PRESCRIÇÃO DO CRÉDITO DE CUSTAS
Sumário

I - O prazo de prescrição das custas só começa a correr a partir do momento em que o direito puder ser exercido, ou seja, só depois de liquidadas e tiver decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário.
II – A prescrição das custas não é matéria de natureza penal, que possa ser conhecida oficiosamente.

Texto Integral


Processo nº 2288/04.9TBFAR-A.E1


Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO

Recorre o Ilustre Magistrado do Ministério Público do despacho proferido, em 20 de Maio de 2011, pela Mmª Juíza do Tribunal Judicial de Faro (2º Juízo Criminal), no âmbito do processo sumário nº 2288/04.9TBFAR, despacho esse que declarou prescritas as custas, por terem decorrido mais de 5 anos sobre a data do trânsito em julgado da sentença sem que se mostrem pagas.
Da respectiva motivação retira as seguintes conclusões:
1ª - No âmbito dos presentes autos, o arguido foi condenado, além do mais, no pagamento das custas do processo.
2ª - A liquidação das custas não foi até agora efectuada.
3ª - Porém, a Mmª Juíza declarou a prescrição do crédito de custas com o fundamento de terem já decorrido mais de 5 anos desde o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida nos autos.
4ª - Dispunha o artigo 123º, nº 1, do antigo Código das Custas Judiciais que “o crédito de custas prescreve no prazo de 5 anos".
5ª - Entretanto o antigo CCJ foi revogado e substituído pelo Regulamento das Custas Processuais instituído pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro.
6ª - No que respeita à prescrição, no entanto, o regime manteve-se inalterado.
7ª - Com efeito, dispõe o actual artigo 37°, nº 1, do referido diploma, que "o crédito por custas e o direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data em que o titular foi notificado do direito de requerer a respectiva devolução, salvo se houver disposição em contrário em lei especial”.
8ª - O facto de o legislador não ter referido o prazo a partir do qual se conta a prescrição do crédito de custas significa que se segue a regra geral, ou seja, “o prazo da prescrição começa a correr quando o direito de crédito puder ser exercido” (artigo 306º, nº 1, do Código Civil).
9ª - Não tendo sido instaurada a acção executiva por dívida de custas, o prazo prescricional conta-se do termo do prazo do seu pagamento voluntário a que se reporta o artigo 32° deste Regulamento, isto é, no prazo de 10 dias após a notificação da conta de custas (cf. artigo 31º, nº 1, do Regulamento).
10ª - Daqui decorre que o prazo de prescrição nem sequer se iniciou, uma vez que as custas ainda não foram liquidadas.
11ª - Por outro lado, o conhecimento da prescrição não é oficioso, pelo que, não tendo sido invocada, não devia ter sido declarada (artigos 303º e 304º, nº 1, do Código Civil).
12ª - Por tudo o exposto, ao declarar a prescrição do crédito das custas, o despacho recorrido violou o artigo 37º, nº 1, do Regulamento das Custas Processuais, e os artigos 303º, 304º, nº 1, e 306º, nº 1, do Código Civil.
Pelo que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que ordene que se proceda à liquidação das custas.

*
Não foi apresentada resposta ao recurso.
Neste Tribunal da Relação de Évora, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, entendendo que deve ser concedido provimento ao recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objecto do recurso.

Tendo em conta as conclusões acima enunciadas, que delimitam o objecto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, é apenas uma, em síntese, a questão que vem suscitada no presente recurso:
- Saber se o crédito de custas está prescrito ou não.


2 - O despacho recorrido.

O despacho revidendo é do seguinte teor:
“Por sentença proferida nos presentes autos, transitada em julgado em 06 de Janeiro de 2005, foi o arguido condenado na pena de 40 dias de multa, à razão diária de € 5, num total de € 200, pena que o arguido ainda não cumpriu até à presente data.
O prazo de prescrição da pena aplicada ao arguido é de 4 anos (art. 122º, nº 1, al. d), do Código Penal).
Não ocorreu qualquer causa de interrupção ou suspensão da prescrição a que aludem os artigos 125º e 126º do Código Penal durante o referido prazo de 4 anos.
Mostra-se, assim, decorrido o prazo de prescrição da pena.
Assim sendo, declara-se extinta, por efeito de prescrição, a pena de multa a que o arguido A foi condenado nos presentes autos (art. 122º, nº 1, al. d), do Código Penal).
Notifique e, após trânsito, remeta boletim ao registo criminal.
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Igualmente se declaram prescritas as custas, uma vez que decorreram mais de 5 anos sobre a data do trânsito em julgado da sentença sem que se mostrem pagas (art. 123º, nº 1, do CCJ)”.


3 - Factos relevantes à decisão.

Com relevância para a decisão a proferir há que considerar os factos seguintes:
a) Por sentença proferida em 22 de Dezembro de 2004, e transitada em julgado em 06 de Janeiro de 2005, o arguido A foi condenado, como autor material de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, nº 1, do D.L. nº 2/98, de 03/01, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 5 euros (perfazendo um total de 200 euros), e bem assim nas custas do processo.
b) Após o trânsito em julgado da sentença, o processo não teve qualquer cumprimento por parte da Secção de Processos, tendo sido aberta “vista” ao Ministério Público em 13 de Setembro de 2010 (e sendo este o primeiro acto praticado pela Secção após o trânsito em julgado da sentença).
c) Devido a esse não cumprimento do processo pela Secção de Processos, e sem mais, a pena aplicada prescreveu, o que foi declarado pelo despacho recorrido (na primeira parte do mesmo).
d) A liquidação das custas em que o arguido foi condenado na sentença em apreço também não foi efectuada (nem, obviamente, o arguido foi notificado para pagar as custas objecto da condenação), ou seja, até agora as custas não foram liquidadas.


4 - Apreciação do mérito do recurso.

Alega o Ministério Público, na motivação do recurso, por um lado, que o crédito de custas não está prescrito, e, por outro lado, que a Mmª Juíza a quo não podia declarar oficiosamente essa eventual prescrição.
Assim, a questão que vem suscitada no presente recurso subdivide-se em duas:
- Saber se o crédito das custas em que o arguido foi condenado prescreve no prazo de 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão condenatória (como entendeu a Mmª Juíza a quo), ou no prazo de 5 anos a contar do termo do prazo concedido para o pagamento voluntário das custas, prazo este que, obviamente, só tem início com a notificação da liquidação de custas que for efectuada (como entende o Exmº Magistrado do Ministério Público na motivação do presente recurso).
- Saber se o conhecimento de tal prescrição está entre os poderes que o tribunal pode exercer oficiosamente, ou se a mesma tem necessariamente que ser invocada por quem para tanto tenha legitimidade.
É a questão da prescrição do crédito de custas, nesta dupla vertente, que agora nos cabe apreciar e decidir.
A decisão recorrida, proferida na sequência da declaração da prescrição da pena (de multa) aplicada ao arguido, é, singelamente, do seguinte teor: “igualmente se declaram prescritas as custas, uma vez que decorreram mais de 5 anos sobre a data do trânsito em julgado da sentença sem que se mostrem pagas (art. 123º, nº 1, do CCJ)”.
Ou seja, o despacho revidendo, mesmo sem nenhum esforço de fundamentação, acabou por tomar posição sobre as duas vertentes da questão acima assinaladas:
- Numa vertente, tomou posição de forma implícita, ao decidir como decidiu, ex officio, sem esperar pela eventual invocação do beneficiário.
- Na outra vertente, tomou posição expressa, ao mencionar o “trânsito em julgado da sentença” (o trânsito em julgado da condenação em custas) como o ponto inicial da contagem do prazo de 5 anos para a prescrição do crédito de custas.
Comecemos por este último aspecto.
Ao tempo da prolação da sentença condenatória em causa (melhor: do seu trânsito em julgado - Janeiro de 2005) vigorava o Código das Custas Judicias, nos termos do qual o crédito de custas prescrevia no prazo de cinco anos (artigo 123º, nº 1).
À data do despacho que declarou a prescrição vigorava (e vigora) o Regulamento das Custas Processuais, que estabelece, no artigo 37º, nº 1, que “o crédito por custas e o direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos prescreve no prazo de cinco anos, a contar da data em que o titular foi notificado do direito de requerer a respectiva devolução, salvo se houver disposição em contrário em lei especial”.
A diferença entre um e outro normativo é a inclusão no segundo da regulamentação relativa ao direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos.
No que se reporta à prescrição do crédito por custas manteve-se a regra vigente, pelo que é indiferente a aplicação de uma ou outra norma.
Isto é: o legislador manteve inalterado o prazo de prescrição dos créditos de custas processuais, de que é titular o Estado (mantém-se o prazo de 5 anos).
Revela-se, pois, inútil discutir qual dos sucessivos regimes legais que vigoraram em matéria de custas é o aplicável aos presentes autos, porquanto, e para os efeitos que agora nos ocupam, eles conduzem ao mesmo resultado (sem prejuízo de se nos afigurar que, face ao disposto no artigo 27º do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro, o regime que continua a regular o caso dos autos é o anterior ao actual, o constante do Código das Custas Judiciais revogado pelo actual Regulamento, este entrado em vigor em Abril de 2009).
Como facilmente se constata, em nenhuma das disposições legais citadas vem resolvida expressamente a questão que é objecto da divergência entre o despacho recorrido e as conclusões do Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente: saber qual o momento em que se inicia a contagem do prazo de 5 anos a considerar.
Porém, não é despiciendo anotar que a norma actualmente em vigor traz, de certo modo, uma contribuição para a matéria ora em discussão, ao dizer, expressamente, que no caso do “direito à devolução de quantias depositadas à ordem de quaisquer processos” o prazo de prescrição respectivo (5 anos) será contado “da data em que o seu titular foi notificado do direito a requerer a respectiva devolução”. Assim, esta redacção da lei actual pauta-se, ao que nos parece, por uma visível preocupação de equiparar a posição do Estado (enquanto credor de custas em processos judiciais) com a dos particulares (credores nesses mesmos processos, relativamente a quantias aí depositadas), e, além disso, traduz um claro afloramento do princípio geral segundo o qual o prazo da prescrição só pode ser contado a partir do momento em que, por um lado, o crédito se apresenta ao devedor como passível de cumprimento imediato, e, por outro lado, se poderá hipoteticamente falar de inércia do credor (seja ele o Estado ou um particular).
Ora, da mesma forma que um particular não pode requerer a devolução da quantia a que tenha direito senão a partir do acto que lhe dá a conhecer (formalmente) a existência desse direito, também o Estado não pode promover a execução do seu crédito de custas senão quando estas estiverem contadas (liquidadas) e tiver decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário, na sequência da notificação do devedor para esse efeito (sendo que, por sua vez, o devedor não pode cumprir antes de a obrigação estar liquidada e lhe ter sido formalmente comunicada).
O enunciado princípio geral tem expressa consagração legal no artigo 306º, nº 1, do Código Civil, o qual, sob a epígrafe “início do curso da prescrição”, estatui: “o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição”.
Assim, e no caso sub judice, o início da prescrição só pode contar-se após a liquidação das custas em causa, a notificação dessa “liquidação” ao arguido, e o decurso do prazo para pagamento voluntário (é que, só depois de esgotado este prazo pode o Estado credor, através do Ministério Público, diligenciar pelo respectivo pagamento coercivo).
Não estando liquidada a obrigação, nem tendo decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário, o prazo prescricional não pode começar a correr.
Em bom rigor, a obrigação nem sequer está vencida (diz-se vencimento o momento em que a obrigação deve ser cumprida), devido à falta de liquidação e da respectiva notificação.
E, necessariamente, não tendo decorrido o prazo legalmente previsto para cumprir, a obrigação é ainda inexigível pelo credor.
Este regime explica-se, desde logo, pela natureza do instituto jurídico em questão: a prescrição extintiva surge em benefício do devedor, mas tem como justificação a inércia do credor, a qual só existe, obviamente, a partir do momento em que pode exigir (pelos meios coactivos legalmente previstos) o cumprimento.
Em conclusão: assiste inteira razão ao alegado na motivação do recurso, contando-se o prazo prescricional a partir do termo do prazo do pagamento voluntário das custas e não a partir da data da decisão condenatória.
Por outro lado, e como também alega o Exmº Magistrado do Ministério Público recorrente, o conhecimento da prescrição não é oficioso, pelo que, não tendo sido invocada a prescrição, não devia ter sido declarada.
É o que decorre, claramente, do disposto no artigo 303º do Código Civil, onde, sob a epígrafe “invocação da prescrição”, se estabelece: “o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público”.
Não nos restam dúvidas: para ser eficaz (efectiva), a prescrição do crédito de custas tem de ser invocada por quem tiver legitimidade (no caso, o devedor de custas).
Anote-se, aliás, que mesmo em processo civil o tribunal não pode conhecer ex officio da prescrição. Na verdade, o artigo 496º do C. P. Civil dispõe que o tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias, mas só daquelas cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado (sendo a prescrição um desses casos, cujo conhecimento a lei faz depender da invocação da parte a quem ela aproveita, nos termos do acima transcrito artigo 303º do Código Civil).
A nosso ver, e com o devido respeito, a decisão revidenda parte de uma manifesta confusão entre a prescrição do crédito de custas e a prescrição das penas (constituindo esta, isso sim, matéria de conhecimento oficioso do tribunal, desde logo por estarmos perante um “pressuposto negativo da punição” - cfr., neste ponto, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 2008, págs. 335 e 336, nota nº 1 ao artigo 122º).
É que, a questão aqui em apreciação (prescrição do crédito de custas) não é de natureza penal, tendo de ser enquadrada, normativamente, no direito civil.
Por conseguinte, e também nesta segunda vertente (quando se invoca que o conhecimento da prescrição não é oficioso), assiste inteira razão ao Ministério Público na motivação do seu recurso.
O despacho revidendo tem, pois, de ser revogado e substituído por outro que ordene que se proceda à liquidação das custas (e aos habituais, e legais, trâmites processuais subsequentes).
O recurso interposto pelo Ministério Público é, posto tudo o que precede, inteiramente de proceder.


III - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o despacho recorrido (na parte impugnada - prescrição das custas) e determinando a sua substituição por outro que ordene que se proceda à liquidação em falta e aos trâmites processuais subsequentes.
Sem tributação.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 26 de Fevereiro de 2013.

João Manuel Monteiro Amaro
Fernando Pina