CADUCIDADE
FACTO CONTINUADO
RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
JUSTA CAUSA
AVISO PRÉVIO
Sumário


I- Baseando-se a justa causa para a resolução do contrato por iniciativa do trabalhador em factos continuados, a contagem do prazo de 30 dias previsto no artigo 395º, nº1 do Código do Trabalho, apenas se inicia quando cessar a situação ilícita consubstanciadora da justa causa.
II- Demonstrado que, desde 19 de Março de 2012 até à data da cessação do vínculo laboral, por iniciativa da trabalhadora, esta passou a exercer as funções de categoria inferior à sua, por imposição da ré, conclui-se que a conduta da empregadora que não é instantânea, perdura no tempo, ininterruptamente e permanece até à data da resolução do contrato pela trabalhadora, constituindo, assim, um facto continuado.
III- Também a assumida falta de pagamento da prestação relativa à isenção do horário de trabalho, constitui um ilícito continuado, renovando-se permanentemente o seu conhecimento até cessar.
IV- Daí que, mantendo-se os factos continuados que servem de origem à justa causa, à data da resolução do contrato pela trabalhadora, ainda não se havia iniciado a contagem do prazo de caducidade previsto no artigo 395º, nº1 do Código do Trabalho.
V- A cessação do contrato de trabalho, pode ser promovida pelo trabalhador (denúncia ou resolução), porém, enquanto que no caso de denúncia o trabalhador está obrigado a avisar previamente o empregador, com consequências legalmente previstas para o incumprimento desta obrigação (artigos 400º e 401º do Código do Trabalho), na situação de resolução do contrato com fundamento em justa causa, releva o motivo que origina a ruptura do vínculo laboral, pois tal motivo traduz-se sempre numa impossibilidade de subsistência da relação laboral, com génese numa circunstância objectiva ou num comportamento ilícito e culposo do empregador, estando o trabalhador isento de cumprir o aviso prévio.
VI- Não litiga de má fé, o recorrente que sustenta legitimamente uma tese jurídica diferente da que foi acolhida na sentença posta em crise, quanto à questão da caducidade, mesmo que tal tese venha a ser julgada improcedente, tanto mais, quando foi atribuído ao recurso efeito meramente devolutivo.

Sumário da relatora

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I.Relatório
N..., com o NIF …, residente na …, veio intentar a presente acção declarativa, emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra Q..., Lda., com o NIPC … e sede no …, pedindo que seja judicialmente reconhecida a justa causa para a resolução do contrato de trabalho, de sua iniciativa e que a ré seja condenada a liquidar à autora todas as compensações devidas pela cessação do contrato de trabalho, no montante global de € 19.383,27, acrescido dos juros moratórios, à taxa legal.
Alegou, em síntese, que tendo celebrado, em 15 de Fevereiro de 2007, um contrato de trabalho com a ré, esta, em 19 de Março de 2012, baixou-lhe a categoria, sem o seu consentimento, deixou de lhe pagar quase metade da compensação pela isenção de horário de trabalho, retirou-lhe o telemóvel e o veículo automóvel.
Na sequência, resolveu o contrato de trabalho, em 3 de Maio de 2012, invocando justa causa. A ré, todavia, não reconheceu a justa causa alegada e não liquidou créditos laborais devidos, uns decorrentes directamente da cessação do contrato, outros respeitantes a trabalho prestado e não pago, designadamente comissões, prémios de venda, retenções do salário ilegalmente efectuadas, indemnização prevista no artigo 396º do Código do Trabalho, três dias de salário relativos ao mês de Maio de 2012, férias vencidas e não gozadas e respectivo subsídio, proporcionais de férias, de subsídio de férias e de subsídio de natal, isenção de horário de trabalho retirada nos meses de Março e Abril de 2012.
Mais alega que, em função da conduta assumida pela empregadora, sofreu danos de natureza não patrimonial que devem ser ressarcidos, por via de uma indemnização no valor de € 5.000,00.
Realizada a Audiência de Partes, na mesma não foi possível a conciliação.
Contestou a ré, excepcionando a caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho, pelo decurso de prazo superior a 30 dias após o conhecimento dos factos que fundamentavam a justa causa invocada, impugnando ainda a matéria alegada pela autora e sustentando que esta não dispunha de fundamentos bastantes para resolver o contrato de trabalho. Em sede reconvencional, pede o pagamento da quantia de € 1.536,75, a título de pré-aviso em falta e fardamento não devolvido, bem como a condenação da autora como litigante de má fé, com o consequente pagamento de uma multa e indemnização a favor da ré, no montante de € 2.500,00.
Reconhece ser devido à autora o montante global de € 1.738,81, pelo que, efectivando-se a compensação de créditos, é ainda credora da quantia de € 2.297,94.
Peticiona, também, a condenação da autora no pagamento dos juros moratórios à taxa legal, desde a notificação da reconvenção e até integral pagamento.
A autora respondeu à defesa por excepção, invocando que a situação motivadora da justa causa invocada, traduz-se num facto continuado, pelo que não se verifica a apontada caducidade. Reafirmou a versão dos factos apresentada na petição inicial e nega qualquer direito à ré ao pré-aviso de 60 dias. Impugna, também, a invocada litigância de má fé.
O Meritíssimo Juiz a quo admitiu o pedido reconvencional deduzido, somente quanto ao valor de € 1.536,75, relativo à falta de aviso prévio e ao valor do fardamento, considerando que o pedido de condenação da autora como litigante de má fé não é fundamento de reconvenção.
Procedeu-se ao saneamento do processo. Dispensou-se a selecção dos factos assentes e a organização da base instrutória.
Designou-se, então, data para a audiência final, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto, que não sofreu qualquer reclamação.
Após, foi proferida sentença, cuja parte decisória tem o seguinte teor:
«Destarte, julgo a acção parcialmente procedente e, reconhecendo que a A. N... procedeu com justa causa à resolução do seu contrato de trabalho, condeno a Ré Q…, Lda., a pagar-lhe a quantia global de € 7.408,62, acrescendo juros de mora, à taxa do art. 559.º n.º 1 do CCivil, contados desde o dia 03.05.2012 e até integral pagamento.
A reconvenção é julgada improcedente.
Não vislumbro litigância de má fé da A. – a sua causa de pedir e o seu pedido não violam, manifestamente, as regras de boa fé processual exigidas pelo art. 456.º n.º 1 do CPCivil.»
Foi fixado à acção o valor de €23.420,02.
Inconformada com tal decisão, veio a ré interpor recurso da mesma, apresentando a finalizar as suas alegações, as seguintes conclusões:
«1- Desde pelo menos 19 de Março de 2012 até 3 de Maio de 2012 passaram bem mais de 30 dias após o conhecimento dos factos, verificando-se a caducidade do direito de resolver o contrato com justa causa.
2- A A. deixou preculir o prazo constante no art.395 n.° 1 do C.T., prazo que é de caducidade. 3- A caducidade constitui uma forma de extinção de direitos pelo não exercício dos mesmos no prazo fixado na lei, no caso «trinta dias subsequentes ao conhecimento dos factos»
4- Tem a R. direito ao prazo de pré-aviso em falta, 60 dias, uma vez que a A. tinha mais de dois anos de antiguidade, ou seja, 1.300 €, nos termos dos art. 399º a 401 C.T.
5- Não tem a A. direito à indemnização prevista no art. 396 n.° 1 e 2 do CTrabalho - € 3.388,90, bem como à indemnização por danos morais - € 1.500,00;
6- O Pedido reconvencional deveria ter sido atendido, operando-se a compensação de créditos. 7- Deveria a R. ser condenada no pagamento da quantia de € 1.219,72.
8- Foram violados, por incorrecta aplicação e ou interpretação os artigos 394.°, 395.º, 398.° 399.° e 401.°, todos do C.Trabalho, 436.°, 329.°, 8.° e 9.° do C.Civil..
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, com o que se fará JUSTIÇA.».
Contra-alegou a recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
«1. A Recorrente vem requerer a atribuição de efeito suspensivo ao recurso por si interposto, com fundamento no artigo 691.º do Código de Processo Civil, sendo que, no que nos interessa, prevê a alínea d) desse normativo que têm efeito suspensivo as apelações de decisões que condenem no cumprimento de obrigação pecuniária.
2. O efeito suspensivo pretendido pela Recorrente não pode ser atribuído ao recurso, uma vez que tal normativo carece de ser interpretado restritivamente, sendo os efeitos devolutivos o efeito regra dos recursos de apelação, e o efeito suspensivo pensado para os casos em que a condenação em quantia pecuniária a título de sanção pecuniária compulsória, ou outra de natureza semelhante. (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-06-2007, no qual se refere que "A apelação no C.P.T. tem efeito meramente devolutivo, o que é a regra — art9 83º, nº 1, CPT. II — Caso se pretenda obter o efeito suspensivo há que requerer a prestação de caução, nos termos e modo legalmente previstos, caução que tem uma dupla finalidade: evitar a imediata execução do julgado (obtendo com a sua prestação o efeito suspensivo); e garantir ao credor a satisfação do seu crédito, servindo de garantia ao cumprimento da obrigação do devedor, caso a decisão venha a ser confirmada no recurso. III — O montante da caução que a parte vencida tem a faculdade de prestar..., para obter o efeito suspensivo do recurso de apelação, deve corresponder ao quantitativo provável do crédito, abrangendo quer a parte líquida quer a parte ilíquida da condenação — Ac. STJ n0 6/2006, in D.R., I série, de 24/10/2006.")
3. Por outro lado, vem a Recorrente alegar que caducou o direito da Recorrida, em resolver com justa causa, o seu contrato de trabalho, em virtude de não o ter feito nos 30 dias posteriores ao conhecimento da motivação que lhe serve de base.
4. Não deve proceder a argumentação da Recorrente, na medida em que o prazo de 30 dias começa apenas a correr na data em que cessa o facto continuado que serve de origem à justa causa. (A este respeito, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-12-2012 "Na verdade, a redacção do n.º 1 do art. 395.º do CT/2009 é idêntica à do n.º 1 do art. 442º do CT/2003 que estipulava que a declaração de resolução deve ser feita nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos. Mas como se considerou no Acórdão desta Relação (subscrito pela mesmo relator) de 14-12-2006 (www.dgsi.pt, proc. 125/06.9TTAVR.C1), num entendimento que não vemos razão para alterar, o que releva para a lei, não é o facto instantâneo do incumprimento, mas a situação continuada de incumprimento. Tratando-se de um facto continuado, se se mantiver a omissão de pagamento da retribuição, então o tal prazo de trinta dias sobre o conhecimento dos factos que a fundamentaram (a que se refere o nº 1 do art. 442º do Código do Trabalho) só deve iniciar-se quando cessar a situação ilícita que assuma gravidade para a sustentação do recurso à resolução (v. a este propósito Ac. Rel. Évora de 21-3-1995, in BMJ 445-641 e Pedro R. Martinez, Direito do Trabalho, 2.ª edição, pag. 986, a propósito do artigo 34º nº 2 do DL 64-A/89; e, ainda, Albino Mendes Batista, Estudos sobre o Código do Trabalho, 2ª ed., págs. 35 e 36).
5. E esse facto manteve-se inalterado — a Recorrida era comercial e foi colocada no armazém a proceder à higienização de unidades de higiene — até à data da resolução do contrato como justa causa, pelo que dúvidas não existem de que a Recorrida resolveu, em tempo, o seu contrato de trabalho.
6. Verificando-se por isso a resolução atempada do contrato, por parte da Recorrida, com justa causa, por atuação ilícita da entidade empregadora a qual foi, e bem, condenada a indemnizar a Recorrida pela cessação do seu contrato de trabalho.
7. Requerendo-se ainda a condenação da Recorrente, como litigante de má-fé, na medida em que deduz pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, devendo a mesma ser condenada em multa, e no pagamento do acréscimo de despesas tidos pela Recorrida com mandatário judicial, e custas judiciais.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pela Recorrente ser julgado improcedente, por não provado e em consequência manter-se a decisão recorrida, e ainda condenar-se a Recorrente como litigante de má-fé.
Assim decidindo farão V. Exas. a vossa acostumada justiça!»
O tribunal de 1ª instância admitiu o recurso como apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo (uma vez que a apelante não prestou a caução a que se propôs, no prazo que para o efeito lhe foi assinalado).
Neste tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
As partes não ofereceram qualquer resposta a tal parecer.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Objecto do Recurso
É consabido que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso.
Em função destas premissas, são as seguintes as questões que importa apreciar:
1ª da suscitada caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho;
2ª da visada atendibilidade do pedido reconvencional.
Importa, ainda, conhecer da requerida condenação da apelante como litigante de má fé, apresentada no âmbito das contra-alegações de recurso.
Quanto à questão do efeito do recurso, levantada pela recorrida, a mesma mostra-se prejudicada, por força da atribuição ao mesmo de efeito meramente devolutivo.
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III. Matéria de Facto
A 1ª instância considerou provados, os seguintes factos:
1. A Ré dedica-se à comercialização, importação e exportação de equipamentos e produtos, assim como à prestação de serviços nas áreas de higiene, controlo de pestes, melhoria da qualidade de ar e de água no interior de edifícios e na área da jardinagem; à prestação de serviços de consultoria a empresas nas áreas anteriormente descritas, e à protecção da saúde e preservação do meio ambiente;

2. A A. foi contratada pela Ré em 15.02.2007 para, sob as ordens e direcção desta, desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de administrativa, mediante a retribuição mensal ilíquida de € 403,00, acrescida de subsídio de refeição de € 5,93, por cada dia de trabalho efectivamente prestado;

3. Em 01.01.2008, A. e Ré celebraram um aditamento ao contrato de trabalho, pelo qual a primeira passou a exercer as funções de delegada comercial, importando essa alteração um aumento da retribuição base, que passou a cifrar-se nos € 650,00 mensais;

4. Na mesma data foi acordada a isenção de horário de trabalho, considerando que a A. passaria a exercer a sua actividade fora do estabelecimento, sem controlo imediato da hierarquia, auferindo a esse título um montante mensal, ultimamente fixado em € 122,33;

5. No dia 15.03.2012, a gerência da Ré entregou à A. o escrito de fs. 85, que aqui se considera integralmente reproduzido, comunicando-lhe que, “em função dos resultados obtidos e do não cumprimento dos objectivos mínimos estabelecidos”, a sua zona de trabalho seria alterada a partir dessa data, desenvolvendo a actividade “na área da sua residência e da sede, dentro do estabelecimento, com controlo imediato da hierarquia”;

6. Ainda pelo mesmo escrito, a A. foi informada que deixava de “cumprir os requisitos para a atribuição da isenção de horário de trabalho, razão pela qual lhe vai ser retirada a partir da presente data”;

7. Pelo menos na segunda-feira seguinte, 19.03.2012, a trabalhadora recebeu ordens para passar a exercer as suas funções no armazém, prestando apoio à chegada das unidades de higiene, denominadas de Recipiente / Contentor Asséptico, e destinadas à recolha, nos clientes, de absorventes higiénicos;

8. Sendo que, depois de as receber, passaria a ser sua função higienizá-las e colocá-las disponíveis e em condições de serem levadas novamente para os clientes;

9. A A. sentia-se humilhada por, com as habilitações que tem, estar a prestar este tipo de trabalho;

10. Chegado o final do mês de Março de 2012, a ora A. verificou que, a título de isenção de horário de trabalho, só lhe havia sido paga a quantia de € 61,88;

11. Questionada a entidade empregadora pelo sucedido, a mesma informou a A., que tal quantia não era devida a partir de 15.03.2012, na sequência da comunicação efectuada nessa data;

12. No dia 15.03.2012 foi solicitada à A. a entrega do telemóvel e do veículo automóvel que utilizava nas suas funções até essa data;

13. A A. necessitava de continuar a obter rendimentos, e ainda trabalhou o mês de Abril de 2012 e três dias do mês de Maio de 2012;

14. Em 03.05.2012, a Ré recebeu a carta da A. de fs. 32 a 34 dos autos, que aqui se considera integralmente reproduzida, pela qual esta lhe comunicava que procedia à resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa, solicitando ainda a entrega da declaração da situação de desemprego, assinalando tal motivo;

15. Em resposta, a Ré remeteu o certificado de trabalho e uma declaração de situação de desemprego, assinalando como motivo a “Denúncia do Contrato de Trabalho/Demissão”;

16. Os mandatários da A. remeteram uma missiva à Ré, em 14.05.2012, solicitando o pagamento de créditos laborais no valor global de € 8.032,56, bem como o reenvio de uma declaração de situação de desemprego, mencionando o “despedimento com justa causa por iniciativa de trabalhador”;

17. Respondeu a Ré por carta de 16.05.2012, afirmando não reconhecer a justa causa alegada nem os valores reclamados, acrescentando que o modelo da Segurança Social se encontrava devidamente preenchido, sendo “manifestação clara do não reconhecimento da alegada justa causa”;

18. A A. celebrou para a Ré o contrato da Casa dos Professores, em 06.03.2012, no valor de € 782,28 (contrato de 3 anos), correspondendo-lhe uma comissão de € 39,11;

19. Em 2008 a A. celebrou para a Ré um contrato com a Securitas;

20. Em 24.07.2008, a A. teve um acidente de viação quando conduzia uma viatura da Ré, tendo sido considerada culpada pela Seguradora que cobria o risco de choque, colisão ou capotamento, tendo a Ré descontado à trabalhadora a franquia do seguro, no montante de € 250,00;

21. A gerência da Ré informou a A. que iria accionar a Câmara Municipal de Palmela por a considerar responsável pelo acidente e que, se fosse imputada essa responsabilidade à Câmara, tal valor ser-lhe-ia devido;

22. A A. inclusivamente requereu uma certidão do auto de ocorrência, que pagou e entregou à legal representante da Ré, para que fosse instaurado tal processo;

23. Porém, consultada a Câmara, verificou a A. que não foi proposta qualquer acção contra a mesma;

24. Em Março de 2008, a Ré descontou no vencimento da A. a quantia de € 250,00, relativa a uma multa aplicada à Ré pelo incorrecto preenchimento de uma guia de transporte;

25. A A. é jovem e reconhecida como uma profissional dedicada;

26. Com os factos ocorridos a partir de 19.03.2012, a A. foi falada entre os seus colegas, que se questionaram sobre o que teria feito;

27. Ainda pelos mesmos factos, a A. sentiu-se angustiada e insegura, sendo que durante dias se recusou vestir e sair de casa, tendo crises de choro;

28. Viveu ainda na insegurança de poder vir a passar dificuldades económicas;

29. A viatura comercial atribuída pela Ré à A. era destinada ao trabalho externo e ao serviço exclusivo daquela, para fins profissionais;

30. O telemóvel foi facultado para utilização única e exclusiva ao serviço da Ré, para fins profissionais;

31. O contrato assinado com o cliente Webasto foi rescindido por este, tendo a respectiva factura sido creditada e os serviços retirados;

32. No ano de 2011, a A. esteve de baixa entre 04.04.2011 em 11.05.2011, inclusive;

33. Aquando da sua saída da empresa, a A. não entregou o fardamento que a Ré lhe facultou, no valor de € 236,75.
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IV. Da suscitada caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho
Resulta da matéria de facto assente que, em 3 de Maio de 2012, a autora, comunicou por escrito à ré que procedia à resolução do seu contrato de trabalho, com invocação de justa causa.
Afirma a ré que, nessa data, o direito de resolução do contrato já se encontrava extinto por caducidade.
Apreciemos a questão.
Ao caso sub judice aplica-se o Código do Trabalho aprovado pela Lei nº7/2009, de 12 de Fevereiro.
E, de harmonia com o disposto no artigo 394º, nº1 do referido diploma legal, o trabalhador pode fazer cessar o contrato de trabalho imediatamente (ou seja, sem necessidade de avisar antecipadamente o empregador), sempre que se verifique uma situação de justa causa.
A justa causa pode ser objectiva (não culposa) ou subjectiva (culposa).
A primeira, prevista no nº3 do referido normativo, resulta de circunstâncias objectivas, relacionadas com o trabalhador ou com a prática de actos lícitos pelo empregador.
A segunda, tem na base um comportamento ilícito da entidade empregadora e a ela se reporta o nº 2 do preceito (embora, a título meramente exemplificativo).
A distinção entre as duas formas de justa causa mostra-se relevante, devido às consequências legalmente previstas.
De acordo com a norma inserta no nº1 do artigo 395º do mesmo Código, o trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
Ora, na situação em apreço nos autos, a autora motivou a resolução do contrato em justa causa subjectiva, ou seja, em violação culposa pela empregadora das garantias e direitos da trabalhadora.
Designadamente, apresentou para fundamentar a invocada justa causa, as seguintes razões:
- mudança ilícita da trabalhadora para categoria inferior [artigo 129º, nº1, alínea e) do Código do Trabalho];
- diminuição ilegal da retribuição [alínea d) do indicado artigo 129º].
No essencial, a autora concretizou tais razões, referindo que tinha a categoria profissional de “Delegada Comercial”, mas, desde 19 de Março de 2012, por imposição da empregadora, passou a exercer funções que se podem enquadrar na categoria profissional de “Fiel de armazém”. Para além disso, desde 1 de Janeiro de 2008, tinha-lhe sido atribuída uma isenção de horário, que lhe conferia o direito a receber um acréscimo remuneratório mensal de € 122,33, acréscimo esse que lhe foi retirado, desde 15 de Março de 2012, assim como lhe foi retirado o veículo e telemóvel da empresa.
Para fundamentar a suscitada caducidade do direito de resolução do contrato, invoca a apelante que, em 15 de Março de 2012, a trabalhadora teve conhecimento de todos os factos que lhe permitiam ajuizar a dimensão da lesão dos seus direitos, pelo que poderia, nos trinta dias subsequentes a esse conhecimento, exercer o respectivo direito de resolver o contrato de trabalho. Assim, quando procedeu à resolução do mesmo, em 3 de Maio de 2012, já havia decorrido o referido prazo de 30 dias, pelo que o direito já estava extinto.
Na sentença recorrida, entendeu-se que a excepção peremptória da caducidade invocada não se verificava, porque os factos consubstanciadores da justa causa invocada são factos continuados, que se mantinham na data em que foi cessado o contrato, pelo que a contagem do mencionado prazo de caducidade, apenas se iniciaria após o termo do comportamento infractor.
Nenhuma censura nos merece este entendimento e passamos, de seguida, a explicar porquê.
Em face da factualidade assente, constata-se que, desde 19 de Março de 2012 até à data da cessação do vínculo laboral, por iniciativa da trabalhadora, esta passou a exercer as funções descritas nos pontos 7 e 8 da motivação de facto, por imposição da ré. Ou seja, temos uma conduta da empregadora que não é instantânea, perdura no tempo, ininterruptamente e permanece até à data da resolução do contrato pela trabalhadora.
Também a assumida falta de pagamento da prestação relativa à isenção do horário de trabalho, é conhecida da autora, por via da comunicação do dia 15 de Março de 2012, feita pela empregadora e é confirmada no final do mês de Março, quando a autora verifica que só lhe havia sido paga a quantia de € 61,88, a título de isenção de horário de trabalho.
Ora, desde há muito que a jurisprudência dos tribunais superiores tem considerado que a falta de pagamento pontual da retribuição constitui um ilícito continuado, renovando-se permanentemente o seu conhecimento até cessar (cfr., a título de exemplo, acordãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/10/1997, P. 98S031, de 13/3/1996, Colectânea de Jurisprudência-STJ, T, I, pág, 272, de 8/10/2008, P. 08S721 e acórdão da Relação de Coimbra de 13/12/2012, P. 923/11.1TTLRA.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
E, estando em causa factos continuados, a contagem do prazo de caducidade previsto no artigo 395º, nº1 do Código do Trabalho, apenas se inicia quando cessa a situação ilícita que consubstancia a justa causa invocada.
Logo, mantendo-se a situação que consubstancia a justa causa invocada à data da resolução do contrato pela trabalhadora, ainda nem se havia iniciado a contagem do prazo de caducidade, a que alude o mencionado normativo.
Improcede, por isso, a invocada excepção peremptória da caducidade.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido ao decidir nesse sentido.
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V. Da visada atendibilidade do pedido reconvencional
Em sede de recurso, vem a apelante argumentar que o tribunal de 1ª instância deveria ter atendido ao pedido reconvencional deduzido, na parte relativa à falta do aviso prévio, fazendo, ainda, operar a compensação de créditos.
Desde já se adianta que nenhuma razão assiste à recorrente.
Conforme já se referiu supra, o artigo 394º, nº1 do Código do Trabalho consagra a possibilidade de cessação imediata do contrato pelo trabalhador, com fundamento em justa causa.
A propósito desta modalidade de cessação do contrato de trabalho, escreve Pedro Furtado Martins, in “Cessação do Contrato de Trabalho”, 3ª edição, pág. 523: “a função da justa causa na resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador é, pois, diversa da justa causa de despedimento. Na resolução pelo trabalhador, a justa causa tem como efeito essencial dispensar o trabalhador de cumprir o aviso prévio a que normalmente estaria obrigado para promover a extinção do vínculo laboral através da denúncia”. E, na página seguinte continua: “em conclusão, a justa causa de resolução desempenha uma função completamente diferente da da justa causa de despedimento. Trata-se, tão-só, de isentar o trabalhador de cumprir o aviso prévio que, na ausência de justificação, está obrigado a conceder ao empregador (…)”.
Deste modo, podemos afirmar que a cessação do contrato de trabalho, pode ser promovida pelo trabalhador (denúncia ou resolução), porém, enquanto que no caso de denúncia o trabalhador está obrigado a avisar previamente o empregador, com consequências legalmente previstas para o incumprimento desta obrigação (artigos 400º e 401º do Código do Trabalho), na situação de resolução do contrato com fundamento em justa causa, releva o motivo que origina a ruptura do vínculo laboral, pois tal motivo traduz-se sempre numa impossibilidade de subsistência da relação laboral, com génese numa circunstância objectiva ou num comportamento ilícito e culposo da empregadora.
Reportando-nos agora ao caso concreto, há que salientar que a apelante, em sede de recurso, não pôs em causa a justa causa da resolução do contrato, mostrando-se assim definitiva a decisão do tribunal de 1ª instância que considerou que a relação laboral que vigorou entre as partes cessou por resolução fundamentada em justa causa, da iniciativa da trabalhadora.
Logo, a trabalhadora estava isenta de cumprir o aviso prévio, pelo que, não podia ser incumprida uma obrigação inexistente.
Daí que a ré/recorrente não tivesse direito a qualquer indemnização baseada no incumprimento do aviso prévio.
Bem andou, pois, o tribunal de 1ª instância, ao considerar improcedente o pedido reconvencional, na parte questionada nas alegações e conclusões de recurso.
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VI. Da requerida condenação como litigante de má fé
No âmbito das contra-alegações oferecidas, a recorrida requer que a apelante seja condenada como litigante de má fé.
Cumpre apreciar.
A ordem jurídica portuguesa põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direito.
“A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”- artigo 20º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.
Todavia, ao princípio da licitude do exercício dos meios processuais, a ordem jurídica põe uma limitação: esse exercício tem que ser sincero, obedecer a uma ética de ordem moral (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, 3ª edição, vol. II, pag.261).
Quando falte este requisito, o exercício dos meios processuais passa a ser ilícito e, por isso, censurável.
No nosso ordenamento jurídico, a limitação do exercício abusivo dos meios processuais disponíveis, mostra-se consagrada no artigo 456º do Código de Processo Civil (na redacção anterior, aplicável aos autos).
Estipula tal normativo que se considera litigante de má fé, aquele que com dolo ou negligência grave:
- tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
-tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a boa decisão da causa;
-tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
-tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal , impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da Decisão.
Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir, ao abrigo do nº1 do aludido normativo.
Mostra-se pacífico, desde há muito, que a litigância de má fé nada tem a ver com a falta de demonstração dos factos em que a parte processual assenta a sua pretensão ou a sua defesa (cfr. acordãos desta Relação, de 5/5/2011, P. 170/05.1TVLSB.E1 e de 22/6/2010, P. 567/04.4TTFAR, disponíveis em www.dgsi.pt) ou com a sustentabilidade de teses jurídicas controvertidas (cfr. acordão desta Relação de 20/12/2012, P.32/12.6TTABT.E1, disponível na mesma base de dados).
A ideia de litigância de má fé está associada à necessidade de censura de “um comportamento inadequado à ideia de um processo justo e leal que constitui a emanação do princípio de Estado de Direito”- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/3/2008, disponível em www.stj.pt.
Nas palavras de Cecília Silva Ribeiro, [a] má fé processual, em sentido, (…) é toda a actividade desonesta, cavilosa, proteladora (para cansar o adversário) unilateral ou bilateral, verificada no exercício do direito de acção, quando desenvolvida com a intenção de prejudicar outrem, quer ela respeite ao mérito da causa (lide caluniosa, fraudulenta, etc.) quer às medidas instrumentais, desde que seja ilícita, isto é violadora das normais gerais e especificas da conduta processual, tendentes a criar as condições favoráveis a uma boa e justa decisão do pleito”, (“do dolo geral e do dolo instrumental em especial no processo civil”; ROA, ano 9, págs.83-113, citada por Paula Costa Ribeiro, in “A Litigância de Má Fé”, Coimbra Editora, 2008, pag. 389).
Definida a figura da litigância de má fé, passemos à apreciação do caso sub judice.
A recorrida baseia a invocada litigância de má fé na circunstância da recorrente ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, com o objectivo de protelar no tempo o trânsito em julgado de uma decisão que julgou verificada, por provada, a existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho.
Desde já se adianta a falência de tal argumentação.
Decorre das alegações e conclusões de recurso que a apelante discordou da aplicação de direito, feita pelo tribunal a quo quer quanto à questão da suscitada caducidade da resolução do contrato de trabalho, que quanto à não atendibilidade do pedido reconvencional.
Para motivar a sua discordância, sustentou a sua tese jurídica.
A improcedência de tal tese, nada tem a ver com a litigância de má fé.
A recorrente usou do legítimo direito ao recurso para aceder à segunda instância de julgamento.
Nada nos indica, também, que o recurso tenha sido utilizado como meio desonesto ou protelador, tanto mais, que ao mesmo foi atribuído efeito meramente devolutivo, pelo que, a qualquer momento, a ré poderia ver-se confrontada com uma execução da sentença condenatória (ainda que não transitada em julgado).
Pelo exposto, julgamos que não existem elementos que justifiquem a condenação da recorrente como litigante de má fé.

Concluindo, mostra-se improcedente o recurso interposto, bem como a requerida condenação da recorrente como litigante de má fé.
Custas pela recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil).
*
V. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Julgam igualmente improcedente o pedido de condenação da recorrente como litigante de má fé.
Custas pela recorrente.
Notifique.
Évora, 14 de Novembro de 2013
(Paula Maria Videira do Paço)
(Acácio André Proença)
(José António Santos Feteira)