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CRIME CONTRA A ECONOMIA
NEGLIGÊNCIA
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Sumário
1. Age com negligência o gerente que, incumprindo deveres a seu cargo, não procede à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento e conservação de géneros alimentares destinados à comercialização, colocados em câmara frigorífica, detém carnes avariadas e outras com falta de requisitos, resultado que podia e devia ter evitado.
Texto Integral
I
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Albufeira, os arguidos A....,Lda., e AF responderam, pronunciados pela prática, cada um, dos seguintes crime e contra-ordenações:
a) Um crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, na forma dolosa, p. e p. pelos art.º 24.°, n.º 1 al.ª c), 82.°, n.º 2, al.ª c), 2.°, n.º 1, 3.°, n.º 1 e 8.°, todos do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-1;
b) Uma contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, p. e p. pelos art.º 58.°, n.º 1 al.ª a), 56.° e 82.°, n.º 2 al.ª d), do mesmo diploma legal;
c) Uma contra-ordenação por falta de rastreabilidade da carne de bovino, p. e p. pelos art.º 7.º, 15.º, n.º 1 al.ª g), 16.º e 17.º, do Decreto-Lei n.º 323-F/2000, de 20-12;
d) Uma contra-ordenação por falta de rotulagem, p. e p. pelo art.º 28.°, n.º 1 al.ª a), e n.º 3, e 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 560/99 de 18/12;
e) Uma contra-ordenação por falta de licenciamento da câmara de conservação de produtos congelados, prevista no art.º 12.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 69/2003, de 10-4, alterado pelo Decreto-Lei n.º 174/2006, de 25-8, e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 183/2007, de 9-5, e punível pelos art.º 21.º e 22.º do mesmo diploma;
f) Uma contra-ordenação por deficiente implementação do sistema HACCP, prevista no artigo 5.º, nºs 1 e 2 do Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, e punível nos termos do artigo 6.º, n.º 1, al. a) e do artigo 7.º Decreto-Lei n.º 113/2006, de 12/06;
Contra-ordenações punidas ainda nos termos do art.º 2l.º Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10.
Realizado o julgamento, foram ambos os arguidos, na parte que agora interessa ao recurso, absolvidos da prática de:
a) Um crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, na forma dolosa, p. e p. pelos art.º 24.°, n.º 1 al.ª c), 82.°, n.º 2, al.ª c), 2.°, n.º 1, 3.°, n.º 1 e 8.°, todos do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-1; e
b) Uma contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, p. e p. pelos art.º 58.°, n.º 1 al.ª a), 56.° e 82.°, n.º 2 al.ª d), do mesmo diploma legal.
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Inconformado com o assim decidido, o M.º P.º interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos, os arguidos A..., Lda. e AF foram acusados e julgados, além do mais, pela prática de um crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados previsto e punido pelo artigo 24.º, nº 1, al. c) por referência ao artigo 82.º, nº 2, al. c) e aos artigos 2.º, nº 1, 3.º, nº 1 e 8.º, do Decreto-Lei nº 28/84 e pela prática de uma contra-ordenação por existência de produtos anormais com falta de requisitos dos artigos 58.º, nº 1, al. a) e 56.º, com referência ao artigo 82.º, nº 2, al. d) do Decreto-Lei nº 28/84, de 20.01.
2. Porém, os arguidos vieram a ser absolvidos da sua prática, por se ter considerado, em 1ª instância que não resultou provado o elemento subjectivo do crime nem da contra-ordenação.
3. Sucede que, nos termos do disposto nos artigos nº 2, al. c) e 58.º, nº 2 do Decreto-Lei nº28/84 de 20.01, os referidos crime e contra-ordenação são puníveis não só a título de dolo mas também a título de negligência.
4. Da prova produzida em julgamento, designadamente dos depoimentos conjugados das testemunhas F, T, C e das declarações do próprio arguido AF deve dar-se como provado que os arguidos praticaram o crime e a contra-ordenação na sua forma negligente, já que os mesmos, apesar de bem cientes sobre a existência de um dever de controlo do estado da carne que era destinada à comercialização, não estabeleceram quaisquer “normas internas” sobre o exercício de tal controlo, nem realizaram tal controlo de forma regular e sistemática, o que levou a que grande parte da carne armazenada na câmara frigorifica ficasse desidratada e queimada pelo frio, alterada nas suas cor, estrutura e textura, com formação de cristais de gelo à superfície, com o prazo de validade para consumo ultrapassado e embalada sem a presença de vácuo.
5. Na verdade, ao não proceder à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento e conservação dos géneros alimentares colocados na câmara frigorífica, o arguido AF incumpriu os seus deveres enquanto gerente do estabelecimento, agindo no pleno uso da sua capacidade de decisão, resultando da sua conduta a avaria e a falta de requisitos dos géneros alimentares supra descritos, resultado este que podia e devia ter sido evitado pelo mesmo
6. De facto, em respeito pelo bem jurídico tutelado pela norma do artigo 24.º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20.01 não pode deixar de admitir-se que no âmbito de actividade da sociedade arguida existe um dever profissional de controlo de controlo dos produtos armazenados e destinados ao consumo do público, sob pena de ficar o mesmo desprovido de qualquer protecção.
7. No mais, em face das funções de gerência efectivamente exercidas, dúvidas não restam que cabia ao arguido uma particular actividade de fiscalização, de controlo e supervisão, e que o mesmo, não apenas violou o cuidado objectivamente imposto, como também não afastou o perigo nem evitou o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável.
8. Agiu assim negligentemente e, nessa medida, praticou o crime e a contra-ordenação, previstos e punidos respectivamente pelos artigos 24.º, nº1,al. c) e nº2, al. c) e 58.º, nº 1, al. a) e nº 2 do Decreto-Lei nº 28/84, de 20.01.
9. A responsabilização do arguido, terá como consequência intrínseca a responsabilização penal e contra-ordenacional da sociedade arguida, nos termos do disposto no artigo 3.º do Decreto-Lei nº28/84 de 20.01, já que dos depoimentos das testemunhas supra referidos, resulta inequivocamente que os órgãos ou representantes da sociedade arguida, maxime o arguido Albano, sócio gerente da mesma, não organizou a sua actividade económica de modo a prevenir a violação de normas legais,
10. O que, de resto, é corroborado pela condenação da sociedade arguida, nestes autos, pela prática de quatro outras contra-ordenações relacionadas com o exercício da sua actividade económica reflecte precisamente a falta de cuidado por parte da sua administração em pautar a sua conduta pelas normais legais aplicáveis.
11. Assim, nos termos de tudo o supra exposto, o Tribunal Recorrido, ao decidir absolver os arguidos da prática do crime e da contra-ordenação, previstos e punidos respectivamente pelos artigos 24.º, nº1,al. c) e nº2, al. c) e 58.º, nº 1, al. a) e nº 2 do Decreto-Lei nº 28/84, de 20.01, fez uma errada apreciação da prova e uma errada interpretação do disposto no artigo 15.º do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada e substituída, nesta parte, a douta decisão proferida em 1ª Instância, por outra que determine a condenação dos arguidos pela prática do crime e da contra-ordenação, previstos e punidos respectivamente pelos artigos 24.º, nº1,al. c) e nº2, al. c) e 58.º, nº 1, al. a) e nº 2 do Decreto-Lei nº 28/84, de 20.01.
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Nenhum dos arguidos respondeu.
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Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1- O arguido AF é sócio gerente da sociedade arguida “A, Lda.”, doravante sociedade arguida, agindo por conta e no interesse desta sociedade.
2- A sociedade arguida “A..., Lda.”, dedicava-se à preparação de carnes frescas de reses (bovino, suíno e caprino) e aves (frango e peru), congelação de peças de carnes frescas, produção de preparados de carne e de carnes picadas, com acondicionamento e embalagem e entreposto frigorifico, com a licença sanitária n.º 50/01.
3- No dia 08.02.2008 pelas 17:00 horas, na sequência de uma acção inspectiva da ASAE, à sede da sociedade arguida, foi constatada a existência de cerca de 50.000 Kg de carnes (carne de bovino, suíno caprino e ovino) acondicionados em caixas de cartão armazenadas em câmara frigorífica de conservação, em pleno funcionamento, a 16º, para comercialização.
4- Pelo aspecto desidratado das carnes, com cristais de gelo, queimaduras pelo frio e alteração de cor e estrutura, rotulagem com a data limite de consumo ultrapassada, por falta de rastreabilidade e deficiente estivagem, logo se suscitaram dúvidas sobre a sua normalidade.
5- Dos cerca dos 50.000 Kg existentes na câmara de conservação, foram apreendidos 40. 292Kg.
6- Desses 40.292Kg, foram inutilizados 18.555Kg, após serem submetidos a exame pericial, assim discriminados:
a) 226Kg, no valor de €1.249,45 por terem sido considerados géneros alimentícios anormais avariados, não susceptíveis de criar perigo para a vida ou para a saúde e integridade;
b) 11.027Kg, no valor de €48.056,33 por terem sido considerados géneros alimentícios anormais com falta de requisitos, por se encontrarem ultrapassados os prazos de validade e apresentarem cristais de gelo e perda de vácuo;
c) 6.302Kg no valor de €72.219,26, por terem sido considerados géneros alimentícios anormais com falta de requisitos, por inexistir rotulagem específica, nomeadamente código de origem e código de identificação animal que não permitia nem garantia a sua rastreabilidade;
7- Os restantes 2.2963Kg (carne de suíno), no valor de €93.023,18, cuja apreensão teve por base a falta de registos, das datas de congelação, local de armazenamento, deficiente armazenagem e estivagem, foram entregues à sociedade arguida, para ser comercializada, após cumpridas determinadas injunções impostas ASAE;
8- A Arguida não possuía licença da câmara de conservação de produtos congelados.
9- A referida câmara de conservação estava instalada num armazém em vidro pintado de branco, cuja tinta se encontrava a desprender. A entrada do armazém tinha um pavimento abatido, com terra e alguns blocos de cimento soltos e encontrava-se suja.
10- O seu pavimento era em mosaico que se encontrava muito danificado e sujo, com terra e lixo.
11- No interior daquele espaço encontrava-se um balcão frigorífico, desactivado e muito sujo.
12- A referida câmara de conservação não se encontrava sob controlo eficaz do sistema HACCP, por não cumprir todos os requisitos exigidos pelo artigo 5° do regulamento CE 852/2004.
13- A comercialização da carne relativamente à qual a data limite de consumo se encontrava ultrapassada, nos termos supra descritos ficou a dever-se apenas ao comportamento da sociedade arguida, que não procedeu, como estava obrigada e era capaz, à sua comercialização antes de tal data ou à sua posterior destruição, não observando esses deveres de cuidado e diligência que, segundo as circunstâncias descritas e as suas capacidades, sobre si recaíam.
14- Tal falta podia ter sido evitada pela sociedade arguida se a sociedade arguida tivesse comercializado antes tal carne ou procedido à sua destruição após ultrapassagem do prazo, adoptando deste modo as necessárias cautelas, tendo capacidade de prever que a sua actuação descuidada e imprudente naquelas circunstâncias poderia originar, como originou, os resultados descritos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
15- A falta de rastreabilidade nos termos supra descritos ficou a dever-se apenas ao comportamento da sociedade arguida, que não cumpriu, como estava obrigada e era capaz, as regras relativas à rotulagem das carnes em causa, nomeadamente quanto ao código de origem e código de identificação animal, não observando os deveres de cuidado e diligência que, segundo as circunstâncias descritas e as suas capacidades, sobre si recaíam, isto porque lhe cabia a implementação de sistema de rotulagem que permitisse controlar a rastreabilidade.
16- Tal falta de rastreabilidade podia ter sido evitada pela sociedade arguida se a sociedade arguida tivesse implementado e executado tal sistema de, adoptando deste modo as necessárias cautelas, tendo capacidade de prever que a sua actuação descuidada e imprudente naquelas circunstâncias poderia originar, como originou, os resultados descritos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
17- A sociedade arguida tinha conhecimento que não possuía licença da câmara de conservação de produtos congelados, para poder ter e utilizar a câmara frigorífica para o seu fim e que, ainda assim, manteve-a e utilizou-a sem licença, agindo de modo livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
18- A falta de controlo eficaz pelo sistema HACCP, por incumprimento dos requisitos exigidos pelo artigo 5° do Regulamento (CE) n° 852/2004 ficou a dever-se apenas ao comportamento da sociedade arguida, que não cumpriu, como estava obrigada e era capaz, tais requisitos, não observando os deveres de cuidado e diligência que, segundo as circunstâncias descritas e as suas capacidades, sobre si recaíam, isto porque lhe cabia a implementação de sistema de HACCP eficaz.
19- Tal falta de controlo eficaz pelo sistema HACCP podia ter sido evitada pela sociedade arguida se a sociedade arguida tivesse implementado e executado tal sistema de forma eficaz, cumprindo os requisitos exigidos pelo artigo 5° do Regulamento (CE) n° 852/2004, adoptando deste modo as necessárias cautelas, tendo capacidade de prever que a sua actuação descuidada e imprudente naquelas circunstâncias poderia originar, como originou, os resultados descritos, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
20- Os arguidos já procederam ao pagamento do valor mínimo da coima pela contra-ordenação do 58.º, n.º 1, al. a), com referência ao artigo 82.º, n.º 2, al. d) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01, após notificação para o efeito.
21- O arguido AP é divorciado e vive com a sua actual companheira e um filho de 15 anos.
22- O arguido aufere a retribuição mensal de € 700,00 como sócio-gerente da sociedade arguida e a sua companheira é funcionária administrativa da sociedade arguida, auferindo uma retribuição mensal de € 600,00.
23- O arguido entrega mensalmente a quantia de € 250,00 à sua ex-mulher para contribuir para o sustento de um outro filho do arguido, também de 15 anos de idade,
24- O arguido conclui o 6.º ano de escolaridade.
25- O arguido já foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez.
26- A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.
27- A sociedade arguida encontra-se com dificuldades financeiras.
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-- Factos não provados:
- O arguido sabia que as carnes referidas no ponto 6 al. a) estavam desidratadas e queimadas pelo frio, que em algumas estava alterada a sua cor, estrutura e textura, não podendo dessa forma serem comercializados nem consumidos e ainda assim quis mantê-las armazenadas.
- O arguido sabia que as carnes referidas a ponto 6 al. b) apresentavam cristais de gelo, que o seu prazo de validade para consumo havia sido ultrapassado e que em algumas as carnes estavam embaladas sem a presença de vácuo, não podendo dessa forma serem comercializados nem consumidos e ainda assim quis mantê-las armazenadas.
- Igualmente sabia o arguido que as carnes referidas no ponto 6 al. c) não tinham a rotulagem especifica, nomeadamente código de origem e código de identificação animal e que assim não podiam ser comercializados nem consumidos e assim quis mantê-las.
- Era também do conhecimento do arguido que as carnes referidas em ponto 7 careciam de registos de datas de congelação, local de armazenamento, assim como sabia ser deficiente a sua armazenagem e estivagem e assim quis mantê-las.
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Fundamentação da convicção:
A convicção do Tribunal formou-se a partir da análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, na sua globalidade.
O Tribunal apreciou as declarações do arguido AF, bem como os depoimentos das testemunhas LM e HP (inspectores da ASAE), MC (veterinária e inspectora da ASAE à data, actualmente directora no Ministério da Agricultura), T (sobrinha do arguido e funcionária administrativa da sociedade arguida), CR (engenheira alimentar e trabalhadora da sociedade arguida) e FG (cortador de carne, trabalhador da sociedade arguida).
Foi ainda analisado o relatório pericial (fls. 35, 42 a 53) e todos os demais documentos constantes dos autos, sujeitos a contraditório, designadamente auto de notícia (fls. 23 a 25), auto de apreensão (fls. 26 e 27, 54 a 59), auto de diligência (fls. 38 a 41), fotografias da câmara frigorífica e da carne (fls. 61 a 119), rótulos (fls. 120 a 128), preçário (fls. 129 a 128), listagem de compras e facturas (fls. 139 a 232) e documentos juntos pelos arguidos em sede de audiência de julgamento (rótulos e facturas de fls. 492 a 495).
A actividade da sociedade arguida e a qualidade de sócio-gerente da mesma do arguido resultam da certidão do registo comercial constante do processo e das declarações do próprio do arguido.
Os inspectores da ASAE, que participaram na acção fiscalizadora à sociedade arguida, e em concreto à câmara frigorífica em questão e ao seu conteúdo, e à perícia realizada à carne apreendida, depuseram de uma forma clara, espontânea e desinteressada, descrevendo os factos com rigor e consistência, quer quanto às condições da câmara frigorífica, quer quanto à sua localização, quer quanto à carne lá armazenada, quer ainda quanto às características dessa carne aí armazenada.
O inspector LM começou por descrever o estado descuidado e sujo em que se encontrava a câmara frigorífica. Seguidamente, fez um relato do que observou no acto inspectivo, designadamente no que concerne à carne no interior dessa câmara, explicando que havia carne avariada (descrevendo os sinais), carne com o prazo de validade largamente excedido, carne sem linha de rastreabilidade estabelecida. Explicou como foi feita a perícia, a toda a carne existente na câmara frigorífica, e confirmou os resultados do relatório pericial, confirmando também que o valor total da carne resulta de uma estimativa feita no local, tendo em conta as declarações o arguido, e o posterior cálculo feito na perícia.
Foi claro também ao relatar que a câmara frigorífica não estava licenciada e que não estava instalado o sistema HACCP para controlo de qualidade, bem como não estava estabelecida a linha de rastreabilidade.
A testemunha mostrou-se sempre muito segura e serena perante todas as questões colocadas.
Foi particularmente relevante e esclarecedor o depoimento da testemunha MC, que de forma muito rigorosa explicou ao Tribunal como decorreu a inspecção, as características da câmara frigorífica, o modo de acondicionamento da carne, o estado em que esta se encontrava e as suas características, confirmando na íntegra o teor do relatório pericial, uma vez que assistiu à perícia, relatando que foi analisada toda a carne constante da câmara frigorífica.
A testemunha explicou que a câmara frigorífica se encontra no interior de um edifício, situado nas instalações da sociedade arguida, que não era reconhecível pelo exterior. Descreveu o estado de sujidade e descuido em que se encontrava a entrada desse edifício e da câmara, o que é cabalmente ilustrado pelas fotografias de fls. 61 a 70 (nas quais são bem visíveis os objectos e produtos tóxicos depositados à porta da câmara, para além da terra aí existente e pavimento danificado).
Explicou também a testemunha que, analisada a carne que se encontrava dentro da referida câmara, que estabelece em cerca de 50.000 kg, verificavam-se três situações distintas: parte da carne apresentava prazo de validade largamente ultrapassado, o que é aliás bem visível nos rótulos de fls. 120 a 128, já que a fiscalização e apreensão da carne foi a 08.02.2008 e os rótulos apontam para prazos de validade a expirar no ano de 2007 e em Janeiro de 2008 (para além de um que ilustra um prazo de validade a expirar no ano de 2004); outra parte da carne estava avariada por estar degradada com o frio ou em razão de abaixamento da temperatura de forma imprópria, sendo que essa carne apresentava a formação de cristais de gelo, perda de vácuo e manchas e descoloração, sinais reveladores de que a carne estava desidratada e queimada (o que também é bem visível com as fotos de fls. 71 a 119, com as quais a testemunha foi confrontada e que confirmou na íntegra); outra parte da carne suscitava dúvidas quanto à rotulagem, em particular no que concerne à possibilidade de estabelecer a rastreabilidade.
No que concerne à impossibilidade de estabelecer a rastreabilidade, foi claríssimo o seu depoimento.
Explicou que não havia documentos que permitissem estabelecer a ligação entre as peças de carne e o seu produtor. Descreveu o processo de marcação e rotulagem da carne, que visa permitir que, através de um conjunto de códigos numéricos e indicações, seja possível partir da análise das peças de carne bovina em concreto e determinar qual o seu produtor, sendo necessário o recurso aos documentos demonstrativos da aquisição da carne. A este respeito, a testemunha respondeu de forma exaustiva e linear, explicando que, analisando documentos fornecidos pela sociedade arguida e juntamente com funcionária desta sociedade, procurou estabelecer a linha de rastreabilidade e que tal não foi possível, apesar de toda a documentação exibida. Ilustrou, com base na análise dos rótulos e facturas de fls. 492 a 495, que os rótulos não tinham informações claras que permitisse estabelecer essas linhas, como nestes rótulos, por exemplo, que pelo número de série corresponderiam ao mesmo lote, mas apresentam diferentes locais de nascimento de criação dos animais, pelo que não se pode determinar qual a origem e o país de criação dos animais em concreto, estando quebrada a ligação de rastreabilidade. E, perante a impossibilidade de estabelecer a rastreabilidade, foi essa carne bovina destruída.
E perante esta cabal explicação, ilustrada nos documentos constantes do processo, não se pode relevar o depoimento da testemunha T (trabalhadora da sociedade arguida e sobrinha do arguido) que afirmou que demonstrou a rastreabilidade, com base em documentos, relativamente aos rótulos que lhe foram solicitados. Na verdade, não só a testemunha T tem uma relação profissional e familiar com o arguido, ao contrário da testemunha MC, como o seu depoimento é genérico em muitos momentos e posto em causa, nesta parte, pelo depoimento de MC e documentos constantes do processo, nos termos já referidos. Também a Engenheira CR apenas descreveu genericamente o processo de rotulagem, com vista à rastreabilidade, mas nada afirmou quanto à carne concretamente apreendida, já que nem foi esta testemunha que directamente contactou com a ASAE para tentar estabelecer a rastreabilidade, nem acompanhou esta fase do processo.
A testemunha MC explicou também que o sistema HACCP não estava implementado correctamente e que o sinal mais evidente disso era precisamente o facto de não estar assegurada a linha de rastreabilidade. Nesta indústria, a rastreabilidade é um ponto nevrálgico do sistema de controlo HACCP e a impossibilidade de estabelecer a linha de rastreabilidade revela necessariamente que o sistema não está correctamente implementado. Para além de outros factores demonstrativos, como por exemplo a falta de registos de temperatura, indicados pela testemunha.
Relatou ainda a testemunha que a câmara frigorífica não estava licenciada e não constava do processo de licenciamento das instalações da sociedade arguida, requerido pela sociedade arguida.
A testemunha revelou ainda ser muito conscienciosa e responsável no exercício das suas funções, patente nos procedimentos adoptados, e que descreveu ao Tribunal, tendo apenas remetido para o aterro sanitário, para destruição, a carne que não apresentava condições de ser consumida, ou não garantia tais condições.
A testemunha HP (inspector da ASAE) depôs de modo globalmente coincidente com os dois inspectores supra identificados, de modo a dar como provados os factos supra.
Pelo contrário, as testemunhas T e CR não apresentaram consistência nas respostas dadas, respondendo por vezes de modo genérico, como é bem verificável no depoimento de CR que não sabe em concreto porque a câmara frigorífica não estava licenciada, que tipo de carne e que quantidade é que continha, qual a capacidade da câmara, e nem sequer foi clara quanto à implementação do sistema HACCP na referida câmara frigorífica ou quanto à rastreabilidade, sabendo apenas como são os procedimentos estabelecidos mas não o que sucedeu no caso em concreto.
Ambas as testemunhas T e CR afirmam que a formação de cristais de gelo é normal no processo de congelação, ao contrário do indicado pelos inspectores da ASAE, mas admitem que existia na câmara frigorífica carne desidratada e queimada, e alguma com perda de vácuo, como constataram com a inspecção e que confirmam quando confrontadas com as fotografias constantes dos autos.
A testemunha T também não consegue demonstrar com argumentos objectivos que a quantidade de carne apreendida é inferior à indicada pelos peritos, acabando por afirmar que não sabia a quantidade. E também a alegação desta testemunha de que foi demonstrada a rastreabilidade não colhe, desde logo porque afirma sempre que foi o director-regional da ASAE a recusar analisar os documentos, quando foi a testemunha MC que tentou proceder a tal aferição. Para além de que essa sua versão é contrariada quer pelos documentos constantes do processo, quer pelo consistente depoimento de MC.
Finalmente, o Tribunal não relevou o depoimento da testemunha FG (cortador de carne, trabalhador da sociedade arguida). Esta testemunha não prestou um depoimento desinteressado, tentando sempre apresentar uma justificação para todos os factos com que foi confrontado, e sempre justificações alheias aos arguidos, de que são exemplo os rótulos mal colocados, respondendo sempre ao que era favorável aos arguidos e sendo pouco claro quanto ao que não era, tendo sempre explicação para tudo. Mostrou-se sempre muito tendencioso, tentando fazer crer ao Tribunal que nada do que foi imputado aos arguidos é da sua responsabilidade e que as carnes apreendidas estavam em bom estado, tudo ao contrário da demais prova produzida, em particular da prova pericial.
Quanto às declarações do arguido, este admite a existência na câmara frigorífica de carne com prazo de validade rotulado já expirado (atribuindo-o a erro de rotulagem dos seus trabalhadores), admite a existência na câmara de carne avariada, afirmando porém que em diminuta quantidade, admite que a câmara não tinha licença, afirma que a sociedade arguida estava “a tratar de” implementar o sistema HACCP na câmara frigorífica, e admite a câmara e a sua envolvência não estaria nas condições de higiene e limpeza ideais.
Nega os demais factos.
Finalmente, não se provou que o arguido tivesse conhecimento que a carne contida na câmara frigorífica estivesse avariada, com prazo de validade ultrapassado e sem rastreabilidade, nos termos dos factos não provados.
Na verdade, o próprio arguido, nas suas declarações, mostrou-se sincero quanto a este ponto, sendo que eram os funcionários da sociedade arguida e não o arguido que rotulavam a carne e procediam à sua armazenagem na câmara frigorífica em causa. E o seu desconhecimento foi relatado não só pelas testemunhas que trabalham na sociedade arguida (a testemunha T explicou que não há controlo prévio da carne – que está em caixas de cartão – antes de ser remetida aos clientes, sendo que, se estes assinalam algum problema, então a carne é devolvida e destruída), quer pelos inspectores da ASAE (que são insuspeitos e totalmente desinteressados) revelaram que, no momento da inspecção, o arguido estava genuinamente surpreendido.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
– Que foi por ter avaliado mal a prova testemunhal produzida em julgamento que o tribunal a quo não deu como provado que ao não proceder à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento e conservação dos géneros alimentares colocados na câmara frigorífica, o arguido AF incumpriu os seus deveres enquanto gerente do estabelecimento, agindo no pleno uso da sua capacidade de decisão, resultando da sua conduta a avaria das carnes supra mencionadas em 6 a) e a falta de requisitos das carnes supra mencionadas em 6 b) e 6 c), resultado este que podia e devia ter sido evitado pelo mesmo e não condenou o arguido AF, a título da negligência inconsciente prevista no art.º 15.º al.ª b), do Código Penal, e a arguida A, nos termos do disposto no art.º 3.º do Decreto-lei n.º 28/84, pela prática do crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, p. e p. pelos art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 8.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-1, e pela prática da contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, p. e p. pelos art.º 58.º, n.º 1 al.ª a) e 2, 56.º e 82.º, n.º 2 al.ª d), do mesmo Decreto-Lei.
Vejamos.
O tribunal "a quo" absolveu ambos os arguidos da prática dos aludidos ilícitos partindo dos factos provados e não provados que aos mesmos se referem, nestes últimos tendo ficado a constar que não se fez prova de que:
- O arguido sabia que as carnes referidas no ponto 6 al. a) estavam desidratadas e queimadas pelo frio, que em algumas estava alterada a sua cor, estrutura e textura, não podendo dessa forma serem comercializados nem consumidos e ainda assim quis mantê-las armazenadas.
- O arguido sabia que as carnes referidas a ponto 6 al. b) apresentavam cristais de gelo, que o seu prazo de validade para consumo havia sido ultrapassado e que em algumas as carnes estavam embaladas sem a presença de vácuo, não podendo dessa forma serem comercializados nem consumidos e ainda assim quis mantê-las armazenadas.
- Igualmente sabia o arguido que as carnes referidas no ponto 6 al. c) não tinham a rotulagem especifica, nomeadamente código de origem e código de identificação animal e que assim não podiam ser comercializados nem consumidos e assim quis mantê-las.
E alicerçando juridicamente a sua decisão nos seguintes termos, citados apenas na parte que agora mais interessa ao caso e em que se realçará a negrito a pedra de toque da questão:
-- No tocante ao crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, na forma dolosa, p. e p. pelos art.º 24.°, n.º 1 al.ª c), 82.°, n.º 2, al.ª c), 2.°, n.º 1, 3.°, n.º 1 e 8.°, todos do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-1:
Ora, no caso, não estando provado o elemento subjectivo, não se pode considerar que o crime foi praticado.
Na verdade, está desde logo excluído o dolo, já que não se provou que o arguido tivesse conhecimento que que a carne contida na câmara frigorífica estivesse avariada, com prazo de validade ultrapassado e sem rastreabilidade, nos termos dos factos não provados.
Por outro lado, não se demonstrou a prática do crime a título negligente, já que também não se demonstrou que o arguido representasse como possíveis tais factos, ainda que não se conformasse com tal possibilidade.
(…)
Assim sendo, não estando provado o elemento subjectivo, não está praticado o crime, sendo os arguidos absolvidos da sua prática.
-- E no tocante à contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, p. e p. pelos art.º 58.°, n.º 1 al.ª a), 56.° e 82.°, n.º 2 al.ª d), do Decreto-Lei n.º 28/84:
No caso desta contra-ordenação, damos como reproduzido o vertido supra (…) quanto ao elemento subjectivo, sendo que não pode ser a sociedade arguida responsabilizada pela prática da contra-ordenação, uma vez que nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20/01, “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo”. Ora, não tendo o arguido cometido a infracção, por falta de elemento subjectivo, não se pode concluir assim que a sociedade arguida o tenha também cometido.
Ora bem.
No que concerne à questão da negligência e das modalidades em que a mesma se desdobra, Figueiredo Dias in “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 861, analisa a definição legal constante do artigo 15.º do Código Penal, do seguinte modo:
Este preceito começa no seu proémio, por conceber a negligência de modo unitário – “quem não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz” –, para em seguida distinguir duas formas: a da negligência consciente, na al. a), traduzida em o agente “representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização”; e a da negligência inconsciente, traduzida em o agente “não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”. O essencial da definição reside, porém, no proémio unitário, sendo aí que se contém o tipo de ilícito (a violação do cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado, isto é, a violação do cuidado devido) e o tipo de culpa (a violação do cuidado que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar).
A partir daqui, concluiu o Ilustre Professor que a violação de um dever de cuidado só pode ser imputada a quem, com ela, criou um risco não permitido que se concretizou no resultado típico.
Ora, in casu, em face das funções de gerência efectivamente exercidas, cabia ao arguido uma particular actividade de fiscalização, de controlo e supervisão, sendo que o mesmo, não apenas violou o cuidado objectivamente imposto, como também não afastou o perigo nem evitou o resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável. Agiu assim negligentemente, com a negligência inconsciente caracterizada no mencionado art.º 15.º al.ª b).
Na verdade, a respeito das fontes do dever objectivo de cuidado, Figueiredo Dias na obra citada, agora a págs. 875-876, afirma que, para além das normas jurídicas e das normas escritas, profissionais e do tráfego, correntes em certos domínios de actividade, é ainda admissível, na sua ausência, o indispensável apelo aos costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional-padrão, e, na sua falta, impõe-se o recurso directo ao cuidado imposto pelo concreto comportamento socialmente adequado no tráfico – a figura padrão cabida ao caso.
Também no acórdão da Relação de Évora de 5-1-99, CJ, 1999, I-281, se considerou que:
Age negligentemente o director responsável máximo pela gestão e administração da loja de um hipermercado que tem exposto para venda ao público pescado congelado em estado de desidratação. É que, aquele responsável da loja em causa tem o dever omitido de zelar pelo cumprimento escrupoloso das normas e regulamentos sobre a verificação da qualidade, genuinidade e estado de conservação dos géneros alimentícios destinados à venda ao público consumidor.
E no acórdão da Relação de Coimbra de 11-3-2009, proc. nº 109/07.0EACBR.C1, disponível em www.dgsi.pt:
Conforme resulta da matéria de facto dada como provada o arguido M… era, à data dos factos, gerente da arguida “L…, Ldª”, agindo em seu nome e no seu interesse. Pois bem, nessa qualidade parece-nos que dúvidas não podem existir de que sobre o mesmo recai a missão de controle sobre o armazenamento e conservação dos géneros alimentícios nele existentes (…). É evidente que não lhe caberá fazer tudo, mas o certo é que nada poderá ser feito sem as suas ordens e instruções, assim como não poderá deixar de se manter atento e vigilante quanto ao processo de armazenamento e conservação dos géneros alimentares bem como à limpeza dos objectos ou instalações. É que não é concebível à luz da experiência comum que um gerente vire costas ao estado e à forma como as coisas se desenrolam no estabelecimento de que é responsável.
E no acórdão da Relação de Lisboa de 7-5-1991, proc. n.º 0014895, www.dgsi.pt:
O facto de o agente proprietário de um estabelecimento de talho de miudezas, ter depositado, em câmaras frigorificas de outrem, algumas dezenas de quilogramas de carne de vaca e de borrego, de que era proprietário e que destinava ao seu comércio, desinteressando-se durante meses, do estado dos produtos que se avariaram (sendo apreendidos desidratados, com coloração anormal e queimaduras provocadas pelo frio) – não o exime de responsabilidade criminal, já que, não tendo conhecimento do estado dos géneros alimentícios, o evento insere-se em sede de negligência inconsciente, prevista no art. 15 alínea b), do CP, por não ter chegado a representar a possibilidade de realização do facto, visto não ter procedido com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que era capaz.
Na verdade – e retornando ao caso dos autos –, quando considerou que não se demonstrou a prática do crime a título negligente, já que também não se demonstrou que o arguido representasse como possíveis tais factos, ainda que não se conformasse com tal possibilidade, o tribunal recorrido fez uma errada, por incompleta, interpretação do art.º 15.º do Código Penal, ao não ter considerado a actuação do arguido AF sob o prisma da negligência inconsciente a que se reporta a al.ª b) deste preceito legal.
Ora ouvida a gravação contendo as declarações do arguido AF e das testemunhas FG, T e CR, todos funcionários da sociedade arguida, resulta inequivocamente que todos eles estavam cientes sobre a existência de um dever de controlo do estado de conservação e dos prazos de validade da carne que estava na câmara frigorífica, mas que além de não haver quaisquer “normas internas” sobre o exercício de tal controlo, o mesmo não era feito de forma regular e sistemática, o que levou a que grande parte da carne ali armazenada ficasse desidratada e queimada pelo frio, alterada nas suas cor, estrutura e textura, com formação de cristais de gelo à superfície, com o prazo de validade para consumo ultrapassado e embalada sem a presença de vácuo.
Dizer-se na fundamentação da convicção – como o fez a sentença recorrida – que o arguido estava genuinamente surpreendido com o estado em que a carne foi encontrada e fundamentar assim a sua absolvição, é menorizar de forma inaceitável as responsabilidades de supervisão e controlo de um gerente de uma empresa que tem por um dos seus escopos precisamente a congelação de peças de carnes frescas, produção de preparados de carne e de carnes picadas, com acondicionamento e embalagem e entreposto frigorifico.
Ora, in casu, em face das funções de gerência efectivamente exercidas, dúvidas não restam que cabia ao arguido uma particular actividade de fiscalização, de controlo e supervisão, e que o mesmo, não apenas violou o cuidado objectivamente imposto, como também não afastou o perigo, nem evitou o resultado, apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável. Agiu assim negligentemente.
Na verdade, não se tendo provado que o gerente AF tivesse sofrido acidente ou doença ou por qualquer outro motivo relevante estivesse incapacitado de exercer a sua gerência ou houvesse ocorrido anomalia técnica inesperada ou ocorrência inelutável com a câmara frigorífica ou com quem a operava – e não se percebe porque é que ele havia de ter ficado genuinamente surpreendido com o estado da carne.
Tal constatação e as consequências que o tribunal "a quo" daí retirou em termos de matéria de facto assente como provada e não provada no tocante ao arguido AF constituem um erro de julgamento na apreciação da prova testemunhal produzida em audiência, que agora e ao abrigo do disposto no art.º 431.º al.ª a) e b), do Código de Processo Penal, impõe a esta Relação o poder-dever de modificar a decisão do tribunal da 1.ª Instância sobre a matéria de facto, o que se efectua, fazendo passar a constar dos factos provados mais os seguintes:
Ao não proceder à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento e conservação dos géneros alimentares colocados na câmara frigorífica, o arguido AF incumpriu os seus deveres enquanto gerente do estabelecimento, agindo no pleno uso da sua capacidade de decisão, resultando da sua conduta a avaria das carnes supra mencionadas em 6 a) e a falta de requisitos das carnes supra mencionadas em 6 b) e 6 c), resultado este que podia e devia ter sido evitado pelo mesmo.
Aqui chegados, constata-se, pois, ter o arguido AF cometido, a título da negligência inconsciente prevista no art.º 15.º al.ª b), do Código Penal, um crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, p. e p. pelos art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 8.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-1, e uma contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, p. e p. pelos art.º 58.º, n.º 1 al.ª a) e 2, 56.º e 82.º, n.º 2 al.ª d), do mesmo Decreto-Lei – ilícitos pelos quais vinha acusado mas na forma dolosa.
De resto, assim o tem também entendido a jurisprudência, como já acima vimos nos acórdãos já citados e é ainda o caso do acórdão da Relação do Porto de 31-1-2000, proc. n.º 0010532, em www.dgsi.pt:
Agiram com negligência, incorrendo na prática do crime previsto e punido no artigo 24.º n.º 2 alínea c) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, os arguidos que descuraram a verificação do estado das carnes que se encontravam avariadas por acção do tempo e do meio a que estiveram expostas, ainda que não fossem susceptíveis de prejudicar a saúde do consumidor, as quais se destinavam a ser vendidas ao público, desse modo violando o dever objectivo de cuidado que sobre eles impendia e de que eram capazes.
E o Acórdão da Relação do Porto de 24-5-2000, proc. 9911240, em www.dgsi.pt:
“I - Incorre na prática do crime do artigo 24.º n.º 1 alínea c) e 2 alínea c) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, a arguida que, como sócia-gerente de um estabelecimento de hotelaria, detinha no interior deste vários produtos destinados ao consumo público, os quais se encontravam avariados (desidratados, com alteração dos caracteres organoliticos e com bolores e perda de consistência) embora não susceptíveis de criar perigo para a vida, saúde ou integridade física dos consumidores.
II - Embora a arguida desconhecesse que tais géneros alimentícios se encontravam avariados, a verdade é que a mesma era responsável pela gestão diária do estabelecimento, que explora há cerca de um ano, dispondo de funcionários que trabalham sobre as suas ordens e supervisão, recaindo sobre ela o dever de verificação da genuidade e estado de conservação desses géneros, pelo que ao não verificar o respectivo estado omitiu o dever objectivo de cuidado que sobre ela impendia e que era capaz.
O estabelecimento da responsabilidade criminal do arguido AF pelo cometimento dos mencionados crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, e contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, acarreta a responsabilização penal e contra-ordenacional da sociedade arguida, nos termos do disposto no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, que estabelece:
1 – As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
2 – A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.
Trata-se de um afloramento do princípio, válido mesmo no direito penal secundário, de que não existe responsabilidade penal sem culpa.
Figueiredo Dias, no seu estudo intitulado “Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico”, publicado em “Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários”, Coimbra Editora, 1998, vol. I, pág. 381, entende que é de rejeitar a ideia de que no direito penal económico a condenação deve ter lugar, sempre ou as mais das vezes, independentemente de culpa, ou em função de uma simples censura objectiva do facto, ao estilo da doutrina dos “jus deserts”, valendo isto também para as pessoas colectivas pois, através dum pensamento analógico pode e deve considerar-se as pessoas colectivas (no direito penal económico e diferentemente no que deve suceder no direito penal geral) como capazes de culpa.
Também já há muito ensinava o Prof. Manuel de Andrade, citado na mesma obra por Lopes Rocha, pág. 441, que se a noção de culpa é inaplicável às pessoas colectivas, quando tomada ao pé da letra, como culpa dessas próprias pessoas, visto lhes faltar a personalidade real ou natural, já se concebe que possa falar-se de culpa de uma pessoa colectiva no sentido de culpa dos seus órgãos ou agentes.
Do exposto retirou o acórdão da Relação de Guimarães de 27-10-2008, proc. n.º 1339/08-1, em www. dgsi.pt, que a pessoa colectiva, sob pena de o seu comportamento poder ser censurado, é obrigada, através dos seus órgãos ou representantes, a organizar as suas actividades económicas (e outras) de modo adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir violações das normas legais. Mas não lhe é exigível que monte uma organização que impeça ou neutralize toda e qualquer possibilidade de os seus agentes ou funcionários, actuando ao arrepio de instruções expressas, violarem normas legais, nomeadamente do direito penal económico. Nesses casos, porque nenhuma culpa lhe pode ser assacada, a sua responsabilidade é excluída. É este o alcance da citada norma do n.º 2 do art.º 3 do Dec.-Lei 28/84.
Acontece que, no caso dos autos, a arguida A..., Lda., é uma empresa com meia dúzia de funcionários e dois gerentes; um, é o arguido, que trata da aquisição e conservação das carnes, o outro gerente trata da comercialização das mesmas no retalho – pelo que, atenta a pequena dimensão, o querer da sociedade em termos de conservação das carnes é o querer do seu gerente AF e vice-versa – pelo que a A é responsável pelas mencionadas infracções porque as mesmas foram cometidas por um dos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
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Estabelecido, pois, que o arguido AF cometeu, a título da negligência inconsciente prevista no art.º 15.º al.ª b), do Código Penal, e a arguida A, nos termos do disposto no art.º 3.º do Decreto-lei n.º 28/84, um crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, p. e p. pelos art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 8.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20-1, e uma contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, p. e p. pelos art.º 58.º, n.º 1 al.ª a) e 2, 56.º e 82.º, n.º 2 al.ª d), do mesmo Decreto-Lei, importa estabelecer as penas respectivas, já que para tanto existem na matéria de facto assente como provada os elementos necessários.
No tocante à contra-ordenação e uma vez que os arguidos já procederam ao seu pagamento pelo valor mínimo, após notificação para esse efeito por parte da autoridade administrativa competente (cfr. ponto 20 dos factos provados), encontra-se a respectiva situação punitiva definida nesses termos (art.º 50.º-A, do Regime Geral das Contra-Ordenações, "ex vi" art.º 1.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 24/84)
No tocante ao crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, e ao arguido AF:
A moldura penal abstracta é, no caso, a de prisão até 6 meses e multa de 20 a 360 dias (art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e 2 al.ª c), do Decreto-lei n.º 28/84, e 47.º, n.º 1, do Código Penal, "ex vi" art.º 1.º, n.º 1, daquele Decreto-lei).
Fixemo-nos primeiro no doseamento da pena de prisão.
No tocante à escolha e graduação de uma pena de prisão que há-de ser imposta em virtude do cometimento, a título de negligência, de um crime, é a medida da atitude descuidada ou leviana, revelada pelo agente e que fundamenta o seu facto e, por aí, nas qualidades desvaliosas da pessoa que no facto se exprime, que condiciona decisivamente a pena concreta a aplicar-lhe.
Deve assumir-se a pena como sanção adequada, proporcionada aos factos e ao agente, e, procurando-se com ela dar satisfação aos fins de prevenção-ressocialização do agente, evitar-se que outros cometam infracções semelhantes.
Há que ponderar, na situação concreta, a intensidade da negligência manifestada no caso, a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, as suas condições pessoais, a sua situação económica e, em suma, em todo o demais condicionalismo mencionado não só no corpo como nas respectivas alíneas do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal.
No tocante aos presentes autos, norteados por este normativo e ponderando os itens mencionados, e ainda a que, de qualquer modo, as avarias verificadas nas carnes não causariam danos à saúde, mas somente ao paladar, de quem as consumisse, a sua situação económico-social e ser delinquente primário[1], levam a que, tudo visto e ponderado, se tenha por justo e adequado fixar a pena de prisão em dois meses.
Sendo a pena aplicada ao arguido inferior a um ano de prisão, há que ponderar a possibilidade de ser substituída por multa (art.º 43.º), suspensa na sua execução (art.º 50.º), substituída por trabalho a favor da comunidade (art.º 58.º), ser cumprida em regime de permanência na habitação (art.º 44.º, n.º 1 al.ª a)), por dias livres (art.º 45.º) ou em regime de semidetenção (art.º 46.º).
O art.º 43.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece que:
1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.
Denominador comum à aplicabilidade de qualquer das penas substitutivas é, com excepção da de em regime de semidetenção (art.º 46.º), o de que realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Finalidades da punição que são as estabelecidas no art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Ora atentas as específicas características do caso, a que temos vindo a fazer referência, e não se mostrando o mesmo inserido em qualquer das hipóteses mencionadas nos art.º 5.º e 6.º do Decreto-lei n.º 28/84, a (conversão em) pena de multa chega para alcançar as finalidades da punição.
Pelo que se substituem os mencionados dois meses de prisão por sessenta dias de multa.
Mas o crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, praticado pelo arguido AF, é punido também com multa de 20 a 360 dias.
A fixação da pena de multa faz-se "...através de duas operações sucessivas: na primeira, determina-se o número de dias de multa através dos critérios gerais de fixação das penas e na segunda fixa-se o quantitativo de cada dia de multa em função da capacidade económica do agente." (Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 15.ª ed., a fls. 190).
Nos termos do disposto no n.º 2 do art. 47.º, do Código Penal, "ex vi" art.º 1.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 24/84, cada dia de multa corresponde a uma quantia que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
O quantitativo diário da multa deve ser graduado "...em atenção às determinantes legais, atendendo a que a finalidade da lei é eliminar ou pelo menos esbater as diferenças de sacrifício que o seu pagamento implica entre os réus possuidores de diferentes meios de a solver" (Maia Gonçalves, ob. cit. pág. 190).
"O montante diário da multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado sem, no entanto, deixar de lhe serem asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respectivo agregado familiar" (Ac. S.T.J. de 2.10.97, in C.J. dos Acs. do STJ, 1997, III-183).
Pelo que, tudo visto e ponderado e tendo sobretudo em conta o valor das carnes que, não obstante estarem avariadas, seria auferido pelos arguidos (226Kg, no valor de €1.249,45), tem-se por justa e adequada a fixação da pena concreta ao arguido AF em 120 (cento e vinte) dias de multa à razão diária de 12 (doze) €, o que perfaz o montante de 1 440 (mil quatrocentos e quarenta) €.
O que vem de se dizer, serve igualmente para fixar nos mesmos doze € o quantitativo diário da pena de substituição da multa acima efectuado.
Pelo que vai o arguido AF condenado no montante global de 2160 (dois mil cento e sessenta) € de multa.
No tocante ao crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, e à arguida A:
Não se vendo razão para que o número de dias da pena de multa da sociedade seja diferente da do seu gerente (120 dias), quanto ao seu montante diário e de acordo com o estatuído no art.º 7.º, n.º 1 al.ª b) e 4, do Decreto-lei n.º 28/84, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1.000$00 e 100.000$00, que o tribunal fixará em função da situação económica e financeira da pessoa colectiva ou equiparada e dos seus encargos. Ou seja e por força do art.º 1.º do Decreto-lei n.º 323/2001, de 17-12-2001, que estabeleceu a correspondência de 200$48 a 1 €, a moldura abstracta do montante diário da multa vai de 4,98 € a 498,80 €. Pelo que se fixa o montante diário da multa em 15 €.
Assim, vai a arguida A condenada na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à razão diária de 15 (quinze) €, o que perfaz a multa global de 1 800 €.
Esta arguida, a A, foi condenada pelo tribunal "a quo" nas seguintes coimas:
-- Pela prática de uma contra-ordenação por falta de rastreabilidade da carne de bovino, prevista no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 323-F/2000, de 20/12, e punível nos termos dos artigos 15.º, n.º 1, al. g), 16.º e 17.º do mesmo diploma, sob a forma negligente, numa coima de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros);
-- Pela prática de uma contra-ordenação por falta de rotulagem, prevista no artigo 28.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Decreto-Lei n.º 560/99 de 18/12, e punível nos termos do artigo 10.º, n.º 2 do mesmo diploma, sob a forma negligente, numa coima de € 300,00 (trezentos euros);
-- Pela prática de uma contra-ordenação por falta de licenciamento da câmara de conservação de produtos congelados, prevista no artigo 12°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 69/2003, de 10.04, alterado pelo Decreto-Lei n.º 174/2006, de 25.08, e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 183/2007, de 09.05 e punível pelos artigos 21.º e 22.º do mesmo diploma, sob a forma dolosa, numa coima de € 300,00 (trezentos euros);
-- Pela prática de uma contra-ordenação por deficiente implementação do sistema HACCP, prevista no artigo 5.º, nºs 1 e 2 do Regulamento (CE) n.º 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, e punível nos termos do artigo 6.º, n.º 1, al. a) e do artigo 7.º Decreto-Lei n.º 113/2006, de 12/06, sob a forma negligente, numa coima de € 500,00 (quinhentos euros);
Em cúmulo jurídico, foi a A condenada na coima única de 2 000 €.
Não há que reformular este cúmulo jurídico de coimas aplicadas pela prática de contra-ordenações com a pena de multa agora aplicada pela prática de um crime.
Coimas e penas são sanções de natureza diferente, com autonomia dogmática inequívoca.
Assim, a pena de multa de 1 800 € agora aplicada tem cumprimento autónomo em relação à coima única de 2 000 € já aplicada pelo tribunal "a quo", ou seja, somam-se materialmente.
IV
Termos em que, concedendo provimento ao recurso, se decide:
1.º
Condenar o arguido AF, a título da negligência inconsciente prevista no art.º 15.º al.ª b), do Código Penal, e a arguida A..., Lda., nos termos do disposto no art.º 3.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20-1, pela prática de um crime contra a economia, por existência de produtos anormais avariados, p. e p. pelos art.º 24.º, n.º 1 al.ª c) e 2 al.ª c), 82.º, n.º 2 al.ª c), 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 8.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, nas penas de:
A) O arguido AF, 2 (dois) meses de prisão, que se substituem por 60 (sessenta) dias de multa, e 120 (cento e vinte) dias de multa, todos à razão diária de 12 (doze) €, o que perfaz o montante global de 2 160 (dois mil cento e sessenta) € de multa.
B) A arguida A, 120 (cento e vinte) dias de multa à razão diária de 15 (quinze) €, o que perfaz a multa global de 1 800 €.
2.º
Condenar o arguido AF, a título da negligência inconsciente prevista no art.º 15.º al.ª b), do Código Penal, e a arguida A..., Lda., nos termos do disposto no art.º 3.º do Decreto-lei n.º 28/84, de 20-1, pela prática de uma contra-ordenação por existência de produtos com falta de requisitos, p. e p. pelos art.º 58.º, n.º 1 al.ª a) e 2, 56.º e 82.º, n.º 2 al.ª d), do mesmo Decreto-Lei n.º, pela qual não se fixa pena uma vez que os arguidos já procederam ao seu pagamento pelo valor mínimo, após notificação para esse efeito por parte da autoridade administrativa competente (cfr. ponto 20 dos factos provados), pelo que se encontra a respectiva situação punitiva definida nesses termos (art.º 50.º-A, do Regime Geral das Contra-Ordenações, "ex vi" art.º 1.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 24/84).
3.º
Não reformular o cúmulo jurídico de coimas aplicadas à arguida A pela prática de contra-ordenações em que foi condenada na sentença recorrida com a pena de multa agora aplicada pela prática do crime descrito em 1.º B), pelo que a pena de multa de 1 800 € agora aplicada em 1.º B) tem cumprimento autónomo em relação à coima única de 2 000 € já aplicada pelo tribunal "a quo", ou seja, somam-se materialmente.
4.º
Manter no mais a decisão recorrida.
5.º
Não é devida tributação (art.º 522.º, do Código de Processo Penal).
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Évora, 26-02-2013
(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)
João Martinho de Sousa Cardoso
Ana Maria Barata de Brito (com declaração de voto)
Voto a decisão, excepto na parte seguinte, em que fiquei vencida:
Tendo sido os arguidos (parcialmente) absolvidos na 1ª instância, e tendo este tribunal da Relação, na procedência do recurso, procedido à alteração da matéria de facto de modo a concluir pela sua (total) condenação, impunha-se assegurar as garantias e os direitos de defesa.
Nestes se incluem o direito ao recurso (com tutela constitucional no que respeita ao arguido - art. 32º, nº1 da CRP), com a consequente e oportuna possibilidade de reapreciação da medida da pena por uma instância superior.
Também na leitura do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (e embora o direito ao recurso não resulte do disposto no art. 6º da Convenção), devem os recursos obedecer às regras mínimas exigíveis a um processo equitativo, encontrando-se o duplo grau de jurisdição em matéria penal consagrado no art. 2º do protocolo nº7, de 1984.
Revestindo a questão da determinação da sanção autonomia processual (arts 469º n.º 2 e 470º do Código de Processo Penal) e, sobretudo, porque materialmente assim o exigiria a garantia do duplo grau de jurisdição (art. 32 nº 1 da CRP), deveriam os autos ter baixado antes à 1ª instância, a fim de ali ser proferida decisão sobre a pena.
Ao ter optado pela posição que fez vencimento, a Relação funcionou, quanto à pena, como tribunal da primeira e da última condenação simultaneamente, ou seja, como tribunal da única condenação, o que desrespeita o duplo grau de jurisdição em matéria penal.
Mesmo que os autos contenham já todos os elementos (factos) necessários para a decisão sobre a pena, a questão permanece, pois do que se trata não é de uma suficiência ou insuficiência da matéria de facto para a decisão, mas da garantia do duplo grau de jurisdição.
Fernando Ribeiro Cardoso (Presidente da Secção Criminal)
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[1] A ausência de antecedentes criminais, mesmo que entendida no sentido de bom comportamento anterior, «tem escassa relevância quando esse bom comportamento não é superior ao comum e normal nas pessoas da classe do agente da infracção em idênticas condições de vida e de cultura» – acórdão do STJ, de 4-7-1984, Boletim do Ministério da Justiça n.º 339-223.