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ARGUIDO ESTRANGEIRO
NÃO TRADUÇÃO DE DEPOIMENTO
NULIDADE SANÁVEL
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
Sumário
1.A nulidade decorrente da ausência de tradução, a arguido estrangeiro que não domina a língua portuguesa, de depoimento prestado por testemunha de acusação em julgamento, deve ser arguida no próprio acto e antes que este (o julgamento) esteja terminado.
2. A prestação de depoimento contraditório pela mesma testemunha, que apresenta uma versão dos factos em inquérito e outra diferente em julgamento, embora portador de uma fragilidade acrescida não é meio de prova a excluir necessariamente da valoração. [1]
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo comum singular n.º 389/11.6PALGS do 1º juízo do Tribunal Judicial de Lagos foi proferida sentença em que se decidiu condenar a arguida E. como autora de um crime doloso consumado de ofensa à integridade física simples do art. 143º, nº1 do Código Penal, na pena de 210 dias de multa a 10 € / dia (total 2.100,00 €).
Inconformada com o assim decidido, recorreu a arguida, concluindo que:
“1- A arguida não praticou os factos pelos quais foi acusada;
2- A testemunha oferecida em Julgamento não merece qualquer credibilidade por parte do Tribunal;
3- Havia prestado depoimento contraditório aquando da fase de inquérito, junto da PSP;
4- Viu a arguida, com a convicção do Tribunal naquela testemunha, viola principio in dubio pro reo;
5- Viu também violado o seu direito de se defender condignamente em qualquer fase do processo, pois ao não entender a língua portuguesa, não lhe foi feita tradução, ainda que em súmula, daquilo que a testemunha disse em julgamento;
6- A douta sentença deve ser revogada e absolvida a arguida”.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela confirmação da sentença.
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
2.Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“1p.No dia 4 de Maio de 2011, cerca das 11.30 horas, nas instalações da empresa M, situadas na Avenida dos Descobrimentos, em Lagos, a arguida, no contexto de uma discussão relacionada com um negócio, puxou os cabelos e torceu o braço esquerdo de R.
2p. Desta agressão resultaram para a R, por seu efeito directo e necessário dores no braço e punho esquerdos, com tumefacção e edema da face externa do punho esquerdo comtumefação e edema da face externa do punho esquerdo com 5 cm por 2,5 cm.
3p. Estas lesões determinaram 3 dias de doença com afectação da capacidade para o trabalho profissional
4p. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, pois quis e conseguiu atingir o corpo e a saúde da ofendida, apesar de saber que a sua conduta era proibida e penalmente punida.
5p. A arguida, agente imobiliária de profissão, é isenta de antecedentes criminais e vive em Portugal há cerca de 8 anos, em companhia de seu marido e de dois filhos, um deles ainda menor; os réditos anuais do agregado familiar são não inferiores a 70.000,00 euros anuais.”
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são a da nulidade do julgamento por falta de tradução de um dos depoimentos prestados e a da impugnação da matéria de facto.
Da nulidade do julgamento por falta de tradução de depoimento prestado por testemunha de acusação:
O artigo 92º, nº 2, do Código de Processo Penal estipula que, quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.
A preterição da obrigação de nomeação de intérprete a (toda a) pessoa que não domine a língua portuguesa assume contornos especiais quando essa pessoa é o próprio arguido.
Assim, o art. 6º, nº 3 - als. c) e e) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – que é direito interno com valor superior à lei ordinária - assegura ao acusado o direito de ser informado em língua que entenda e de forma minuciosa da natureza e da causa contra ele formulada e o direito de se fazer assistir gratuitamente por interprete se não compreender ou não falar a língua usada no processo. A garantia de uma compreensão efectiva por parte do arguido, relativamente a actos processuais de tão sérias consequências como é o julgamento, não se reduz a uma aparência de possibilidade de compreensão.
O incumprimento das funções de intérprete, ou um cumprimento insuficiente ou deficiente de molde a inviabilizar ou prejudicar a adequada compreensão dos actos cuja comunicação é legalmente obrigatória, equivale à omissão de tradução. Corresponde a uma falta de nomeação de intérprete e a ela deve ser equiparada.
Mas a nulidade invocada em recurso – de falta de nomeação de intérprete nos casos em que a lei a considera obrigatória – encontra-se prevista (na al. c) do nº 2 do art. 120º do Código de Processo Penal) como nulidade sanável, dependente de arguição nos prazos previstos no nº 3 do art. 120º do Código de Processo Penal. E tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, a lei prescreve que o interessado reaja antes que o acto esteja terminado (art. 120º, nº 3 - alínea a) do Código de Processo Penal), não o podendo fazer posteriormente.
Exigindo-se uma reacção jurídica, que pressupõe os conhecimentos técnico-jurídicos do advogado, só não será exigível uma oposição imediata do arguido quando este se encontre desacompanhado de defensor (não devendo então considerar-se preclusiva a não arguição no acto a que o próprio assista - a possibilidade de reacção efectiva não se deve reduzir a uma aparência de possibilidade de reacção).
No caso, a arguida estava representada e assistida pela sua advogada em julgamento, e com intérprete nomeada para garantir a tradução/retroversão e a possibilidade de tradução. E se a arguida nada disse então, quanto à agora invocada ausência de tradução de um dos depoimentos ali prestados, também a sua advogada nada requereu. Sendo certo que lhes teria sido fácil conseguir a sanação imediata de eventuais nulidades decorrentes de uma tradução deficiente ou insuficiente.
Pelo que a nulidade só agora em recurso suscitada não pode deixar de se considerar como sanada.
Da impugnação da matéria de facto:
O art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas. Essa especificação faz-se por referência ao consignado na acta indicando o recorrente concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente” (de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 AFJ nº 3/2012). O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabilizará o conhecimento do recurso da matéria de facto.
No caso, o recorrente procedeu à transcrição das passagens em que funda a impugnação, como se imporia de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (AFJ nº 3/2012). Também procedeu à individualização dos pontos de facto, pelo que são de considerar como cumpridas as exigência formais de impugnação da matéria de facto.
Antes de avançar, e como reiteradamente e sem discordância se tem afirmado (na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, das Relações e em artigos doutrinários), lembra-se que o recurso da matéria de facto visa a detecção do erro de facto e não é, nem pode ser, um segundo julgamento: o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento – este decide sobre uma acusação, aquele decide sobre a (correcção da) sentença (de facto) – e a segunda instância não se encontra na mesma posição do juiz de julgamento perante as provas - não dispõe de imediação total e está impedida de interagir com a prova.
Assim, e sempre de acordo com o modelo de recurso de facto do Código de Processo Penal, à Relação só pode pedir-se que efectue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direccionados para a (sindicância da) sentença de facto (e sempre de acordo com o objecto do recurso delimitado pelo recorrente).
Dentro do mandato assim definido, restrito à detecção do erro de facto nos moldes expostos, passa a conhecer-se das razões do recurso.
O recorrente impugna a matéria de facto fixada na sentença, relativamente aos factos provados em a) e d). Considera não ter sido produzida prova suficiente de que tenha puxado os cabelos e torcido o braço esquerdo à ofendida. Para tanto, transcreve parte do depoimento da testemunha D, procede à sua análise e acentua a fragilidade desta prova atenta a alteração de versões operada no decurso do processo: em inquérito a testemunha referiu nada ter presenciado; em julgamento, relatou os factos da acusação, confirmando-os. Tudo desenvolve na argumentação resumida nas conclusões, transcritas supra (em 1.).
Na sindicância da sentença “de facto”, reveja-se o exame crítico das provas, apreciando a motivação:
“A arguida negou os factos, e enveredou por uma confusa história de familiares da ofendida R, problemas esses de que a arguida não queria saber o que irritou a ofendida; no entanto, a arguida, assevera, nada lhe fez.
2 - a - A testemunha D começou por anunciar que vinha ao Tribunal dizer a verdade, e explicou-se: pressionada pela arguida, prestou junto da Polícia (ver fls 24 auto citado pela testemunha) declarações de todo desconformes com a verdade, pois tinha visto tudo, e foi dizer que nada vira; esclarecida a sua posição, a testemunha disse que duas mulheres - R e E - tinham ido ao exterior (e isto a arguida confirma) voltaram para dentro a correr, a arguida atrás da ofendida, cujos cabelos aquela puxou violentamente, e a quem agarrou pelos braços, a quem vibrou socos e a quem arremessou violentamente para fora das instalações.
b - As declarações desta testemunha coincidem com os resultados ela de avaliação de folhas 6 a 8, produzido em 5 de Maio de 2011, salientando-se o seguinte: "Nesta data refere: Sensação de peso no membro superior esquerdo mobilização do punho esquerdo. Durante o exame apresentava grande labilidade emocional, muito chorosa e refere episódios de taquicardia"; a instabilidade (labilidade) identificada pela senhora Perita subscritora do relatório condiz com a violência da cena descrita pela testemunha D, que tem por isso, e forçosamente, de merecer crédito.
c - Ao tempo das declarações na PSP a testemunha era empregada da arguida, de quem se emancipou entretanto, não cabendo aqui mencionar outros detalhes contidos na gravação, mas que pouco vêm ao caso.
3 - A testemunha K, admitida nos termos do artigo Código de Processo Penal, tendo em atenção a ausência da ofendida a quem a testemunha disse conhecer, explanou uma série de opiniões, que teve de contradizer, mormente porque, segundo afirmou, a ofendida é "manipuladora" e "desonesta", e gosta de "gerar drama" para atrair as atenções; não levando em conta que a testemunha se sujeita a seguida criminalmente pela ofendida, devido aos qualificativos que usou, importa que o auto de exame médico-legal verifica instabilidade emocional na sequência de factos cujo efeito se aceita, sem esforço, que seja esse mesmo; de resto, a testemunha que é apenas uma opinião sua, somente notando que, da sua observação na escola onde prepara refeições para os alunos, "acha" que a ofendida facilmente faz amizades que rapidamente também desfaz; o posto de observação da testemunha, convém salientar édemasiado precário para conclusões que, de resto, não interessam aos autos.
4 - Concorreram também para a formação da prova o relatório médico-legal de folhas 5/8, o certificado do registo criminal de folhas 105 e o relatório social de fls 109/113.”
Como resulta do exame crítico, a prova dos factos resultou essencialmente da concreta prova indicada pela recorrente. E, como esta sinaliza, a testemunha D apresentou efectivamente duas versões no processo: no inquérito disse nada ter presenciado; em julgamento, relatou os factos que já assegurou ter presenciado.
Um depoimento prestado nestas condições apresenta-se com uma fragilidade acrescida, a aditar aos inúmeros factores que contribuem para a falibilidade do próprio testemunho humano. Apesar dessa falibilidade, ele continua a ser, pela sua frequência, um dos meios de prova fundamentais em processo penal. E assim sucedeu também no caso presente.
E o tribunal curou de obter esclarecimento sobre a circunstância anómala da testemunha Dília Gamboa ter apresentado duas versões contraditórias. Esta explicou por que razão não relatara logo os factos quando ouvida em inquérito: trabalhava então para a arguida, encontrando-se na dependência desta, situação que entretanto se alterou.
Foi pois apresentada uma explicação plausível, e não contraditada pela própria arguida, que funciona no sentido da confiança no depoimento prestado em julgamento. Admite-se que, na inexistência de outros elementos que influíssem na formação da convicção, esta prova se afigurasse como insuficiente para condenar. A arguida negou a prática dos factos. E as declarações de arguido não são, em abstracto, menos credíveis do que as das vítimas ou de outras testemunhas. As declarações do arguido, reconhecidamente consideradas como um meio de defesa, mais do que um meio de prova, são, corolário do direito a ser ouvido, a falar e/ou a não falar. E mesmo aceitando-se que o arguido tenha um interesse no desenrolar do processo e no seu desfecho, esse interesse pode também verificar-se por parte da vítima e, mediatamente, das testemunhas com ligação a esta. Seria, pois, juridicamente errado justificar um eventual menor peso probatório das declarações de um arguido com a ausência de juramento ou com o seu interesse no processo.
Mas o exame crítico da prova não revela que o tribunal tenha formado o seu juízo de convicção com deformação das regras e princípios de prova. A prova produzida e examinada não consistiu apenas nas declarações da arguida e no depoimento da testemunha em causa, de sinal contrário e de peso probatório semelhante. A convicção assentou, também, na perícia de avaliação do dano corporal efectuada à pessoa da vítima, no dia subsequente à data da prática dos factos, que atesta lesões físicas compatíveis com o episódio descrito.
A sentença explica, pois, de um modo racional e lógico, a matéria de facto provada. Esclarece também a irrelevância do depoimento da testemunha K, que nada presenciou, tendo deposto sobre circunstâncias meramente laterais.
E assim se pode concluir que existe total conformidade entre o que foi dito e aquilo que o tribunal ouviu e refere ter ouvido; que nenhuma das provas é proibida ou foi produzida fora das normas procedimentais que regem os meios de prova em apreciação; que o tribunal justificou adequadamente a opção que fez relativamente à escolha e graduação dos conteúdos probatórios; que, perante provas de sinal contrário e, abstractamente, de igual peso probatório, atribuiu-lhes valor positivo ou negativo de uma forma racionalmente justificada, apelando às regras da lógica e da experiência comum, conforme suficientemente explicado na sentença e sem violação do princípio do in dúbio. Pelo que se conclui pela não detecção de erro de facto.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.
Custas pela recorrente que se fixam em 4UC.
Évora, 01.10.2013
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)
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[1] - Sumariado pela relatora.