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BURLA TRIBUTÁRIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
Sumário
I - A não comunicação à Segurança Social de facto susceptível de determinar a suspensão do subsídio social de desemprego, nomeadamente o início de nova actividade profissional, por banda de beneficiário daquele subsídio, é susceptível de integrar a prática de uma contra-ordenação, p.p. pelos artºs 64.º e 65.º do DL 220/2006, de 3/11; não, porém, a prática do crime de burla tributária, p.p. pelo artº 87-º, nº 1 do RGIT. [1]
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES QUE COMPÕEM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I. No inquérito que, com o nº 16/12.4TDEVR, corre seus termos no DIAP de Évora, em 9/1/2013 o Magistrado do MºPº proferiu despacho de arquivamento, entendendo que a conduta denunciada e objecto de investigação não consubstancia a prática de qualquer crime.
O Instituto da Segurança Social, IP, constitui-se então assistente e requereu a abertura de instrução, finda a qual a Mª JIC proferiu despacho de não pronúncia, nos seguintes termos:
«I. RELATÓRIO
Não concordando com o despacho proferido pelo Ministério Público, constante de fls. 120 a 123, que arquivou o inquérito considerando que a conduta denunciada e objecto da investigação não consubstancia a prática de qualquer crime, requereu o assistente Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de Évora a abertura de instrução.
Alega, em síntese, que os arguidos A., divorciado, filho de...,nascido a 30/6/1966, residente na Avenida São João de Deus...,em Évora, e B., casado, filho de..., nascido a 15/6/1971, empresário, residente na Av. São João de Deus,..., em Évora – omitiram o cumprimento do dever de comunicar ao serviço de segurança social da área da residência ou instituição competente qualquer facto susceptível de determinar a suspensão ou a cessação das prestações. Assim, determinaram a prática de atribuições patrimoniais por parte da Segurança Social que se traduziram num enriquecimento indevido, consumando-se o crime de burla tributária contra a Segurança Social, na forma continuada.
A não comunicação da alteração da situação susceptível de alterar ou fazer cessar a atribuição de uma prestação da segurança social, traduz conduta ilícita dos arguidos, sendo que o art. 87.º, n.º 1 do RGIT não afasta a possibilidade de cometimento do crime de burla tributária por omissão, que se verifica nos presentes autos tendo em conta a existência de dever legal que não foi cumprido.
Os arguidos utilizaram um meio fraudulento – a ocultação de um facto que legalmente deveriam ter revelado, no caso o início de uma actividade profissional por parte do beneficiário – que determinou a segurança social a efectuar atribuições patrimoniais – processamento das prestações de desemprego – o que não aconteceria caso os arguidos tivessem cumprido o dever jurídico de informação, tendo daí resultado um enriquecimento indevido do beneficiário no valor de € 3.157,22.
Pugna, assim, pela submissão dos arguidos a julgamento pela prática de um crime de burla tributária p. e p. no art. 87.º, n.º 1 do RGIT, na forma continuada.
(…)
IV. DISCUSSÃO E APRECIAÇÃO:
Conforme estatui o artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Por seu turno, de acordo com o artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, deverá o juiz pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso não seja possível reunir tal acervo probatório, deverá ser proferido despacho de não pronúncia.
Na instrução bastará a mera prova indiciária, não se exigindo ainda a certeza quanto ao mérito da questão.
Indícios suficientes serão, assim, elementos factuais, sinais objectivos, vestígios, aportados pelos meios legais probatórios ao processo, que conjugados e relacionados criam a convicção de uma séria probabilidade da condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído, a manter-se todo aquele acervo probatório em sede de julgamento.
Defendeu a Digna Magistrada do Ministério Público que os factos indiciados nos autos não constituem crime de burla tributária (único em discussão nesta fase processual), entendimento contra o qual se insurge o assistente.
Tendo em conta os documentos juntos aos autos, encontram-se suficientemente indiciados os seguintes factos:
- O arguido A. requereu a atribuição de subsídio social de desemprego em 26 de Julho de 2010, ao abrigo do D.L. n.º 220/2006, de 3/11, a qual lhe foi deferida com início reportado à data da entrega do requerimento, ou seja, em 1 de Julho de 2010, e com o montante diário de € 14,24, pelo período de 840 dias.
- O arguido tinha conhecimento de que se encontrava obrigado a comunicar o início de uma nova actividade profissional no prazo de cinco dias após o seu início, uma vez que tal informação consta do ofício enviado ao mesmo aquando da notificação da decisão de deferimento da prestação.
- Em 14 de Setembro de 2011, o arguido encontrava-se a prestar serviço para o arguido B.
- O arguido A. iniciou uma actividade profissional em 13 de Setembro de 2011, não tendo comunicado à Segurança Social o início desta actividade.
- Sabia também que quando reiniciasse uma actividade profissional remunerada deveria comunicar tal facto à Segurança Social.
- No entanto, não o fez por saber que tal impediria a continuação do recebimento do subsídio de desemprego.
- A Segurança Social continuou a efectuar o pagamento do subsídio de desemprego, quando já não se verificava a situação de desemprego.
- Em consequência, o arguido A. recebeu indevidamente € 3.157,22, referentes ao período compreendido entre 15/09/2011 e 30/04/2012.
- O arguido B. tinha conhecimento de que o arguido A. se encontrava em situação de desemprego, razão pela qual não declarou esta relação laboral à Segurança Social.
Encontrando-se indiciados estes factos, importa ponderar se os mesmos integram o crime de burla tributária, p. e p. no art. 87.º do Cód. Proc. Penal, como defende o assistente.
Dispõe o art. 87.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) que comete o crime de burla tributária “Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro”, sendo punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.
De acordo com o art. 2.º, n.º 1 e 2 do D.L. n.º 220/2006, de 3/11, é considerado desemprego toda a situação decorrente da inexistência total e involuntária de emprego do beneficiário com capacidade de disponibilidade para o trabalho, inscrito para emprego no centro de emprego.
É dever dos beneficiários da prestação de desemprego comunicar ao serviço da segurança social da área de residência ou instituição de segurança social competente qualquer facto susceptível de determinar a suspensão ou cessação das prestações (cfr. art. 42.º, n.º 2, al. a), do D.L. 220/2006, de 3/11). A comunicação deverá ocorrer no prazo de 5 dias úteis (cfr. n.º 3 do art. 42.º, do mesmo diploma).
Sustenta o assistente que os arguidos cometeram o crime de burla tributária quando omitiram a comunicação à segurança social do início da actividade laboral do arguido A. determinando que continuasse a ser pago o subsídio de desemprego que lhe havia sido atribuído.
Não lhe assiste, em nosso entender, razão.
Temos como correcto o entendimento de que o crime de burla tributária é um crime de resultado, de execução vinculada. São elementos constitutivos deste tipo de crime o uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante. Tais meios terão de determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
Equivale isto por dizer que, em nosso entender, a construção do tipo legal afasta o preenchimento do crime por omissão (exigindo a conduta activa do agente).
Neste sentido encontramos o Ac. da R.C. de 26/1/2011 (Proc. 370/06.7TACBR.C1), o Ac. da R.E. de 8/11/2005 (Proc. n.º 1598/05.1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, o Ac. da R.E. de 31/1/2006 (CJ, Ano XXXI, p. 257 e ss.), o Ac. R.E. de 13/01/2009 (CJ Ano XXXIV, T. I, pág. 277 e ss.) e o Ac. da R.E. de 7/12/2012 (Proc. n.º 312/11.8TAABF.E1), disponível em www.dgsi.pt.
A conduta posterior omissiva, sendo ilícita, não integra o crime de burla tributária, pois não se traduz no engano exigido pela norma, nem determina a segurança social à atribuição da prestação que já fora calculada anteriormente, sendo fonte quanto muito da manutenção do pagamento (o que não integra a construção típica).
Entende-se, por isso, que a conduta dos arguidos indiciariamente comprovada não integra o tipo objectivo do crime de burla tributária p. e p. no art. 87.º do RGIT, o que determina a prolação de despacho de não pronúncia.
V. DISPOSITIVO:
Pelos fundamentos supra expostos, o Tribunal não pronuncia os arguidos A. e B. pela prática do crime de burla tributária p. e p. no art. 87.º do RGIT. (…)».
Inconformado, recorreu o assistente, pugnando pela pronúncia dos arguidos e extraindo da sua conclusão as seguintes conclusões (transcritas):
«1.º – A falta de comunicação, pelo arguido, A., beneficiário do subsídio social de desemprego, do início de uma nova atividade profissional, conjugado com o facto do arguido B. ter conhecimento desta situação, razão pela qual não declarou esta relação laboral à Segurança Social consubstancia a prática do crime de burla tributária, p. e p. pelo Artigo 87.º do RGIT.
2.º - Estabelece o Artigo 87.º n.º 1 do RGIT que “Quem por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou de outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou com multa até 360 dias.”
3.º - São, assim elementos constitutivos deste tipo legal de crime, o uso ou engano sobre factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante, omissão de um dever legalmente consagrado, para determinar a administração fiscal ou a administração da Segurança Social à prática de atribuições patrimoniais de que resulte o enriquecimento do agente ou de terceiro.
4.º - No caso em apreço, existe uma conduta ilícita dos arguidos, que consiste na não comunicação da alteração da situação suscetível de alterar ou de fazer cessar a atribuição de uma prestação da Segurança Social.
5.º - “Tal como o tipo está descrito, não está, a nosso ver, de todo afastada a possibilidade do cometimento de burla tributária por omissão atenta a circunstância de actualmente a lei fiscal fazer impender sobre o contribuinte um vasto conjunto de actos e de obrigações acessórias de que depende o procedimento tributário. Para que se verifique o crime de burla tributária não parece ser necessário que o erro ou engano sejam por um comportamento activo do agente, por palavras ou actos, podendo também ser provocados por um comportamento passivo. Se como na norma se procede, a exigência de que o erro ou engano tenham sido astuciosamente provocados, temos que concluir que a burla por omissão só pode verificar-se quando, impendendo sobre o agente o dever de informação, este não lhe deu cumprimento.” – (in anotações ao Artigo 87.º do Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado – João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, pág. 442).
6.º - A admissibilidade da punição do crime de burla por omissão é aceite de modo dominante na doutrina, existindo ainda Jurisprudência que consubstancia este entendimento.
7.º - A regra no nosso Direito Penal é a que consta no Artigo 10.º n.º 1 do Código Penal: “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”.
8.º - O n.º 2 do Artigo 10 do Código Penal refere ainda que “A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”.
9.º - No caso vertente é indiscutível que tal dever existe, e está consagrado no Artigo 42.º n.º 2 alínea a) e n.º 3 do Decreto-Lei n.º 220/2006 de 3 de novembro “(…) comunicar ao serviço da segurança social da área de residência ou instituição da segurança social competente qualquer facto susceptível de determinar a suspensão ou a cessação das prestações.”, sendo que a comunicação deve ocorrer no prazo de cinco dias úteis a contar da data do conhecimento do facto.
10.º - Pelo que é nosso entendimento que a omissão de dados de factos relevantes para os efeitos da norma do artigo 87.º do RIGT, em violação das imposições legais a esse respeito, está nele equiparada ao fornecimento de informações falsas para idêntico fim.
11.º - O crime de burla tributária satisfaz-se com esta omissão dos deveres de informação legalmente estabelecidos, desde que essa omissão venha a determinar o resultado, não sendo exigível a atuação astuciosa, o erro ou o engano ativamente provocados.
12.º - Sem o dever de informação e de verdade dos contribuintes e dos beneficiários dificilmente se imagina o funcionamento do sistema, e daí a importância do sancionamento penal para a violação desses deveres.
13.º - Face a todo o exposto e salvo o devido respeito, entendemos que os factos imputados aos arguidos consubstanciam a prática de um crime de burla tributária p. e p. do Artigo 87.º n.º 1 do RGIT».
Respondeu a Digna Magistrada do MºPº, pugnando pela improcedência do recurso e extraindo da sua resposta as seguintes conclusões (igualmente transcritas):
«1ª -A falta de comunicação pelos arguidos de circunstâncias suscetíveis de fazer cessar ou suspender a atribuição de uma prestação social, não consubstancia, no caso, a prática de qualquer crime, designadamente o previsto no artº 87º do Regime Geral das Infracções Tributárias – RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06.
2ª - O crime de burla tributária é um crime de execução vinculada e só pode ser cometido por um dos três modos nele previstos - falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos –, pelo que, delineado para condutas ativas, a mera omissão não preenche qualquer das suas condutas típicas.
3ª - O silêncio dos arguidos não é um “meio fraudulento”. Não é “meio” porque, para isso, tinha que ser uma conduta ativa e não é “fraudulento” porque, para isso, teria que ser minimamente elaborado, o que não acontece.
4ª - A burla tributária configura uma das situações em que, nos termos do artº 10º/1, parte final, do Código Penal, a lei teve intenção de não equiparar a omissão à ação, pelo que esta norma não é aqui aplicável.
5ª - Acresce que as omissões dos arguidos não determinaram qualquer “atribuição patrimonial” por parte da Segurança Social, a qual havia sido feita, anteriormente, no momento do deferimento da prestação social de desemprego e de forma válida; desde então essa atribuição tem vindo a ser executada, em prestações.
6ª - A conduta descrita pelo assistente não preenche os elementos objetivos do crime de burla tributária, ou qualquer outro, pelo que, na decisão recorrida, a Mma. JI fez uma correta aplicação do art. 87º do RGIT».
Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pugnando igualmente pela improcedência do recurso. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve resposta.
II. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.
Sabido que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam o âmbito do recurso - artºs 403º e 412º, nº 1 do CPP - cumpre dizer que em discussão nos presentes autos está o saber se o silêncio dos arguidos, não comunicando à Segurança Social facto susceptível de determinar a suspensão do subsídio social de desemprego que o arguido A. vinha auferindo, os fazem incorrer na prática de um crime de burla tributária.
A factualidade a ter em conta é a que descrita vem no douto despacho recorrido, nessa parte não impugnado.
Temos, assim, que o arguido A. requereu e obteve a atribuição de subsídio social de desemprego em 26 de Julho de 2010. Sabedor de que se encontrava obrigado a comunicar o início de uma nova actividade profissional no prazo de cinco dias após o seu início, certo é que esse arguido iniciou uma actividade profissional em 13 de Setembro de 2011, não tendo comunicado tal facto à Segurança Social, razão pela qual esta continuou a efectuar o pagamento do subsídio de desemprego, quando já não se verificava a situação que o justificava. Em consequência, o arguido A. recebeu indevidamente € 3.157,22, referentes ao período compreendido entre 15/09/2011 e 30/04/2012. O arguido B. tinha conhecimento de que o arguido A. se encontrava em situação de desemprego, razão pela qual não declarou esta relação laboral à Segurança Social.
Posto isto:
Dispõe-se no artº 87º, nº 1 do RGIT: “Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
A possibilidade de o referido crime ser cometido por omissão é questão que não reúne consenso entre a doutrina e a jurisprudência, como o despacho recorrido, a motivação de recurso e subsequente resposta do MºPº nos dão conta.
A divergência de entendimento estende-se a esta Relação de Évora, onde o problema foi objecto de decisões desencontradas.
Defendendo a possibilidade de o crime de burla tributária ser cometido por omissão pronunciaram-se os Acs. desta Relação de 7/2/2006 e de 8/1/2013, CJ ano XXXI, t. I, 258 e www.dgsi.pt (Pr. 1298/11.4TAABF.E1), respectivamente.
Defendeu-se no primeiro daqueles arestos que a admissibilidade da comissão por omissão do crime de burla p.p. pelo artº 217º do Cod. Penal (relativamente ao qual o crime de burla tributária não deveria receber, ao menos neste pormenor, tratamento distinto) foi reconhecida pelo Prof. Eduardo Correia, autor do Anteprojecto do CP [2], sendo certo que a forma como o crime de burla tributária se encontra descrito não afasta a possibilidade da sua comissão por omissão “em conformidade com a cláusula geral da equiparação da acção à omissão contida no nº 1 do artº 10º” do Código Penal, onde se dispõe que “quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”.
Também no acórdão da RE de 8/1/2013 se coloca o acento tónico na equiparação da omissão à acção, prevista no nº 1 do artº 10º do Cod. Penal (entendendo-se que o dever de garante previsto no nº 2 do mesmo dispositivo está previsto, in casu, no artº 42º, nº 2, al. a) do DL 220/2006, de 3/11), dispositivo que, em sua óptica, teria sido olvidado no Ac. RE de 8/11/2005, proferido no Proc. 1598/05-1, que constitui a referência para uma corrente jurisprudencial de sentido oposto.
São elementos constitutivos do crime de burla tributária, p.p. pelo artº 87º, nº 1 do RGIT, (i) o uso de erro ou engano sobre factos, provocado por meios fraudulentos como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante, (ii) que sejam aptos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
Trata-se de um crime de resultado e de execução vinculada, com processo típico descrito de forma particularmente detalhada.
E se é verdade que, como salienta Almeida Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, t. II, 308, «o facto de se tratar de um delito de execução vinculada não constitui um impedimento absoluto da equiparação da omissão à acção» mas, quando muito, remete o juiz “para uma valoração autónoma, de carácter ético-social, através da qual ele determine se, segundo as características do caso, o desvalor da omissão corresponde ou é equiparável ao desvalor de acção, na perspectiva da própria ilicitude”, certo é sempre que o processo típico descrito no artº 87º, nº 1 do RGIT aponta para um comportamento activo do agente. Exige-se, como se referiu, a prática de falsas declarações, de falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos de idêntico teor. A utilização de meio fraudulento pressupõe, cremos, uma conduta activa do agente, o «uso de um meio fraudulento “activo”, ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que directamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente», como bem se observa no Ac. RE de 8/11/2005, supra aludido [3]. E a verdade é que, como refere a Digna Magistrada do MºPº na resposta que ofereceu em 1ª instância, «o silêncio dos arguidos não é um “meio fraudulento”. Não é “meio” porque, para isso, tinha que ser uma conduta activa e não é “fraudulento” porque, para isso, teria que ser minimamente elaborado, o que não acontece».
Na realidade, como já se decidiu nesta Relação de Évora (Ac. de 13/1/2009, CJ ano XXXIV, t. I., 277 e segs.), não são idênticas, no que diz respeito ao processo típico de execução, «as normas contidas nos artºs 217º do C. Penal e 87º, nº 1 do RGIT, sendo certo que dúvidas parecem não subsistir de que ambos constituem crimes de resultado e de execução vinculada. Contudo, o legislador tributário, diferentemente do legislador do C. Penal, concretizou a “matriz” dos meios fraudulentos tendentes a induzir o erro ou engano, e ao fazê-lo, fê-lo com referência a condutas astuciosas comissivas activas e não já a meras condutas omissivas do agente, aspecto que obsta à tese defendida pelos recorrentes da equiparação da omissão à acção, nos termos do artº 10º do C. Penal, o que encontra fundamento no último (trecho) do nº 1 do citado preceito “salvo se outra for a intenção da lei”»[4].
A conduta omissiva indiciariamente apurada nos autos seria – como se assinala na resposta oferecida pelo MºPº em 1ª instância e no douto parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação – susceptível de integrar a prática, pelos arguidos, de um crime p.p. pelo artº 106º, nº 1 do RGIT, onde se estatui que “constituem fraude contra a segurança social as condutas das entidades empregadoras, dos trabalhadores independentes e dos beneficiários que visem (…) o recebimento indevido, total ou parcial, de prestações de segurança social com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial ilegítima de valor superior a € 7500”. Contudo, in casu, a vantagem patrimonial ilegítima ficou-se pelos € 3.157,22, inferior, portanto, ao patamar fixado naquele dispositivo legal.
A conduta do arguido A, omitindo a comunicação à Segurança Social do início de actividade profissional, não obstante saber da obrigatoriedade de o fazer, é ilícita, seguramente. Como é moralmente censurável, no que todos estaremos de acordo.
Porém, nem todo o comportamento ilícito é necessariamente criminoso. Na verdade, “importa reservar a incriminação para aqueles actos em que seja insuficiente a intervenção dos outros ramos do direito”[5]. E o certo é que a omissão da comunicação do início de uma actividade profissional é, no caso, sancionada como contra-ordenação. Com efeito, dispõe-se no artº 64º, nº 1 do DL 220/2006, de 3/11, que “constitui contra-ordenação punível com coima de € 100 a € 700 o incumprimento dos deveres para com os serviços ou instituições de segurança social previstos no nº 2 do artigo 42º”. E, “no caso de violação do dever de comunicação do início de actividade profissional determinante da suspensão do pagamento das prestações previsto no nº 2 do artigo 42º, e tendo em conta a gravidade da infracção, pode ser aplicada ao beneficiário, simultaneamente com a coima a que houver lugar, a sanção acessória de privação de acesso às prestações de desemprego pelo período máximo de dois anos (…)” – artº 65º do mesmo diploma.
Em suma: a conduta indiciada nos autos é susceptível de integrar a prática de uma contra-ordenação, p.p. pelos artºs 64º e 65º do DL 220/2006, de 3/11; não, porém, a prática do crime de burla tributária, p.p. pelo artº 87º, nº 1 do RGIT, como pretende o recorrente.
E assim sendo, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
III. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando inteiramente a decisão recorrida.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s – artº 515º, nº 1, al. b) do CPP.
Évora, 28 de Janeiro de 2014 (processado e revisto pelo relator)
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Sénio Manuel dos Reis Alves
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Gilberto da Cunha
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[1] - Sumariado pelo relator
[2] Como consta das “Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal”, Parte Especial, ed. da AAFDL, 139, o Prof. Eduardo Correia “pôs em relevo que se não deve afastar a punição da burla por omissão”, porquanto “o tipo não se alarga demasiado, pois sempre fica limitado, por um lado, pela exigência de o aproveitamento ter sido astucioso e por outro lado pelo facto de haver um dever de informar e esclarecer”.
[3] No mesmo sentido, cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos (Regime Geral das Infracções Tributárias anotado), 621/622 e Carlos Adérito da Silva Teixeira e Sofia Margarida Correia Gaspar, no estudo publicado em “Comentário das Leis Extravagantes”, vol. II, Edição UCE, citado no Ac. RE de 7/12/2012, Proc. 312/11.8TAABF.E1.
[4] No mesmo sentido, cfr. Acs. desta Relação de 31/1/2006, CJ ano XXXI, t. I, 257 e segs. e de 7/12/2012, Proc. 312/11.8TAABF.E1, www.dgsi.pt e Ac. RC de 26/1/2011, Proc. 370/06.7TACBR.C1, www.dgsi.pt .
[5] Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, vol. I, 89.