PRESUNÇÃO DE CULPA
NEGLIGÊNCIA
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
CONDUÇÃO PERIGOSA
Sumário


I – Não obstante a violação de uma regra de trânsito faça presumir a culpa no acidente e no resultado deste, essa presunção não é absoluta, mas sim ilidível.
II – A culpa fica, então, afastada, se ocorreram circunstâncias excepcionais que tornam que não fosse exigível que, perante a situação, a arguida, como condutora, adoptasse comportamento distinto.

Texto Integral


Processo n.º 93/11.5GDFAR.E1
Reg. N.º 568

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a 1ª secção criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório
1 - No âmbito dos autos de Instrução n.º 93/11.5GDFAR, do 2º Juízo de Competência Criminal, do Tribunal da Comarca de Loulé, foi proferido despacho que decidiu não pronunciar a arguida, A, pela prática do crime de homicídio por negligência p. e p. no artigo 137.°, n.º 2 do Código Penal e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. no artigo 291.° al. b) in fine, do Código Penal, por não terem sido recolhidos elementos suficientes que permitem fundar uma probabilidade razoável de vir a ter lugar a condenação da arguida em audiência de julgamento, quanto aos crimes que lhe eram imputados, apenas, pelo assistente.

2 - O assistente, B, inconformado, interpôs recurso dessa decisão instrutória que não pronunciou a mencionado arguida.
Conluiem da seguinte forma:
I - Com o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo valorou erradamente a prova indiciária realizada quer no inquérito, quer em instrução, já que a mesma imporia um despacho de pronúncia.
II - O despacho de não pronúncia é contraditório, pois refere que “Ponderada a prova produzida, dela resultam indícios suficientes dos seguintes factos”: Dando-se aqui como correctos os pontos 1, 2, 3 e 4, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
III – No entanto, em relação ao ponto 5, 6 e 7 refere “5. Quando descrevia com o veículo que conduzia a referida curva, para a direita, a arguida A apercebeu-se que no sentido contrário circulava o cic1omotor conduzido por C, e que este o fazia na via de trânsito destinada à circulação da viatura em que seguia a arguida. 6. Por tal motivo, a arguida A, ainda na referida curva, e com o propósito de evitar o ciclomotor, invadiu com o veículo que conduzia a via de trânsito destinada à circulação em sentido contrário. 7. Por seu turno, C, ao aperceber-se da presença naquela curva da viatura conduzida pela arguida, direccionou de novo o ciclomotor que conduzia para a via de trânsito destinada à sua circulação, de modo a retomar a sua mão de trânsito.”. Ora o douto despacho dá como provados estes indícios apenas pelas declarações da arguida, que declarou no seu interesse, ignorando o relatório da autópsia e relatório pericial, vejamos efectivamente o que está nos autos:
IV - Assim, resulta do Relatório de Autópsia a fls. 151 e 162 dos autos, que C foi abalroado por uma viatura automóvel conduzida pela A e deste abalroamento resultou a sua morte. Conclui-se do resultado da autópsia ao cadáver que a morte resultou das lesões traumáticas sofridas no abalroamento no acidente de viação e causaram o seu falecimento, sendo a vítima um condutor calmo, responsável e respeitador das regras de condução e sinalética rodoviária há já 30 anos, acresce o facto de ser conhecedor da estrada que seguia já que a utilizava, frequentemente, há muitos anos.
V - Face ao vertido nos pontos 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18, saliente-se que as marcas de travagem e de raspagem existentes no asfalto, os sinais de sangue de C, o local em que ficou imobilizado, os sinais existentes nos veículos, todos apontam para o embate do lado esquerdo da via, considerando a marcha do veículo ligeiro conforme resulta das imagens colhidas no local e dos croquis elaborados pela investigação policial e plasmada no Relatório de reconstituição do acidente, conforme fotos de fls. 126,127,133 e análise de trajectórias a fls. 72 e 96 dos autos.
VI – Ora, o Relatório pericial conclui " ... terá sido o veículo da arguida a invadir a faixa de rodagem destinada ao sentido contrário ..." "... pelo que o embate se deu na faixa de rodagem onde circulava o ciclomotor ... , e não entre as duas faixas de rodagem, como refere a arguida."
VII - Conforme resulta do exame directo ao local por reconstituição do acidente levado a cabo pelo órgão de polícia criminal, é convicção do inquiridor, e o requerente está disso convicto, que o local de embate se terá produzido totalmente na via de trânsito do ciclomotor, ou seja, na via onde circulava C, por negligência da arguida, considerando improvável que ambos os veículos circularem fora de mão e que, quando se avistaram, ao tentarem corrigir a trajectória, deu-se o embate" (conforme fundamentação constante da Conclusão da fase de Inquérito a fls.169 dos autos), Tal hipótese não seria possível pois que "a via em que o ciclomotor seguia para o seu sentido de marcha é a subir o que devido a impossibilidade de velocidades elevadas não seria lógico o trajecto de "corte" de curva" (segundo relatório do exame directo ao local a fls. 143), nem a conjugação das marcas existentes no asfalto com o local de embate levam em tal sentido e antes demonstram "que a condutora do veículo de passageiros, ao entrar na curva para a sua direita terá invadido a via de trânsito do sentido oposto" (segundo relatório do exame directo ao local, a fls. 143), embatendo na vítima que veio a falecer logo depois, cerca de duas horas após o acidente, no interior da ambulância no trajecto do local do acidente para o Hospital
VIII – É o próprio despacho que admite que “20. Em consequência da colisão, o ciclomotor conduzido por C foi projectado, até junto de uma das bermas da faixa de rodagem.” Reconhece que foi a conduta negligente e a condução perigosa da condutora arguida que vitimou mortalmente C, veja-se “21. Em consequência directa e necessária do embate, C foi projectado para o pavimento, e sofreu lesões traumáticas cranianas, raquídeas e medulares, e fracturas múltiplas com choque hemorrágico e traumático. “22. C veio a falecer no dia 19 de Março de 2011, em consequência directa e necessária daquelas lesões. 23. A arguida conhecia as regras de circulação rodoviária, nomeadamente a obrigação de circular pelo lado direito da faixa de rodagem “.
IX – Mais uma vez o douto despacho reconhece a violação do código da Estrada por parte da arguida. Vejam V. Exas. “ Tendo-se ainda em linha de conta o relatório de autópsia e o assento de óbito. o que se concluir dos factos indiciados. Reconhece-se que, efectivamente, eles evidenciam que a arguida violou uma regra de trânsito, precisamente a que impõe que a circulação se faça pelo lado direito da faixa de rodagem (art. 13°, n" 1, do Cód. da Estrada). E, como se sabe, a infracção de uma regra de trânsito faz presumir a culpa.” Continuando o douto despacho “Mas tal presunção não é absoluta, podendo dar-se o caso de circunstâncias excepcionais arredarem essa culpa, por não ser exigível que perante as circunstâncias do caso o condutor assumisse comportamento diverso. “”… o que deles se extrai é que a arguida invadiu a via de trânsito que se deparava à sua esquerda precisamente por ter avistado o ciclomotor conduzido pela vítima na via que era destinada à circulação da arguida, ou seja, por motivo de também a vítima ter infringido uma regra de circulação rodoviária, e que o propósito da arguida foi para isso o de evitar a intercepção com o ciclomotor.” Foi exactamente pela violação das regras que se deu o acidente e em consequência a morte de uma pessoa, o dever do condutor até porque estava numa recta com visibilidade e a velocidade de ambos era reduzida, simplesmente reduzia a velocidade e encostava-se à direita e não evadir a faixa de rodagem contrária, cumprindo as regras do artigo 13º e 14º do Código da Estrada, saliente-se que o ciclomotor não tem mais de 50cm e que a via tem 5 m sem contar com a berma.
X - Face às provas carreadas para os autos e que se nos afigura até mais credível foi que a condutora do veículo ligeiro não fez a curva da estrada à direita e seguiu em frente, ou seja, evadiu a faixa contrária onde circulava o ciclomotor na sua mão pois na verdade o relatório pericial demonstra que o embate foi no centro da faixa de contrária onde circulava o ciclomotor e junto à curva onde vinha o veículo ligeiro contrariando a versão dada pela arguida, ou seja, que teria sido no limite das duas faixas de rodagens (eixo da via) e mais à frente, isto no sentido de se livrar das culpas. Aliás não ficou provado que o ciclomotor circulava fora de mão já que o embate foi no centro da sua faixa de rodagem já em relação à arguida a mesma confessou que circulava fora de mão quanto à justificação não é minimamente credível, nem tão pouco a poderia inibir da prática da prática dos crimes de que vem indiciada.
XI - Ao contrário do que vem vertido no douto despacho de não pronúncia, vislumbramos assim, nos factos indiciados, que num futuro julgamento, será provada a culpa e a censurabilidade do comportamento estradal da arguida que com o mesmo tenha concorrido para a ocorrência do embate e a morte do sinistrado. Verifica-se indubitavelmente a verificação de lesão do bem jurídico vida de C, conforme relatório de autópsia, a causa da morte tem por base a conduta da arguida, encontra-se preenchido o requisito objetivo do crime de homicídio por negligência, p. e p. no artigo 137º do Cód. Penal, atente-se nos autos de exame direto ao local e autos de reconstituição do acidente, que se transcreve: "... se conclui que terá sido o veículo da arguida a invadir a faixa de rodagem destinada ao trânsito de sentido contrário, pelo que o embate se deu na faixa de rodagem onde circulava o ciclomotor ... ",
XII – Estão igualmente preenchidos os requisitos subjetivos do crime de homicídio por negligência, está subjacente ao acidente de viação que vitimou mortalmente C, a violação grosseira do dever de cuidado que a arguida in casu, tinha de respeitar, pois sabe a mesma que violou uma regra estradal prevista nos artigos 13º e 14º , do Código da Estrada e que consiste na obrigatoriedade de circular pela faixa de rodagem da direita.
XIII - É neste sentido que se inclina a jurisprudência: " ACSTJ de 02-07-2008 - 111 - Assim, em sede de acidentes rodoviários, a imputação de um tipo de crime negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emergirá ou daquela fonte das regras de experiência comum, ou da violação das normas do Cód. da Estrada, ou da violação de ambas. Estamos inteiramente de acordo com a tese defendida por este STJ de que, tendo existido uma violação das normas estradais, se o evento produzido foi do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, se deve presumir a negligência." O comportamento da arguida foi, portanto, claramente, violador do dever (objectivo e subjectivo) de cuidado e, por isso, negligente.
XIV - Não se duvidará de que essa conduta foi uma condição “sine qua non” do evento, ou seja, que existe uma relação de causalidade, neste sentido, entre uma e outra. Que, “ex ante” e naquelas circunstâncias (ou seja, pela evasão da faixa de rodagem contrária ao seu sentido de marcha), era previsível que o condutor pudesse embater em qualquer viatura que aí pudesse circular e que daí resultasse a morte da vítima, é conclusão que nos parece evidente. A arguida, com este comportamento, incrementou claramente, para além dos limites socialmente aceitáveis, o perigo para a integridade física e para a vida da vítima. Se a arguida tivesse conduzido de acordo com as regras impostas pelo Código da Estrada o embate não teria, seguramente, acontecido. Daí que não se possa duvidar de que o resultado morte é imputável à conduta do agente e, portanto, que a arguida é responsável pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo n.º 1 do artigo 137.
XV - In casu, houve violação grosseira das regras de circulação rodoviária, p. e p. no art. 291º do Cód Penal, dada a constatação probatória dos factos atinentes à invasão, por parte da arguida, da via de trânsito de sentido contrário à sua, indo colidir com o motociclo conduzido por C, causando-lhe a morte pelos ferimentos resultantes da colisão, conforme autos de exame directo ao local, auto de reconstituição do acidente e relatório de autópsia. Este crime de perigo concreto é caracterizado pela exigência de verificação de um concreto pôr-em-perigo, face à previsão no tipo de ilícito da criação de perigo para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
XVI – Deverá a arguida ser pronunciada por um crime de homicídio por negligência p. e p. no artigo 137.°, N.º 2 do Código Penal e por um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. no artigo 291.°, al. b), in fine, do Código Penal.
Normas violadas: artigo 13º e 14º do Código da Estrada, artigos 137º, n.º 2 e 291º, al. b), do Código Penal.
Termos em que, e pelo mais que V. Ex.as mui doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, verificados que sejam os pontos elencados, deverá ser revogado o douto Despacho de não pronuncia que ora se impugna, e substituído por despacho de pronúncia, fazendo correcta apreciação e valoração da prova produzida, pronunciando a arguida A pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. no artigo 137.°, n.º 2 do Código Penal e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. no artigo 291.°, al. b), in fine, do Código Penal. Assim, se fará a devida JUSTIÇA!”

3 - O recurso foi admitidos, após cumprido o art. 411º n.º 6, do C.P.P., e o MºPº ter apresentado a sua resposta, onde, conclui:
I. “ O douto despacho de não pronúncia fez uma criteriosa e justa análise dos indícios recolhidos em inquérito e em sede de instrução, e aplicou correctamente o direito aos factos.
II. Na verdade, face aos elementos coligidos nos autos, outra não poderia ter sido a decisão instrutória.
III. O Mm.º Juiz considerou que a invasão da faixa de rodagem de sentido contrário por parte da arguida se deveu a uma tentativa – frustrada – por parte desta, de evitar o trágico acidente, e que esta violação de regra estradal, atentas as circunstâncias em que ocorreu, afasta a presunção de culpa (presunção ilidível).
IV. Assim, e tendo em conta a prova carreada para os autos, e a versão da arguida apresentada, que não é contrariada, com suficiência, bem andou o Mm.º Juiz de Instrução ao considerar que o comportamento estradal da arguida não é censurável, face às circunstâncias do mesmo, não sendo igualmente culposo, não obstante ter concorrido para a ocorrência do embate e morte do sinistrado.
V. Mais considerou não terem sido recolhidos elementos suficientes que permitem fundar uma probabilidade razoável de vir a ter lugar a condenação da arguida em audiência de julgamento, quanto aos crimes que lhe vêm imputados.
VI. Bem andou o Mm.º Juiz ao proferir douto despacho de não pronúncia, que não merece qualquer censura.
Termos em que deve ser negado provimento ao mesmo, mantendo-se, na integra, a douta decisão de não pronúncia.
Vossas Excelências, porém, decidindo farão, como sempre, JUSTIÇA”

4 - O Digno Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal de recurso, emitiu douto parecer concluindo pela improcedência do recurso, pelos motivos constantes da resposta ao mesmo, para a qual remete.

5 - Foi cumprido o disposto no art. 417º n.º 2, do C.P.P. O assistente apresentou resposta ao parecer do MP, na qual mantém, no essencial, o que já havia referido na sua motivação de recurso, pretendendo

6 - Foram colhidos os vistos legais.


II - Fundamentação
2.1 - O teor do despacho recorrido, na parte que interessa, é o seguinte: “ (…)
Ponderada a prova produzida, dela resultam indícios suficientes dos seguintes factos:
1. No dia 19 de Março de 2011, pouco antes das 16h 20m, B conduzia o ciclomotor da marca Macal, modelo M83 Sport, e matrícula 55-GF-08, pela Estrada Nacional 2, na zona do Ameixial, concelho de Loulé, no sentido Almodôvar – Ameixial, ou seja, no sentido Norte-Sul.
2. Naquele dia, e àquela hora, a arguida A conduzia o automóvel ligeiro de passageiros da marca Volkswagen, modelo Pólo Van, e matrícula 10-88-LT, fazendo-o também na Estrada Nacional 2, na zona do Ameixial, mas no sentido contrário àquele em que seguia o referido C, ou seja, no sentido Ameixial – Almodôvar.
3. Considerando o sentido de marcha em que seguia a arguida A, ao aproximar-se do Km 683,7 da referida estrada, a faixa de rodagem era composta por uma curva aberta com boa visibilidade, para a direita, seguida de uma recta.
4. A arguida A circulava então a velocidade não concretamente apurada, mas compreendida entre os 60 e os 75 Kms/hora.
5. Quando descrevia com o veículo que conduzia a referida curva, para a direita, a arguida A apercebeu-se que no sentido contrário circulava o ciclomotor conduzido por C, e que este o fazia na via de trânsito destinada à circulação da viatura em que seguia a arguida.
6. Por tal motivo, a arguida A, ainda na referida curva, e com o propósito de evitar o ciclomotor, invadiu com o veículo que conduzia a via de trânsito destinada à circulação em sentido contrário.
7. Por seu turno, C, ao aperceber-se da presença naquela curva da viatura conduzida pela arguida, direccionou de novo o ciclomotor que conduzia para a via de trânsito destinada à sua circulação, de modo a retomar a sua mão de trânsito.
8. Não obstante a arguida A ainda tenha accionado o mecanismo de travagem do automóvel de matrícula 10-88-LT, ao Km 683,7 da referida EN 2 o veículo que tripulava embateu com a parte frontal direita no ciclomotor conduzido pelo C.
9. O embate ocorreu na via de trânsito destinada à circulação do ciclomotor conduzido por C, onde este já se encontrava.
10. Naquele dia e àquela hora, não chovia no local por onde circulavam ambas as viaturas.
11. A via era em pavimento betuminoso, e a faixa de rodagem possuía uma largura de 5 metros, constituída por duas vias de trânsito, cada qual destinada à circulação no sentido oposto à da outra.
12. As vias de trânsito encontravam-se delimitadas, no piso, por uma linha descontínua, e cada uma dessas vias tinha uma largura de 2,50 metros.
13. Ambas as bermas da faixa de rodagem eram pavimentadas.
14. A velocidade máxima de circulação permitida no local era de 90 Kms/hora.
15. No local do embate a estrada configurava-se como uma recta.
16. A arguida, ao se aperceber da iminência da colisão, ainda accionou o mecanismo de travagem da viatura que conduzia, antes do embate.
17. Sendo que, as rodas deste veículo, ao bloquearem, deixaram no pavimento um rasto de travagem rectilíneo com cerca de 24,20 metros, constituídos por resíduos da borracha dos pneus, que ficaram no pavimento.
18. Esse rasto de travagem estendeu-se por cerca de 11 metros até ao local do embate de ambos os veículos.
19. Atento o sentido de marcha em que seguia o veículo conduzido pela arguida A, a via apresentava-se com uma ligeira inclinação descendente.
20. Em consequência da colisão, o ciclomotor conduzido por C foi projectado, até junto de uma das bermas da faixa de rodagem.
21. Em consequência directa e necessária do embate, C foi projectado para o pavimento, e sofreu lesões traumáticas cranianas, raquídeas e medulares, e facturas múltiplas com choque hemorrágico e traumático.
22. C veio a falecer no dia 19 de Março de 2011, em consequência directa e necessária daquelas lesões.
23. A arguida conhecia as regras de circulação rodoviária, nomeadamente a obrigação de circular pelo lado direito da faixa de rodagem
Tais indícios sustentam-se na conjugação da participação do acidente de viação, com o auto de exame directo ao local, o auto de reconstituição do acidente, o relatório de cálculo de velocidades, o relatório fotográfico do local onde se verificou o acidente de viação, valorando-se ainda as declarações prestadas pela arguida na parte em que a restante prova não as logrou infirmar e que, aliás, constituem a única explicação plausível para a súbita mudança de via de trânsito de que dá conta a factualidade indiciada.
Ou seja, dado que a restante prova não as infirma, impõe-se considerar positivamente que o motivo pelo qual a arguida efectuou tal manobra foi o avistamento do ciclomotor conduzido pela vítima na via de trânsito destinada à circulação da arguida. Mais ainda, dado que o embate terá ocorrido na via de trânsito destinada à circulação do ciclomotor, e tal como aliás sustenta o relatório final efectuado pela GNR, indícios há assim também de que a vítima procedeu também ela à alteração da sua trajectória antes do embate.
Aliás, num caso em que não existem testemunhas oculares do acidente e das circunstâncias que rodearam a colisão, mesmo a dúvida acerca da realidade desse facto, que a arguida trouxe aos autos (o motivo pelo qual mudou de via de trânsito), não pode deixar de ser valorada a favor da arguida.
Atente-se que, neste aspecto, o próprio relatório final lavrado pela GNR admite precisamente a possibilidade de ambas as viaturas terem corrigido as suas trajectórias com vista a evitar o embate
Tendo-se ainda em linha de conta o relatório de autópsia e o assento de óbito.
O que concluir dos factos indiciados.
Reconhece-se que, efectivamente, eles evidenciam que a arguida violou uma regra de trânsito, precisamente a que impõe que a circulação se faça pelo lado direito da faixa de rodagem (art. 13º, nº 1, do Cód. da Estrada).
E, como se sabe, a infracção de uma regra de trânsito faz presumir a culpa.
Mas tal presunção não é absoluta, podendo dar-se o caso de circunstâncias excepcionais arredarem essa culpa, por não ser exigível que perante as circunstâncias do caso o condutor assumisse comportamento diverso.
Afigura-se que o que se extrai da factualidade indiciada é precisamente isso.
Em suma, o que deles se extrai é que a arguida invadiu a via de trânsito que se deparava à sua esquerda precisamente por ter avistado o ciclomotor conduzido pela vítima na via que era destinada à circulação da arguida, ou seja, por motivo de também a vítima ter infringido uma regra de circulação rodoviária, e que o propósito da arguida foi para isso o de evitar a intercepção com o ciclomotor.
Não vislumbramos assim, nos factos indiciados, que num futuro julgamento, a manter-se esta prova possa ser assacada à arguida a culpa e censurabilidade do seu comportamento estradal, não obstante o mesmo tenha concorrido para a ocorrência do embate e a morte do sinistrado.
O mesmo se diga a respeito do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, nº 1, al. b), do Cód. Penal, dado que a violação da referida regra de trânsito, por banda da arguida, indicia-se, foi também determinada pela violação de uma regra estradal por parte da vítima.
Do que de tudo se conclui, pelos motivos expostos, por não terem sido recolhidos elementos suficientes que permitem fundar uma probabilidade razoável de vir a ter lugar a condenação da arguida em audiência de julgamento, quanto aos crimes que lhe vêm imputados.
Deverá, assim, ser proferido despacho de não pronúncia.
Pelo exposto:
- Decido não pronunciar a arguida A, quanto à prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº 2, do Cód. Penal, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291º, nº 1, al. b), do Cód. Penal.
Sem custas.“.

2.2 - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respectiva motivação, nos termos preceituados nos arts. 403º, n.º 1 e 412º n.º 1, ambos do C.P.P., sem embargo do conhecimento doutras questões que deva ser conhecida oficiosamente. São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.
Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido pois destinam-se a permitir que o tribunal conhecer, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos.
E, sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), às quais o tribunal se deve restringir, não basta que na motivação se indique, de forma genérica, a pretensão da recorrente pois a lei impõe a indicação especificada de fundamentos do recurso, nas conclusões, para que o tribunal conheça, com precisão, as razões da discordância em relação à decisão recorrida.
Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.
Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.
As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal.
Constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão

2.3 - O objecto do recurso está limitado, portanto, às questões vertidas nas conclusões das motivações de recurso. A questão fulcral equacionada, pelo recorrente, respeita à existência, de indícios, suficientes, que permitam imputar à arguida, contrariamente ao entendimento do tribunal a quo” valorou erradamente a prova indiciária realizada quer em sede de inquérito quer em sede de instrução, já que na opinião do recorrente, a mesma imporia um despacho de pronúncia.
Mais entende que o despacho de não pronúncia é contraditório, ao dar como provado que a arguida invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, mas entender que tal comportamento não consubstancia a prática dos crimes de homicídio negligente e de condução perigosa de veículo rodoviário.

2.4 - Análise do objecto dos recursos
2.4.1 - Tendo em consideração o objecto do processo, tal como, já afirmado, importa decidir se dos autos resultam, ou não, factos suficientemente indiciados, integradores dos crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 2 do CP, e de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291º, n.º 1 al. b) do CP., imputados, apenas, pelo assistente à arguida, após prolação de despacho de arquivamento, pelo MºPº.
Importa decidir se existem ou não, nestes autos, indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena, ponderados, para o efeito, todos elementos de prova dos autos.
Mais concretamente, está em causa a questão de saber se estão ou não reunidos no processo e nos termos da lei, todos os indícios suficientes de que a mencionada arguida cometeu o crime de homicídio por negligência e condução perigosa de veículo rodoviário.
Há que concretizar, desde logo, o conteúdo do critério normativo visado no artigo 283°, n.º l do Cód. Proc. Penal, aplicável ex vi do artigo 308°, n.º 1 do mesmo diploma.
Deste último preceito legal decorre que a suficiência de indícios, basta a possibilidade razoável de aplicação ao arguido de uma sanção penal em sede de julgamento, aferida em função dos elementos recolhidos nos autos, para que se verifique a indiciação suficiente exigida na lei, e de que depende a decisão de pronúncia.
Como se refere no Ac. da R.C. de 03/03/93, In C.I., Tomo II, p. 65, "por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido o responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo, persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado" (sublinhados nossos).
Pode ainda ler-se no acórdão da Relação de Coimbra, supra indicado, que "os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição" (sublinhados nossos).
Importa, pois, salientar, como faz Germano Marques da Silva, In Curso de Processo Penal, V II, 1994, p. 182, que "nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão-só indícios, sinais, de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual, quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento" (sublinhado nosso).
Isto é, se deve ser mantido ou revogado o despacho de não pronúncia constante dos autos.
O que está em causa é a decisão de submeter ou não a arguida a julgamento, atenta a prova indiciária constante dos autos, pela prática do referenciado crime.
A este respeito, o Código de Processo Penal, no seu citado artigo 283° n° 2, diz-nos que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de aos arguidos vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
No despacho recorrido foram discriminados os factos que estão indiciados suficientemente, conforme consta do ponto 2.1, aqui dado por reproduzido.
Portanto, é inquestionável, que a prova carrada para os autos e analisada no despacho de não pronúncia permite, dar como suficientemente indiciado, os factos vertidos nos pontos n.º 1 a 4 e 8 a 23 do despacho de não pronúncia.
Os mesmos resultaram dos elementos probatórios carreados para os autos, designadamente, da “conjugação da participação do acidente de viação, com o auto de exame directo ao local, o auto de reconstituição do acidente, o relatório de cálculo de velocidades, o relatório fotográfico do local onde se verificou o acidente de viação, valorando-se ainda as declarações prestadas pela arguida na parte em que a restante prova não as logrou infirmar e que, aliás, constituem a única explicação plausível para a súbita mudança de via de trânsito”
Contudo, a factualidade indiciada relatada nos pontos n.º 5 a 7, daquele mesmo despacho de não pronúncia, foram questionados, pelo assistente/recorrente.
Vejamos se os mesmos têm suporte probatório suficientemente justificado!
Do auto de exame directo ao local, com reconstituição do acidente, e relatório de cálculo das velocidades, conclui-se que terá sido o veículo da arguida a invadir a faixa de rodagem destinada ao trânsito de sentido contrário, pelo que o embate se deu na faixa de rodagem onde circulava o ciclomotor conduzido pela vítima, e não entre as duas faixas de rodagem, como era referido - Vide croqui de fls. 22 -.
Abre-se, ainda, a hipótese de ambos os veículos circularem fora de mão, e que, quando se avistaram, ao tentarem corrigir a trajectória, deu-se o embate. Conclui que a arguida circulava a uma velocidade que se situa entre os 62,28 km/h e os 73,31 Km/h. Mais informa que no local a velocidade máxima permitida são 90 km/h
A arguida, ouvida em sede de inquérito e instrução, refere que circulava na EN2 e que ao passar a localidade de Ameixal (sentido Mértola), ao descrever uma curva para a direita, deparou-se com um ciclomotor na sua mão de trânsito, tendo tentado desviar-se para a esquerda a fim de evitar colidir com o mesmo, não conseguindo evitar a colisão lateral com o referido ciclomotor, o qual embateu no seu veículo na parte lateral direita, na zona da frente. Que não se considera culpada do acidente.
Não existem quaisquer testemunhas que tivessem assistido ao acidente em análise, nem às circunstâncias em que o mesmo ocorreu.
Os relatórios fotográfico e o final, juntos a fls. 123 a 139 e 140 a 143, contribuíram, para a consolidação de algumas das questões equacionadas, nomeadamente, configuração do local - recta com boa visibilidade, antecedida por uma curva aberta para a direita, com visibilidade e com ligeira inclinação descendente, atento o sentido de marcha do veículo 10-88-LT, conduzido pela arguida e demais configurações físicas do local descritas nos pontos n.ºs. 3, 11 a 15, da matéria de facto suficientemente indiciada -; estado do pavimento - regular não possuindo obras em execução -; o local do embate, baseada em elementos objectivos e concretos, entre eles, os vestígios na faixa de rodagem contrária ao sentido de marcha da arguida – rastos de travagem do veículo tripulado pela arguida, descritos nos pontos n.ºs. 17 e 18, dos factos dados por indiciados, os sulcos no pavimento provocados pelas partes duras do veículo ciclomotor 55-GF-08 -; danos provocados no veículo 10-88-LT, nomeadamente, frente lateral direita e coluna direita, onde, na foto n.º 28, junta a fls. 137, se verifica o impacto por parte do ciclomotor ou do seu condutor, na coluna direita do veículo.
Contudo, no que concerne a razão pela qual a arguida mudou de direcção para a faixa de rodagem contrária, não se descortinam elementos objectivos concretos esclarecedores, nesses elementos probatórios.
Assim, a questão básica do presente recurso, referente ao motivo pelo qual a arguida efectuou a manobra de mudança de direcção para a faixa de rodagem contrária à do seu sentido de marcha, não foi esclarecido, para além das explicações, verosímeis, vertidas, sobre esse ponto, nas declarações prestadas pela arguida, as quais, consequentemente, não foram infirmadas.
Esse motivo é relatado nos aludidos pontos 5 a 7, da matéria de facto, dada por suficientemente indiciada, no despacho recorrido.
A arguida, sempre, afirmou que efectuou a aludida manobra de mudança de direcção para a faixa da esquerda, por o ciclomotor conduzido pela vítima circular na via de trânsito destinada à circulação da arguida, pretendendo, assim, evitar a colisão, com o mesmo, não conseguindo evitar o embate lateral com o referido ciclomotor, o qual colidiu no seu veículo, na parte lateral direita, na zona da frente.
Portanto, atendendo a que, as restantes provas não refutam as declarações da arguida, faz todo o sentido, atentos os princípios da lógica e da experiência comum, o entendimento do tribunal “a quo”, vertido naqueles pontos nºs 5 a 7, que são de manter, porquanto, “impõe-se considerar positivamente que o motivo pelo qual a arguida efectuou tal manobra foi o avistamento do ciclomotor conduzido pela vítima na via de trânsito destinada à circulação da arguida. Mais ainda, dado que o embate terá ocorrido na via de trânsito destinada à circulação do ciclomotor, e tal como aliás sustenta o relatório final efectuado pela GNR, indícios há assim também de que a vítima procedeu também ela à alteração da sua trajectória antes do embate.”.
Concluindo, não vislumbramos, que o tribunal “a quo”, face à prova indiciária produzida, tenha ocorrido num erro de apreciação, contrário à lógica e à experiência comum, nem do texto do despacho de não pronúncia se descortina a sua existência ou a de contradições ou posições ou decisões antagónicas e inconciliáveis, atendendo aos fundamentos e argumentos supra expressos.
O assistente/recorrente, carece, nesta parte, de razão
2.4.2 - Analisados os indícios suficientes, de seguida, falar-se-á, uma análise, ainda que sucinta, dos pressupostos legais desses tipos de crimes pelos quais não foi pronunciada a arguida.
No Código Penal, o crime de o homicídio negligente está tipificado no art. 137º da versão revista.
Prescreve este art. 137º, no seu n.º 1:
“Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Acrescenta o n.º 2:
“Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos”.
Verificar-se-ão estes requisitos nos caso sub judice?
Será que a morte, de B, em causa nos autos foi causada por um acto negligente censurável ético-juridicamente à arguida?
A negligência traduz-se, como é sabido, na omissão ou violação (por acção ou por omissão) dos deveres de diligência e cuidado a que o agente estava obrigado e de que era capaz segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos e capacidades pessoais (artigo 15º do Código Penal).
A negligência, como referia Eduardo Correia (Eduardo Correia, in Direito Criminal I, Reimpressão de 1968, p. 421), é, antes de mais, “a omissão de um dever jurídico de cuidado ou diligência”. Mas, acrescentava o referido autor: “a omissão do dever objectivo de cuidado, adequado a evitar a realização do tipo legal de crime, não justifica só por si, efectivamente, a censura a título de negligência. É ainda necessário que o agente possa ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever ou de prever correctamente a realização do tipo legal de crime”.
Assim e atento o disposto no art. 15º do C. Penal, a negligência traduzir-se-á na omissão ou violação (quer por acção, quer por omissão) dos deveres de diligência e cuidado a que um agente está obrigado e de que é capaz, tendo em conta as circunstâncias do caso, os seus conhecimentos e capacidades pessoais.
Tal como acontece quanto aos crimes dolosos, também nos crimes negligentes existe uma acção (ou omissão) típica, ilícita, e culposa (neste sentido, Tereza Beleza, in Direito Penal, 2º Vol., p. 571 e ss.).
É na sequência deste entendimento que, quanto ao homicídio negligente, Simas Santos e Leal Henriques (in Código Penal de 1982, 2º Vol., p. 60 e ss.), referem como seus elementos “a conduta humana (acção ou omissão), infracção do dever objectivo de cuidado, possibilidade de imputação objectiva do resultado (a morte) à conduta contrária ao dever, ausência de causa de justificação da conduta e autor imputável e com as faculdades, conhecimento e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objectivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido”.
Como já se disse supra, segundo o artigo 15º do C. Penal, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização;
b) Não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
No que respeita ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, imputado ao arguido/recorrente, mostra-se previsto e punido, no art.º 291º, n.º1, al a) e 2 do Código Penal.
Este preceito legal estabelece:
“1. Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada.
a) Não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguês ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva, ou
b) violando grosseiramente as regras de circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3 - Se a conduta referida no n.º 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
Com a previsão e punição deste tipo de crime (atenta a data do comprovado cometimento dos factos, há que atender à redacção que foi introduzida no preceito pelo art. único da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho), pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar assustadoramente no nosso país nos últimos anos, punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado (cfr. Paula Ribeiro de Faria, no «Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial», Tomo II, 1999, p. 1079 e segs.; Germano Marques da Silva, «Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança», 1996, p. 14 e segs. e vd. Actas, 1993, acta n.º 249/art. 286; por mais recentes e impressivos, vejam-se ainda os Acórdãos, da Relação do Porto, de 26-2-2003, Proc. 0210769/Des. Borges Martins, e de 3-11-2004, Proc. 0344755/Des. Conceição Gomes e, da Relação de Lisboa, de 19-10-2003, Proc. 10201/2003-5/Des. Simões de Carvalho, em www.dgsi.pt).
O preenchimento do tipo legal, da al. a) do n.º 1, verificado no caso concreto, mostra-se necessário, que alguém conduza um veículo rodoviário, que o mesmo não esteja em condições de circular em segurança em virtude de se encontrar em estado de embriaguez, e que da respectiva conduta resulte um efectivo perigo para a vida, integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Estamos, assim, perante um crime de perigo, a saber, um crime de perigo concreto, onde tem de existir um objecto de perigo, ou seja, determinados bens jurídicos em relação aos quais se possa verificar uma enorme possibilidade de lesão, a saber, o perigo. Do mesmo modo, tem de verificar-se um nexo de causalidade entre o perigo e a conduta do agente, ou seja, a lesão não poderá ocorrer por força de circunstâncias inesperadas.
O mencionado crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. no art. 291º do Cód. Penal, é um crime de perigo concreto e, como tal, para o preenchimento do seu tipo objectivo, tem de haver uma verificação de um resultado de perigo, não bastando a consideração de que a conduta é, em geral, susceptível de causar uma grande potencialidade de lesão de bens jurídicos.
É a necessidade da verificação desse perigo concreto que distingue este tipo legal de crime do previsto e punido no art. 292º, do mesmo compêndio substantivo. Neste último, a verificação do perigo concreto é indiferente, tendo-se bastado a lei com a perigosidade abstracta da conduta que se deixa antever a partir de determinados níveis de álcool no sangue.
No que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, “de acordo com o n.º 1 do art. 291º, é necessário o dolo relativamente a todos os elementos do tipo legal objectivo, incluindo, por conseguinte, a criação de perigo para os bens jurídicos enumerados. É suficiente o dolo eventual, pelo que basta que o agente tenha consciência do perigo decorrente da sua conduta para outras pessoas ou para bens alheios de valor elevado, e se tenha conformado com essa situação. Na medida em que se exige um perigo concreto, não bastando que ele represente que é fonte de um possível perigo (abstractamente entendido, portanto); terá que conhecer as circunstâncias das quais emana esse perigo e terá que o aceitar nos seus contornos concretos.
De acordo com o n.º 2, do mesmo artigo (crime de combinação dolo-negligência em sentido próprio), o condutor terá que realizar de forma dolosa a intervenção que coloca em perigo o trânsito, mas criar esse perigo de forma negligente. Ou seja, o agente sabe, tem plena consciência da sua incapacidade para conduzir, mas não representa (negligência inconsciente), ou representa e afasta a possibilidade (negligencia consciente), da criação de um perigo para os bens jurídicos em causa. Esta actuação é certamente mais censurável e por isso mesmo mais punida do que a descrita no n.º 3, de acordo com o qual o agente actua com total negligência, isto é, desconhece negligentemente a sua incapacidade e dessa forma se dispõe a conduzir.” (Vide Paula Ribeiro de Faria, no citado «Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial», Tomo II, 1999, p. 1088).
Em face destas explanações jurídicas, de acordo com o n.º 1 do art.º 308º do CPP, “quid iuris” no caso em apreço?
Na douta decisão instrutória o Mmo. Juiz apreciou os factos apurados quer em inquérito, quer em instrução, concluindo pela inexistência de probabilidade razoável de aplicação à arguida de uma sanção penal e, sede de julgamento, pelo que decidiu não pronunciar a mesma pelos crimes em causa.
Portanto, em fase de instrução, a conclusão de que os autos não continham indícios suficientes da prática do mencionado tipo de crimes pela arguida, serviu de fundamento ao mencionado despacho de não pronúncia.
Atentos os factos dados como suficientemente indiciados pelo Mm.º Juiz de Instrução, e com os quais se concorda, na íntegra, outra não podia ter sido a decisão instrutória.
Como acima ficou explanado, é nosso entendimento que não estão preenchidos os elementos do tipo do crime de homicídio negligente ou de condução perigosa de veículo rodoviário.
Pois que, apesar de se indiciar que a arguida invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, incorrendo assim na violação de uma regra de trânsito – a obrigação de circular pelo lado direito da faixa de rodagem (artigo 13º, n.º 1 do Código da Estrada) -, não se pode olvidar que a violação de uma regra de trânsito não basta para imputar a prática dos crimes à arguida, não obstante o facto de a presunção (ilidível) de que a infracção da regra de trânsito faz presumir a culpa (do acidente e do resultado - morte).
Essa presunção não é absoluta, mas sim ilidível, como afirmado, ocorrendo, no caso “sub Júdice”, circunstâncias excepcionais que afastaram essa culpa, por não ser exigível que perante as circunstâncias do caso a arguida, condutora, adoptasse comportamento distinto
Porquanto:
A arguida, desde o início, admitiu ter invadido a faixa de rodagem, ao avistar o ciclomotor conduzido pelo falecido na via destinada à circulação da arguida, pelo que, também a vítima terá violado uma regra estradal;
Contudo, a arguida atesta que invadiu a faixa contrária, mas que teve de o fazer para evitar o acidente, accionando o mecanismo de travagem da viatura que conduzia. Não obstante, o acidente ocorreu, por colisão lateral com o referido ciclomotor, o qual embateu no seu veículo na parte lateral direita, na zona da frente;
Por outro lado, o auto de exame com reconstituição de acidente, admite a hipótese de ambos os veículos circularem fora de mão e que, quando se avistaram, ao tentarem corrigir a trajectória, deu-se o embate;
Não nos podemos esquecer que, o condutor do veículo interveniente na colisão, infelizmente, acabou por falecer, horas depois por causa dos danos ocorridos com esse embate. E, estamos perante uma situação em que não há testemunhas que tivessem assistido aos factos;
Resulta da análise lógica e consertada de todos os elementos objectivos, disponíveis, carreados para os autos, nomeadamente, dos vestígios deixados no local e dos danos na viatura automóvel interveniente no acidente, como já desenvolvido no ponto 2.4.1, que a colisão ocorreu na faixa da esquerda da via, atento o sentido de marcha do veículo tripulado pela arguida, portanto, na faixa contrária à da sua circulação;
Todavia, a versão da arguida - ao descrer a curva, para a direita, apercebeu-se que no sentido contrário circulava o ciclomotor conduzido por C, e que este o fazia na via de trânsito destinada à circulação da sua viatura, pelo que, ainda na referida curva, e com o propósito de evitar o ciclomotor, invadiu com o veículo que conduzia a via de trânsito destinada à circulação em sentido contrário - não é contrariada, pois os elementos disponíveis não são suficientes para a combater, ainda que se possam equacionar dúvidas;
As quais não podem funcionar em desfavor desta, dado o princípio do “in dúbio pró reo”, subjacente a este ramo do direito.
Efectivamente, como refere, o MºPº, na sua resposta: “…atentas as circunstâncias em que ocorreu a invasão da faixa de rodagem contrária pela arguida, e sendo certo que não existem elementos suficientes nos autos que coloquem em crise esta tese, que até é admitida como provável no auto de exame ao local, conclui-se que presunção de culpa da arguida se ilidiu.
Em conclusão, e face às provas existentes no processo, caso a arguida fosse submetida a julgamento, como pretendia o assistente, a sua absolvição era quase certa, atento tudo o que acima se referiu.
O Mm.º Juiz de Instrução a quo concluiu pela inexistência de elementos suficientes que permitissem levar a uma provável condenação da arguida, razão pela qual decidiu proferir despacho de não pronúncia pelos crimes que lhe vinham imputados”.
Concluindo, ao emitir despacho de não pronuncia, relativamente aos aludidos crimes de homicídio por negligência e de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos arts. 137º e 291º, do Código Penal, não violou o Mmo. Juiz, o disposto nos arts. 303º, 307º e 308º, do C.P.P. e arts. 26º, 137º, e 291º, todos do Código Penal, e artigos 13º e 14º do Código da Estrada, já que, em nosso entender, efectuou uma correcta apreciação dos indícios recolhidos, pois na fase de instrução não foram captados indícios suficientes que permitem sujeitá-la a julgamento, pela prática desses mencionados tipo de crimes.
Improcedem, deste modo, as pretensões do recorrente.


IV - Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora a negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.
(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas, nos termos do art. 94 n.º 2 do CPP).
Évora, 19/03/ 2013
Maria Isabel Duarte
José Maria Martins Simão