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AUTO DE NOTÍCIA
FÉ EM JUÍZO
PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
VENDA POR GROSSO
CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Sumário
I - O artigo 169.º Código de Processo Penal actual que define o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados não engloba o auto de notícia.
II - A aplicabilidade dos artigos 169º do CPP e 363º e 369º do CC aos autos de notícia é uma forma de revogar o artigo 127º do Código de Processo Penal e impor - substituindo o princípio do acusatório - o princípio do inquisitório em processo penal e impingir uma forma tabelada de apreciação probatória.
III - O artigo 169º do Código de Processo Penal actual existe para adequar a apreciação dos documentos autênticos e autenticados, que são apresentados no processo penal, ao princípio da livre apreciação da prova, assim se evitando que tais documentos sejam apreciados em processo penal segundo as regras civilísticas, o que tornaria formal a apreciação probatória e limitaria, de forma inadmissível, o conhecimento dos factos em processo penal.
IV- O valor probatório do auto de notícia é, simplesmente, livremente apreciado nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
V - Será, então, inadmissível fazer uma leitura conjunta dos artigos 169º e 243º do Código de Processo Penal e daí retirar qualquer instrumento que corrompa o processo penal acusatório por via da atribuição de “fé em juízo” aos autos de notícia ou transformar estes em “documentos autênticos”. Uma tese que defenda que estes dois preceitos consagram um especial valor probatório para o auto de notícia apenas permite introduzir uma ferramenta inquisitória num processo acusatório, uma presunção de que os factos ocorreram como do auto constam, uma inversão do “ónus” probatório, enfim uma violação da presunção de inocência.
VI - Se o tribunal recorrido interpretou um auto de notícia como fazendo “fé em juízo” até prova em contrário e presumiu a veracidade dos factos até que a arguida apresentasse contra-prova da não prática desses factos, ou seja, operou uma presunção iuris tantum, isso reflecte-se na apreciação probatória como “erro notório na apreciação da prova”, o vício de facto previsto no art. 410º, n. 2, al. c) do CPP, aplicável ao caso dos autos por remissão do art. 41º, n. 1 do Dec-Lei n. 433/82, de 27-10.
VII - Não é “distribuição por grosso de medicamentos” a cedência de cerca de trinta medicamentos a uma farmácia no Algarve, na mesma localidade, num período de dois meses de verão, sendo as farmácias propriedade de familiares (e mesmo que o não fossem).
VIII - A nova redacção do artigo 35º, nºs. 3 e 5 do Dec-Lei n. 307/2007, de 31-08, na redacção dada pelo Dec-Lei n. 171/2012, de 01-08, consagra uma causa de exclusão da ilicitude contra-ordenacional. As “situações excecionais” a que se refere o número 3 do preceito bastam-se com a necessidade do medicamento, a falha de stock ou atraso de distribuição. O acréscimo inesperado de consumo pode compaginar uma situação excepcional. A exigência de exclusão da moeda na troca/devolução do medicamento é inaceitável. [1]
Texto Integral
Acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:
Por decisão de 11.02.2013, no âmbito do Processo Contra-Ordenacional n.º GJC/207/RB/2012, o Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, condenou a arguida ", A., LDA", proprietária da FARMACIA B, sita…, em Lagos, pela prática de uma contra-ordenação que se consubstancia no fornecimento irregular de medicamentos à Farmácia C…, a título de dolo p. e p. no art. 94º, n. 1 do Decreto Lei n° 176/2006, na coima de € 2.000,00.
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No recurso judicial por si interposto, veio a arguida impugnar a decisão proferida no Proc. de contra-ordenação invocando a prescrição do procedimento e, por impugnação, alegando a inexistência de ilícito contra-ordenacional, apresentando as seguintes conclusões:
§ A sanção contra-ordenacional de 2.000,00 € encontra-se prescrita nos termos do artigo 27° do RGCO, porque passaram mais de 3 anos.
§ A simples devolução de escassas embalagens de medicamentos a uma farmácia que deles necessita - actividade sancionada - não se enquadra no conceito de distribuição por grosso, não se aplicando portanto o n. 1 do artigo 94° do Decreto Lei n° 176/2006, e muito menos o n. 2 do artigo 33° do DL 307/2007, que à data não existia.
§ Não se trata de distribuição por grosso porque foi pontual e não sistemática, não foi feita ao mercado em geral, não teve como objectivo a obtenção de lucro, não foi realizada em grande quantidades e integra-se na venda a retalho.
§ Existe uma ilegal interpretação do conceito indeterminado de distribuição por grosso que deve ser controlada pelo tribunal no sentido de afastar a sanção contra-ordenacional.
§ A decisão do INFARMED viola o direito de iniciativa privada na perspectiva da liberdade de gestão de empresa porque as cedências de medicamentos não constituem distribuição por grosso e viola assim o artigo 61 ° da CRP.
§ Final e subsidiariamente, sem conceder e apenas para o caso de outro modo se entender, sempre se adianta que a coima seria absolutamente desproporcionada, face ao circunstancialismo descrito, designadamente o facto de as farmácias envolvidas pertencerem a irmãos e se inserirem na mesma rede, pelo ao mínimo legal - artigo 18° RGCO e considerando este mínimo em regime de atenuação especial, ou seja, metade. *
O Tribunal Judicial da Comarca de Lagos – 2º Juízo - por sentença de 28-06-2013 decidiu:
Ø condenar "A…., Lda", pela prática de fornecimento irregular de medicamentos à Farmácia C, a título de dolo p. e p. no art.os 94, n. 1 do Decreto Lei n" 176/2006.
Ø aplicar à arguida uma coima no montante de € 1.000,00 (mil euros), reduzindo-se assim a coima aplicada na decisão recorrida, por especialmente atenuada nos termos do artigo 18 do RGCOC .
*
Inconformada com uma tal decisão, dela interpôs a arguida o presente recurso pedindo que seja revogado o despacho recorrido, com as seguintes conclusões:
1 - A sanção contra-ordenacional de € 1.000,00 encontra-se prescrita nos termos do art° 27º do RGCO, por ser o prazo prescricional de um ano, mas, ainda que fosse de três anos, não poderia considerar-se continuada a infração, estando ainda assim prescritas todas as infrações anteriores a 8 de agosto de 2012.
2 - A atividade sancionada não se enquadra no conceito de distribuição (ou comércio) por grosso, não se aplicando portanto o n" 1 do artigo 94° do DL n. 176/2006, e muito menos o n. 2 do artigo 33° do DL 307/2007, que à data não existia.
3 - Não se trata de distribuição por grosso porque foi pontual e não sistemática, não foi feita ao mercado em geral, não teve obtenção de lucro, não foi realizada em grandes quantidades, integra-se na venda a retalho, não foram utilizados meios logísticos apropriados, designadamente de transporte, não foi concedido financiamento à cliente, não foi utilizada uma postura intermediária entre fabricantes e retalhistas, não foi transferida informação, não houve intenção de criar bolsas de segurança contra rutura de medicamentos, não houve armazenamento e posterior loteamento, passando das grandes para as pequenas quantidades.
4 - Existe uma ilegal interpretação do conceito indeterminado de distribuição por grosso que deve ser controlada pelo tribunal no sentido de afastar a sanção contra-ordenacional.
5 - A decisão do INFARMED viola o direito de iniciativa privada na perspetiva da liberdade de gestão de empresa porque as cedências de medicamentos não constituem distribuição por grosso e viola assim o artigo 61º da CRP.
6 - Final e subsidiariamente, sem conceder e apenas para o caso de doutro modo se entender, sempre se adianta que a coima seria absolutamente desproporcionada, face ao circunstacialismo descrito, designadamente o facto de as farmácias envolvidas pertencerem a irmãos e se inserirem na mesma rede, pelo que, neste caso, deveria ser convertida em simples admoestação.
Termos em que, nos termos da legislação indicada e demais que V. Exas. doutamente suprirão, deve a arguida ser absolvida e, consequentemente, o processo arquivado, com custas e procuradoria condigna a cargo da entidade recorrida, com o que se fará justiça.
*
A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Lagos apresentou resposta, defendendo a manutenção do decidido, sem apresentar conclusões.
Nesta Relação, o Exmº Procurador-geral Adjunto, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.
* B - Fundamentação: B.1.a) -São estes os factos considerados provados pelo tribunal recorrido:
1- A arguida é proprietária da Farmácia B. desde 2007.
2- Entre 16/06/2009 e 19/08/2009 a arguida forneceu à Farmácia C: 8 embalagens de Bepanthol; 4 embalagens de Plavix; 2 embalagens de Zeldox; 2 embalagens de Reminyl; 1 embalagem de Bib Pato; 1 embalagem de Sereaide Inalado; 15 embalagens de Stodal; e 2 embalagens de Plavix;
3- À arguida não lhe são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais.
4- A Arguida, ou a sua farmácia B, não dispõem de autorização para exercerem a actividade de distribuição por grosso de medicamentos, nem dessa autorização estão dispensadas caso queiram exercer a actividade
5- A arguida agiu da forma consciente, livre e deliberada.
6- A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7 - As farmácias B e C, pertencem a irmãos.
8- D, na qualidade de gerente da Arguida, efectuou os negócios em causa com a Farmácia C, ou com a sua proprietária, porque quis fazê-los e sabendo que tais negócios não eram lícitos à luz do Estatuto do Medicamento.
* B.1.b) -E como não provados os seguintes: Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa
* B.1.c) -O tribunal recorrido fundamentou a matéria de facto, do seguinte modo: “A convicção do tribunal baseou-se nos depoimentos das testemunhas prestados em sede de audiência de julgamento e nos documentos juntos aos autos, nomeadamente relatório Inspecção a Farmácia e fls. 12 e ss; auto de notícia de fls. 12 e ss.; documentos de fls. 27, 28, 29, 3031,32, bem como os documentos juntos pela arguida a fls. 127 a 133, tudo conjugado e analisado de forma crítica e de acordo com regras de experiência comum.
Desde logo, revelou-se pertinente, para a definição da matéria dada como provada, o auto de notícia, fazendo fé em juízo até prova em contrário.
O respectivo teor foi ainda conjugado com as declarações de LS, que se afigurou isento, coerente e credível, confirmando aquele auto, que, conforme referiu, elaborou e assinou, afirmando que só havia um sentido de fornecimento de medicamentos e que nunca foi detectada qualquer troca.
O depoimento da testemunha I, que trabalha para a recorrente (pessoa singular), mas para outra empresa, refere que é normal a "troca" de medicamentos entre farmácias e que tais foram efectuadas entre a recorrente e outras farmácias”.
*****
B.2 - Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do art. 75º nº1 do DL nº 433/82, de 27/10, nos processos de contra-ordenação, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões. Isto é, este Tribunal funcionará, no caso, como tribunal de revista.
Por outro lado, o objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
São, assim, questões a decidir, referindo-as o tribunal pela ordem indicada pela recorrente: da prescrição – conclusão 1ª; da punibilidade dos factos provados por “distribuição por grosso” – conclusões 2ª a 5ª; da moldura da coima – conclusão 6ª.
Acresce a necessidade de apreciar, oficiosamente, da existência de erro notório na apreciação da prova, já que o tribunal de recurso tem o dever de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Naturalmente que haverá que iniciar o labor cognitivo deste tribunal pela invocada excepção de prescrição do procedimento contra-ordenacional.
* B.3 - A primeira questão a abordar no recurso reconduz-se a apurar se ocorre extinção do presente procedimento contra-ordenacional, pelo decurso do prazo prescricional.
A contra-ordenação em que a arguida foi condenada, na visão da entidade administrativa e do tribunal recorrido – na estrita medida da aplicação da lei por eles operada – é punível com a seguinte coima: de € 2.000 a € 3.740,98 ou até € 44.891,81, consoante o agente seja pessoa singular ou pessoa colectiva pelo fabrico, introdução no mercado, comercialização, distribuição, importação, exportação, importação paralela, dispensa, fornecimento ou venda ao público, ou administração de medicamentos ou medicamentos experimentais sem as autorizações exigidas – artigo 181º, nº 2, al. a) do Dec-Lei nº 176/2006, de 30-08.
Trata-se, portanto, de uma única contra-ordenação na visão da entidade administrativa e do tribunal recorrido, pois que só assim seria possível construir a tese da “distribuição por grosso” como um único acto ilícito.
A tese da pluralidade contra-ordenacional – possível de construir mas mais trabalhosa na alegação e prova de cada acto – seria mais gravosa para a arguida. Face a isto a argumentação da recorrente quanto à unidade ou pluralidade de infracções perde razão de ser.
Ora, o artigo 27º do RGCO (na redacção de 2001) afirma que o procedimento por contra-ordenação se extingue por efeito da prescrição logo que sobre a sua prática hajam decorrido os seguintes prazos:
“a) Cinco anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante máximo igual ou superior a (euro) 49.879,79;
b) Três anos, quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a (euro) 2.493,99 e inferior a (euro) 49.879,79;
c) Um ano, nos restantes casos”.
Assim, o procedimento quanto à contra-ordenação em que a arguida foi condenada – máximo abstracto de 44.891,81 € - extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da mesma tiver decorrido o prazo de três anos (cfr. art.º 27, al. b), do D.L. n.º 433/82, de 27 de Outubro).
É entendimento praticamente unânime que a subsunção às várias alíneas do supra referido artigo 27º se opera pelo máximo abstractamente aplicável. A tese defendida pela recorrente e, ao que parece, sufragada por uma decisão de primeira instância e que não foi objecto de recurso – caso em que seria naturalmente revogada – apesar de engenhosa não recebe apoio jurisprudencial.
Assim, o prazo de três anos cumpria-se em Agosto de 2012, a que acresce o prazo de ano e meio previsto no artigo 28º, nº 3 do RGCO o que reconduz o prazo prescricional para quatro anos e meio – ou seja, para Fevereiro de 2014 – já que ocorreu interrupção da prescrição nos termos das alíneas a), c) e d) do nº 1 do art. 28º citado.
E o prazo de suspensão de 6 (seis) meses – artigo 27º-A, nsº 1, al. c) e 2 só será atingido em Agosto de 2014.
Não há, pois, prescrição do procedimento criminal.
* B.4 – Impõe-se, de seguida e de forma oficiosa, conhecer da apreciação probatória realizada pelo tribunal recorrido.
Pela simples análise do texto da decisão recorrida verificamos que o tribunal recorrido deu como provados os factos que permitiram a condenação da recorrente com base nos seguintes considerandos, entre outros:
“Desde logo, revelou-se pertinente, para a definição da matéria dada como provada, o auto de notícia, fazendo fé em juízo até prova em contrário.
O respectivo teor foi ainda conjugado com as declarações de LS, que se afigurou isento, coerente e credível, confirmando aquele auto, que, conforme referiu, elaborou e assinou…”.
Verificamos, portanto, que na parca fundamentação factual do tribunal recorrido assumiu papel de relevo probatório o auto de notícia em si considerado, a que acresceu a sua confirmação pelo autuante.
Ou seja, no cerne da condenação da arguida esteve uma interpretação legal que valorou como uma presunção iuris tantum o acervo de factos que constavam do auto de notícia - e apenas porque de lá constavam - uma presunção da veracidade dos factos constantes do auto de notícia, o que conduziu à condenação da arguida,
Que diz o Código de Processo Penal sobre esta matéria, já que é direito subsidiário da matéria contra-ordenacional? Haverá alguma norma que permita a operação operada pelo tribunal recorrido em sede de facto e de subsunção jurídica?
Nada de explícito ou, ao menos, expressivo já que se trata de um código impregnado de ideias acusatórias (o famigerado “princípio do acusatório”), tidas por mais conformes às Democracias, ditas regimes liberais - por contraposição a iliberais ou totalitárias - na terminologia de Fareed Zakaria. [2]
E estes regimes governados pelo princípio do acusatório dão-se mal com as presunções sobre factos antes de produzida prova em audiência de julgamento. Presunções hominis são necessárias, essenciais mesmo, mas nestas deduz-se um facto desconhecido a partir do conhecimento de um outro facto.
Aqui presume-se que um facto ocorreu porque consta dum auto de notícia, coisa diversa.
O artigo 243.º do Código de Processo Penal limita-se a definir a necessidade de lavrar auto de notícia “sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória” e a definir o seu conteúdo e destino.
A sua apreciação, melhor dito, a apreciação dos factos que nele se encerram, é feita segundo o princípio – correspondente a um processo de estrutura acusatória – da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do diploma.
Isto quer apenas significar que nenhum especial valor probatório é atribuível ao “auto de notícia” no nosso ordenamento processual penal.
Não obstante, sempre há quem queira incluir o auto de notícia na letra do actual artigo 169º do Código de Processo Penal, de forma a atribuir ao auto de notícia um valor qualificado por via da sua equiparação a documento autêntico, nos termos dos artigos 363º, n. 2 e 369º do CC. [3]
Algo que é inviável, já que se o documento é autêntico por provir de autoridade ou oficial público – “provido de fé pública” - que o lavrou “nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído”, fica demonstrada a inutilidade dos tribunais e das suas audiências de julgamento (e do Código de Processo Penal), pois que o agente subscritor do auto terá a fé pública necessária e suficiente para – lavrando auto – provar os factos que constituem o ilícito.
Uma coisa é certa, se o auto de notícia (um documento intra-processual) é equiparado a documento autêntico ou autenticado nas suas vestes civilísticas (um documento extra-processual), quem o lavrou não pode ser testemunha nem testemunhas podem ser ouvidas sobre o seu teor enquanto o auto não for declarado falso. Este é (por súmula) o regime dos documentos autênticos e autenticados na área cível.
Enfim, incongruências à parte, pode afirmar-se que o artigo 169.º Código de Processo Penal actual [4] que define o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados não engloba o auto de notícia, ou seja, o regime dos artigos 363º, n. 2 e 369º do CC não se aplica aos autos de notícia.
Resta acrescentar que a posição a que se faz referência – a aplicabilidade dos artigos 169º do CPP e 363º e 369º do CC aos autos de notícia - é uma forma de revogar o artigo 127º do Código de Processo Penal e impor, substituindo o princípio do acusatório, o princípio do inquisitório em processo penal e impingir uma forma tabelada de apreciação probatória.
Ou seja, o artigo 169º do Código de Processo Penal actual existe para adequar a apreciação dos documentos autênticos e autenticados, que são apresentados no processo penal, ao princípio da livre apreciação da prova, assim se evitando que tais documentos sejam apreciados em processo penal segundo as regras civilísticas, o que tornaria formal e limitaria, de forma inadmissível, o conhecimento dos factos em processo penal.
Será, então, tecnicamente errado fazer uma leitura conjunta dos artigos 169º e 243º do Código de Processo Penal e daí retirar qualquer instrumento que corrompa o processo penal acusatório por via da atribuição de “fé em juízo” aos autos de notícia ou transformar estes em “documentos autênticos”. [5 ]
Assim, a leitura dos artigos 243º e 169º, do Código de Processo Penal não autoriza que se conclua que eles consagram um especial valor probatório do auto de notícia. Aliás, não há qualquer relação entre os dois preceitos. Um refere-se ao auto de notícia. Outro a documentos exteriores ao processo e que neste sejam apresentados.
Uma tese que defenda que estes dois preceitos consagram um especial valor probatório para o auto de notícia apenas permite introduzir uma grotesca ferramenta inquisitória num processo acusatório, uma presunção de que os factos ocorreram como do auto constam, uma inversão descarada do ónus probatório, enfim uma escandalosa violação da presunção de inocência. A adjectivação impõe-se.
Por isso que se concorde em absoluto com o recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-09-2013 (Proc. 597/11.0EAPRT-A.P1, rel. Alves Duarte) que decidiu: [6]
«I. O auto de notícia, por si mesmo e desacompanhado de outras provas, não indicia (nem prova) a prática do crime.
II. A especial força probatória que a lei processual penal confere aos documentos autênticos [art. 169.º, do CPP] circunscreve-se unicamente aos documentos extra-processuais.
III. O auto de notícia é um documento intra-processual sujeito á livre apreciação do julgador, que pode servir de auxiliar de memória para o autuante mas não pode sobrepor-se ao seu depoimento.»
Ou seja, com significado normativo para o caso concreto, nenhuma norma autoriza o tribunal recorrido a presumir factos, ilicitude e culpa com base no auto de notícia e nenhuma norma o autoriza a “inverter” o ónus probatório. Nenhuma norma revogou o princípio da livre apreciação da prova e a necessidade de as entidades acusadoras fazerem prova dos factos relevantes para o preenchimento de ilícitos criminais e contra-ordenacionais. Ou seja, mantém-se em vigor o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
O valor probatório do auto de notícia é, simplesmente, livremente apreciado nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, o substracto da actuação do tribunal recorrido pôs seriamente em causa o princípio da presunção da inocência que tem, como sabido, guarida constitucional – artigo 32º, n. 2 da Constituição da República Portuguesa.
Aliás, em bom rigor negou essa presunção por ter operado presunção contrária à presunção de inocência. Presumiu a culpa e aguardou pela prova da inocência.
Daqui resulta que uma apreciação jurídica quanto à prova pôs em causa a apreciação probatória e implicou – terá implicado – um erro notório na apreciação da prova.
O conhecimento das consequências deste vício reservamo-lo para final.
* B.5 – Não é nosso propósito fazer ressuscitar a velha querela jurisprudencial e doutrinal do final dos anos 80, início dos anos 90 do século passado, sobre a fé em juízo dos então artigos 169º do Código de Processo Penal de 1929 e 65º, n. 4 do Código da Estrada.
Na altura, tendo como escopo único apurar da força probatória dos aparelhos técnicos (radar), do correspondente exercício do contraditório e no âmbito exclusivo da previsão do artigo 65º, n. 4 do então CE, discutiu-se o enquadramento da “fé em juízo” dos autos de notícia.
Mas então, ambos os preceitos vigentes – o art 169º do Código de Processo Penal de 1929 e nº 4 do artigo 165º do CE então vigente (Decreto-Lei n. 39.672 de 20-05-1954) previam que o auto de notícia fazia “fé em juízo”.[7]
Portanto, a discussão sobre o valor probatório do auto de notícia poderia colocar-se – e colocou-se – quer para a legislação vigente de direito estradal, quer para a restante legislação punitiva, incluindo a criminal.
Hoje a situação é diversa, pois que apenas o artigo 170º, n. 3 do CE ora vigente tem norma equivalente que não abrange as diversas legislações punitivas (criminal e outras contra-ordenacionais).
A propósito dos argumentos na altura invocados pelo Tribunal Constitucional para concluir pela declaração de constitucionalidade da atribuição de “fé em juízo” dos autos de notícia e recordando que o artigo que lhes deu origem – o artigo 169º do Código de Processo Penal de 1929 – não está em vigor e nenhum artigo o substituiu, sempre se dirá.
Inicialmente o TC pelos seus acórdãos n.º 201/85 e n.º 85/86 (sendo em ambos relator Vital Moreira e com três votos de vencido) julgou inconstitucional, por ofensa das garantias de defesa, e designadamente do princípio do contraditório (artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição), a norma da segunda parte do n.º 5 do artigo 64.º do Código da Estrada, na parte em que atribuía valor de auto de notícia, nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal de 1929, aos elementos colhidos através de aparelho do tipo do considerado (radar de deteção de velocidade), sem que ao autuado fosse dada a possibilidade de, em tempo útil, contrariar a credibilidade técnica de tal aparelho.
Mais tarde (mas já com o precedente do acórdão n.º 168 da Comissão Constitucional, de 24 de Julho de 1979, publicado em Apêndice ao Diário da República de 3 de Julho de 1980), inverteu-se a jurisprudência constitucional no sentido de sufragar a tese de que não violava o artigo 32.º da CRP, designadamente o seu n.º 2 (presunção de inocência do arguido), a norma do artigo 169.º do Código de Processo Penal de 1929, segundo a qual os «autos de notícia» fazem fé em juízo, até prova em contrário, em relação aos factos presenciados pela autoridade que os levantar.
Para tanto apresentaram-se os seguintes argumentos: 1.º O valor probatório dos autos de notícia diz respeito apenas aos factos neles descritos, e não aos demais elementos da infracção (ilicitude, culpa, etc.), e não prejudica a livre valoração jurídico-penal dos aludidos factos, pelo que não contende com o princípio da presunção da inocência; 2.º O valor probatório do auto de notícia não é definitivo, antes só prima facie ou de ínterim, podendo ser questionado pelos meios comuns, pelo arguido ou por iniciativa do próprio juiz, ao abrigo do § 3.º desse mesmo preceito; 3.º No caso de, face a essa contestação, o juiz acabar em «incerteza razoável» quanto à verdade dos factos trazidos ao processo pelo auto de notícia, não terá outra solução senão absolver o arguido, dando como não provada a acusação, assim ficando salvaguardado o respeito pelo princípio in dubio pro reo.
Neste sentido foram lavrados os seguintes acórdãos, pelo menos: 87/87, 127/87, 272/87, 21/88, 60/88, 141/88, 280/88, 285/88, 187/89, 197/89, 33/90 e 649/93.
Mas a tese essencial assenta nestes dois considerandos: a fé atribuída em juízo aos autos de notícia não acarreta qualquer presunção de «culpabilidade» (contrária, pois, à presunção de «inocência» do artigo 32.º, n.º 2); trata-se só de um especial valor probatório, aliás não definitivo, quanto a certas comprovações materiais feitas presencialmente pela autoridade pública, ou seja, uma presunção relativamente «a factos» (à sua comprovação) e nada mais.
Não descortinamos é como será possível:
- num processo penal acusatório que se caracteriza também e essencialmente pela necessidade de concentração de prova em audiência de julgamento, se pode concluir que os factos já estarão em princípio provados antes de a audiência de julgamento se iniciar e que esta audiência apenas servirá para que o arguido prove a sua inocência;
- e com uma presunção constitucional de inocência – a inocência está também obviamente referida à autoria da prática de factos – essa prova de factos relativos à ilicitude e culpa (necessariamente referidas a factos, senão não constariam da acusação por inutilidade) não afectam o juízo sobre a ilicitude e a culpabilidade do (relativos aos factos praticados pelo …) arguido.
Os contra-sensos são evidentes.
Se a “fé em juízo” dos autos de notícia “não acarreta qualquer presunção de culpabilidade, pois que a fé em juízo representa apenas um especial valor probatório — aliás não definitivo, mas só prima facie ou de ínterim — atribuído a certas comprovações materiais feitas presencialmente por autoridade pública”, isso quer significar apenas que o princípio da livre apreciação da prova é suficiente para chegar às mesmíssimas conclusões, com o uso da razão, das regras de experiência comum e pelo uso acertado das presunções hominis.
Porque “fazer fé em juízo” até prova em contrário é, precisamente, presumir a veracidade dos factos até que a arguida apresente contra-prova da não prática desses factos.
Naturalmente que há uma outra leitura mais benigna da expressão “fazer fé em juízo”, que essa é a então sugerida pelo TC, isto é, a atribuição de um especial valor probatório aos elementos colhidos pelas autoridades ou agentes (porque disso se trata), sem daí deduzir que há, necessariamente, um início de prova e uma “inversão” do ónus da prova.
O que poderá conduzir a que se reconheça que a idêntico resultado se chegará em sede de apreciação factual desde que as características de certos meios de prova referidos pelos autos de notícia assumam um valor probatório naturalmente reforçado, quer pela credibilidade do mesmo (o agente policial isento sem tunnel vision e sem má-fé), quer pela sua natureza técnica ou científica (resultado do exame toxicológico, radar de medição de velocidade, etc.).
Mas isto, note-se, de forma natural, em sede de boa apreciação probatória e no uso da liberdade de apreciação factual, que não pela prova prima facie, de ínterim ou por presunção legal, já que o auto de notícia não tem qualquer especial força probatória.
Mas o tribunal recorrido seguiu aquela primeira leitura, com uma presunção iuris tantum que se reflecte na apreciação probatória como “erro notório na apreciação da prova”, o vício de facto previsto no art. 410º, n. 2, al. c) do CPP, aplicável ao caso dos autos por remissão do art. 41º, n. 1 do Dec-Lei n. 433/82, de 27-10.
Assim, a tentativa de consagração forçada da “fé em juízo” é um “auto-de-fé” inquisitorial e um atestado de desconfiança relativamente ao uso acertado e razoável do princípio da livre apreciação da prova, ou o receio de que este se reduza à sua versão mecanicista de exigência exclusiva de prova directa para a prova de factos.
Mais claro e elucidativo é o facto de apenas o direito estradal ter uma norma permissiva dessa leitura pragmática - e nenhuma norma permitir essa leitura para o restante direito contra-ordenacional e para o direito criminal - mas, não obstante, a prática judicial, amiúde, regressar à mentalidade inquisitória.
É claro que hoje apenas o artigo 170.º, n. 3 do actual Código da Estrada prevê quanto ao “auto de notícia e de denúncia” um regime especial de “fé em juízo” quando afirma que “o auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário”. [8]
Mas isso apenas para as contra-ordenações praticadas no âmbito do direito estradal, que não em qualquer ilícito criminal ou qualquer outra área do ilícito contra-ordenacional, como esta a que se reporta o caso concreto.
De notar, por último, que mesmo no regime mais inquisitorial a “fé em juízo” se limita sempre aos factos “presenciados” pelo agente – qualquer dos normativos citados faz esta restrição, quer o anterior Código de Processo Penal, quer ambos os Códigos da Estrada.
Ora, no caso concreto o autuante não presenciou nada, limitou-se a narrar os factos depois de ver documentos.
Daí que se conclua face a este evidente erro na apreciação da prova que apenas a matéria constante dos documentos se pode dar como provada, já que a apreciação probatória do tribunal recorrido a eles se limitou no essencial e, também por via indirecta, através do auto de notícia e sua confirmação pelo autuante.
Assim, têm que se dar como não provados os factos que não podem ser provados por documentos:
5- A arguida agiu da forma consciente, livre e deliberada.
6- A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8- D, na qualidade de gerente da Arguida, efectuou os negócios em causa com a Farmácia C, ou com a sua proprietária, porque quis fazê-los e sabendo que tais negócios não eram lícitos à luz do Estatuto do Medicamento.
Naturalmente que poderia este tribunal decretar o reenvio dos autos para apurar de tais factos com apelo a outros meios probatórios que não o auto de notícia e sua fé.
No entanto o que se segue determina a inutilidade de tal possibilidade.
* B.6 – Ocorre “distribuição por grosso”, conceito utilizado e regulado pelo legislador no artigo 94º a 102º do Dec-Lei 176/2006, de 30-08, lei vigente à data da prática dos factos?
Este diploma – artigo 3º, n. 1, al. n) - define “distribuição por grosso” como a “ … actividade de abastecimento, posse, armazenagem ou fornecimento de medicamentos destinados à transformação, revenda ou utilização em serviços médicos, unidades de saúde e farmácias, excluindo o fornecimento ao público” – [alínea n) do nº 1 do artigo 3º do diploma citado].
A Directiva 2001/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de Novembro de 2001 [Que estabelece um código comunitário relativo aos medicamentos para uso humano] no ponto 17) do seu artigo 1 define «Distribuição por grosso de medicamentos» como “qualquer actividade que consista no abastecimento, posse, fornecimento ou exportação de medicamentos, excluindo o fornecimento de medicamentos ao público; tais actividades são efectuadas com fabricantes ou com os seus depositários, importadores, outros grossistas ou com os farmacêuticos ou pessoas autorizadas ou habilitadas para fornecer medicamentos ao público no Estado-Membro em causa”.
Como se verifica, houve por parte da legislação portuguesa um alargar do conceito.
Trata-se, indubitavelmente, de um conceito muito amplo e algo impreciso no início (no inicial diploma, o vigente à data da prática dos factos, o Dec-Lei n. 176/2006, de 30-08), mas que sofreu ao longo de alguns anos uma evolução legislativa no sentido da aproximação à realidade.
Se no diploma de 2006 ficou assente, desde logo, a definição do conceito como referido, depois a previsão da proibição dessa prática no artigo 94º, n. 1 e, por fim, a sua punibilidade no artigo 181º, n. 2, al. i [e não na al. a)] daquele diploma, a amplitude do conceito e a natureza do dever não primaram pela nitidez.
É claro que o legislador não quer – e por razões compreensíveis – que as farmácias, de venda a retalho, se dediquem ao armazenamento e à revenda de medicamentos, aceitando-se que é sector da actividade económica de melindre e de acentuado interesse público e que necessita de uma supervisão presente e actuante.
Mas isso não era evidente ou sequer facilmente compreendido na inicial proibição (o referido artigo 94º, n. 1 do diploma supra citado).
E tanto não era claro que o diploma inicial dava a entender que a punibilidade da conduta se devia à falta de autorização para a prática de distribuição por grosso. [9]
Tanto assim é que o tribunal recorrido mostra alguma dificuldade na delimitação clara das nomas incriminadoras, referindo o ilícito como p. e p. (previsto e punido) pelo artigo 94º, n. 1 (em sede de fundamentação refere-o como punido pela al. a) do artigo 181º do Diploma [10]), quando é certo que o ilícito contra-ordenacional estava previsto por aquele artigo 94º, n. 1 mas era punido pela al. i) do artigo 181º. [11]
Só vem a ser evidente no artigo 33º, n. 2 do Dec-Lei n. 307/2007, de 31-08, mas apenas na redacção dada pelo Dec-Lei n. 171/2012, de 01-08, já que a inicial redacção do preceito era inócua a este respeito. Só nesta altura, após a prática dos factos, se vem a clarificar algo simples: “As farmácias não podem exportar medicamentos nem desenvolver atividade enquadrável no conceito de distribuição por grosso de medicamentos”.
Ou seja, o regime apenas se esclarece por diploma vigente (em 2012) vários anos após a prática dos factos (2009). No momento da prática dos factos o ilícito é de “falta de autorização” para a venda por grosso de medicamentos.
Mas outra surpresa surge com o Dec-Lei n. 307/2007, de 31-08, também apenas na redacção dada pelo Dec-Lei n. 171/2012, de 01-08 e por via da nova redacção do artigo 35º, ns. 3 e 5. Aqui dispõe-se: “(3) — Em situações excecionais e para em tempo oportuno satisfazer uma necessidade concreta e urgente do doente, uma farmácia pode obter certo medicamento junto de outra farmácia, pertencente a proprietária diferente, devendo devolver-lhe medicamento idêntico, logo que o obtenha junto do distribuidor por grosso. (5) — As farmácias detidas, exploradas ou geridas pela mesma pessoa singular, ou sociedade comercial, dentro dos limites previstos nos artigos 15.º e 17.º, podem fazer gestão conjunta de stocks e trocar medicamentos”.
Se o número 5 não é aplicável ao caso sub-iudicio, não deixa de ser revelador de que o legislador se vai aproximando da realidade e das necessidades práticas.
Mas o número 3 do preceito é, claramente, uma causa de exclusão da ilicitude aplicável ao caso dos autos.
Aquilo que se provou nos autos foi apenas que “entre 16/06/2009 e 19/08/2009 a arguida forneceu à Farmácia C: 8 embalagens de Bepanthol; 4 embalagens de Plavix; 2 embalagens de Zeldox; 2 embalagens de Reminyl; 1 embalagem de Bib Pato; 1 embalagem de Sereaide Inalado; 15 embalagens de Stodal; e 2 embalagens de Plavix”.
Ora, para além de haver uma ligação familiar entre proprietários de ambas as farmácias – o que situa os factos na sua proporção de entre-ajuda e conhecimento próprio – os factos ocorreram entre 16 de Junho e 19 de Agosto, o pico do Verão e numa cidade de intenso turismo, com o que isso significa de afluência de pessoas e de esgotamento de stocks.
Assim, não é de qualificar como “Distribuição por grosso de medicamentos» a cedência de cerca de trinta medicamentos a uma farmácia no Algarve, na mesma localidade, num período de dois meses de verão, sendo as farmácias propriedade de familiares (e mesmo que o não fossem).
Regular não pode ser punir insignificâncias excluídas do espírito da lei, com o apelo a uma literalidade mecanicista ou tecnocrática.
O ilícito desenhado pelo legislador é de resultado, exige um facere com um mínimo de sistematização, de revenda persistente no tempo e no propósito, é uma actividade que se quer dirigida ao lucro.
Ou, pelo menos, esse propósito. Se não isto, mais que meia dúzia de “clientes”. Ao menos mais que um.
O próprio legislador prevê a situação a que os factos se referem como uma simples troca de medicamentos entre farmácias, lícita porque próxima, necessária em situações de falha de fornecimento ou acréscimo de clientes.
As “situações excecionais” a que se refere o número 3 do preceito não exigem uma declaração de Estado de Sítio, bastam-se com a necessidade do medicamento, a falha de stock ou atraso de distribuição e razões bastantes e inesperadas para que tivesse ocorrido a falha ou atraso.
O acréscimo inesperado de consumo pode compaginar uma situação excepcional. E note-se que o sabido e sazonal acréscimo de turistas, não sendo inesperado, não torna esperado o esgotamento de certos medicamentos, que não de outros.
A exigência de que a expressão “devendo devolver-lhe medicamento idêntico” deve significar a exclusão da moeda nessa devolução do medicamento, num assomo legislativo retardado da teoria do bom selvagem, o homo faber que troca carne por peixe, fica bem num tratado de arqueologia ou antropologia, fica mal numa prática de punição num país europeu no século XXI, para mais num caso que, à data da prática dos factos, era regido com tal nebulosa legislativa.
Apesar da proximidade conceptual, uma coisa é aplicar a Lei, outra aplicar o Direito. Este exige a “principiologia” e a razoabilidade que, bastas vezes, falta a uma leitura literal de preceitos à Montesquieu. O juiz já não é “la bouche de la loi”.
É incontornável que a moeda é uma reserva de valor, mas não deixou de ser um meio de troca legal. E como meio de troca, a devolução do medicamento pode fazer-se através desse meio de troca. Esta interpretação é compatível com a manutenção das preocupações da regulação quanto ao sector de venda por grosso.
Ao invés, a exigência literal não evita, por si, a venda por grosso.
Aliás, note-se que ninguém se preocupou em alegar factos relativos à “devolução de medicamentos”, pelo que mesmo que os considerandos que antecedem não fossem procedentes, não existem nos autos factos que permitam concluir coisa diversa.
Por isso que se foi praticado um ilícito contra-ordenacional por falta de autorização do INFARMED, essa conduta deixou de ser punível no caso concreto pois que legislação posterior mais favorável à arguida – artigo 2º do Código Penal – consagrou uma causa de exclusão da ilicitude que é operante no caso concreto.
Por tudo é inútil o reenvio dos autos e o recurso é procedente.
* C - Dispositivo:
Face ao que precede, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora concedem provimento ao recurso interposto e, em consequência decidem:
A. Declarar que se não encontra prescrito o procedimento contra-ordenacional;
B. Declarar não provados os seguintes factos:
Ø 5- A arguida agiu da forma consciente, livre e deliberada.
Ø 6- A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Ø 8- D, na qualidade de gerente da Arguida, efectuou os negócios em causa com a Farmácia C, ou com a sua proprietária, porque quis fazê-los e sabendo que tais negócios não eram lícitos à luz do Estatuto do Medicamento.
C. Absolver a arguida da contra-ordenação imputada.
Notifique. Não são devidas custas
(Processado e revisto pelo relator).
Évora, 28 de Janeiro de 2014
João Gomes de Sousa
Ana Bacelar Cruz
________________________________________________
[1] - Sumariado pelo relator
[2] - In “O futuro da Liberdade”, passim, Gradiva, 2ª edição, Fevereiro de 2005.
[3] - Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 22-04-2008 (Proc. 550/08-3, Secção Social): «1. O auto de notícia é levantado, nas contraordenações laborais, pelo inspector do trabalho quando no exercício das suas funções verificar ou comprovar, pessoal e directamente, ainda que de forma não imediata, qualquer infracção às normas sujeitas à fiscalização da IGT (artº 633º, nº 1 do CT). 2. Atento o conceito que resulta dos artºs 363º, nº 2 e 369º, nº 1 do Cód. Civil, o auto de notícia reveste as características de documento autêntico, o que lhe confere a relevância probatória a que alude o artº 169º do CPP (que tem de considerar-se acolhido em processo contraordenacional ex vi artº 41º, nº 1 do DL nº 433/82 e também em processo contraordenacional laboral por força do artº 615º do CT). 3. Assim, os factos materiais constantes do auto de notícia, como documento autêntico que é, consideram-se provados enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa.» Igualmente o acórdão desta secção criminal de 20-12-2012 (721/07.7PBEVR.E1), «1. Goza de força probatória o auto elaborado por um agente de autoridade que presenciou a infracção e a descreveu no auto, posto que o referido agente em julgamento tenha declarado não se recordar dos concretos factos ali relatados.»
[4] - Parece existir, por vezes, uma ligeira confusão entre este artigo 169º do Código de Processo Penal actual e o artigo 169º do Código de Processo Penal de 1929, normas de natureza diversa e inseridas em sistemas opostos, acusatório ali, inquisitório aqui. Certo é que o actual não se destinou a reger a mesma realidade factual do anterior.
[5] - Uma leitura deste tipo tornaria ridículas certas situações de facto, desde logo o saber o que seria um auto de notícia “autenticado”. Um que fosse “homologado” pelo MP? Ou o caso já tratado pelo STJ (acórdão de 10-07-2012, proc. 115/03.3TBCCH.E1.S1, sendo relator o Cons. Gabriel Catarino) em que alguém veio requerer o reconhecimento do direito de propriedade sobre um veículo automóvel, pois que tal facto constava como certo no auto de notícia. Aqui a imaginação seria o limite, pois que se o estado de casado consta de um auto de notícia se teria que dar como provado o casamento. Se, ao invés, fosse o estado de solteiro a procura de autos de notícia de onde tal constasse poderia sofrer um considerável aumento.
[6] - Também o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-09-2003 (sendo relator Jorge Arcano): «I - Em processo contraordenacional, o auto de notícia não faz fé em juízo. II - Por isso, o juiz não pode conhecer da impugnação judicial por mero despacho, com fundamento na fé em juízo do auto de notícia.»
[7] - Dispunha o artigo 169º do Código de Processo Penal de 1929 sob a epígrafe “valor do auto de notícia que:
«Os autos a que se refere o artigo 166º farão fé em juízo, quer na instrução quer no julgamento, até prova em contrário, se forem mandados levantar pelo juiz por infracções que tenham sido praticadas perante ele em actos judiciais ou que a eles digam respeito.
§ 1.º Se esses autos forem levantados por qualquer outra autoridade ou por um agente da autoridade ou funcionário público, somente farão fé em juízo se disserem respeito a qualquer infracção a que corresponder processo de polícia correcional, de transgressão ou sumário, salvo nos casos especiais em que por lei se exijam outras diligências para a instrução do processo.
§ 2.º Os autos a quê este artigo e seu § 1.º se referem fazem fé unicamente quanto aos factos presenciados pela autoridade, agente da autoridade ou funcionário público que os levantar ou mandar levantar.
§ 3.º O juiz, mesmo que o auto de notícia faça fé em juízo, poderá mandar proceder a quaisquer diligências que julgue necessárias para a descoberta da verdade.»
[8] - Já não tem qualquer significado prático o outro artigo que conhecemos a atribuir “fé em juízo” aos autos de notícia, o artigo 6º do Dec-Lei nº 17/91, de 10 de Janeiro (Processamento e julgamento das contravenções e transgressões): «1 - O auto de notícia levantado nos termos do n.º 1 do artigo 3.º faz fé em juízo, até prova em contrário. 2 - A eficácia do auto de notícia não impede a autoridade judiciária de proceder às diligências que entender necessárias para a descoberta da verdade.»
[9] - O artigo 94º, n.º 1 do Decreto-Lei n. 176/2006, de 30 de Agosto afirmava: “A actividade de distribuição por grosso de medicamentos depende sempre de autorização do INFARMED, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.
[10] - «a) O fabrico, introdução no mercado, comercialização, distribuição, importação, exportação, importação paralela, dispensa, fornecimento ou venda ao público, ou administração de medicamentos ou medicamentos experimentais sem as autorizações exigidas;»
[11] - «i) A violação do disposto nos artigos 6.º, 9.º, nas alíneas a) a m) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 29.º, nos ns. 1 a 4 do artigo 78.º, nos artigos 85.º e 94.º, nos ns. 1 e 3 a 5 do artigo 100.º e no artigo 170.º;»