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos (artigo 1547º do Código Civil).
Resulta provado que por escritura pública de 1973, foi estabelecida uma servidão por acordo entre anteriores proprietários, nos termos do artigo 1543.º do Código Civil, ou seja, foi imposto um encargo num prédio - o serviente - em benefício exclusivo de um outro prédio - o dominante - pertencente a dono diferente.
Estes os factos:
«C) Por escritura pública outorgada em 9/04/1973, no Cartório Notarial do Montijo, J… e M… acordaram com A… e C… um escrito titulado “constituição de servidão”, onde os primeiros contraentes se obrigaram a ceder o gozo e a fruição de uma passagem de pé e de carro sobre o prédio que lhe pertencia aos segundos, em contrapartida do pagamento da quantia de mil escudos, que os primeiros outorgantes declaram já terem recebido.
D) Declararam, igualmente, que a referida passagem teria a largura de 3 m e o comprimento de 30 m, localizada no sentido poente-nascente e à extrema sul do prédio pertencente aos primeiros outorgantes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o 19009, fls. 100, verso do livro B-64 e inscrito na matriz sob o art. Rústico 1684.
E) Ainda no referido documento, obrigaram-se os primeiros contraentes a «manter a servidão completamente livre e desocupada a fim de não estorvar o livre acesso para o prédio dominante».
Ao contrário do que dizem os réus, a servidão não se constituiu pela «amizade e relação de boa-vizinhança». Esses poderão ter sido os motivos da vontade de contratar, mas a mesma constituiu-se por contrato outorgado por escritura pública.
E dessa forma foi validamente constituída neste sentido, Ac. RC de 26.10.1993, BMJ 430º p. 532 e Ac. RE de 17.11.94, CJ 1994, 5º p. 285.
E nem se diga, como se faz na sentença, que a isso obsta a falta de registo da servidão como condição de eficácia do acto relativamente a terceiros porque o registo não tem efeito constitutivo (não é o registo que cria direitos), mas tão só declarativo.
Também não podemos concordar com a sentença em apreço quando diz que: «No caso em apreço apesar dos réus serem herdeiros de uma das partes, tal não é a ratio do título do autor, que surge nesta relação como um terceiro, não podendo o facto não registado ser invocado entre os herdeiros das partes e terceiros.»
Com efeito, os Réus adquiriram o prédio serviente por sucessão hereditária, e o actual Autor adquiriu o prédio dominante por escritura pública e por isso os Réus não podem ser considerados terceiros.
Terceiros, para efeitos do disposto do artº 5º nº 4 do CRP, são os adquirentes de boa-fé de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis sobre a mesma coisa. – Acórdão uniformizador nº3/99 de 18-05.
Assim, como regra geral temos logo a de que :
O adquirente do direito de servidão sujeito a registo, mesmo sem o seu registo, pode opô-lo à generalidade das pessoas, a não ser contra quem adquira do mesmo alienante um direito incompatível.
Por isso, no nosso ordenamento, muitos autores recusam-se a falar de um verdadeiro efeito de oponibilidade preferem dizer que o registo tem um efeito meramente confirmativo – vide Pinto Duarte, “Curso de Direitos Reais”, Principia, 2002, p. 135.
De facto, dispõe o Artigo 6.º do Código de registo Predial:
(Eficácia entre as partes)
1. Os factos sujeitos a registo podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros, ainda que não sejam registados.
2. Exceptuam-se os factos constitutivos de hipoteca, cuja eficácia, entre as próprias partes, depende da realização do registo.
Artigo 7.º
(Oponibilidade a terceiros)
Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
Ora, em primeiro lugar, os réus não adquiriram, de um transmitente comum, direitos incompatíveis sobre a mesma coisa.
E em segundo lugar, mesmo que assim não fosse, estamos perante uma servidão aparente - que se revela por sinais visíveis e permanentes vide Rui Pinto Duarte Ob. cit. p. 183.
Nos termos do art. 5º nº 1 e 2º al. b) do CRP “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo… à excepção do caso das servidões aparentes”.
Assim, no caso da servidão aparente o registo predial pode ser feito, não tem que ser feito. Aí a publicidade é meramente enunciativa (Oliveira Ascensão ob. cit. P. 344) visto que a sua inscrição nada acrescentará à sua situação substancial.
Assim:
Porque a servidão foi validamente constituída e não é referido nada no acordo livremente estipulado entre as partes que permita inferir que esta foi constituída temporariamente;
Porque se trata de um contrato real e não obrigacional.
Que onera o prédio e não as pessoas;
É oponível aos réus;.
E só pode extinguir-se nos termos dos direitos reais, o que não aconteceu;
Mantêm-se tal servidão.
Tendo ficado provado que, em data não concretizada, mas após a aquisição do prédio dominante pelo autor, próximo da data da construção da sua habitação, este foi impedido de mais usar a referida passagem pelos réus, devem proceder os pedidos do autor, à excepção do pedido redundante, que no fundo não é um pedido: “devendo assinar a requisição da inscrição da servidão de passagem, ou em alternativa, ser suprida tal assinatura pelo Tribunal”, uma vez que já se condena no reconhecimento da servidão.

4. Dispositivo
Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto, revogar a sentença recorrida e em consequência:
Condenar os réus na restituição da posse, correspondente ao direito de servidão de passagem de carro e a pé, que confronta a norte, com o prédio do requerente e que se encontra inserido no prédio que coube aos requeridos por sucessão hereditária, e que confronta a poente com a estrada nacional, tendo a largura de três metros e o comprimento de 30 metros, e que fica realizada no sentido poente-nascente e à extrema sul do prédio, bem como na remoção da vedação e paletes de tijolos e tudo o mais que bloqueie o acesso e uso da servidão de passagem; condenar os réus a absterem-se de quaisquer actos que no futuro possam estorvar o uso pleno da alegada servidão de passagem no pagamento de uma multa no valor de € 50,00 a titulo de sanção pecuniária compulsória, por cada dia que o autor esteja impedido de usar a sua servidão e finalmente a reconhecerem a servidão de passagem sobre o seu prédio.
Custas da acção pelos réus.
Recurso sem custas.
Évora, 21.02.2013
Elisabete Valente
Maria Isabel Silva
Maria Alexandra Afonso de Moura Santos