FURTO DE OBJECTO DEIXADO NO VEÍCULO
Sumário


I - Tendo-se provado que o arguido, ao seguir na viatura do ofendido, aproveitou-se da atenção que este prestava à condução para lhe subtrair a carteira, aí colocada, incorreu na prática de um crime qualificado nos termos combinados dos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alínea b), do C. Penal.
II - Houve clara intenção do legislador em equiparar o furto de coisa móvel que se encontre numa relação de transporte com o veículo com aquela, que, simplesmente, aí foi colocada ou deixada, em razão da especial censurabilidade que se prende com o aproveitar do contexto específico que facilita a prática delituosa, em concreto, a concentração do condutor direccionada para a condução do veículo, ficando assim fragilizado e indefeso em relação às agressões que o seu património possa desse modo ser alvo.
III – É irrelevante, para o efeito, que a entrada no veículo seja, ou não, legítima.

Texto Integral


Proc. 100/12.4GBADV.E1
1ª Sub-Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida


No processo comum singular nº 100/12.4GBADV, do Tribunal da Comarca de Almodôvar, o arguido A foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, p.p., pelos Artsº 203 nº1 e 204 nº1 al. b), ambos do C. Penal, na pena de 120 ( cento e vinte ) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 ( cinco euros ), num total de € 600,00 ( seiscentos euros ).

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma ( transcrição ) :

I. Nos presentes autos, o ora Recorrente, A, foi acusado e condenado pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pela conjugação dos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 5,00€;
II. Na Douta decisão recorrida, o Tribunal “a quo” considerou provados os seguintes factos, com interesse para o presente recurso:
a) No dia 11 de Agosto de 2012, cerca das 01H20m, o arguido seguia no banco traseiro, no interior do veículo matrícula 71-45-UN, marca Citroen, na Estrada Regional 267, área desta Comarca, juntamente com B e C.
b) O arguido apropriou-se de uma carteira de cor castanha, propriedade de B, que se encontrava no interior do veículo automóvel, junto do travão de mão e que continha dois cartões multibanco do Banco Millenium BCP, seis cartões promocionais, um cartão de segurança do veículo automóvel de matrícula 13-HF-61 e dinheiro em euros (notas de 10€ e moedas) em quantia não concretamente apurada mas superior a 102,00€ (cento e dois euros).
c) O arguido aproveitou-se do facto de B ir a conduzir e atento à condução para subtrair a carteira.
d) O arguido actuou com o propósito de fazer sua a quantia monetária que estivesse no interior da carteira, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário.
e) Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
f) Por efeito do exercício de funções, o tribunal tem conhecimento que no âmbito do processo 128/10.9GBADV que correu termos neste tribunal, o arguido foi submetido a perícia psiquiátrica levada a cabo pelo Departamento de Psiquiatria da Unidade de Saúde do Baixo Alentejo e que concluiu o seguinte: “Doente com atraso do desenvolvimento psicomotor desde a nascença, com agravamento cognitivo pós traumático principalmente das funções executivas frontais. (…) Considero que deve ter imputabilidade atenuada, pelo atraso de desenvolvimento psicomotor existente desde a nascença, o que vai condicionar o juízo crítico e discernimento, para avaliar a consequência dos seus actos.”
g) O arguido trabalha actualmente como assalariado agrícola na tosquia de ovelhas o que faz por todo o Alentejo e Algarve.
h) Aufere 1€ por cada ovelha tosquiada, sendo que consegue tosquiar cerca de 70 a 90 ovelhas por dia.
i) Quando acabar a tosquia trabalhará no que for preciso, seja no campo, seja na construção civil.
j) Vive sozinho no Monte Domingas em casa que pertence à família só tendo como despesas os gastos quotidianos em alimentação e vestuário.
k) O arguido foi condenado pela prática em Outubro de 2001, Janeiro de 2003 e Novembro de 2005, de 3 crimes de desobediência qualificada previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 2 do Código Penal, em penas de multa.
l) O arguido foi condenado pela prática em Setembro de 2005 de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1 do Código Penal, em pena de 4 meses de prisão suspensa na sua execução.
m) O arguido foi condenado pela prática em Janeiro de 2009 de um crime de ameaça previsto e punido pelo artigo 153.º do Código Penal, em pena de multa.
n) O arguido, apesar de se ter comprometido a tal, não efectuou qualquer pagamento ao lesado.
III. Por tudo isto, considerou o Tribunal “a quo” que os factos descritos em b) e c) consubstanciavam a prática dum crime de furto,
IV. E que, uma vez que o bem furtado pelo Arguido se encontrava dentro dum veículo onde o mesmo era transportado, havia lugar à qualificação da conduta, por aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal;
V. Urge esclarecer que, embora não conste explicitamente dos factos dados como provados, o Arguido seguia na viatura automóvel do ofendido com autorização deste, ou seja, licitamente.
VI. Tal é claramente retirado da fundamentação da decisão, onde se plasmou que a testemunha B (ofendido) explicou “o motivo pelo qual deu boleia ao arguido”.
VII. Assim, o que importa aferir é se o furto de coisa móvel alheia colocada ou transportada em veículo, tendo o agente introduzindo-se licitamente (com autorização do proprietário) na viatura, pode ser qualificado por aplicação da alínea b), n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal.
VIII. Ora, considera o Recorrente, inequivocamente que os factos em análise não são enquadráveis na supra mencionada norma jurídica.
IX. Repare-se que o legislador, na alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º consignou expressamente que os furtos em habitação ou outros imóveis só serão qualificados se a introdução do agente for ilegítima.
X. Ou seja, se o agente se introduzir numa habitação convidado pelo proprietário, e posteriormente de lá furtar algo, tal não consubstancia um furto qualificado.
XI. Não seria lógico que tal não se aplicasse igualmente a viaturas,
XII. E que o legislador pretendesse punir de forma mais severa quem, como no caso dos autos, aproveitasse uma boleia para da viatura furtar um bem.
XIII. Neste sentido vai igualmente a posição de José de Faria Costa em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, que, debruçando-se sobre uma situação similar considera que “é também claro que se A dá boleia, todos os dias, a B, C e D, já que trabalham no mesmo local, tal atitude não faz – mesmo que haja comparticipação nos gastos – com que o carro de A seja um transporte colectivo. O que implica, fácil é de ajuizar, que se, por exemplo, C, durante uma das viagens, furta uma carteira a um dos colegas, não está a cometer um furto qualificado em razão da presente circunstância qualificadora” (sublinhado nosso);
XIV. Assim, e dando como provados os factos que deu, devia o Tribunal “a quo” ter considerado que o Arguido praticou um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal.
XV. Sucede que o queixoso, a folhas 43 dos autos, manifestou a sua intenção de desistir da queixa que havia apresentado contra o Arguido,
XVI. Sendo que já anteriormente, a folhas 35 dos autos, já o Arguido havia consignado que não se opunha a uma eventual desistência de queixa,
XVII. E certo é que o crime em apreço, furto simples, tem natureza semi-pública e depende de queixa.
XVIII. Assim, deveria o Tribunal “a quo” ter homologado a desistência de queixa apresentada em tempo pelo ofendido,
XIX. Declarando extinto o presente procedimento criminal contra o Arguido.
XX. Normas violadas:
· 204.º, n.º1, alínea b), 203.º, n.ºs 1 e 3 e 116.º, n.º 2, todos do Código Penal e 51.º, n.º 2 do Código de Processo Penal;
XXI. O Tribunal interpretou as normas que se consideram violadas no sentido de que a fundamentação que fez da matéria de facto e de direito com elas se harmonizava, quando deveria tê-las interpretado no sentido propugnado pela Recorrente na sua motivação.
Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido deve dar-se provimento ao presente Recurso com o que se fará a costumada, Justiça

C – Resposta ao Recurso

O M. P, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo ( transcrição ) :

1. A douta sentença não merece qualquer reparo.
2. O tribunal a quo fez uma correcta ponderação e apreciação da prova e, efectuou uma correcta qualificação jurídica dos factos.
3. O tribunal a quo ao dar como provado que o bem furtado pelo arguido se encontrava dentro dum veículo onde o mesmo era transportado, dá lugar à qualificação da conduta, por aplicação da alínea b) do n.° 1 do artigo 204.° do Código Penal.
V. Exas., no entanto, melhor decidirão e farão, como sempre, a habitual Justiça

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador Geral Adjunto, que se pronunciou pela improcedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal
de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 ( neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria ) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
In casu e cotejando a decisão em crise, não se vislumbra qualquer uma dessas situações, seja pela via da nulidade, seja ainda, pelos vícios referidos no nº2 do Artº 410 do CPP, os quais, recorde-se, têm de resultar do acórdão recorrido considerado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que ao mesmo sejam estranhos, ainda que constem dos autos.
Efectivamente, do seu exame, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal a quo, revelando-se a mesma como coerente com as regras de experiência comum e conforme à prova produzida, na medida em que os factos assumidos como provados são suporte bastante para a decisão a que se chegou, não se detectando incompatibilidade entre eles e os factos dados como não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Assim sendo, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto.
Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada ( Artº 410 nº3 do CPP )
Posto isto, inexistindo qualquer questão merecedora de aferição oficiosa, o objecto do recurso cinge-se, tão só, às conclusões do recorrente, nas quais discorda da qualificação jurídica da sua conduta operada pelo tribunal recorrido, na medida em que a mesma, em seu entender, deve ser enquadrada sob as vestes de um furto simples - e não, como ali se fez, por um furto qualificado - de onde resultará a extinção do procedimento criminal por via da desistência de queixa do ofendido.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado e não provado, o seguinte ( transcrição ) :

A) Resultaram provados os seguintes factos da acusação:

1. No dia 11 de Agosto de 2012, cerca das 01H20m, o arguido seguia no banco traseiro, no interior do veículo matrícula 71-45-UN, marca Citroen, na Estrada Regional 267, área desta Comarca, juntamente com B e C.
2. O arguido apropriou-se de uma carteira de cor castanha, propriedade de B, que se encontrava no interior do veículo automóvel, junto do travão de mão e que continha dois cartões multibanco do Banco Millenium BCP, seis cartões promocionais, um cartão de segurança do veículo automóvel de matrícula 13-HF-61 e dinheiro em euros (notas de 10€ e moedas) em quantia não concretamente apurada mas superior a 102,00€ (cento e dois euros).
3. O arguido aproveitou-se do facto de B ir a conduzir e atento à condução para subtrair a carteira.
4. O arguido actuou com o propósito de fazer sua a quantia monetária que estivesse no interior da carteira, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário.
5. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6. Por efeito do exercício de funções, o tribunal tem conhecimento que no âmbito do processo 128/10.9GBADV que correu termos neste tribunal, o arguido foi submetido a perícia psiquiátrica levada a cabo pelo Departamento de Psiquiatria da Unidade de Saúde do Baixo Alentejo e que concluiu o seguinte:
“Doente com atraso do desenvolvimento psicomotor desde a nascença, com agravamento cognitivo pós traumático principalmente das funções executivas frontais.
(…)
Considero que deve ter imputabilidade atenuada, pelo atraso de desenvolvimento psicomotor existente desde a nascença, o que vai condicionar o juízo crítico e discernimento, para avaliar a consequência dos seus actos.”
Mais se provou:
7. O arguido trabalha actualmente como assalariado agrícola na tosquia de ovelhas o que faz por todo o Alentejo e Algarve.
8. Aufere 1€ por cada ovelha tosquiada, sendo que consegue tosquiar cerca de 70 a 90 ovelhas por dia.
9. Quando acabar a tosquia trabalhará no que for preciso, seja no campo, seja na construção civil.
10. Vive sozinho no Monte Domingas em casa que pertence à família só tendo como despesas os gastos quotidianos em alimentação e vestuário.
11. O arguido foi condenado pela prática em Outubro de 2001, Janeiro de 2003 e Novembro de 2005, de 3 crimes de desobediência qualificada previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 2 do Código Penal, em penas de multa.
12. O arguido foi condenado pela prática em Setembro de 2005 de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1 do Código Penal, em pena de 4 meses de prisão suspensa na sua execução.
13. O arguido foi condenado pela prática em Janeiro de 2009 de um crime de ameaça previsto e punido pelo artigo 153.º do Código Penal, em pena de multa.
14. O arguido, apesar de se ter comprometido a tal, não efectuou qualquer pagamento ao lesado.

B) Factos não provados
Inexistem quaisquer factos da acusação que tenham ficado por provar.

Pelo tribunal recorrido, foi assim justificada a motivação da decisão de facto ( transcrição ) :

C) Convicção do Tribunal
Tendo o arguido sido julgado na ausência, o tribunal formou a sua convicção com base no depoimento das testemunhas B, C, bem como, a favor do arguido, no conhecimento que tem do processo 128/10.9GBADV.
Com efeito a testemunha B apresentou um depoimento isento e credível, com a espontaneidade e convicção de quem relata uma experiência que efectivamente vivenciou, tendo explicado o motivo pelo qual deu boleia ao arguido, onde estava a carteira, o montante em dinheiro que estaria no interior da mesma, a razão pela qual tem a certeza que a carteira se encontrava naquele local e que foi efectivamente o arguido a apropriar-se da mesma. Referiu que se lembra que a carteira estava junto às mudanças, porque estando inicialmente no banco de trás da viatura a mudou de local para o arguido se poder sentar – momento em que o arguido se terá apercebido da existência da mesma - mais referindo que deu pela sua falta assim que o arguido saiu do carro e que foi no seu encalço chamando pelo mesmo, sem sucesso, uma vez que este desapareceu na noite não respondendo aos chamamentos.
A testemunha C, pouco ou nada adiantou, limitando-se a confirmar que ia na viatura e a relatar o que B lhe relatou, já que a mesma não se apercebeu da carteira, o que é credível, uma vez que não era da própria e não terá visto a mesma quando B a mudou de local, porque não se sentou nesse local.
O arguido compareceu na data inicialmente designada para a leitura de sentença e prestou declarações negando os factos.
Não logrou convencer o tribunal.
Afirmou peremptoriamente que não retirou qualquer carteira e que se dava “muita bem” com o ofendido. Afirmou que até à data de hoje não sabia que lhe eram imputados semelhantes factos, contudo confrontado com o facto de ter prestado declarações perante a GNR (sem contudo as mesmas terem sido lidas), afirmou que afinal recorda-se de o ter feito no dia dos seus anos.
Instado pelo tribunal afirmou que ouve bem e que não ouviu nada desde que saiu do carro do ofendido até que chegou ao monte Domingas.
Com efeito, para além de ter prestado um depoimento hesitante, não faz qualquer sentido que o ofendido, explorador à data de um bar, se preste a dar boleia a um cliente e depois invente sem qualquer motivo – nem o arguido o conseguiu indicar – que lhe furtaram a carteira, inventando ainda pormenores como sejam o facto de ter mudado a carteira de sítio e de imediatamente após o arguido ter saído do carro se ter apercebido e saído no seu encalço gritando pelo seu nome. O tribunal acreditou nestas declarações, conforme supra se explanou, pelo que, ao afirmar que ouve bem e nada ter ouvido após sair da viatura, o arguido mentiu deliberadamente e comprometeu irremediavelmente a possibilidade do tribunal se convencer da sua versão.
Tendo o mesmo arguido sido julgado por este tribunal há apenas um mês, o tribunal aproveitou o conhecimento e extraiu do processo 128/10.9GBADV relatório pericial para ter em consideração nestes autos, bem como o relatório de fls. 99 a 101.
No que concerne aos factos atinentes às condições pessoais, económicas e sociais do arguido, o tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do próprio que se afiguraram credíveis nesta parte.
O tribunal formou a sua convicção na prova dos factos atinentes aos antecedentes criminais, com base no seu certificado de registo criminal constantes a fls. 81 a 89, não fazendo constar a condenação resultante do processo a que se alude em 6, uma vez que a mesma ainda não transitou em julgado.
Estabelecida a base factual pelo acórdão em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelo recorrente :

B.1. Do preenchimento do qualificativa da al. b) do nº1 do Artº 204 do C. Penal ;

Não se conforma o recorrente com a qualificação da sua conduta, operada pelo tribunal recorrido, por aplicação da alínea b) do nº1 do Artº 204 do Código Penal, por entender que tendo entrado licitamente no interior do veículo de onde se apropriou da carteira do ofendido, essa subtracção apenas pode configurar a prática de um crime de furto simples.
A tal propósito, disse-se na decisão sindicada ( transcrição ) :

III – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Feita a fundamentação de facto, importa agora efectuar o necessário enquadramento jurídico e aferir se o arguido efectivamente praticou o crime pelo qual vem acusado e se deverá pelo mesmo ser condenado.
O arguido vem acusado da prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º n.º 1 e 204.º n.º 1 alínea b) Vejamos o que dispõe cada uma das disposições legais.
O artigo 203.º do Código Penal dispõe o seguinte:

1 – Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa
2 – A tentativa é punível.
3 – O procedimento criminal depende de queixa.

Este é o tipo de crime base, sendo que o artigo 204.º, pune o mesmo crime, mas de forma mais gravosa, por se considerarem circunstâncias que agravam a culpa do agente e reclamam, moldura penal abstracta mais severa.
Contudo, se a conduta do agente não preencher o tipo base do artigo 203.º, não poderá preencher o tipo qualificativo, uma vez que este pressupõe a verificação prévia daquele. Vejamos então, antes de mais, se os factos se subsumem no crime de furto simples.
O crime em causa é um crime de dano, na medida em que é necessário haver lesão do bem jurídico protegido e, um crime de resultado, uma vez que a consumação do crime pressupõe uma alteração do espaço físico, em consequência da conduta do agente.
O bem jurídico protegido, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 2,ª edição actualizada, da Editora Universidade Católica, página 628, anotação 2 ao artigo 203.º, “é a propriedade, incluindo a posse e detenção legítimas.” Resulta assim, do preceito normativo em causa que, mais do que a propriedade em sentido estrito, este tipo legal de crime tutela a disponibilidade da coisa e a fruição das utilidades da mesma.
O elemento objectivo do tipo de crime encontra-se preenchido, pois que no crime de furto o tipo objectivo consiste na subtracção de coisa móvel alheia. Atentou-se contra a propriedade e possibilidade de fruição dos bens por parte do legítimo proprietário B e modificou-se o espaço físico com a conduta adoptada, uma vez que a carteira foi deslocada para fora do espaço que confina a propriedade de B, neste caso, para fora do veículo automóvel que o mesmo conduzia. Essa deslocação acarretou uma lesão ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, uma vez que o bem deixou de estar na posse e disponibilidade de fruição do proprietário.
O crime consumou-se a partir do momento em que a carteira se encontrou no exterior da viatura e na posse do arguido.
O elemento subjectivo encontra-se também preenchido, pois que a intenção ilegítima de apropriação provou-se, na medida em que o arguido sabia que os bens eram de terceiro e, ainda assim, quis subtraí-los consciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei. Verifica-se assim que o arguido agiu com dolo directo – artigo 14.º n.º 1 do Código Penal.
Pelo exposto, conclui-se pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 do Código Penal em autoria material.
Vejamos agora se, tendo em conta a conduta praticada, se deverá ter em conta a agravante prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal, no pressuposto de que, no caso contrário, deverá ser homologada a desistência de queixa e extinto o procedimento criminal.
Dispõe o seguinte o referido dispositivo legal:
Quem furtar coisa móvel alheia,
(…)
b)Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais”
(…)
é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.”
A lei 59/2007 de 04 de Setembro veio conferir uma nova redacção a este artigo, acrescentando no início do corpo do artigo, o termo “colocada”. Pretendeu o legislador alargar a qualificativa do tipo de crime aos casos de furto de objectos no interior de qualquer veículo que nada tenham a ver com as funcionalidades do mesmo.
Com efeito, a especial censurabilidade prende-se com o aproveitar de um contexto específico que facilita a prática delituosa, quando os objectos se encontram no interior de veículo, designadamente o facto de, invariavelmente ser exercida menor vigilância sobre os bens susceptíveis de apropriação. Com efeito, há uma natural concentração para a deslocação do veículo e para a constante evolução em movimento da realidade exterior, em detrimento da concentração na realidade existente no interior do veículo, que permanece inalterada. Tal é facilmente compreensível pelo simples facto de que o contrário – menor atenção à realidade exterior e acrescida concentração na realidade interior, ser susceptível de provocar um acidente de viação com consequências graves para o património, integridade física e mesmo a vida dos próprios e de terceiros. Tal conhecimento, que é instintivo a todo o ser humano que experiencie uma viagem no interior de veículo, origina que, mesmo quem não vá a conduzir sofra deste fenómeno. Veja-se também no sentido de que a especial censurabilidade reside na menor vigilância que é dada às coisas colocadas e/ou transportadas em veículo, o acórdão da Relação de Coimbra, datado de 16 de Março de 2011, processo 3082/09.6PCCBR.C1, Desembargador Paulo Guerra, onde é igualmente citado neste sentido, o Professor Faria Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, página 59.
Nos presentes autos, este factor foi notório, na medida em que B só se apercebeu da ausência da carteira após imobilizar a viatura e o arguido sair para o exterior, ou seja, em momento imediatamente posterior ao ter cessado a distracção provocada pela condução.
Afigura-se por isso que o arguido efectivamente praticou um crime de furto qualificado previsto e punido por esta alínea b) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal.
O n.º 4 do artigo 204.º do Código Penal, estabelece uma causa de exclusão de afastamento da qualificação, quando a coisa furtada for de diminuto valor.
Nos termos do artigo 202.º alínea c) do Código Penal, diminuto valor, é aquele que não exceder uma unidade de conta, que à data dos factos se fixava, tal como actualmente, em 102,00€.
Provou-se que o arguido se apropriou de quantia superior a 102,00€, pelo que, efectivamente deverá ser condenado pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º n.º 1 e 204.º n.º 1 alínea b) do Código Penal, não sendo legalmente possível a homologação da desistência de queixa do ofendido nos termos do disposto no artigo 116.º n.º 2 do Código Penal e 50.º n.º 1 do Código de Processo Penal
A questão levantada pelo recorrente é assim a de saber se o furto de coisa móvel alheia colocada ou transportada em veículo, tendo o agente se introduzido licitamente - isto é, com autorização do proprietário - na viatura, pode ser qualificado por aplicação da al. b) do nº1 do Artº 204 do Código Penal.
Esta qualificação opera quando se furta coisa móvel alheia Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais.
É sabido que a presente redacção da al. b) do nº1 do Artº 204 do C. Penal é produto da revisão do C. Penal realizada pela Lei 59/07 de 04/09, pela qual foi acrescentado, no início da frase, o vocábulo colocada, de onde resulta, inevitavelmente, uma nova situação típica : o furto de coisa móvel alheia colocada ou deixada em veículo, mesmo sem estar ligada à estrutura ou às funcionalidades da viatura.
Com efeito, ao lado das três outras previsões normativas relativas ao furto de coisa móvel : transportada em veículo, colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar em estação, gare ou cais, surge agora uma original figura típica qualificativa do furto, relativa aos bens deixados no interior do veículo, a qual curiosamente, já constava do Artº 1 do D.L. 33.939 de 27/03/63, entretanto revogado pelo Artº 6 nº2 do D.L. 400/82 de 23/08, que aprovou o actual Código Penal.
Houve assim uma clara intenção do legislador de equiparar o furto de coisa móvel que se encontre numa relação de transporte com o veículo com aquela, que, simplesmente aí foi colocada ou deixada, como resulta das actas das reuniões do Conselho da Unidade de Missão para a Reforma Penal e da exposição de motivos da Proposta de Lei 98/X, designadamente, desta última, onde se diz que tal equiparação se deve ao facto de se tratar de condutas identicamente graves e censuráveis. ( Cfr. neste sentido, Acs dos Tribunais da Relação de Coimbra de 16/03/11 da Relação de Guimarães de 16/03/09, nos Procs. respectivamente, 3082/09.6OCCBR.C1 e 740/07.3GCVCT-A, ambos disponíveis em www.dgsi.pt )
Nesta medida, tendo-se provado que o arguido, ao seguir na viatura do ofendido, aproveitou-se da atenção que este prestava à condução para lhe subtrair a carteira, parece indiscutível que ao assim proceder o arguido incorreu na prática de um crime qualificado nos termos combinados dos Artsº 203 nº1 e 204 nº1 al. b), ambos do C. Penal.
O facto de ter entrado legitimamente na viatura do ofendido, ou seja, com autorização deste, impede, de alguma forma, esta conclusão, como pretende o recorrente, fazendo apelo à al. f) da citada norma, onde se consignou expressamente que os furtos em habitação ou outros imóveis só serão qualificados se a introdução do agente for ilegítima ?
Não cremos.
Desde logo, importa ter em conta que do teor literal da norma não se retira que do elemento objectivo do tipo de ilícito em apreço faça parte a ilegitimidade da entrada na viatura, ao contrário da mencionada al. f), onde essa condição claramente se plasmou.
Assim, tendo o legislador, como se disse, se limitado a acrescentar a palavra colocada, não distinguindo os casos de entrada legítima ou ilegítima no interior do veículo, não cabe ao intérprete fazer essa distinção, reduzindo dessa forma o campo de aplicação do preceito.
Por outro lado e agora de forma decisiva, importa ter em conta que as circunstâncias qualificativas operadas pelo Artº 204 do C. Penal radicam num agravamento do juízo de censura imanente à conduta delitiva, numa graduação mais negativa do desvalor social do comportamento do agente, que justificam o aumento da moldura penal abstracta.
E aí, vale por inteiro, pela sua justeza de análise, o ensinamento do Prof. Faria Costa - sendo certo que a referência deste autor a que o recorrente apela no seu recurso tem por base a anterior redacção da norma e reporta-se apenas à qualificação de transporte colectivo - Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 59, quando assinala que :
« Pensamos que a razão de ser deste normativo se prende com uma menor vigilância exercida sobre as coisas nas circunstâncias descritas. Dir-se-ia que há uma maior fragilidade na guarda. Fragilidade essa resultante do entrecruzar de vários factores: a) rarefacção da atenção sobre as coisas na medida em que o centro da preocupação, não poucas vezes, é canalizado, justamente, para as preocupações do próprio acto de viajar; b) diminuição também da atenção sobre a guarda das coisas por mor do cansaço, da azáfama e da própria dispersão do ir em viagem; c) aumento, em geral, da tensão dispersiva; d) incremento da intensidade das acções contra o património, precisamente devido ao conhecimento das manifestas diminuições anteriormente delineadas. É, por conseguinte, o cruzar daquelas variáveis – diminuição das defesas e incremento dos ataques – que faz crescer, em raiz exponencial, o efeito de fragilidade na guarda das coisas transportadas segundo os parâmetros descritos na lei”
Daí que se compreenda que da norma em causa não conste, ao contrário da al. f) do nº1 do Artº 204 do C. Penal, a exigência que a entrada do agente na viatura seja ilegítima ou contra a vontade do proprietário daquela.
É que, como aliás bem se assinala na decisão recorrida, « … a especial censurabilidade prende-se com o aproveitar de um contexto específico que facilita a prática delituosa, quando os objectos se encontram no interior de veículo, designadamente o facto de, invariavelmente ser exercida menor vigilância sobre os bens susceptíveis de apropriação. »
Na verdade, quando se conduz uma viatura, há naturalmente e por razões óbvias, uma concentração do condutor direccionada precisamente para a condução do veículo, ficando assim o mesmo fragilizado e indefeso em relação às agressões que o seu património possa ser alvo quanto aos objectos que se encontrem no interior da viatura.
Ora, a pessoa que se aproveita dessa diminuição das defesas e dessa menor atenção para com as coisas que são deixadas e/ou transportadas numa viatura, para cometer um crime de furto, apropriando-se de objectos deixados ou colocados no seu interior, revela, nesta conduta, um elevado grau de censura, pela, se quisermos, cobardia criminosa que a mesma se reveste, na medida em que ataca o património de alguém que dessa ofensa está quase impossibilitado de a ela reagir.
Postas as coisas neste pé, aparece como compreensível a diferença de redacções entre as als. b) e f) do nº1 do Artº 204 do C. Penal, na medida em que nesta última, não está configurada, por regra, essa diminuição da guarda, a qual indiscutivelmente ali se verifica em consequência de uma actividade comum, mas perigosa - a condução de veículo – em que é exigível a máxima concentração, sob pena de se pôr em risco o património, a integridade física e a vida, próprias e alheias.
Nessa medida, é inconsequente, para a configuração do crime, que o ofendido tenha dado boleia ao arguido e que este, por esse facto, tenha entrado no veículo daquele sob sua autorização, porquanto, ao se aproveitar da atenção que o ofendido prestava na condução para lhe subtrair a carteira, o arguido cometeu um crime de furto qualificado, p.p., pelas disposições combinadas dos Artsº 203 nº1 e 204 nº1 al. b) do C. Penal, para o qual, como é evidente, em nada releva a desistência de queixa do ofendido.
Assim, nenhuma censura merece o tribunal recorrido, pelo que, sendo este o único fundamento do recurso – pois o recorrente nem sequer impugna a medida da pena, ainda que o fizesse a título subsidiário, para a hipótese do fracasso do pedido principal – o mesmo não poderá deixar de improceder.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Arts 513 nº 1 e 514 nº 1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.

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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
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Évora, 10 de Dezembro de 2013

Renato Damas Barroso
António Manuel Clemente Lima