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ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
INÍCIO DO PRAZO
Sumário
I. Não existe razão para proceder à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal de forma que não respeite o disposto no n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal – o seu início coincide com o momento da consumação do crime.
II. Na alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT consagra-se uma condição objetiva de punibilidade, situada fora do tipo de ilícito e do tipo de culpa.
III. O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consuma-se no momento da não entrega nos cofres do Estado das prestações tributárias deduzidas nos termos da lei e que se estava legalmente obrigado a entregar.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I. RELATÓRIO
No processo comum nº 538/11.4TABJA, do 2.º Juízo Tribunal Judicial de Beja, o Ministério Público acusou
i)V, divorciado, desempregado, nascido a 11 de dezembro de 1969, na freguesia de Santiago Maior, concelho de Beja, filho de ....e residente na Rua..., em Beja (com última residência conhecida na ... Cidade de Huila, Província do Lubango – República de Angola); e
ii)I, divorciada, técnica de higiene e segurança no trabalho, nascida a 5 de novembro de 1972, na freguesia de Santiago Maior, concelho de Beja, e residente na Rua ...,em Beja,
imputando a cada um dos arguidos, em autoria material, a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social sob a forma continuada, previsto e punível pelos artigos 107.º, nºs 1 e 2 e 105.º, nºs 1, 4 e 7 da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infrações Tributárias), conjugados com os artigos 26.º e 30.º, nº 2 do Código Penal.
O Instituto de Segurança Social, I.P., pediu a condenação dos Arguidos no pagamento da quantia de € 4 048,54 (quatro mil e quarenta e oito euros e cinquenta e quaro cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora até efetivo e integral pagamento.
Apenas o Arguido V apresentou contestação escrita.
Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada em 4 de outubro de 2012, foi declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra os Arguidos V e I.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1. Os arguidos V e I estavam acusados pela prática, cada um, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 107º, nºs 1 e 2 e 105º, nº 1, 4 e 7 do RGIT.
2. A última contribuição deveria ter sido paga até 15 e Janeiro de 2007, decorrendo dos autos que os arguidos foram constituídos nessa qualidade nos dias 17 e 18 de Janeiro de 2012.
3. Entendeu a Mmª Juíza que, para efeitos de prescrição, não deve ser tido em conta o prazo de 90 dias a que alude o nº4, al. a) do art. 105º do RGIT, pelo que decidiu declarar prescrito o procedimento criminal.
4. Dispõe a mencionada al. a) do nº 4 do art. 105º do RGIT que os factos só são puníveis, criminalmente, se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
5. Os Acs. da Rel. do Porto de 25/3/2009, da Rel. de Coimbra, de 9/12/2009 e da Rel. Porto, de 28/9/2011, todos in www.dgsi.pt, decidiram no sentido de que o prazo de prescrição do procedimento criminal só se inicia após o decurso do prazo de 90 dias a que alude a indicada norma.
6. Tratando-se de uma condição objectiva de punibilidade, a verdade é que apenas após o decurso de tal prazo se está perante um crime, na sua perfeição. Se o agente pagar a contribuição nos 90 dias, comete uma contra-ordenação – art. 114º, nº 1 do RGIT, e não um crime, sendo, obviamente, diversa a natureza jurídica de ambas as infracções, bem como os respectivos prazos de prescrição.
7. As diferenças no sancionamento têm consequências no que respeita à prescrição, designadamente, o prazo de prescrição do procedimento criminal só se inicia após o decurso dos 90 dias previstos no art. 105º nº 4, al. a) do RGIT.
8. Assim, não podia a Mmª Juíza declarar extinto o procedimento criminal, pelo que incorreu em violação do disposto nos art. 21º, nº 1 e 105º, nº 4, al. a) do RGIT, que não lhe permitem tal entendimento.
9. Pelo exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituído por outra que, considerando não prescrito o procedimento criminal, profira decisão condenando os arguidos.
Desta forma se fazendo JUSTIÇA»
Respondeu o Arguido V formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«1 - O Ministério Público recorreu da sentença que absolveu ambos os arguidos pela prática do crime de abuso à Segurança Social por força do decurso do prazo de 5 anos sobre a data limite para o cumprimento da obrigação tributária.
2 – O art. 21º nº 1 do RGIT prevê que o procedimento criminal prescreva em 5 anos, sendo o mesmo interrompido com a constituição de arguido (art. 121º CP).
3- No caso concreto a obrigação tributária deveria ter sido cumprida até ao dia 15 de Janeiro de 2007 pelo que a prescrição deveria ocorrer a 15 de Janeiro de 2012.
4- O ora Alegante foi constituído arguido a 17 de Janeiro de 2012, data à qual já se encontrava prescrito o procedimento criminal.
5- O prazo do art. 105º nº 4 do RGIT, que prevê que a obrigação poderá ser cumprida no prazo de 90 dias a contar do termo da data limite é uma condição objectiva da punibilidade e como tal não se deve contar o inicio da prescrição do termino desse prazo mas sim do termino do prazo em que a obrigação tributária deveria ter sido cumprida.
6- Esse é o entendimento da maioria jurisprudência dos nossos tribunais.
7 – Assim sendo e nos termos do nº 1 do artigo 308º do Código de Processo Penal, tendo ocorrido a prescrição do procedimento criminal deverá ser mantida a sentença que absolve os arguidos.
NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado por improcedente e em consequência manter-se a sentença que absolve os arguidos por força da prescrição do procedimento criminal.
Deste modo V. Exa. farão JUSTIÇA!»
O recurso foi admitido.
v
Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto, revelando concordar com o recurso apresentado pelo Ministério Público na 1ª Instância – que reforçou com o argumento de que o procedimento criminal só pode ser instaurado decorrido que seja o prazo consagrado no n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias – emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
v
Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais se acrescentou.
Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal[[2]].
O objeto do recurso interposto pelo Ministério Público, delimitado pelo teor das suas conclusões, reconduz-se a determinar qual o momento a partir do qual se inicia a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal nos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, face ao disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias [RGIT, doravante].
Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:
«1. A sociedade “Limpezas ... – Sociedade Unipessoal, Lda.”, matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o nº ... e com o número de contribuinte ---, é uma sociedade comercial por quotas, que tinha sede no Centro Comercial ...em Beja, e se dedicava à prestação de serviços de limpeza, venda de produtos e de equipamento de limpeza.
2. Constituiu-se em 11 de Dezembro de 2002, foi declarada dissolvida em 18 de Maio de 2011, tendo sido inscrita essa dissolução e o encerramento da liquidação em 14 de Julho de 2011.
3. Obrigava-se com a intervenção da gerente e única sócia, N, prima da arguida I, que figurava na certidão de matrícula da Sociedade como única sócia e gerente tão-só pelo facto de, em data ignorada do ano de 2002, ter passado a residir com a prima na casa onde esta vivia com o marido, o arguido V, tendo-lhe o casal pedido, como contrapartida, que assinasse alguns documentos, o que ela aceitou.
4. Não obstante isso, eram os arguidos V. e I, esta última apenas até ao final do ano de 2003, quem participava efectiva e diariamente na gestão da Sociedade arguida, praticando todos os actos inerentes ao seu normal funcionamento e à prossecução do seu objecto social, tomando decisões em representação e a favor dela.
5. Assim, nos meses de Maio a Dezembro de 2005 e Janeiro a Dezembro de 2006, a Sociedade pagou salários aos trabalhadores que teve ao seu serviço e aos dois arguidos.
6. E procedeu ao desconto, em tais salários, das contribuições devidas por força da lei à Segurança Social.
7. Assim, no mês de Maio de 2005, pagou salários no montante total de €6.226,77, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €672,64.
8. No mês de Junho de 2005, pagou salários no montante total de €5.418,58, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €589,89.
9. No mês de Julho de 2005, pagou salários no montante total de €1.752,51, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €186,62.
10. No mês de Agosto de 2005, pagou salários no montante total de €1.662,52, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €176,73.
11. No mês de Setembro de 2005, pagou salários no montante total de €1.826,26, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €194,74.
12. No mês de Outubro de 2005, pagou salários no montante total de €1.045,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €108,80.
13. No mês de Novembro de 2005, pagou salários no montante total de €1.045,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €108,80.
14. No mês de Dezembro de 2005, pagou salários no montante total de €2.562,51, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €269,57.
15. No mês de Janeiro de 2006, pagou salários no montante total de €1.288,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €135,53.
16. No mês de Fevereiro de 2006, pagou salários no montante total de €1.782,52, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €189,93.
17. No mês de Março de 2006, pagou salários no montante total de €2.018,78, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €215,91.
18. No mês de Abril de 2006, pagou salários no montante total de €1.045,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €108,80.
19. No mês de Maio de 2006, pagou salários no montante total de €1.045,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €108,80.
20. No mês de Junho de 2006, pagou salários no montante total de €1.885,01, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €195,05.
21. No mês de Julho de 2006, pagou salários no montante total de €1.045,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €108,80.
22. No mês de Agosto de 2006, pagou salários no montante total de €1.045,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €108,80.
23. No mês de Setembro de 2006, pagou salários no montante total de €1.067,50, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €111,27.
24. No mês de Outubro de 2006, pagou salários no montante total de €1.045,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €108,80.
25. No mês de Novembro de 2006, pagou salários no montante total de €1.250,98, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €131,46.
26. No mês de Dezembro de 2006, pagou salários no montante total de €2.090,02, com dedução e retenção de contribuições no valor total de €217,60.
27. Por conseguinte, a Sociedade pagou salários no valor total de €38.147,10 (trinta e oito mil cento e quarenta e sete euros e dez cêntimos), descontando e retendo contribuições no valor total de €4.048,54 (quatro mil e quarenta e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos).
28. No termos da Lei, a Sociedade devia ter entregue à Segurança Social cada contribuição retida até ao dia 15 do mês seguinte a que cada uma respeitava.
29. Contudo, nunca entregou aquelas contribuições à Segurança Social, nomeadamente nos 105 dias seguintes ao mês a que cada uma respeitava, fazendo-as suas.
30. Em 17 e 18 de Janeiro de 2012, respectivamente, os arguidos V e I foram pessoalmente notificados, por si e na qualidade de representantes de facto da Sociedade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, nº 4, do RGIT.
31. Porém, os arguidos não procederam ao pagamento de qualquer quantia em dívida.
32. O arguido V conhecia a sua qualidade de gerente de facto da Sociedade e que actuava em nome e a favor desta.
33. O arguido V tinha consciência de que a Sociedade era a entidade empregadora e que deduzia nos salários pagos as contribuições impostas pela lei e que não as entregava, no prazo devido, à Segurança Social, fazendo-as suas.
34. O arguido V agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de não liquidar, nem pagar as contribuições mencionadas, sabendo as suas condutas proibidas e puníveis por lei.
35. Agiu da forma descrita, sucessivamente, por saber da deficiência de fiscalização e controlo do cumprimento da lei nesta área, confiando, por isso, que não seria descoberto. * Mais se provou que:
36. O arguido V procedeu à liquidação integral das quantias em dívida à Segurança Social e respectivos juros de mora.
37. Os arguidos contraíram matrimónio no dia 22 de Agosto de 2001, o qual foi dissolvido por divórcio em 4 de Dezembro de 2003.
38. A arguida está a trabalhar no IPB pelo Rendimento Social de Inserção e aufere mensalmente €500.
39. Vive com os dois filhos, de 20 e 12 anos de idade, em casa arrendada.
40. Paga €300,00 por mês de renda da casa.
41. Tem o 12.º ano de escolaridade e o curso técnico profissional de Segurança e Higiene no Trabalho.
42. Recebe €100,00 da pensão de alimentos da filha.
43. Por sentença proferida em 30 de Maio de 2006, no âmbito do Processo Comum Singular nº ---/02.4TABJA, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Beja, foi a arguida condenada pela prática, em Janeiro de 2001, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €5,00.
44. O arguido V não tem antecedentes criminais.»
Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]:
«Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
- que a partir do final do ano de 2003 a arguida I participava efectiva e diariamente na gestão da Sociedade arguida, praticando todos os actos inerentes ao seu normal funcionamento e à prossecução do seu objecto social, tomando decisões em representação e a favor dela.
- que a partir do final do ano de 2003 a arguida I conhecia a sua qualidade de gerente de facto da Sociedade e que actuava em nome e a favor desta.
- que a partir do final do ano de 2003 a arguida I tinha consciência de que a Sociedade era a entidade empregadora e que deduzia nos salários pagos as contribuições impostas pela lei e que não as entregava, no prazo devido, à Segurança Social, fazendo-as suas.
- que a arguida I agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado e não liquidar, nem pagar as contribuições mencionadas, sabendo as suas condutas proibidas e puníveis por lei.
- que a arguida I agiu da forma descrita, sucessivamente, por saber da deficiência de fiscalização e controlo do cumprimento da lei nesta área, confiando, por isso, que não seria descoberta. * Com interesse para a boa decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos, sendo certo que aqui não importa considerar alegações conclusivas ou de direito, que serão apreciadas em sede própria.»
A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]:
«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência de julgamento de forma conjugada com as regras da experiência comum.
Atendeu, desde logo, às declarações prestadas pelas testemunhas AC e MC, a primeira jurista da Segurança Social e a segunda técnica superior da mesma entidade, que confirmaram os montantes em dívida pelos arguidos e o período a que respeitam, tendo a testemunha MC esclarecido que os valores que constam do mapa de apuramento inicialmente junto aos autos não estão correctos uma vez que a arguida estava inscrita como trabalhadora e não como gerente, tendo apresentado um novo mapa com as devidas correções e que consta a fls. 372 a 377, e informado também que o arguido procedeu ao pagamento integral das quantias em dívida à Segurança Social, facto este também comprovado com os documentos juntos em audiência de julgamento e constantes a fls. 361 a 371.
A arguida I, por sua vez, confirmou que apesar da sua prima ser a gerente e única sócia da empresa, quem exercia a gerência de facto era ela e o arguido mas esta situação apenas aconteceu até ao momento em que se divorciou do arguido – que como resulta da certidão de casamento junta aos autos ocorreu em Dezembro de 2003 – pois depois da separação, embora ainda recebesse ordenado por parte da sociedade, só prestava serviços de secretária e não tinha conhecimento do que se passava no que concerne à não entrega dos descontos efectuados nas remunerações à Segurança Social, apenas constatando que a empresa começou a ter dificuldades económicas.
As testemunhas M, C e AM, funcionárias da sociedade, confirmaram que inicialmente ambos os arguidos davam orientações e efectuavam os respectivos pagamentos, mas que esta situação alterou-se depois do divórcio entre ambos e, embora a arguida I ainda se mantivesse na empresa como secretária, era o arguido V que a geria, dava as orientações e efectuava os pagamentos, tendo a testemunha AM acrescentado ainda que a sociedade começou a sentir dificuldades económicas porque alguns clientes não pagavam mas que os salários sempre foram pagos.
A conjugação dos depoimentos prestados de forma objectiva e sincera pelas referidas testemunhas, com as declarações da arguida, foram determinantes para que o tribunal atribuísse credibilidade à versão por si apresentada e consequentemente desse como não provados os factos acima indicados, e como assente que era o arguido V que, durante o período em causa nos autos, exercia a gerência de facto da sociedade e era responsável pela entrega dos valores deduzidos nas remunerações à Segurança Social.
No que respeita à inscrição na Segurança Social, aos descontos efectuados nas remunerações dos gerentes e dos trabalhadores, à sua não entrega na Segurança Social e à notificação efectuada aos arguidos, foram considerados os documentos constantes dos autos, nomeadamente os mapas de apuramento da dívida de fls. 251 a 259 e de fls. 372 a 377, as notificações a que alude o artigo 105.º, nº 4, do RGIT de fls. 203, 204, 226 e 227, e os extractos das declarações de remunerações de fls. 109 a 170.
Atendeu ainda o Tribunal à certidão comercial de fls. 23 a 26. Quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido e aos antecedentes criminais da arguida, atendeu o Tribunal aos certificados de registo criminal juntos a fls. 356, 359 e 360.
As condições pessoais, económicas e sociais da arguida resultaram das declarações prestadas pela própria, que mereceram credibilidade ao Tribunal.»
No domínio do enquadramento jurídico-penal, consta da sentença que [transcrição]:
«A cada um dos arguidos é imputada a prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, nºs 1 e 2 e 105.º, nºs 1, 4 e 7 da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), conjugados com os artigos 26.º e 30.º, nº 2 do Código Penal.
Nos termos do disposto no citado art. 107º, incorrem na prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.º 1, do artigo 105.º”.
Por seu turno, dispõe o artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro:
“1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 – (Revogado).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”
Paralelamente o artigo 7.º, n.º 1, do referido diploma estabelece a responsabilidade das pessoas colectivas pela prática deste ilícito, estatuindo que “As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”.
Porém, a efectivação da responsabilidade das pessoas colectivas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes (vide n.º 3, do artigo 7.º do RGIT).
Com efeito, estabelece o art. 6.º do RGIT que “quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado”.
Constituem, assim, elementos objectivos do tipo legal em causa: (i) a não entrega às instituições da segurança social das contribuições devidas pelos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, e (ii) terem as mesmas sido deduzidas às remunerações dos trabalhadores ou gerentes pelas entidades empregadoras.
Contrariamente ao que acontece com o crime de abuso de confiança fiscal, não é exigível para o preenchimento do tipo que as contribuições devidas sejam de valor superior a 7500,00 €.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça veio, no seu acórdão n.º 8/2010, a que se adere, uniformizar a jurisprudência no sentido de que: “a exigência do montante mínimo de 7500 €, de que o n.º 1 do artigo 105.º do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma”.
Àqueles elementos acresce, porém, a condição objectiva de punibilidade: terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (artigo 105.º, n.º 4, alínea a), do RGIT) e a prestação comunicada à administração, através da correspondente folha de remuneração, não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito (artigo 105.º, nº 4, alínea b), do RGIT).
No que concerne ao tipo subjectivo, o normativo em apreço prevê um tipo doloso, exigindo-se o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas, traduzindo-se este no conhecimento (elemento intelectual) dos elementos do tipo objectivo de ilícito, e vontade de realização do facto típico (elemento volitivo), ou seja, torna-se necessário, para o preenchimento do mesmo, que o agente, tenha previsto e desejado não entregar as prestações a que sabia estar obrigado, pese embora soubesse que tal conduta é punida pela lei penal.
Aqui chegados, e tendo sido suscitado em sede de audiência de julgamento a prescrição do procedimento criminal, cumpre desde já apreciar tal questão.
Ao abrigo do disposto no artigo 21.º, nº 1, do RGIT, o procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos, sem prejuízo das causas de suspensão ou interrupção que se possam verificar.
Entre outras, constitui causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal a constituição de arguido e a notificação da acusação (artigo 121.º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal), começando a correr novo prazo de prescrição depois de cada interrupção.
No caso dos autos, estando em causa um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, nos termos do disposto no artigo 119.º, nº 2, alínea b), do Código Penal, aplicável subsidiariamente, o prazo de cinco anos de prescrição do respectivo procedimento criminal só corre desde o dia da prática do último acto.
Ora, como decorre da acusação deduzida pelo Ministério Público, a última prestação devida à Segurança Social é de Dezembro de 2006 e deveria ter sido entregue àquela entidade até ao dia 15 do mês seguinte, ou seja, até ao dia 15 de Janeiro de 2007.
A questão que se coloca é esta de saber se face ao disposto no nº 4 do artigo 105.º do RGIT [[3]] – que dispõe que os factos só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação – este prazo de 90 dias deve ser tido em conta, só se iniciando o prazo de cinco anos de prescrição do procedimento criminal a partir do termo de tal prazo ou se, ao invés, o prazo da prescrição que se inicia com a prática do crime, o qual se tem por consumado na data em que termina o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.
Como é sabido, o crime de abuso contra a segurança social, sendo um crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e corpos sociais.
Relativamente ao prazo de 90 dias, como já se decidiu no acórdão de fixação de jurisprudência nº 6/2008, de 9 de Abril de 2008, trata-se de uma condição objectiva de punibilidade, ou seja, uma circunstância que se situa fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto.
Como escreveram Tolda Pinto e Reis Bravo [[4]], não sendo o prazo de 90 dias um elemento do tipo, não será reportado a este elemento que se atenderá para início do prazo de prescrição, mas sim o do termo do prazo legal da entrega da prestação. A dilação de tal prazo contende apenas com aspectos relacionados com o atendimento de circunstâncias geralmente relevantes, no âmbito do relacionamento jurídico-tributário, para a contemporização com situações de justificado atraso na entrega da prestação.
Sobre esta matéria também já se pronunciou, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Fevereiro de 2010 [[5]], em cuja fundamentação se pode ler o seguinte: “(…) Não podemos ignorar que esta condição objectiva da punibilidade configura, objectivamente, uma situação mais favorável para o eventual agente do crime, sendo objectivo inequívoco do legislador conceder uma possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva.
Se assim é, ao não se considerar esse prazo para efeitos de prescrição, está-se por um lado a agravar a posição processual do agente na medida em que se está a prorrogar o prazo normal da prescrição legalmente previsto e, por outro, está-se a aplicar uma “causa de suspensão” da prescrição não prevista no Código Penal e a violar, por isso, o princípio da legalidade penal.
Posto isto e, em conclusão, entendemos que este prazo de 90 dias previsto no nº 4 do artigo 105.º do RGIT (actualmente previsto na alínea a) do referido nº 4), sendo uma condição objectiva de punibilidade que não impede que possa ser exercida a acção penal, apenas impede que possa ter lugar a punição, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a segurança social se inicia na data em que o crime se consumou, isto é, na data em que nos termos do nº 2 do artigo 5.º do RGIT, terminou o prazo para o cumprimento da entrega das contribuições à segurança social (…).”
Nestes termos, e seguindo de perto o entendimento perfilhado no referido aresto, uma vez que nos presentes autos a última contribuição retida pelo arguido respeitante aos descontos efectuados nos vencimentos pagos aos trabalhadores e corpos sociais no mês de Dezembro de 2006 deveriam ter sido entregues até ao dia 15 do mês seguinte, ou seja, até ao dia 15 de Janeiro de 2007, a partir de então iniciou-se o prazo de 5 anos de prescrição do procedimento que terminou a 15 de Janeiro de 2012.
Compulsados os autos verifica-se que os arguidos só foram constituídos nessa qualidade no dia 17 e 18 de Janeiro de 2012 (cfr. fls. 190, 195 e 213) e não ocorreu qualquer outra causa de interrupção ou de suspensão da prescrição, pelo que importa concluir que já nesse momento o procedimento criminal se encontrava extinto, por prescrição.
Face ao exposto, importa declarar extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra os arguidos V e I.»
v
Conhecendo.
i) Dos vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal
Restringida a cognição deste Tribunal da Relação à matéria de direito, importa desde já referir que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida.
E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1.ª Instância sobre a matéria de facto.
ii) Da contagem do prazo prescricional
A decisão recorrida exibe estruturação e fundamentação muito bem elaboradas, permitindo uma perfeita compreensão do pensamento de quem a elaborou.
E não havendo dúvidas quanto à opção feita na sentença, vejamos a valia dos argumentos de quem com ela se não conforma.
Diz o Ministério Publico que o prazo de 90 (noventa) dias previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT constitui condição objetiva de punibilidade e que, por isso, só após o seu decurso se está perante um crime, na sua perfeição.
São conhecidas e frequentes as dificuldades interpretativas que resultam de o aplicador da lei se confrontar com construções normativas passíveis de equívocos, o que não é facto novo ao nível das alterações introduzidas ao texto do RGIT pelas Leis do Orçamento de Estado.
Dificuldades que têm dado azo a jurisprudência não coincidente.
É neste enquadramento que surge o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008, de 9 de Abril de 2008 [[6]], motivado por uma alteração ao artigo 105.º do RGIT – concretamente com a introdução da alínea b) no respetivo n.º 4, através da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, que aprovou o orçamento de Estado para 2007 –, que veio uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:
«A exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT].»
E onde se pode ler que o crime de abuso de confiança fiscal é «um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente não entregou a prestação tributária que devia, ou seja, que se consuma no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito.
Sendo este o tipo de ilícito não se vislumbra o suporte da afirmação de que o mesmo foi afetado pela alteração legal produzida quando é certo que esta consigna uma condição que é exógena ao mesmo tipo.
É evidente o vício da argumentação produzida que, com inconsistência teórica e ao arrepio do que é entendimento doutrinário unitário, atribui à alteração legal introduzida reflexo directo e imediato no núcleo do tipo de ilícito para, então, poder dar o salto lógico, afirmando que a nova lei descriminalizou e, consequentemente, é aplicável aos processos pendentes, descriminalizando as condutas praticadas.
Diferente é a conclusão se, configurada a alteração legal como condição de punibilidade, se concluir que a mesma deixa intocado o tipo de ilícito num crime que, previamente, se consumou.
Como se referiu, reconduzir ao núcleo da ilicitude e da tipicidade o que são condições de exercício da acção penal, impressas com o intuito confessado de atribuir uma última oportunidade ao agente antes de desencadear o procedimento criminal, não está de acordo com o espírito ou a letra da lei.
Assim, entendemos que, perante esta alteração legal, nos encontramos perante uma condição objectiva de punibilidade na medida em que se alude a uma circunstância em relação directa com o facto ilícito, mas que não pertence nem ao tipo de ilícito nem à culpa. Constitui um pressuposto material da punibilidade.
Face ao exposto entende -se que a alteração produzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53 -A/2006 não implicou qualquer alteração nos elementos constitutivos do crime previsto no artigo 105.º do RGIT (a não entrega da prestação tributária retida no prazo legalmente fixado) que permaneceu imodificado na sua tipicidade.
A alteração legal produzida revela -se tão -somente como a previsão de uma outra condição de punibilidade que deve ser equacionada na medida em que configure um regime concretamente mais favorável para o agente.»
Ao que acresce que na génese da mencionada condição da punibilidade estão, tão-só, o propósito de aliviar os tribunais de situações de meros atrasos nas entregas de imposto nos casos em que tenha havido uma declaração do montante devido, sem o envio do respetivo meio de pagamento [como se diz no comunicado de 7 de fevereiro de 2002 do Ministério das Finanças e da Administração Pública], bem como a intenção de estimular o cumprimento voluntário das obrigações tributárias, com o consequente aumento, em prazo curto, da receita daí resultante.
Queremos, com isto, acentuar que o decurso do prazo de noventa dias em nada acrescenta ao tipo de crime.
O que nos permite concluir, também na senda de decisões desta Relação [[7]], que não assiste razão ao Recorrente.
Ou seja, o crime em questão nos presentes autos perfectibiliza-se – isto é, torna-se perfeito ou consuma-se – no momento da não entrega nos cofres do Estado das prestações tributárias deduzidas nos termos da lei e que se estava legalmente obrigado a entregar.
O que ocorreu no dia 15 de janeiro de 2007, tal como se diz na decisão recorrida.
Diz ainda o Recorrente que a decisão recorrida se estriba em entendimento expresso no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de outubro de 2010, mas que existe jurisprudência em sentido contrário – os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de março de 2009 e de 28 de setembro de 2011, e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de dezembro de 2009.
A esta “contabilidade” do Recorrente se podem acrescentar muitas outras decisões de Tribunais Superiores e adiantar, desde já, que a tese defendida na decisão recorrida engrossa corrente que não é a maioritária.
No sentido de que o prazo de prescrição se inicia a partir da data em que termina o prazo de entrega da prestação tributária [onde não se incluem os 90 (noventa) dias previstos na alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT], podem consultar-se – in www.dgsi.pt – os acórdãos:
- do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de fevereiro de 2010, proferido no processo n.º 2191/08.3TDLSB.L1-3;
- do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de março de 2012, proferido no processo n.º 5209/04.5TDLSB.L1-5;
- do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30 de maio de 2012, proferido no processo n.º 4/02.9.IDMGR.C2;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de outubro de 2012, proferido no processo n.º 163/10.7TAMCD.P1.
No sentido de que o prazo de prescrição se inicia a partir da data em que termina o prazo de 90 (noventa) dias previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, podem consultar-se – in www.dgis.pt – os acórdãos:
- do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de junho de 2001, proferido no processo n.º 1556/01-3;
- do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11 de novembro de 2002, proferido no processo n.º 283/02;
- do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de janeiro de 2003, proferido no processo n.º 02P972;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de abril de 2005, proferido no processo n.º 0511393;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 22 de novembro de 2006, proferido no processo n.º 0644904;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 6 de junho de 2007, proferido no processo n.º 0741311;
- do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28 de outubro de 2008, proferido no processo n.º 560/07.5TACBR.C1;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de setembro de 2008, proferido no processo n.º 0811683;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de março de 2009, proferido no processo n.º 0846951;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de novembro de 2009, proferido no processo n.º 485/02.0TAVLG.P1;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de novembro de 2009, proferido no processo n.º 7497/07.6TDPRT-A.P1;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de setembro de 2011, proferido no processo n.º 392/08.3TALSP.P1;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 23 de fevereiro de 2011, proferido no processo n.º 2760/05.3TAVNG.P1;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 21 de abril de 2010, proferido no processo n.º 184/06.4IDPRT.P1;
- do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de novembro de 2012, proferido no processo n.º 71/09.4IDPRT.P1.
Ao nível doutrinário, encontramos também posições não coincidentes.
Como se refere na decisão recorrida, Tolda Pinto e Reis Bravo, entendem que não sendo o prazo de 90 (noventa) dias um elemento do tipo, não será reportado a este elemento que se atenderá para início do prazo de prescrição, mas sim o do termo do prazo legal da entrega da prestação. A dilação de tal prazo contende apenas com aspetos relacionados com o atendimento de circunstâncias geralmente relevantes, no âmbito do relacionamento jurídico-tributário, para a contemporização com situações de justificado atraso na entrega da prestação.
Isabel Marques da Silva, in “Regime Geral das Infracções Tributárias”, Cadernos IDEF n.º 5, 2.ª Edição, página 180, defende que a condição objetiva de punibilidade releva para efeitos do início do prazo e para a suspensão da prescrição, nos termos dos artigos 119.º, n.º 1, e 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Posição idêntica é defendida por Carlos Teixeira e Sofia Gaspar – in “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Volume 2, página 48 – e por Tiago Caiado Milheiro e Frederico Soares Vieira, in “Do Erro Sobre a Punibilidade”, Quid Juris, 2011, páginas 142 e seguintes.
Será agora tempo de definir a posição que se nos afigura mais adequada – antecipando, desde já, que é coincidente com a defendida na decisão recorrida.
Explicitando.
Dispõe o artigo 21 ° do RGIT, que:
«1 - O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2 - O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos.
3 - O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infracção depender daquela liquidação.
4 - O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, nos termos previstos no nº 2 do artigo 42º e no artigo 47°.»
Dispõe o artigo 119.º do Código Penal – subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do artigo 3.º do RGIT – que:
«1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2 - O prazo de prescrição só corre: a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação; b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto; c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
3 - No caso de cumplicidade atende-se sempre, para efeitos deste artigo, ao facto do autor.
4 - Quando for relevante a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.»
Interessa-nos, ainda, o disposto nos
Artigo 5.º do RGIT, que se reporta ao lugar e momento da prática da infração tributária, nos seguintes termos
«1 - As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2 - As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.
3 - Em caso de deveres tributários que possam ser cumpridos em qualquer serviço da administração tributária ou junto de outros organismos, a respectiva infracção considera-se praticada no serviço ou organismo do domicílio ou sede do agente.»
Artigo 105.º do RGIT, que se reporta ao abuso de confiança, nos seguintes termos – aplicável por força do disposto no artigo 107.º do mesmo diploma legal
«1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente
declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado.)
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.»
Na alínea a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT consagra-se, como já se deixou dito, uma condição objetiva de punibilidade, situada fora do tipo de ilícito e do tipo de culpa.
Condição essa que surge por razões política criminal – com o objetivo de aliviar os tribunais de situações de meros atrasos nas entregas de imposto nos casos em que tenha havido uma declaração do montante devido, sem o envio do respetivo meio de pagamento, bem como de estimular o cumprimento voluntário das obrigações tributárias, com o consequente aumento, em prazo curto, da receita daí resultante.
Naturalmente que o procedimento criminal não se pode iniciar antes de decorrido tal prazo.
Mas tal razão não basta para só após o seu termo se iniciar a contagem do prazo prescricional.
Porque existem circunstâncias idênticas em relação às quais não é defensável semelhante opinião.
Reportamo-nos à apresentação de queixa nos crimes de natureza particular e semi-pública [condição de procedibilidade], para a qual fixa a lei o prazo de 6 (seis) meses e sem a qual o procedimento criminal se não pode iniciar, por falta de legitimidade do Ministério Público, enquanto titular da ação penal.
Apresentada a queixa em momento posterior ao da consumação do crime, não se discute ser este último momento o relevante para o início do prazo prescricional.
E não vemos razão para defender coisa diversa relativamente à condição de procedibilidade que nos ocupa.
Por outro lado, não vislumbramos como aceitar a suspensão do prazo prescricional relativamente a um procedimento que não existe.
Ao que acresce que a norma consagrada na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal se destina apenas às situações nela previstas – o procedimento criminal não se poder iniciar ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal.
Ou seja, não consente interpretações analógicas ou extensivas, sob pena de violação do princípio da legalidade.
Por último, sufragamos o voto de vencido constante do acórdão da Relação do Porto proferido no processo n.º 71/09.4IDPRT.P1 – dispensando-nos de o transcrever, relativamente à tese nele enunciada da consumação, em dois momentos, do crime de abuso de confiança fiscal.
Dele apenas destacando, ainda em abono da solução que defendemos, «que esta condição objectiva da punibilidade configura, objectivamente, uma situação mais favorável para o eventual agente do crime, sendo objectivo inequívoco do legislador conceder uma possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva.
Se assim é, ao não se considerar esse prazo para efeitos de prescrição, está-se por um lado a agravar a posição processual do agente na medida em que se está a prorrogar o prazo normal da prescrição legalmente previsto (…).»
E aqui chegados, não nos restará senão também concluir que não existe razão para proceder à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal de forma que não respeite o disposto no n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal – o seu início coincide com o momento da consumação do crime.
O crime em causa nos autos consumou-se no dia 15 de janeiro de 2007.
Considerando-se que é de 5 (cinco) anos o prazo de prescrição do procedimento por tal crime e que não ocorreu qualquer causa de suspensão ou de interrupção da prescrição [os Arguidos só foram constituídos nessa qualidade nos dias 17 e 18 de janeiro de 2012], tal prazo concluiu-se no dia 12 de janeiro de 2012.
Ou seja, e como bem se diz na sentença recorrida, quando ocorreu a constituição de arguido encontrava-se já extinto, por efeito da prescrição, o procedimento criminal.
III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida.
Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento.
v
Évora,16 de Abril de 2013-04-16
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)
______________________________________
(Ana Luisa Teixeira Neves Bacelar Cruz)
__________________________________________________ [1] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.
[2] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria].
[3] Aplicável ex vi artigo 107.º do mesmo diploma, na redacção vigente à data dos factos.
[4] In “Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais”, pág. 333.
[5] Publicado na CJ 2010, Tomo I, pág. 147.
[6] Publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 94, de 15 de maio de 2008.
[7] Acórdão de 9 de outubro de 2007, relatado pelo Senhor Desembargador Martins Simão no processo n.º 1665/2007 – acessível em Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXII-2007, Tomo 4, página 271, ou em www.datajuris.pt – ID82351.