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PENAS DE MULTA
CÚMULO JURÍDICO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Sumário
1 - O cúmulo jurídico de penas de multa correspondentes a crimes em concurso efectivo é obrigatório, devendo englobar também as multas cumpridas e extintas.
2 - O condenado tem direito à pena única, que resultará da soma jurídica das parcelares correspondentes aos crimes por si cometidos que concorram efectivamente entre si, independentemente desse concurso ser conhecido num mesmo processo e de dele fazerem parte penas já cumpridas ou extintas.
3 - O art. 78º do Código de Processo Penal visa proceder à reposição da situação de igualdade entre arguido com conduta ilícita global conhecida no mesmo processo e arguido cujo ilícito global sofreu uma fragmentarização acidental por vários processos. Razões exclusivamente acidentais e de procedimento – razões processuais – não podem ditar diferenças de tratamento material, particularmente no que às consequências do crime respeita.
4 - Nos casos de concurso superveniente, o mecanismo processual previsto no art. 472º do Código de Processo Penal permite ao tribunal dotar-se, em audiência contraditória, da informação necessária à decisão sobre a pena única, à luz do sistema consagrado no art. 77º do Código Penal – sistema de pena conjunta obtida através de cúmulo jurídico.
5 - Achando-se cumpridas e, nessa medida, extintas duas das penas de multa a integrar num cúmulo, mas permanecendo por cumprir ainda uma terceira, não pode considerar-se que essa audiência se traduzirá numa inutilidade, sendo incontroverso que o cúmulo jurídico beneficiará o arguido, pois as multas cumpridas descontam-se “no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”.
6 - Este aditamento ao n.º 1 do art. 78.º do Código Penal – operado pela reforma de 2007 que simultaneamente suprimiu a condição da “condenação anterior não se encontrar ainda cumprida, prescrita ou extinta” – visou precisamente pôr cobro a interpretação que, à luz da Constituição, já não era de seguir mesmo na vigência da norma revista.
7 - Também o eventual desinteresse do arguido na realização da audiência nunca seria critério de decisão quanto à sua (in)utilidade. A audiência a que se refere o art. 472º do Código de Processo Penal é obrigatória, sendo o arguido aí assistido ou representado pelo defensor. É o tribunal que determina os casos em que o condenado deve estar presente, e não este que decide se a audiência deve ou não ter lugar.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. No Processo nº 80/09.3GBTVR do Tribunal Judicial de Tavira foi proferida decisão que recusou a efectivação de cúmulo jurídico da pena de multa proferida nos autos, com duas penas de multa em que o arguido J. fora condenado em dois outros processos.
Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo que deve ser “designada data para a audiência de conhecimento superveniente de concurso – art. 472º do Código de Processo Penal – das penas aplicadas ao arguido no âmbito dos presentes autos e dos processos sumaríssimo nº --/08.0TATVR e comum singular nº ---/08.3TATVR, ambos do Tribunal Judicial de Tavira”
Não houve resposta ao recurso.
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto não se pronunciou sobre a questão.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
2. A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“Segundo informação agora colhida (vide fls. 519 e 520) ambas as penas em concurso com a presente se encontram extintas pelo que não se vislumbra que, da realização de cúmulo jurídico de penas, advenha qualquer real vantagem ou benefício ao arguido, o qual de resto se desinteressou pelo desfecho do presente processo, tanto mais que se ausentou da morada do TIR sem nada comunicar aos autos.
Por conseguinte, mostrando-se desnecessária a audiência de cúmulo jurídico designada para o próximo dia 11/11/2012, dou a mesma sem efeito”.
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente a questão a apreciar é a de saber se as três penas de multa aplicadas ao arguido devem ser juridicamente aglutinadas e se deve ter lugar audiência para esse efeito.
A decisão recorrida, que indeferiu a promoção do Ministério Público no sentido de que se designasse dia para a audiência a que se refere o art. 472º do Código de Processo Penal, assenta nos fundamentos seguintes: inutilidade da audiência por inexistência de real vantagem ou benefício para o arguido decorrente da efectivação do cúmulo jurídico das penas de multa; desinteresse do arguido pelo desfecho do processo, tanto mais que se ausentou da morada do TIR sem nada comunicar.
O arguido foi condenado nos autos numa pena de multa. Encontra-se condenado, noutros dois processos, também em pena de multa. Pretende o Ministério Público que tenha lugar a audiência a que se refere o art. 472º do Código de Processo Penal, uma vez que estas três penas corresponderão a três crimes que se encontram, todos eles, em concurso efectivo.
A impugnação irá proceder, e não apenas pelos fundamentos sinalizados. Procederá, desde logo porque uma das penas de multa se encontra por cumprir. Razão que, no entanto, não vem referida no recurso.
A posição que temos sobre a questão de fundo encontra-se desenvolvida no acórdão de 12.06.2012, que proferimos neste Tribunal da Relação no processo nº 10043/10.0TDLSB, e que se encontra publicado em www.dgsi.pt. Acórdão este que o recorrente também conhece, uma vez que a sua motivação de recurso é a transcrição literal e integral da fundamentação desse acórdão, o qual, porém, se absteve de identificar.
Uma vez que as razões que ali desenvolvemos mantêm actualidade, conservaremos a nossa posição.
Assim, as penas correspondentes a crimes que se encontrem numa relação de concurso – efectivo (na construção de Figueiredo Dias) ou real (na de Cavaleiro de Ferreira) – devem ser cumuladas juridicamente, independentemente do conhecimento desse concurso ser superveniente.
Daí que o art. 78º do Código Penal mande aplicar as regras do art. 77º – regras da punição do concurso – ao conhecimento superveniente do concurso.
Como dá nota Figueiredo Dias, “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280).
Ainda segundo o autor, a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização” (loc. cit.).
Razões de culpa, de prevenção e da personalidade da pessoa justificam, pois, o cúmulo de penas.
Como também regista Cavaleiro de Ferreira, o cúmulo material de penas não só não é adoptado na lei vigente, como nunca o foi por nenhum dos códigos penais precedentes (Lições de Direito Penal, II, 2010, p. 156).
O condenado tem, pois, direito à pena única, que resultará da soma jurídica das penas (parcelares) correspondentes aos crimes por si cometidos, desde que estes concorram efectivamente, ou realmente, entre si.
E assim sucede, independentemente do concurso ser conhecido num mesmo ou em vários processos, neste caso (não procurado ou querido, mas processualmente acontecido), desde que todas as penas correspondam a crimes cometidos antes do trânsito em julgado da primeira condenação.
O art. 78º do Código de Processo Penal visa proceder à reposição da situação de igualdade entre arguido com conduta ilícita global conhecida logo num mesmo processo e arguido cujo ilícito global sofreu uma fragmentarização formal por vários processos.
Razões exclusivamente acidentais e de procedimento – razões processuais – não podem ditar diferenças de tratamento material, particularmente no que respeita às consequências do crime.
Nos casos de concurso superveniente haverá então que, processualmente, lançar mão do mecanismo previsto no art. 472º do Código de Processo Penal. Em audiência especialmente designada para o efeito, o tribunal dotar-se-á, em contraditório, de toda a informação necessária e pertinente para a decisão sobre a pena única, à luz do sistema consagrado no art. 77º do Código Penal – sistema de pena conjunta obtida através de cúmulo jurídico.
A pena única determinar-se-á dentro de uma moldura penal de cúmulo, casuisticamente encontrada após fixação de todas as penas parcelares integrantes de uma certa adição jurídica.
Na pluralidade de infracção, a regra é pois a de que o concurso de crimes dará lugar ao concurso de penas, por contraposição à sucessão de crimes que dará lugar à sucessão de penas. (Cientes da controvérsia terminológica, seguimos aqui a nomenclatura de Cavaleiro Ferreira quanto ao “concurso de penas” – v. Lições de Direito Penal, II, 2010, pp. 155 e ss).
No caso, as três penas em concurso têm a mesma natureza e correspondem a crimes que se encontram numa relação de concurso efectivo.
Com efeito, o arguido foi condenado, sempre em pena de multa, nos autos, em 18.02.2011, por factos de 18.02.2009; no processo nº --/08.0TATVR, em 07.10.2010, por factos de 06.11.2007; e no processo nº ---/08.3TATVR, em 16.03.2010, por factos de Dezembro de 2007.
Duas das penas de multa acham-se cumpridas e, nessa medida, extintas. Mas uma delas, a que foi proferida nos autos, processo da última condenação, permanece “activa”.
Não se pode considerar que a audiência do art. 472º do Código de Processo Penal se traduzirá numa inutilidade, pois é incontroverso que o cúmulo jurídico irá beneficiar o arguido. O condenado tem direito a uma pena única, como expusemos. E encontrando-se uma das parcelares por cumprir, as já cumpridas serão então “descontadas no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes” (art. 78º, nº 1 do Código Penal).
Este aditamento ao nº 1 do art. 78º do Código Penal – operado pela reforma de 2007 (Lei nº 59/2007) que simultaneamente suprimiu a condição da “condenação anterior não se encontrar ainda cumprida, prescrita ou extinta” –, visou precisamente pôr cobro à interpretação que o despacho recorrido pretende agora manter. Interpretação essa que, à luz da Constituição, já não seria de seguir mesmo durante a vigência da norma revista.
De acordo com a jurisprudência então mais representativa (do Supremo Tribunal de Justiça desde pelo menos 1990, como dá conta Dá Mesquita, O Concurso de Penas, 1997, p. 73), as penas cumpridas não deveriam ser excluídas do cúmulo, sendo este já então de admitir, desde que uma delas se não encontrasse cumprida, prescrita ou extinta.
Em suma, o cúmulo jurídico de penas de multa correspondentes a crimes em concurso é obrigatório. A pena aplicável tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretas e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar os 900 dias (art. 77º, nº 2 do Código Penal). As penas já cumpridas serão descontadas no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes (art. 78º, nº 1 do Código Penal). O princípio constitucional da igualdade (art. 13º da CRP) sempre imporia a realização de cúmulo jurídico de penas de conhecimento superveniente e já cumpridas em parte, cúmulo que beneficia visivelmente o condenado.
Por último, o eventual desinteresse do arguido na audiência nunca seria critério de decisão.
A audiência a que se refere o art. 472º do Código de Processo Penal é obrigatória, sendo o arguido obrigatoriamente assistido ou representado pelo seu defensor.
Está cuidada para o cúmulo jurídico de penas e o preceito dá um sinal claro – mais um – da importância da pena e do processo que serve a sua determinação. O legislador é prolífico no enunciado de normas (penais e processuais penais) que habilitam o julgador a encontrar a pena óptima, ou seja, a pena justa.
No processo prático de decisão do caso impõe-se reconhecer à pena a relevância que ela tem.
Uma audiência é tanto um direito dos sujeitos processuais se fazerem ouvir antes que o tribunal tome uma decisão que pessoalmente os afecte, como o meio ideal de dotar o próprio julgador dos instrumentos necessários à boa decisão. Audiência que deverá ter lugar, independentemente do maior ou menor interesse manifestado pelo arguido na sua realização. Arguido cuja presença não é, aliás, obrigatória, sendo o tribunal que determina os casos em que o condenado deve estar presente, e não este que decide se a audiência deverá ou não ter lugar (art. 472º, nº 2 do Código de Processo Penal).
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que designe data para a audiência a que se refere o art. 472º do Código de Processo Penal e proceda ao cúmulo das três penas de multa em causa.