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CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário
1. É clara e legítima a ordem dada por agente de autoridade a condutor de veículo automóvel, para que este se sujeite a exame de pesquisa de álcool em aparelho de análise quantitativa quando o exame efectuado em equipamento qualitativo deu resultado positivo, independentemente de ter sido comunicada a concreta TAS acusada, bastando a informação de que o teste qualitativo revelou a presença de álcool no sangue num limite passível de fazer incorrer em responsabilidade contra-ordenacional ou penal.
2. A lei não impõe a notificação, ao visado, da TAS revelada no teste qualitativo, mostrando-se suficiente a comunicação de que este denunciou a presença de álcool no sangue, comunicação que se enquadra num procedimento de recolha de provas legal, leal e transparente.
3. Comete o crime do crime de desobediência (do artigo 348º, nº 1, al. a), do Código Penal e artigo 152º, nºs 1 e 3, do Código da Estrada) o agente que, após realização do teste qualitativo e da comunicação de que este revelou a presença de álcool no sangue num limite susceptível de integrar responsabilidade contra-ordenacional ou criminal, se recusa submeter a exame de pesquisa de álcool em aparelho de análise quantitativa com a alegação de desconhecimento da concreta TAS indicada no teste qualitativo. [1]
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo n.º 228/13.3GHST do juízo de instância criminal de Santiago de Cacém foi proferido sentença em que se decidiu absolver o arguido A. da prática de um crime de desobediência do artigo 348º, nº 1, al. a), do Código Penal e artigo 152º, nºs 1 e 3, do Código da Estrada.
Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo:
“1. O arguido A. veio absolvido da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas do artigo 348º, nº 21, al. a), do Código Penal, e do artigo 152º, nºs 1 e 3, do Código da Estrada, punido ainda com a pena acessória do artigo 69º, nº 1, al. c), do Código Penal, com o fundamento na falta do elemento subjectivo do respectivo tipo.
2. O arguido recusou-se a efectuar o teste de alcoolemia quando sabia que estava obrigado a realizá-lo.
3. Perante a recusa do arguido em efectuar o exame de pesquisa de álcool no sangue, sem que tenha alegado qualquer motivo justificativo, o mesmo incorre na prática de um crime de desobediência, pois é essa a cominação legal.
4. Atenta a factualidade provada, manifesto é ter incorrido o arguido no crime de que está acusado, pois foi a ordem legítima e emanada de autoridade com competência para o efeito, não lhe assistindo qualquer causa de justificação.
5. Na verdade, não pode considerar-se que um arguido possa alegar como justificação para se eximir à submissão do teste quantitativo ao álcool por método de ar expirado ou através de análises sanguíneas com base no facto de não ter tido acesso ao valor fornecido no teste de triagem/despistagem, que se traduz no teste denominado de qualitativo.
6. Desde logo, porque tal obrigação de informar o arguido do resultado do teste de despistagem não se encontra previsto em qualquer preceito legal.
7. Na verdade, resulta da lei que o condutor é obrigatoriamente notificado do resultado do teste quantitativo, não fazendo qualquer referência à existência de notificação do resultado do teste qualitativo.
8. Contudo, no raciocínio discorrido pelo Mmo. Juiz e, não obstante, o preenchimento do elemento objectivo do tipo legal de crime, não se logrou demonstrado que o arguido o tenha feito de forma deliberada e consciente.
9. Não podemos concordar com tal entendimento, até porque o arguido não podia desconhecer a obrigação de se submeter às provas de detecção de álcool e não podia porque é um cidadão encartado desde o ano de 1990.
10. Mais, mesmo que recorramos ao critério do cidadão médio, ter-se-á que chegar necessariamente a essa conclusão. A obrigação de se submeter às provas estabelecidas para detecção do estado de influenciado pelo álcool, consubstancia um facto que é do conhecimento público, da generalidade dos cidadãos!
11. No que toca à escolha da medida concreta da pena e atendendo aos factos no seu conjunto e à personalidade do agente há que concluir que a pena de multa se mostra adequada e suficiente para a realização das finalidades da punição, isto é, para a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
12. Assim, e em relação ao crime de desobediência é nosso entendimento que será adequado aplicar a pena de 80 dias de multa à razão diária de € 6 (seis euros), no montante global de € 480 (quatrocentos e oitenta euros).
13. Impõe-se ainda a condenação do arguido num período de proibição, mostrando-se adequada, a nosso humilde ver, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 (quatro) meses.”.
O arguido não respondeu ao recurso.
Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
2. Na sentença, e ao que ora releva, consideraram-se os seguintes factos provados:
“1. No dia 8 de Junho de 2013, pelas 04h00m, o arguido conduziu o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ----QG, pelo Itinerário Principal nº 8, em Sines, tendo ali sido fiscalizado por uma patrulha da G.N.R..
2. Porém, o arguido após submeter-se à realização do teste qualitativo, recusou submeter-se ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado – em aparelho de análise quantitativa devidamente aprovado para o efeito – e ao exame através de análise ao sangue em unidade hospitalar adequada para o efeito, apesar de lhe ter sido ordenado pela entidade fiscalizadora que o fizesse, com a advertência de que se recusasse praticaria o crime de desobediência.
3. O arguido não tem antecedentes criminais.
Foram ainda consignados os factos não provados:
a) Ao recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, o arguido agiu com o propósito concretizado de não respeitar a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que devia obediência à mesma – por lhe ter sido regularmente comunicada (com a aludida advertência) e porque emanada de um agente da autoridade com competência legal para aquele efeito – e que, faltando, incorria em responsabilidade criminal.
b) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.”
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são a do erro notório na apreciação da prova e a do erro de subsunção.
Em princípio e por norma, a questão do “erro notório” precede a do “erro de subsunção”, pois este assenta numa incorrecta integração jurídica de factos, o que pressupõe a estabilização prévia do quadro factual a subsumir juridicamente.
Assim, a decisão do recurso, à semelhança da sentença, deve tratar a questão de facto com precedência sobre a questão de direito.
No entanto, no caso presente, as conclusões do recorrente evidenciam que o erro de facto resulta, não duma simples indevida ponderação de provas, mas dum juízo valorativo contaminado por uma prévia interpretação deficiente das normas aplicáveis.
Assim, a precedência-regra do tratamento da questão de facto em relação à questão de direito não dispensa agora um tratamento conjunto, já que as duas questões se entrecruzam num “insolúvel círculo lógico” (na expressão de Castanheira Neves), particularmente no caso presente e aqui em recurso.
O Senhor Juiz formou a convicção de “não provado” em relação a determinados factos – os de que o arguido não teria actuado de forma deliberada, livre e consciente e com o propósito de não respeitar a ordem que lhe fora dada – ou seja, considerou como não provados os factos do tipo subjectivo, apoiando-se no entendimento de que o procedimento policial não fora o correcto.
Tal incorrecção de procedimento resultaria de ter sido negada ao arguido a informação sobre a taxa de alcoolemia revelada no teste qualitativo, informação a que o visado, ainda de acordo com a sentença, teria direito.
Tratar-se-ia de um direito a conhecer o concreto valor dado no teste qualitativo.
Ainda segundo a sentença, o arguido ter-se-ia recusado a submeter ao teste quantitativo, não para “desobedecer, por desobedecer”, mas porque não lhe fora comunicada aquela taxa.
Na sentença motiva-se que o arguido declarou ter sido fiscalizado pela G.N.R., que lhe foi pedido que se submetesse à realização do exame de pesquisa de álcool no sangue no ar expirado em aparelho de análise qualitativo, o que fez, que solicitou à agente autuante o resultado obtido, informando que não faria o teste quantitativo enquanto não soubesse a taxa de álcool daquele primeiro exame.
Esclarece-se também que a agente autuante depôs no sentido de ter submetido o arguido ao exame qualitativo, teste que acusou positivo e acima do valor admitido por lei; que o informou da necessidade de a acompanhar ao Posto para se submeter ao teste quantitativo; que este se recusou a fazê-lo apesar de advertido de que tal recusa o faria incorrer na prática de crime de desobediência, e que, apesar de solicitada, o autuante não disponibilizou ao arguido a informação da taxa precisa de alcoolemia indicada no teste qualitativo, omissão que justificou com ordens superiores de não informação dos condutores do valor exacto do teste qualitativo.
Da sentença resulta ainda que, na interpretação jurídica dos preceitos legais convocáveis feita pelo senhor juiz, uma recusa de submissão ao teste quantitativo seria legítima nos casos em que o agente autuante omita a informação prévia (alegadamente devida) do exacto valor da T.A.S indicada no visor do teste qualitativo de despistagem.
E é, afinal, nesta (incorrecta) representação do direito que se encontra explicada a não demonstração dos factos do dolo.
Releva aqui a conhecida lição de Castanheira Neves (in Metodologia da Ciência do Direito), no sentido de que o puro facto e o puro direito inexistem na ordem jurídica e de que “uma questão de facto é sempre uma questão de facto de uma certa questão de direito e uma questão de direito é sempre uma questão de direito de uma certa questão de facto”.
E deste insolúvel círculo lógico resulta que, no presente caso, a detecção do eventual erro notório na apreciação da prova implica uma prévia apreciação de direito (já que a indemonstração dos factos do dolo terá assentado numa determinada leitura do quadro legal aplicável).
Na verdade, os enunciados fácticos referentes ao dolo surgem na sentença como não provados na decorrência de um juízo conclusivo retirado de determinada interpretação do direito. E não, como sucede comummente, numa sequência normal e lógica dos factos (provados) do tipo objectivo, ou seja, como leitura natural e possível de determinada conduta exteriorizada (factos objectivos) no sentido de dolosa.
O Senhor Juiz sinalizou na sentença uma ilegalidade de procedimento por parte da agente autuante – ao sonegar ao autuado uma informação a que teria direito –, mas não especificou qual a norma legal infringida.
Vejamos, então, o quadro legal de referência.
O artigo 152º, nº 3, do Código da Estrada preceitua que os condutores e peões intervenientes em acidentes de viação “que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidos por crime de desobediência”.
Do artigo 153º do mesmo diploma decorre que “o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito” (nº 1); “se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito, ou, se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele decorrentes, de que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e de que deve suportar todas as despesas originadas por esta contraprova no caso de resultado positivo” (nº 2); “a contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando: a) novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado; b) análise de sangue” (nº 3).
Por seu turno, a Lei nº 18/2007, de 17-05 dispõe no seu artigo 1º que “a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo (nº 1); a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue (nº 2); a análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo (nº 3)”.
De acordo com o artigo 2º da mesma lei, “quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos” (nº 1); “para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário” (nº 2); “sempre que para o transporte referido no número anterior não seja possível utilizar o veículo da entidade fiscalizadora, esta solicita a colaboração de entidade transportadora licenciada ou autorizada para o efeito” (nº 3); “o pagamento do transporte referido no número anterior é da responsabilidade da entidade fiscalizadora, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada” (nº 4).
Do quadro legal de referência resulta que o aparelho qualitativo visa sinalizar a mera presença de álcool no sangue, não cuidando da quantificação de uma TAS – “a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado efectuado em analisador qualitativo” e “quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue …”.
Estes aparelhos (qualitativos) não emitem qualquer talão (registo documental da taxa medida) e visam tão só, repete-se, uma primeira despistagem e a consequente selecção dos condutores (ou peões) a submeter a teste quantitativo.
Assim sendo, não pode deixar de se considerar clara, precisa e legítima a ordem de agente de autoridade dada a condutor de veículo para que este se sujeite a exame de pesquisa de álcool no ar expirado em aparelho de análise quantitativa, após ter sido efectuado exame positivo em equipamento qualitativo e independentemente de ter sido comunicada a concreta TAS acusada, bastando a informação de que o teste qualitativo revelou a presença de álcool no sangue acima de limite passível de fazer incorrer em responsabilidade (contra-ordenacional ou penal).
Tem, pois, razão o Ministério Público quando acertadamente desenvolve:
“Em conformidade com o texto da Lei nº 18/2007, de 17-05 conjugado com os artigos acima referenciados do Código da Estrada, consideram-se como provas previstas para a fiscalização do álcool os seguintes actos:
- Teste em equipamento qualitativo (despistagem)
-Teste em equipamento quantitativo (prova ou contraprova)
- Análise ao Sangue (prova ou contraprova)
- Exame médico (prova ou contraprova)
E da leitura do artigo 153º, n.º 2 do Código da Estrada, resulta que existe a obrigatoriedade de notificar o condutor após teste de alcoolemia, por escrito ou verbalmente: do resultado; das sanções legalmente decorrentes daquele resultado; de que pode, de imediato, requerer contraprova e que, caso positivo, deve suportar todas as despesas originadas por essa contraprova;
Isto é,
a) Os elementos da notificação não são facultativos;
b) O teste qualitativo não serve para a aplicação de quaisquer sanções legais, logo do mesmo nada resulta senão uma conclusão genérica sobre a presença de álcool no sangue; não havendo portanto sanções legalmente decorrentes do seu valor (elemento de notificação)
c) Não sendo o teste qualitativo admitido como prova, do mesmo não decorre o direito a contraprova (elemento de notificação)
d) Não havendo direito a contraprova na sequência de teste qualitativo, não ficará o condutor sujeito a suportar despesa (elemento de notificação)
e) Assim, do tecido legislativo que recai sobre esta matéria, extrai-se que a obrigatoriedade de notificar o condutor do resultado do teste, apenas existe, para os casos em que o resultado demonstra efectivamente a violação das normas legais em vigor, sendo válido como prova, ou seja, feito em equipamento quantitativo.”
A lei não impõe a notificação do resultado do teste qualitativo, mostrando-se suficiente a comunicação de que este revelou a presença de álcool no sangue, comunicação que, não só respeitou a lei aplicável, como se enquadrou, concretamente, num procedimento de recolha de provas leal e transparente.
A sentença revela erro de direito ao ter decidido de modo diverso ao descrito.
E este erro de direito inquinou a decisão (prévia) sobre os factos, ou seja, a apreciação da prova dos factos do dolo, que foram indevidamente considerados como não provados na sentença.
Este erro de facto é um erro notório de facto.
Como se sabe, o erro notório na apreciação da prova é um erro evidente, facilmente detectado, e resultante do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum. Consiste em considerar-se provado (ou como não provado, como sucede no caso) algo notoriamente errado, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum.
É, assim, uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si (…) Há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se respeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis” (Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 2007, p. 74).
Ora, tendo sido considerado como provado que “tendo sido fiscalizado por uma patrulha da G.N.R. quando conduzia veículo automóvel, o arguido se recusou submeter ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, apesar de lhe ter sido ordenado pela entidade fiscalizadora que o fizesse, com a advertência de que se recusasse praticaria o crime de desobediência”, e sabendo-se que, sendo encartado há muitos anos, não podia deixar de conhecer a obrigação a que estava sujeito, e que as razões que apresentou em julgamento para o não acatamento da ordem não suscitam dúvida razoável sobre os factos do dolo, também os factos que foram tidos na sentença como “não provados” deveriam ter sido considerados como provados.
Eles não só decorrem natural e logicamente dos factos provados, como sucede em grande parte dos casos, como resultam de toda a prova produzida.
Os factos do tipo subjectivo podem resultar dos factos externos (e resultam também no caso presente).
Como se sabe, os factos que integram o dolo, os actos interiores ou internos, por respeitarem à vida psíquica raramente se provam directamente. Na ausência de confissão, em que o agente reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo far-se-á por ilações, a partir de indícios, através de deduções retiráveis de um comportamento exterior e visível do agente.
Nestes casos, o julgador resolverá a questão de facto apreciando se o agente agiu internamente da forma como o terá revelado externamente.
Dizer que os factos integrantes do tipo subjectivo de crime resultam frequentemente dos factos externos, não significa afirmar que assim o seja necessariamente. O dolo não se presume, a prova é “particularística sempre” e “o caso concreto pode ficar fora do caso típico” (Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III).
No entanto, reportando-se aos factos do tipo objectivo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, é natural que os factos integrantes do dolo possam resultar daqueles.
E assim sucede no caso presente.
Perante a recusa objectivada, do arguido, em efectuar o exame de pesquisa de álcool no sangue sem que tenha apresentado razão ou motivo realmente explicativo desse procedimento, a prova produzida em julgamento deveria ter conduzido também à demonstração dos factos do dolo.
Ou seja, deveria ter sido considerado provado que “ao recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, o arguido agiu com o propósito concretizado de não respeitar a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que devia obediência à mesma – por lhe ter sido regularmente comunicada (com a aludida advertência) e porque emanada de um agente da autoridade com competência legal para aquele efeito – e que, faltando, incorria em responsabilidade criminal” e que “agiu de forma livre, voluntária e consciente.”
Ao ter decidido de modo diverso, a sentença evidencia erro notório na apreciação da prova, a cuja sanação se procede agora, determinando que os “factos não provados” se desloquem para os “factos provados”, passando assim a integrar a matéria de facto provada a subsumir juridicamente.
E tendo a absolvição do arguido decorrido da ausência de dolo, sendo agora claro que se demonstraram todos os factos – objectivos e subjectivos – que realizam o tipo de crime imputado, é de concluir que o arguido cometeu, como autor, um crime de desobediência dos arts 348º, nº 1 do Código Penal e 152º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada, punido ainda pleo art. 69, nº 1 alínea c) do Código Penal.
Pois a sua injustificada recusa de submissão a exame de pesquisa de álcool no sangue a que, nas circunstâncias do caso, estava legalmente obrigado, desrespeitando a ordem legítima emanada de autoridade com competência para o efeito, tudo actos que “sabia” e “queria”, realiza o crime da acusação.
E mostrando-se preenchido o tipo de crime, importa proceder à determinação da sanção.
Mas tendo sido o arguido inicialmente absolvido na 1ª instância, e tendo este tribunal da Relação procedido à alteração da matéria de facto de modo a concluir pela condenação, cumpre assegurar os direitos de defesa, particularmente o direito ao recurso.
Na leitura do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e embora o direito ao recurso não resulte expressamente do disposto no art. 6º da Convenção, também os recursos devem obedecer às regras mínimas exigíveis a um processo equitativo, encontrando-se o duplo grau de jurisdição em matéria penal consagrado no art. 2º do protocolo nº 8 de 1984.
O direito ao recurso implica a possibilidade de reapreciação da medida da pena por uma instância superior.
Revestindo a questão da determinação da sanção uma relativa autonomia (arts 469º n.º 2 e 470º do Código de Processo Penal), mas sobretudo porque assim o impõe a garantia do duplo grau de jurisdição, de tutela constitucional no que respeita ao arguido (art. 32 nº 1 da Constituição da República Portuguesa), deverão os autos baixar à 1ª instância, para aí ser proferida decisão sobre a pena.
A Relação não pode funcionar, simultaneamente, como tribunal da primeira e da última condenação (ou seja, como tribunal da única condenação), assim sucedendo também em matéria de pena, o que, a acontecer, desrespeitaria o duplo grau de jurisdição em matéria penal.
4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar procedente o recurso, alterando a matéria de facto nos termos explicados;
- Julgar o arguido autor do crime de que vinha acusado (um crime de desobediência dos arts 348º, nº 1 do Código Penal e 152º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada, punido ainda pelo art. 69, nº 1 alínea c) do Código Penal);
- Determinar que os autos regressem à 1ª instância, para reabertura da audiência com prolação da decisão sobre a pena.
Sem custas.
Évora, 28.01.2014
Ana Maria Barata de Brito (relatora)
Maria Leonor Vasconcelos Esteves
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[1] - Sumariado pela relatora