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NEGLIGÊNCIA
CAUSALIDADE ADEQUADA
DIREITOS DE DEFESA DO ARGUIDO
Sumário
I - Pressupostos da afirmação da tipicidade nos crimes negligentes materiais ou de resultado são a violação de um dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objectiva desse mesmo resultado típico. II - A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme as leis científico-naturais e previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” . À causalidade e previsibilidade acrescem o carácter proibido do risco criado e a concretização desse risco proibido no resultado. III - A eventual contribuição causal da vítima para a produção do resultado não paralisa necessariamente a imputação, pois a imputação objectiva explica-se para além de uma lógica de pura causalidade. IV - Adopta uma condução imprudente aquele que embate em ciclista causando-lhe a morte, conduzindo veículo automóvel à velocidade de 70-80 Km, em luzes de cruzamento, em recta de visibilidade reduzida, à noite e sem iluminação, não usando luzes de estrada e não tendo adequado a velocidade às suas concretas possibilidades de visionamento. V - Tendo a vítima criado a possibilidade de ser vista, embora não do modo como devia, a actuação desta não afasta a imputação normativa do resultado à conduta do condutor do veículo, a quem, para evitar o resultado, teria bastado a visualização do velocípede a tempo de se poder ter desviado dele. VI - Em caso de absolvição em 1ª instância, quando a Relação, na sequência do recurso interposto vem a concluir pela condenação, os direitos de defesa e o direito ao recurso impõem que os autos baixem à 1ª instância para aí ser, então, proferida decisão sobre a pena.
Texto Integral
Processo nº 199/12.3GDSTB.E1
Acordam na Secção Criminal: 1. No Processo n.º 199/12.3 GDSTB do 3º juízo criminal do Tribunal Judicial de Setúbal foi proferida sentença em que se decidiu absolver Ada prática de um crime de homicídio por negligência do art. 137º, nº 1 Código Penal e de uma contra-ordenação dos art.º 61º n.º 1 al. c) e art.º 145º n.º 1 al. j) do Código Estrada.
Inconformada com o decidido, recorreu a assistente B, concluindo:
“DA MATÉRIA DE FACTO:
1. Os concretos pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados são:
A-·al. H - C circulava em plena faixa de rodagem (primeira parte da alínea);
B-· al. K – D conduzia o veículo JT a pelo menos 70 km/h;
C-·al. L – C conduzia a meio da faixa de rodagem direita a qual tem 3,60m de largura;
D-· al. S - A recta descrita em A tem 3,60m de largura e encontra-se dividida por duas semi-faixas de rodagem, por uma linha descontínua, separadora de trânsito;
E-· al. Y – A bicicleta tripulada por C, bem como a tripulada por B não faziam uso de equipamento retro-reflector;
F-· al. AA – É comum os veículos circularem em luzes de cruzamento na via descrita em A;
G-·A recorrente põe, ainda em causa a não prova do facto descrito em 3 dos factos não provados, ou seja, a não prova de que a via, no sentido Sul/Norte tem 7,20 metros de largura.
2. No que respeita aos factos provados em H, L, S e ao facto não provado em 3 dos factos não provados, os concretos meios de prova que impõe decisão diversa da recorrida são os seguintes:
a) Depoimento de E, Agente da G.N.R., sessão de 10 de Maio de 2013, de 14:21:07 a 15:29:27, que ao minuto 17:17 do seu depoimento se aproximou da bancada, onde se encontravam a Senhora Juíza e a Senhora Procuradora, e consultando o processo, confirmou o local do acidente, as características da via, as medições efectuadas e as conclusões do Relatório, por si elaborado.
b)Declarações do arguido, D, sessão de 3 de Maio de 2013, de 14h:10m:39s a 4h:48m:47s;
c) Relatório f. 81 e seguintes e fotografias de f.85 ,86,99,100,103 a 109.
3. No que respeita ao facto provado em K, os concretos meios de prova que impõe decisão diversa da recorrida são os seguintes:
a) Declarações do arguido, D, sessão de 3 de Maio de 2013, de 14h:10m:39s a 14h:48m:47s;
b) Projecção do corpo da vítima a uma velocidade de 75,90 km/h, conforme relatório de f. 81 e seguintes;
4. No que respeita ao facto provado em Y, os concretos meios de prova que impõe decisão diversa e contrária da recorrida são os seguintes:
a) Depoimento de F – Cabo da GNR – sessão de 3 de Maio de 2013, de 15: 35:25 a 15: 53:47;
5. No que respeita ao facto provado em AA, os concretos meios de prova que impõe decisão diversa da recorrida são os seguintes:
a) Depoimento de F – Cabo da GNR – sessão de 3 de Maio de 2013, de 15: 35:25 a 15: 53:47;
b) Depoimento de G, sessão de 3 de Maio de 2013, de 16:47:14 a 17.02:45:
c) Depoimento de H, Cabo da GNR sessão de 3 de Maio de 2013, de 15: 54:38 a 16: 02:46;
6. A matéria de facto deve ser alterada, renovando-se a provas de acordo com o indicado em 2, devendo as diversas alineas passar a ter as seguintes respostas:
al. H – Deve ser dado como provado que: “C circulava a 1,20 metro da berma direita” (eliminando-se a expressão: em plena faixa de rodagem);
al. L – Deve ser dado como provado: “Conduzia na faixa de rodagem direita, a qual tem a largura de 7,20 metros.”
al. K – Deve ser dado como provado que: “D conduzia a velocidade que se situava entre os 70 e os 80km por hora”;
al. S – Deve ser dado como provado: “A recta descrita em A tem 7,20 metros de largura e encontra-se dividida por duas semi-faixas de rodagem, por uma linha descontínua de separadora de trânsito”.
al. Y – Deve ser dado como provado: “A bicicleta tripulada por C, bem como a tripulada por B faziam uso de equipamento retro-reflector”;
al. AA – Deve ser dado como não provado o facto;
O ponto 3 dos factos não provados, deve ser dado como provado.
DA MATÉRIA DE DIREITO:
1. A douta sentença absolveu o arguido por considerar justificada a contravenção prevista no artigo 61 nº1 al. c), uma vez que teria actuado sem culpa.
2. Provou-se que o arguido, circulando em luzes de cruzamento, de noite, sem iluminação pública, numa estrada recta, sem viaturas na via, cometeu aquela infracção ao Código da Estrada.
3. O facto de circular em médios, impediu o condutor de avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura, numa extensão de pelo menos 50 metros;
4. Iluminando os médios apenas a 30 metros, e circulando entre 70 e 80 km/h, o arguido necessitava de 42 metros para imobilizar o veículo, pelo que perante um obstáculo que se encontrasse na via, o arguido não dispunha de espaço suficiente para imobilizar o veículo sem colidir.
5. Circulava, pois, em excesso de velocidade, violando os artigos 19º e 24º do Código da Estrada;
6. Os velocípedes tinham luzes traseiras e auto-reflectores, tendo-se provado que o led montado na bicicleta sinistrada. Iluminava a 50 metros, o que tornava imperioso que o arguido avistasse os dois ciclistas.
7. Mas provou-se que não viu nenhum dos ciclistas, que seguiam a sua frente, nem a 50 metros, nem a 1 metro de distância;
8. O que só pode resultar de falta de atenção ao trânsito que circula na via;
9. Circulando a 1,20 metros da berma, numa estrada que tem 7,20 metros de largura, o ciclista conduzia numa zona de segurança, que é tanto maior, quanto mais visível for para o automobilista.
10. A causa adequada do acidente, não foi o facto de a vítima conduzir a 1,20 metros da berma, mas a inconsideração do arguido.
11. Na verdade, o comum dos automobilistas, circulando em máximos, e avistando os ciclistas a pelo menos, 100 metros de distância, tinha tempo suficiente para travar ou contornar o ciclista pela esquerda, uma vez que não havia trânsito em nenhum dos sentidos.
12. A sentença, ao considerar que o ciclista teve culpa na produção do acidente, aliás culpa exclusiva do mesmo, incorreu em excesso de pronúncia;
13. Foram violados, por erro de interpretação, o artigo 389ºA do Código de Processo Penal, o artigo 137º nº1 do Código Penal e os artigos 19º, 24º nº1, 60º nº1 al. a) e 61º nº1 al.c) do Código da Estrada.”.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo:
“a) A estrada onde ocorreu o acidente em causa é composta por quatro vias de trânsito, duas no sentido Sul/Norte e outras duas no sentido Norte7Sul, existindo um separador central que isola as duas vias de trânsito em cada um dos sentidos;
b) É o conjunto das quatro vias de trânsito que mede 7,20m de largura, pelo que as duas vias de trânsito no sentido Sul/Norte ode ocorreram os factos, mede 3,60m tal como consta na sentença recorrida;
c) Não consta na matéria de facto provada que a bicicleta acidentada não tivesse qualquer sistema de iluminação atrás, mas sim que tal sistema era composto por um led intermitente e que não existia qualquer reflector;
d) A única testemunha que menciona a existência de reflectores nos pedais é F, mas que porém não se mostra disso convicto pelo que, tendo em conta a conjugação com a demais prova produzida, não impõe uma decisão diferente da que foi tomada;
e) A fixação do limite máximo de velocidade a que seguia o arguido é irrelevante, porquanto passaria a constar que circulava entre os 70 e os 80 km7hora quando o limite é de 90km/hora, e não é determinante para a conclusão de que o arguido circulava em velocidade excessiva;
f) No que respeita à velocidade excessiva, esta verifica-se quando o condutor não consegue imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente mas, no caso dos autos, tal implicaria que a bicicleta pudesse ser vista;
g) O ponto AA. da matéria de facto provada não resulta nem tem que resultar de nenhuma análise estatística, mas sim da apreciação da prova produzida;
h) Não existe nenhum elemento de prova que imponha uma decisão diferente e, encontrando-se a sentença devidamente fundamentada, não pode a recorrente impor ao Tribunal uma convicção diferente da que foi alcançada;
i) O acidente ocorreu porque o arguido não viu nem podia ver uma bicicleta que circulava a meio da via de trânsito, sem fazer uso dos reflectores a que se encontrava obrigada e não porque circulava em luzes de cruzes, facto que não lhe é censurável.”
Também o arguido respondeu pugnando pela improcedência e concluindo, em síntese, não ter violado qualquer norma legal no exercício da condução e ter-se o acidente devido a culpa exclusiva do condutor do velocípede.
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumprido o art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, a assistente respondeu, reiterando as suas razões.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“A. No dia 22 de Fevereiro de 2012, pelas 19.44 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca SKODA, matrícula (...), na Estrada da Ford Palmela, sentido Sul/Norte, concelho de Palmela, área desta comarca.
B. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, C e B, mulher do primeiro, circulavam na mesma estrada, na mesma direcção, e na mesma via de trânsito, conduzindo cada um deles, um velocípede sem motor, sem matrícula, ambos com dispositivos de iluminação na parte traseira.
C. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o arguido não viu que o velocípede conduzido por C, marca “ Ghost RT Team “, se encontrava a circular à sua frente e foi embater com a frente do seu automóvel na traseira deste velocípede.
D. Após o embate, C foi projectado contra o vidro pára-brisas da viatura conduzida pelo arguido, após o que foi projectado no ar cerca de 18 metros para a frente do veículo, a velocidade estimada de 75,92 km/h, arrastando depois no pavimento cerca de 28.30 metros, ficando imobilizado a cerca de 46,30 metros do local do embate.
E. O embate ocorreu a cerca de 1,20 m da linha delimitadora da via, do lado direito, atento o sentido de marcha dos veículos.
F. A visibilidade era reduzida por ser de noite e a iluminação existente no local era diminuta.
G. Em consequência directa e necessário do embate e projecção no solo, C sofreu, lesões crâniencefálicas, intratorácicas, intra-abdominais e raqui-medulares, graves, melhor descritas no relatório de autópsia constante de fls. 150 e ss que nesta sede se dá por integralmente reproduzido, lesões essas que foram a causa directa e adequada da sua morte.
H. C circulava em plena faixa de rodagem a pelo menos 1, 20 metros da berma direita.
I. Trajava roupa escura sem qualquer material reflector.
J. O sistema de iluminação dos velocípedes sem motor, no caso o conduzido por C era constituído por led de cor vermelha.
K. D conduzia o veículo JT a velocidade de pelo menos 70 km/h.
L. Conduzia a meio da faixa de rodagem direita, a qual tem 3,60m de largura.
M. C e B trajavam roupas pretas, verdes, vermelhas, amarelas, não reflectoras, não fazendo uso de colete reflector.
N. A estrada descrita em A é precedida por uma rotunda estendendo-se ao longo de 500 m. e concluída igualmente por outra rotunda,
O. Paralelamente à via onde ocorreu o embate supra descrito existe a auto-estrada A2.
P. A cota da estrada descrita em A é inferior à cota da Auto-estrada, pelo que a estrada
descrita em A. se encontra em plano inferior ao da Auto-estrada.
Q. A velocidade permitida na recta onde se deu o acidente descrito em C é de 90 km/h.
R. A velocidade permitida até à rotunda que precede a recta onde se deu o embate descrito em C é de 50 km/h.
S. A recta descrita em A tem 3,60 de largura e encontra-se dividida por duas semi-faixas de rodagem, por uma linha descontínua separadora de trânsito.
T. Na ocasião do acidente a estrada encontrava-se livre e desimpedida.
U. A recta em causa é ladeada pela fábrica da auto-europa a qual dispõe de iluminação artificial direccionada para o seu parque automóvel.
V. Inexistem habitações na via descrita em A.
W. Não existe no local iluminação artificial direccionada para a estrada.
X. Na noite do acidente a lua encontrava-se na fase de lua nova
Y. A bicicleta tripulada por C bem como a tripulada por B não faziam uso de equipamento retro-reflector.
Z. A bicicleta tripulada por C estava equipada com dispositivo de iluminação dianteiro e traseiro, constituídos por foco de luz à frente e led atrás, tendo este último alcance de iluminação até 50 metros.
AA. É comum os veículos circularem em luzes de cruzamento na via descrita em A.
AB. É incomum a existência à noite de ciclistas e peões no local.
AC. D é sócio gerente de uma empresa que presta serviços de engenharia, auferindo o salário mensal de 3050,00 euros.
AD. É casado e tem dois filhos menores, de 6 e 11 anos.
AE. A esposa de D é engenheira na empresa Delphi auferindo mensalmente o vencimento de 2.500,00 euros
AF. Com os filhos o arguido despende mensalmente uma média de 1200,00 euros
AG. Possui crédito bancário pagando o valor de 500.00 euros mensais.
AH. O arguido dispõe ainda de uma habitação secundária pela qual despende o valor médio
mensal de 200.00 euros.
AI. D não tem antecedentes criminais registados.
Na sentença consideraram-se os seguintes factos como não provados:
“1. D circulava a velocidade superior a 75 km/h.
2. D não adequou a velocidade que imprimiu ao veículo JT ao local em que circulava.
3. A via no sentido Sul/Norte tem 7,20m de largura.
4. Os veículos que circulam à noite na estrada e sentidos descritos em A encandeiam quem circula na auto-estrada A2 no sentido Norte/sul caso façam utilização de luzes de estrada.
5. Que o arguido travou bruscamente o automóvel, desta forma fazendo com que C tenha sido projectado.
6. O arguido podia e devia ter tido outro comportamento que evitasse a colisão e as consequências que se lhe seguiram, face às características da via, ao volume de tráfego e às condições de visibilidade, podia e devia ter tido o cuidado e a precaução de ter utilizado as luzes de estrada, vulgarmente designadas como “ máximos “, as quais lhe confeririam um campo de visibilidade de 100 metros, ao invés dos 30 metros permitidos pelas luzes de cruzamento, vulgarmente designadas como “ médios “.
7. Acresce que, o arguido apesar de saber que podia colocar em perigo a vida de outras pessoas, tal como veio a acontecer, não cuidou de manter uma velocidade que lhe permitisse imobilizar o veículo em segurança, no espaço livre e visível à sua frente, dever que se lhe impunha e de que este era capaz, não evitando um resultado que não previu, mas que podia e devia prever.
8. Com a sua conduta, o arguido exerceu uma condução imprudente e temerária, face às condições concretas de circulação que a via proporcionava, violando as regras estradais e os deveres de cuidado.
9. Sabia o arguido ser proibida a sua conduta.
A matéria de facto encontra-se motivada, na sentença, do modo seguinte:
“O arguido pretendeu prestar declarações tendo, sucintamente, descritos os eventos em causa nos autos de forma pormenorizada, corroborando globalmente os factos contidos na acusação, dando conta de forma angustiada mas serena a velocidade em que seguia, a posição de luzes em que circulava, as condições de circulação dos velocípedes, e posteriormente o que fez ao aperceber-se de que tinha embatido.
Neste circunspecto descreveu que circulava em médio em face da possibilidade de encadear os veículos que circulam na Auto-estrada paralela àquela via.
Igualmente deu conta dos eventos que ocorreram após o embate, designadamente a chegada das diversas pessoas que acorreram ao local, a actuação da GNR e posteriormente dos NICAV.
Seguidamente foram tidas em consideração as declarações emotivas prestadas pela assistente, B, esposa de C a qual confirmou o dia, local e hora a que se deu o acidente, descreveu o percurso que fez naquele dia com C, a roupa que trajavam, quais os dispositivos luminosos existentes no local e em concreto nas bicicletas, as posições em que circulavam os velocípedes. Descreveu de forma emotiva e algo embargada mas coerente e sincera a dinâmica do acidente bem como quem compareceu no local enquanto por ali ficou.
F, militar da GNR, em serviço em Palmela à data do acidente e até aos dias de hoje,descreveu de forma isenta e coerente, espontânea e distanciada o que viu ao chegar ao local dos factos naquele dia 22/02/2012. Assim e nestes moldes a testemunha deu conta ao tribunal de quem se encontrava no local dos factos, as vestes trajadas por C, bem como do sistema de iluminação da bicicleta de C, e condições de iluminação do local e em face disso deixou a sua consideração de condições de circulação em máximos, esclarecendo a inexistência de encadeamento com quem circula na auto-estrada. A testemunha que referiu ter permitido que as bicicletas fossem levadas do local, não soube precisar, por fim, precisar qual a posição e orientação das luzes traseiras da bicicleta tripulada por C.
H, Militar da GNR, a prestar serviço no destacamento de Palmela desde Dezembro de 2009 e até aos dias de hoje, esclareceu de forma isenta e ponderada ter acompanhado F ao local, indicando quem já se encontrava no local, as vestes trajadas por C, corroborando a especificidade de não encadeamento na auto-estrada cuja via descreveu ser paralela mas distanciada do local.
Não soube esclarecer os pormenores descritivos relativos à bicicleta tripulada por C uma vez que foi necessário prestar garantir a segurança do arguido em face da exaltação dos pais da vítima quando compareceram no local. Finalizou porém, esclarecendo que no local circula em médios, pois considerou ter visibilidade suficiente para tal, mesmo sabendo que ali se encontravam peões.
I descreveu qual a sua intervenção nos factos de forma isenta e espontânea, declarando ter sido pedido o seu auxilio para a remoção e transporte das bicicletas no local, descrevendo o que dali retirou e levou para sua casa. Daquilo que viu em resultado da sua intervenção esclareceu qual o sistema de iluminação da bicicleta de C, não sabendo porém precisar qual a inclinação do banco onde se situava a iluminação traseira, assinalando porém o local onde estava colocado o led traseiro.
No que respeita à via e especificadamente à luminosidade da mesma, a testemunha corroborou de grosso modo, os depoimentos anteriores, esclarecendo que a via em si não contem iluminação própria e bem assim que os únicos sistemas de luz artificial são da Auto Europa, sem orientação para a estrada.
Descreveu ainda o que fez quando retornou com as bicicletas ao local, auxiliando os militares do NICAV na tentativa de recuperação do local em que havia retirado cada peça que recolheu.
J de forma hesitante, incoerente e irregular, deu ao Tribunal uma descrição do que viu que não encontrou qualquer consonância em qualquer outro depoimento. A testemunha que referiu que à hora do acidente era de dia e que assegurou de forma convicta que C e B usavam coletes reflectores, dados estes nunca antes referidos por nenhuma das testemunhas ou assistente. A testemunha em análise terminou referindo que já não se recordava dos factos de forma plena, concretizando que lhe restou a sensação de que C trajava efectivamente um colete reflector. Na verdade dúvidas não existem que a testemunha compareceu no local, pois a verdade é que a sua presença foi referida por muitas outras, contudo, o que esclareceu, considerando as suas imprecisões, incoerências e contradições nenhuma relevância probatória teve.
G, soube precisar no tempo e no espaço o acidente. Justificou de forma isenta, espontânea, distanciada, imparcial, natural, neutral e por isso credível a sua intervenção esclarecendo ter passado minutos após o embate na via oposta e tendo-se apercebido do mesmo prestou auxilio sinalizando o local. Soube precisar as horas em que o acidente ocorreu, tendo auxiliado a assistente na tentativa de ligar pedindo assistência. Não soube esclarecer qual a roupa que C trajava precisando que a mesma se encontrava subida, corroborando nesta parte o depoimento de B, descreveu quais as luzes existentes na bicicleta de C, corroborando a acusação pública na parte em que descreve as condições de iluminação daquela via, dando conta da existência de perturbação e limitação da visibilidade e luminosidade com quem e de quem circula na auto-estrada, esclarecendo que no local em questão circula normalmente em luzes de cruzamento, afirmando por outro lado que não existe encadeamento com quem circula na auto-estrada, no sentido em que se deu o acidente, atenta a distancia que separa as vias. No que respeita à circulação de bicicletas no local, deu conta de que é regular e frequente a sua existência durante o dia, e não à noite.
E, militar da GNR a prestar serviço nos núcleos de investigação criminal de acidentes de viação de Setúbal desde 2009.
A testemunha de forma isenta, clara e concisa precisou a data e local onde ocorreu o acidente, o sentido em que o mesmo se deu, descrição da via onde se deu o acidente (luminosidade, a existência das rotundas bem como onde se posicionam, limites de velocidade no local) e bem assim, o posicionamento da mesma relativamente à auto estrada esclarecendo designadamente a questão relativa à ilusão de óptica existente com quem se cruza na Auto estrada de noite e as razões pelas quais tal fenómeno ocorre. A testemunha descreveu o carro conduzido pelo arguido e os danos existentes no mesmo, confrontando-os com os existentes na bicicleta, que descreveu com pormenor, assinalando a posição e orientação da luz traseira, e com os que restaram na via, explicando assim de forma clara e escorreita a dinâmica do acidente, corroborando o teor da acusação publica bem como do relatório de fls. confrontando-o com as imagens constantes nos autos, designadamente fls. 84, 86, 99, 100, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109.
No confronto com as fotografias juntas em audiência de julgamento pela assistente, a testemunha esclareceu de forma franca e convicta de que as mesmas, não são do local do acidente, mas sim de cerca de 500 metros mais à frente, pelo que nenhuma relevância têm para esclarecimento dos factos.
No que toca à luz traseira do velocípede, a testemunha esclareceu que tendo em conta a ausência de luminosidade na via, esclareceu que facilmente seria confundível com outras luzes existentes no local no confronto de fotografia de fls. 87, cuja fotografia está iluminada somente pelo flash da câmara.
K, amigo do arguido há cerca de 20 anos, declarou de forma espontânea e segura ter comparecido no local dos factos, chamado pela esposa de D minutos de pois do acidente descrevendo o que por lá viu designadamente quem encontrou no local, corroborando a pouca iluminação da via.
No que respeita às vestes de C a testemunha pouco adiantou, afirmando apenas que nada nas roupas lhe chamou a atenção por forma a captar pormenores.
L, esposa de D, declarou de forma espontânea ter comparecido no local dos factos, indicado de forma pouco rigorosa as horas a que o fez, descrevendo quem por lá estava. No que respeita ao arguido a testemunha descreveu como o mesmo viveu os dias subsequentes, as consequências que o acidente em causa teve na vida pessoal do arguido e bem assim na vida familiar do mesmo. Descreveu a personalidade do arguido como sendo uma pessoa cautelosa e de bem, declarando ainda o que a família fez de forma a tentar minimizar a dor da família de C.
M, amigo do arguido D há cerca de 14 anos. Tal como K compareceu no local a pedido de L, tendo descrito de forma isenta e espontânea o que viu ao chegar, designadamente quem por ali estava, não tendo já visualizado a vitima. A testemunha nos mesmos moldes, descreveu a personalidade do arguido, relatando que aquele procurou por todas as formas compreender como o mesmo se deu, corroborando algumas das alterações descritas por L no que respeita à vida pessoal de D.
N, amigo de D desde 1999 relatou ao tribunal de forma espontânea e convicta a personalidade do arguido descrevendo-o como pessoa confiável, descrevendo a forma como aquele lidou com o acidente e como ficou depois dos factos.
O, amigo de D desde finais da década de 90 prestou depoimento quanto à personalidade de D e fê-lo de modo convicto e seguro, descrevendo-o como bom profissional, transmitido uma imagem de que D é amistoso, pessoa sem inimigos, moralmente consciencioso. No que respeita à via, e uma vez que demonstrou conhecer a mesma, referiu, de forma espontânea que de noite, regularmente conduz em luzes de cruzamento.
P, amigo de D há 25 anos em quem demonstrou de forma sincera e coerente confiar, descrevendo a sua personalidade e ainda as alterações na vida pessoal que D sofreu em razão do acidente aqui em análise.
Da análise da prova produzida cumpre fixar qual a dinâmica do acidente e em que circunstâncias pode o Tribunal concluir pela fixação dos factos.
Assim, cumpre antes de mais assinalar que o arguido, descreveu o acidente conforme o mesmo resulta acusação com excepção da travagem brusca, descrição essa que foi corroborada por B assistente nos autos. Igualmente na análise realizada por E tanto em sede de julgamento como no relatório junto aos autos a fls.85 e seguintes o qual foi elaborado através da recolha pela testemunha E, de vestígios e análise de danos causados no local, dúvidas não restam que C circulava na via onde ocorreram os factos (cfr. teor de auto de noticia de fls. 17, participação de acidente de viação de fls. 19 a 22 bem como a unanimidade dos depoimentos prestados) tripulando a bicicleta descrita Ghost RT Team (conforme demonstram as fotografias de fls. 96 e 440) cuja correspondência foi corroborada por E, I. No momento do embate C seguia em plena via que dispõe de 3,60 metros de largura, a cerca de 1,20m da berma – conforme resulta de relatório de inspecção ao local – fls. 82 – croqui de fls. 84, fotografia nº10 de fls. 90 – trajado com roupas escuras, designadamente preto, vermelho e amarelo, não reflectoras (cfr. depoimento de B, Militares da GNR ouvidos em audiência). A bicicleta tripulada por C e pela assistente estavam equipadas com luz na dianteira e na retaguarda – cfr. 97, 98, 99, 100, 107, 108, bem como depoimento prestado por E, B, I –sem fazer utilização de qualquer reflector – cfr. imagens de fls. 94, 95, 96, 97 – bem como depoimento de E e B – sendo certo que nem mesmo nos pedais tais reflectores existem, conforme se verifica de fls. 97, uma vez que se tratam de pedais de encaixe.
A via não tem iluminação artificial própria, sendo que as únicas luzes existentes no local são as provenientes do parque da Auto-Europa, não sendo vulgar a existência de peões e ciclistas no local à noite – conferir depoimento de B, E, G.
Em paralelo à estrada da Ford Palmela situa-se a auto-estrada, a qual se encontra em plano acima da via onde ocorreram os factos – cfr. depoimento de E - provocando à noite a sensação de que os veículos que circulam na auto estrada no sentido Norte / Sul, irão cruzar-se com os que circulam na via onde ocorreu o acidente – cfr. depoimento de E.
B seguia nessa mesma via atrás de C, mais próxima da berma – conforme resulta do depoimento de B e da própria dinâmica do acidente, pois à assistente o veículo não colheu.
A luz traseira de C era visível a 50 metros e encontrava-se em estado intermitente – cfr. documentos juntos em audiência de julgamento pela defesa e que constituem descrição das características dos led’s traseiros da bicicleta de C, os quais foram oportunamente juntos aos autos e não impugnados, e de onde resulta o alcance de iluminação dos respectivos dispositivos luminosos, depoimento de B, - tendo perdido a possibilidade de piscar após o acidente – cfr. depoimento de E.
O arguido deslocava-se na via em questão e no veículo JT a velocidade não concretamente apurada – conforme relatório de fls. 64 e seguintes – mas que se fixou em pelo menos 70 km/h - considerando as declarações de D – fazendo utilização de luzes de cruzamento, sendo a velocidade permitida no local de 90 km/hora, e inexistirem quaisquer habitações no local sendo precedida de um rotunda, onde a velocidade permitida é de 50 km/h e igualmente concluída por uma rotunda – cfr. Declarações de D, E.
Não tendo o arguido visualizado o velocípede e C, embateu com a frente do seu veículo na roda traseira de C – cfr. 94 a 97, 100 a 106.
Após o embate, C foi projectado contra o vidro pára-brisas da viatura conduzida pelo arguido, após o que foi projectado no ar cerca de 18 metros para a frente do veículo, arrastando depois no pavimento cerca de 28.30 metros, ficando imobilizado a cerca de 46,30 metros do local do embate – cfr. croqui de fls. 84 e depoimento de E.
Em consequência directa e necessário do embate e projecção no solo, C sofreu, lesões crâniencefálicas, intratorácicas, intra- abdominais e raqui-medulares, graves, conforme descrito relatório de autópsia constante de fls. 150 e ss, lesões essas que foram a causa directa e adequada da sua morte.
Não resultou provado que o arguido tenha realizado qualquer manobra evasiva ou de travagem, conforme foi explicado por E uma vez que não foram colhidos quaisquer vestígios na via, sendo que o acidente ocorreu exclusivamente em razão de D não ter visto C.
Conforme resultou de documento juntos em momento anterior ao inicio da audiência de julgamento os quais foram juntos aos autos figurando como fls. 436 e seguintes, a lua estava em fase de lua nova, conhecida como inexistência de lua, o que provocou depreciação das condições de visualização.
O arguido não tinha qualquer vestígio de álcool ou drogas no sangue – cfr. 113 e 114 – assim como C – cfr. Relatório autopsia de fls. 150 e seguintes.
No que respeita a fotografias juntas aos autos em sede de julgamento pela assistente, as quais igualmente foram juntas aos autos, as mesmas não correspondem ao local do acidente em discussão nos autos, tendo mesmo o militar E sido confrontado insistentemente com as mesmas, confirmando tal evidência, localizando-as no espaço, 500 metros à frente do local do embate, pelo que as mesmas nenhuma relevância probatória contiveram para análise do caso, mormente, para a conclusão de inexistência de encadeamento, objectivo esse propugnado pela assistente.
As condições económicas do arguido resultaram apuradas considerando as declarações que o mesmo prestou, as quais se revelaram, coerentes e sinceras.
A prova dos antecedentes criminais fez-se com base no certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 336.
No que tange à não prova do elemento subjectivo, o mesmo resultou como tal tendo em consideração os factos apurados no que tange às condições da via e de visibilidade, bem como às condições em que C tripulava a bicicleta em causa nos autos, ao que acresce o facto de as testemunhas G, O e H, testemunhas consideradas imparciais e credíveis, terem declarado de forma espontânea circular no local com luzes de cruzamento, resultando, como melhor se exporá aquando da análise da culpa que o arguido não actuou negligentemente ao fazer uso de luzes de cruzamento, concluindo assim o Tribunal que o mesmo não violou qualquer dever de cuidado que lhe era imposto.
No que respeita aos demais factos dados como não provados, resultaram os mesmos da inexistência de qualquer prova que os corroborasse assim como das considerações supra expostas.
A demais documentação junta aos autos, após análise cuidada, foi tida como irrelevante para o apuramento dos factos.”
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são a impugnação da matéria de facto e o erro de subsunção, pugnando a recorrente pela procedência da acusação e a condenação do arguido.
(a)Da impugnação da matéria de facto
A recorrente pretende impugnar a matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal.
Impõe esta norma que, ao impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ou as que devem ser renovadas.
Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando o recorrente as passagens em que se funda a impugnação (nº4 do art. 412º). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). E será também de considerar assim cumprido o ónus de especificação das concretas provas, na ausência de uma referência às especificações (ausentes) da acta.
No caso, a recorrente procedeu à referência aos concretos excertos e transcreveu as passagens em que funda a impugnação, como se imporia de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (AFJ nº 3/2012), e indicou ainda outras provas (não pessoais). Procedeu também à enumeração dos pontos de facto que considera mal julgados.
Consideram-se, pois, devidamente cumpridos (exemplarmente cumpridos, até) os ónus de especificação dos “concretos pontos de facto” e das “concretas provas”.
Os pontos de facto especificados pela recorrente são então os seguintes:
al. H - C circulava em plena faixa de rodagem (primeira parte da alínea);
B-· al. K – D conduzia o veículo JT a pelo menos 70 km/h;
C-·al. L – C conduzia a meio da faixa de rodagem direita a qual tem 3,60m de largura;
D-· al. S - A recta descrita em A tem 3,60m de largura e encontra-se dividida por duas semi-faixas de rodagem, por uma linha descontínua, separadora de trânsito;
E-· al. Y – A bicicleta tripulada por C, bem como a tripulada por B não faziam uso de equipamento retro-reflector;
F-· al. AA – É comum os veículos circularem em luzes de cruzamento na via descrita em A;
G-·A recorrente põe, ainda em causa a não prova do facto descrito em 3 dos factos não provados, ou seja, a não prova de que a via, no sentido Sul/Norte tem 7,20 metros de largura.
Proceder-se-á à sindicância da decisão de facto nos pontos impugnados, por referência às concretas provas indicadas pela recorrente.
Assim, na sua alegação, “no que respeita aos factos provados em H, L, S e ao facto não provado em 3 dos factos não provados, os concretos meios de prova que impõe decisão diversa da recorrida são os seguintes:
a) Depoimento de E, Agente da G.N.R., sessão de 10 de Maio de 2013, de 14:21:07 a 15:29:27, que ao minuto 17:17 do seu depoimento se aproximou da bancada, onde se encontravam a Senhora Juíza e a Senhora Procuradora, e consultando o processo, confirmou o local do acidente, as características da via, as medições efectuadas e as conclusões do Relatório, por si elaborado.
b)Declarações do arguido, D, sessão de 3 de Maio de 2013, de 14h:10m:39s a 4h:48m:47s;
c) Relatório f. 81 e seguintes e fotografias de f.85 ,86,99,100,103 a 109.
Adiante-se que assiste razão à recorrente.
As provas que especifica, não apenas consentem, como impõem, decisão diversa à tomada na sentença, no que respeita aos factos impugnados.
Na verdade, de acordo com a prova produzida em audiência e que, na sentença, se encontra examinada (se bem que indevidamente), no local onde ocorreu o acidente a faixa de rodagem tinha a largura de 7,20 metros, e não, como foi dado como provado, de 3,60 metros.
O tribunal parece ter confundido “faixa de rodagem” com “via de trânsito”, o que pode ter determinado o erro de facto.
Na verdade, a fls. 81 e 82 dos autos, no Relatório de Inspecção Judiciária ao Local do Acidente, a propósito da descrição das características da via, consigna-se que a largura da faixa de rodagem é de 7,20m, sendo de 3,60m a largura da via esquerda e de 3,60m a largura da via direita.
Estas duas vias de trânsito compunham a faixa de rodagem em causa, de sentido único – sentido Sul-Norte, conforme croquis de fls. 84 (para circulação de veículos no sentido contrário existia outra faixa paralela a esta e mediada por separador).
Essa faixa de rodagem, onde circulavam no mesmo sentido o veículo do arguido e o velocípede da vítima, era composta de duas semi-faixas (ou duas vias de trânsito) de 3,60 metros cada.
Ao dizer, na motivação da matéria de facto, que “no momento do embate, C seguia em plena via que dispõe de 3,60 metros de largura, a cerca de 1,20m da berma – conforme resulta de relatório de inspecção ao local – fls. 82 – croqui de fls. 84, fotografia nº10 de fls. 90”, o tribunal mostra que o croquis constituiu a prova decisiva do facto agora impugnado, mas não deixa claro qual a “via” por si efectivamente ponderada quando a associa a uma largura de 3,60m.
Mas ao ter, então, factualmente concluído que o arguido “conduzia a meio da faixa de rodagem direita, a qual tem 3,60m de largura” e que “a recta descrita em A tem 3,60 de largura e encontra-se dividida por duas semi-faixas de rodagem, por uma linha descontínua separadora de trânsito”, o tribunal incorreu em erro de julgamento, pois “a recta descrita em A.” (ou seja, a Estrada da Ford Palmela, sentido Sul/Norte) tem afinal a largura de 7,20m.
Como bem sinaliza a recorrente, no croquis de fls 84 pode observar-se que o anotador, o agente da GNR E (que depôs também como testemunha, confirmando tal relatório), apenas fez o desenho da faixa de rodagem no sentido Sul/Norte. Nele não se encontra desenhada, por desnecessário, a faixa de rodagem no sentido Norte/Sul.
Em nota de rodapé, ficou aí consignado que “para análise do presente croquis ter-se-á em conta o sentido Sul/Norte, como o sentido de marcha de ambos os veículos” e em cada extremidade do desenho da faixa de rodagem encontram-se as expressões “Norte e Sul”.
Ora, não foi por ter desvalorizado o relatório de inspecção ao local, mas simplesmente por o ter mal avaliado e caído assim em erro ou engano na percepção desta prova, que o tribunal chegou a conclusões de facto desacertadas.
O erro de percepção denunciado no recurso ocorre efectivamente, e afecta as conclusões de facto a que o tribunal chegou.
A prova por declarações do arguido aponta igualmente no mesmo sentido:
“Advogado: Naquela estrada, no sentido Sul/Norte, há duas faixas de rodagem e há mais duas faixas de rodagem, no sentido Norte/Sul?
25:23:Arguido: Sim.
Advogado: Tinha depois mais 7,20 metros da outra faixa? É verdade ou não?
25:50:Arguido: Sim das outras duas faixas”
As provas especificadas impõem, pois, decisão diferente da tomada na sentença, no sentido de se dever considerar como provado que a faixa de rodagem onde ocorreu o acidente tinha a largura de 7,20m, e cada uma das suas vias a de 3,60m.
Também se justifica a pretendida eliminação da expressão “C circulava em plena faixa de rodagem” (primeira parte da alínea al. H.) da matéria de facto, pois ela é conclusiva e desprezível, uma vez que se provou que o arguido seguia a cerca de 1,20m da berma, como se explicita na motivação da sentença: “No momento do embate C seguia em plena via que dispõe de 3,60 metros de largura, a cerca de 1,20m da berma – conforme resulta de relatório de inspecção ao local – fls. 82 – croqui de fls. 84, fotografia nº10 de fls. 90”.
Seguidamente, impugna a recorrente o facto provado em K, ou seja, a velocidade a que seguia o veículo conduzido pelo arguido.
Indica como concretas provas as declarações do arguido, que referiu em julgamento seguir a uma velocidade que “devia rondar entre os 70/80 km/hora” (8:32), e o relatório de cálculos de velocidade, que estimou a projecção do corpo da vítima a uma velocidade de 75,90 km/h.
Na sentença consta como provado em K. que “D conduzia o veículo JT a velocidade de, pelo menos, 70 km/h”. Pretende o recorrente que antes deveria constar que “D conduzia o veículo entre os 70 e os 80 km por hora”. E tem razão.
Na verdade, se bem que a redacção dada ao enunciado ora questionado não revele um verdadeiro erro de facto, pois ele resultaria sempre também da prova produzida, o certo é que esta prova permitia circunscrever, em termos mais restritos e logo mais precisos, a velocidade imprimida ao veículo.
E tratando-se de facto que assume relevância peculiar em matéria de acidentes de viação, haveria que explorar ao limite as potencialidades da prova produzida. E esta permitia ter chegado às conclusões propostas pela recorrente, ou seja, considerar-se como provado que o arguido conduzia o veículo a uma velocidade situada entre os 70 e os 80 Km/h, o que até foi admitido pelo próprio condutor.
Passando ao facto provado descrito em Y – “A bicicleta tripulada por C, bem como a tripulada por B não faziam uso de equipamento retro-reflector” – a recorrente impugna-o especificando como concretos meios de prova que imporão decisão diversa e contrária da recorrida, o depoimento de F – Cabo da GNR (15: 35:25 a 15: 53:47).
Disse a testemunha, na parte transcrita:
Procuradora: O senhor viu a bicicleta acidentada? Que luzes é que a bicicleta tinha?
2:42:Testemunha: Tinha sistema de iluminação à frente e atrás.
3:0:Testemunha:Atrás compunha-se de uma luz intermitente.
Procuradora: Viu algum reflector para além dessa luz?
3:14 Testemunha: Vi reflectores nos pedais.”
Para além desta prova indicada, no exame crítico da sentença deu-se nota de outras provas que aqui importam. Assim, disse-se que E, militar da GNR “descreveu com pormenor (a bicicleta) assinalando a posição e orientação da luz traseira”, que a assistente descreveu “os dispositivos luminosos existentes nas bicicletas” e discorreu-se finalmente que “a luz traseira de C era visível a 50 metros e encontrava-se em estado intermitente – cfr. documentos juntos em audiência de julgamento pela defesa e que constituem descrição das características dos led’s traseiros da bicicleta de C, os quais foram oportunamente juntos aos autos e não impugnados, e de onde resulta o alcance de iluminação dos respectivos dispositivos luminosos, depoimento de B, - tendo perdido a possibilidade de piscar após o acidente – cfr. depoimento de E.”
Tendo sido articulado na acusação que “o velocípede circulava com dispositivos de iluminação na parte traseira”, face à prova produzida em julgamento, este facto não poderia ter deixado de ser considerado provado.
E foi o que sucedeu.
Na verdade, a prova permitiu precisar que esses dispositivos eram dispositivos de iluminação intermitente (leds) visíveis a 50m, como se assume no exame crítico da prova, e como se encontra revelado como conclusão fáctica em sede própria – nos factos provados em Z.: “A bicicleta tripulada por C estava equipada com dispositivo de iluminação dianteiro e traseiro, constituídos por foco de luz à frente e led atrás, tendo este último alcance de iluminação até 50 metros”.
E nada mais permitia precisar, com segurança, a prova produzida em audiência. Pois, como bem nota o Ministério Público na resposta ao recurso, a única testemunha que mencionou ter visto os reflectores nos pedais foi F, que no entanto o fez precisando “se não estou enganado”, sendo certo que a própria recorrente referiu que “atrás só tinha uma luz intermitente e ambas as bicicletas estavam equipadas do mesmo modo”.
Não merece, pois, correcção o factos provado descritos em Y. (“A bicicleta tripulada por C bem como a tripulada por B não faziam uso de equipamento retro-reflector”)
Impugna ainda a recorrente o facto provado em AA – “É comum os veículos circularem em luzes de cruzamento na via descrita em A.” pois, da circunstância de três pessoas terem dito em julgamento que circularam aí em médios, não pode equivaler a que a generalidade das pessoas aí circule em médios.
Este facto não constava da acusação nem da contestação. É de redacção infeliz e terá resultado da discussão da causa em audiência, já que algumas testemunhas reconheceram ter conduzido os seus veículos, no local dos factos, com os faróis em posição de médios. Foi aditado à matéria de facto, como tendo resultado da discussão da causa em julgamento, mas trata-se de facto inócuo para a decisão (como se verá), desconsiderável portanto.
Por último, a recorrente sinaliza que da matéria respeitante ao acidente que tem de ser considerada como assente (ou por já se encontrar provada, ou porque vai ser dada como provada pela Relação) tem de ser dado como provada a matéria considerada não provada em 6, 7, 8 e 9 dos factos não provados – “6. O arguido podia e devia ter tido outro comportamento que evitasse a colisão e as consequências que se lhe seguiram, face às características da via, ao volume de tráfego e às condições de visibilidade, podia e devia ter tido o cuidado e a precaução de ter utilizado as luzes de estrada, vulgarmente designadas como “ máximos “, as quais lhe confeririam um campo de visibilidade de 100 metros, ao invés dos 30 metros permitidos pelas luzes de cruzamento, vulgarmente designadas como “ médios “; 7. Acresce que, o arguido apesar de saber que podia colocar em perigo a vida de outras pessoas, tal como veio a acontecer, não cuidou de manter uma velocidade que lhe permitisse imobilizar o veículo em segurança, no espaço livre e visível à sua frente, dever que se lhe impunha e de que este era capaz, não evitando um resultado que não previu, mas que podia e devia prever; 8. Com a sua conduta, o arguido exerceu uma condução imprudente e temerária, face às condições concretas de circulação que a via proporcionava, violando as regras estradais e os deveres de cuidado; 9. Sabia o arguido ser proibida a sua conduta.”
Como a recorrente refere, é matéria conclusiva, que deriva da restante matéria assente.
Estes factos, que constavam da acusação, não sendo embora factos-puros em sentido naturalístico ou como acontecimentos de vida, são enunciados conclusivos que não deixam de derivar, pelo menos em parte, como consequência lógica dos restantes factos provados.
Assim, eles encontram-se indevidamente inscritos na matéria de facto não provada na sentença, o que se deveu em parte aos erros de julgamento de facto já detectados, mas também a uma percepção menos correcta do direito aplicável, como se exporá de seguida.
E será também nesta inexacta representação do direito que a não demonstração dos factos do tipo subjectivo se encontra afinal explicada.
Releva mais uma vez a conhecida lição de Castanheira Neves (in Metodologia da Ciência do Direito), de que o puro facto e o puro direito inexistem na ordem jurídica e de que “uma questão de facto é sempre uma questão de facto de uma certa questão de direito e uma questão de direito é sempre uma questão de direito de uma certa questão de facto”.
E deste “insolúvel círculo lógico” resulta que, também no presente caso, a detecção do erro de facto nesta parte se entrecruza com uma apreciação do direito aplicável, a que se procederá no ponto seguinte.
Para concluir, e na parcial procedência do recurso da matéria de facto, procede-se às então alterações na matéria de facto da sentença. E os factos provados alterados passam a ter seguinte redacção:
al. H – A vítima C circulava a cerca de 1,20 metro da berma direita.
al. K – O arguido conduzia a uma velocidade situada entre os 70 e os 80 km por hora.
al. L – O arguido conduzia na faixa de rodagem que tem a largura de 7,20 metros, fazendo-o na via da direita que tem a largura de 3,60m.
al. S – A recta descrita em A tem 7,20 metros de largura e encontra-se dividida em duas semi-faixas de rodagem, por uma linha descontínua separadora de trânsito.
Também os factos dados como não provados na sentença, em 3., 6., 7., 8. e 9., passarão a integrar a matéria de facto provada.
(b) Da impugnação da matéria de direito
Da parcial procedência do recurso da matéria de facto, os factos provados a subsumir juridicamente serão, agora, os seguintes:
“A. No dia 22 de Fevereiro de 2012, pelas 19.44 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca SKODA, matrícula (...), na Estrada da Ford Palmela, sentido Sul/Norte, concelho de Palmela.
B. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, C e B, mulher do primeiro, circulavam na mesma estrada, na mesma direcção, e na mesma via de trânsito, conduzindo cada um deles, um velocípede sem motor, sem matrícula, ambos com dispositivos de iluminação na parte traseira.
C. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o arguido não viu que o velocípede conduzido por C, marca “ Ghost RT Team “, se encontrava a circular à sua frente e foi embater com a frente do seu automóvel na traseira deste velocípede.
D. Após o embate, C foi projectado contra o vidro pára-brisas da viatura conduzida pelo arguido, após o que foi projectado no ar cerca de 18 metros para a frente do veículo, a velocidade estimada de 75,92 km/h, arrastando depois no pavimento cerca de 28.30 metros, ficando imobilizado a cerca de 46,30 metros do local do embate.
E. O embate ocorreu a cerca de 1,20 m da linha delimitadora da via, do lado direito, atento o sentido de marcha dos veículos.
F. A visibilidade era reduzida por ser de noite e a iluminação existente no local era diminuta.
G. Em consequência directa e necessária do embate e projecção no solo, C sofreu, lesões crâniencefálicas, intratorácicas, intra-abdominais e raqui-medulares, graves, melhor descritas no relatório de autópsia constante de fls. 150 e ss que nesta sede se dá por integralmente reproduzido, lesões essas que foram a causa directa e adequada da sua morte.
H. C circulava a cerca de 1, 20 metros da berma direita.
I. Trajava roupa escura sem qualquer material reflector.
J. O sistema de iluminação dos velocípedes sem motor, no caso o conduzido por C era constituído por led de cor vermelha.
K. O arguido conduzia a uma velocidade situada entre os 70 e os 80 km por hora”;
L. O arguido conduzia na faixa de rodagem que tem a largura de 7,20 metros, fazendo-o na via da direita que tem a largura de 3,60m.”
M. C e B trajavam roupas pretas, verdes, vermelhas, amarelas, não reflectoras, não fazendo uso de colete reflector.
N. A estrada descrita em A é precedida por uma rotunda estendendo-se ao longo de 500 m. e concluída igualmente por outra rotunda,
O. Paralelamente à via onde ocorreu o embate supra descrito existe a auto-estrada A2.
P. A cota da estrada descrita em A é inferior à cota da Auto-estrada, pelo que a estrada descrita em A. se encontra em plano inferior ao da Auto-estrada.
Q. A velocidade permitida na recta onde se deu o acidente descrito em C é de 90 km/h.
R. A velocidade permitida até à rotunda que precede a recta onde se deu o embate descrito em C é de 50 km/h.
S. A recta descrita em A tem 7,20 metros de largura e encontra-se dividida em duas semi-faixas de rodagem, por uma linha descontínua separadora de trânsito.
T. Na ocasião do acidente a estrada encontrava-se livre e desimpedida.
U. A recta em causa é ladeada pela fábrica da auto-europa a qual dispõe de iluminação artificial direccionada para o seu parque automóvel.
V. Inexistem habitações na via descrita em A.
W. Não existe no local iluminação artificial direccionada para a estrada.
X. Na noite do acidente a lua encontrava-se na fase de lua nova.
Y. As bicicletas tripuladas por C e por B não faziam uso de equipamento retro-reflector.
Z. A bicicleta tripulada por C estava equipada com dispositivo de iluminação dianteiro e traseiro, constituídos por foco de luz à frente e led atrás, tendo este último alcance de iluminação até 50 metros.
AA. É comum os veículos circularem em luzes de cruzamento na via descrita em A.
AB. É incomum a existência à noite de ciclistas e peões no local.
AC, O arguido podia e devia ter tido outro comportamento que evitasse a colisão e as consequências que se lhe seguiram, face às características da via e às condições de visibilidade, podia e devia ter tido o cuidado e a precaução de ter utilizado as luzes de estrada, vulgarmente designadas como “ máximos “, as quais lhe confeririam um campo de visibilidade de 100 metros, ao invés dos 30 metros possibilitados pelas luzes de cruzamento, vulgarmente designadas como “ médios “.
AD. O arguido apesar de saber que podia colocar em perigo a vida de outras pessoas, tal como veio a acontecer, não cuidou de manter uma velocidade que lhe permitisse conduzir em segurança, dever que se lhe impunha e de que este era capaz, não evitando um resultado que não previu, mas que podia e devia prever.
AE. Com a sua conduta, o arguido exerceu uma condução imprudente e temerária, face às condições concretas de circulação que a via proporcionava, violando as regras estradais e os deveres de cuidado.
AF. Sabia ser proibida a sua conduta.
O arguido encontrava-se acusado como autor de um crime de homicídio por negligência do art. 137º, nº 1 Código Penal e de uma contra-ordenação dos art.º 61º n.º 1 al. c) e art.º 145º n.º 1 al. j) do Código Estrada.
Pressupostos da afirmação da tipicidade nos crimes negligentes materiais ou de resultado são a violação de um dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objectiva desse mesmo resultado típico.
A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme as leis científico-naturais e previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de “causalidade adequada” (art. 10º do Código Penal).
Na formulação de Roxin, à causalidade e previsibilidade (que revelam que foi criado um risco) devem acrescer o carácter proibido do risco criado e a concretização desse risco proibido no resultado.
A sentença decidiu absolver do crime e da contra-ordenação argumentando, na parte que agora aqui mais releva:
“Tal como ficou provado o arguido circulava fora de localidade, a pelo menos 70 km/h, num local onde a velocidade máxima permitida de 90 km/h, numa estrada constituída por via de 3,60m de largura, dividida em duas hemi-faixas de rodagem separadas por linha longitudinal descontínua, designada por marca M2, ladeada por indústria, sem habitações, e sem iluminação artificial, de noite, utilizando luzes de cruzamento.
Na verdade naquele local não era previsível a existência de ciclistas ou peões, uma vez que a sua presença nocturna não é predominante, pelo que não lhe era exigido que adoptasse velocidade especialmente moderada em relação à velocidade máxima permitida no local.
Certo é que veio a colidir com o velocípede conduzido pela vítima não se tendo apercebido da sua existência.
Na verdade e considerando as características da via e considerando o embate em concreto, para que o mesmo fosse evitado bastava que o arguido tivesse desviado a trajectória o mais à esquerda possível, pelo que nem lhe era sequer exigível a imobilização do veículo. Daqui se constata que não foi a velocidade do JT a propiciadora do embate mas antes a não percepção por parte do arguido da existência do velocípede, posto que não se demonstrou, nem sequer foi mencionada, a circulação, naquele momento, de veículos no mesmo sentido e que constituísse obstáculo à realização em segurança de tal manobra.
O embate ocorreu a 1,20 m da berma o que permite concluir que o ofendido que conduzia o velocípede não circulava junto à berma como era seu dever. O Tripulante do velocípede, assim como a assistente, trajavam roupa escura, não dispunha de material retro-reflector, e fazia uso de um led na parte traseira da bicicleta que conforme foi apurado ilumina a cerca de 50 metros, não fazendo utilização dos reflectores exigidos por lei.
A via em que circulava não tem iluminação artificial. Todos estes factos permitem concluir que o velocípede ao circular nestas condições, em local sem iluminação, contribuiu de forma exclusiva para a concretização do acidente. Conclui-se assim que o ofendido exercendo a condução do velocípede nos termos em que o fez aumentou e potenciou de forma exponencial o risco permitido no sentido de causar o resultado morte.
Por outro lado, a circulação do veículo automóvel em luzes de cruzamento no local analisado impõe a conclusão que o arguido não violou qualquer dever de cuidado, não lhe sendo exigível a utilização ali em concreto de luzes de estrada, porquanto e conforme foi de forma quase unânime afirmada pelas testemunhas acima valoradas, conduz-se ali com luzes de cruzamento, facto a que não é alheio o condicionalismo concreto da via conforme se expôs.
Do que resulta exposto e conforme foi anteriormente afirmado, não obstante existir provado o nexo causal que imputa o resultado à conduta, não ficou apurado qualquer violação do dever de cuidado imposto ao arguido na circulação automóvel que exerceu, pelo que necessariamente ter-se-á que absolver o arguido do crime e contra-ordenações que lhe são imputadas, o que se fará”.
Segundo o raciocínio desenvolvido na sentença, atendendo às características da via e às demais circunstâncias provadas, para que não ocorresse o embate teria bastado que o arguido desviasse a trajectória do veículo para a esquerda, não lhe sendo sequer exigível a imobilização.
Este é um aspecto importante que a sentença identifica.
Para evitar o acidente, do que se tratava não era de travar e/ou imobilizar o veículo (e daí resultar indiferente a avaliação que se faça sobre a possibilidade de se poder ou não travar no espaço visível à frente), mas simplesmente desviá-lo para a esquerda, de modo a prevenir o embate.
Tendo em conta a posição que ocupava o velocípede na via de trânsito (circulando a 1,20m da berma) e a largura da faixa de rodagem (de 7,20m), o condutor do veículo disporia de todas as condições para poder (ultra)passar em segurança e evitar embater no velocípede.
O embate deu-se não por o condutor do veículo não ter conseguido travar, mas sim, e tão só, por não ter desviado o veículo que conduzia. E não o desviou de modo a evitar a colisão porque não viu o velocípede (assim está provado, e assim o declarou o próprio em julgamento).
Acrescenta-se na sentença que “daqui se retira que não foi a velocidade a propiciadora do embate, mas antes a não percepção por parte do arguido da existência do velocípede”.
Esta afirmação não é, no entanto, inteiramente exacta, pois a “não percepção por parte do arguido da existência do velocípede” não pode ser dissociada da questão da velocidade.
O arguido embateu porque não se apercebeu e não viu, ou seja, porque não viu a tempo de se desviar de modo a evitar o embate.
O que, diferentemente de um poder ou dever ter visto a tempo de imobilizar o veículo antes do embate, demanda uma possibilidade de visionamento do velocípede a uma distância e a um tempo muito menos exigentes. Este aspecto é bastante relevante.
Sabe-se, também, que o veículo circulava em luzes de cruzamento.
Diferentemente das luzes de estrada, que iluminam a 100m e que eram as impostas no caso de acordo com o art. 61º, nº 1, alínea c) do Código da Estrada, as luzes de cruzamento encurtam a visibilidade para 30 metros.
Optando por adoptar, diversamente do que demandava o Código da Estrada, uma condução “em médios”, o que reduziu o campo visual e as possibilidades de enxergar, o arguido deveria, então, ter adequado a velocidade imprimida ao veículo às suas concretas possibilidades de visão.
Do encontro das comprovadas condições do local com a norma indicada (art. 61º, nº 1, alínea c) do Código da Estrada) resulta que as luzes utilizadas deveriam ter sido, no caso, as de estrada (sem prejuízo de pontual alternância com luzes de cruzamento, quando necessário).
Ao juízo sobre a licitude é indiferente a circunstância de outros condutores (ou mesmo muitos condutores) adoptarem diferente conduta, de costumarem ou não seguir a regra legal.
Mas mesmo que se justificasse, no caso, a opção do condutor, de circulação em luzes de cruzamento numa estrada com “visibilidade diminuta”, à noite e sem iluminação direccionada para a estrada, esse mesmo condutor teria então de adequar a velocidade do veículo a esta sua opção de encurtamento do campo visual.
As luzes de cruzamento (utilizadas no caso, note-se, permanentemente e sem alternância com luzes de estrada) possibilitam uma visualização limitada e dificilmente compatível com uma condução a uma velocidade de 70-80 Km, em circunstâncias como as presentes.
A velocidade admissível no local dos factos era de 90 km/h. O que não significa que uma velocidade de 70-80 Km não possa ter-se revelado excessiva, ao adoptar-se, como se fez, uma condução em luzes de cruzamento, em recta de visibilidade reduzida, à noite e sem qualquer iluminação direccionada para a estrada. O art. 24º do Código da Estrada impõe que o condutor regule sempre a velocidade de modo a executar todas as manobras em condições de segurança.
Dito de outro modo, o condutor não pode adoptar uma “condução em médios”, como se estivesse a conduzir “em máximos”. Conduzir em “médios” obriga-o a precaver-se (ainda) contra os riscos que uma condução em máximos” evitaria.
Ou seja, obriga-o a reduzir a velocidade e a redobrar a atenção.
O que o arguido não fez. Pois, de outro modo, teria podido visualizar o velocípede da vítima a tempo de evitar o embate. Se tivesse reduzido a velocidade e redobrado a atenção – uma vez que optara por circular em luzes de cruzamento, numa via em que devia utilizar luzes de estrada - ele teria sempre conseguido desviar o veículo para a esquerda, sendo apenas isso que se exigiria, no caso presente, para evitar o embate.
O que o arguido não podia fazer era eliminar todos os cuidados, pretendendo valer-se ainda da circunstância de “não ser costume encontrar ali ciclistas àquela hora”.
Em estrada é sempre possível encontrar veículos e velocípedes. Essa possibilidade, mesmo que remota, não pode excluir-se.
O condutor não se desviou porque não viu a tempo de se desviar. E não viu, não porque não pudesse ter conduzido de modo a poder ter visto – ele não estava impedido de divisar o velocípede, pois este circulava à sua frente, numa recta, e munido de umdispositivo de iluminação visível até 50 metros. Não viu porque adoptou uma condução que não lhe permitiu ver.
Pode, pois, afirmar-se que o arguido violou deveres objectivos de cuidado e que a essa violação se seguiu um resultado típico (a morte da vítima).
Mas para que a imputação objectiva possa ser afirmada, importa completar a apreciação jurídica dos factos com a avaliação do comportamento da vítima, na medida em que esta possa ter contribuído causalmente para o resultado.
O condutor do velocípede violou também normas estradais.
Na sentença discorre-se que “o tripulante do velocípede trajava roupa escura”, que fazia uso de um led na parte traseira da bicicleta, e não dos retro-reflectores exigidos por lei, que ao circular nestas condições em local sem iluminação contribuiu (“de forma exclusiva”, afirma-se até) para a concretização do acidente.
O comportamento da vítima não pode ser, efectivamente, excluído do processo de ponderação. Ela postergou também regras de trânsito – o dever de transitar o mais próximo possível da berma (art. 90º, nº 2 do Código da Estrada, na redacção então em vigor) e o dever de fazer uso de retro-reflector visível de noite a uma distância mínima de 100m (art. 93º, nº 3 do Código da Estrada e port. 311-B/2005).
Como se disse, o embate ocorreu porque o arguido não viu o velocípede. Contudo, a actuação da vítima que eliminou a possibilidade do velocípede ser visto.
Na verdade, não eliminou naturalmente essa possibilidade a circunstância de se circular, numa recta, a 1,20m da berma. Deste modo, o velocípede tornar-se-ia até mais visível.
E embora a circunstância do “tornar-se visível” não tenha sido criada pelo ciclista do modo como devia (com uso de retro-reflector visível a 100m), também o uso de iluminação-leds manteve a possibilidade do velocípede poder ainda ser visto. Dito de outro modo, não retirou nem eliminou essa possibilidade.
Pode aceitar-se que a vítima tenha contribuído causalmente para a produção do resultado, mas isso não paralisa necessariamente a imputação. A imputação objectiva deve sempre explicar-se (estabelecer-se) para além de uma lógica de pura causalidade.
Seguindo posições desenvolvidas por Roxin e Jakobs, a partir do momento em que o agente começa a actuar ilicitamente, em que viola o seu dever de cuidado, há um relaxamento e um desprendimento de atitude que podem justificar a imputação. O princípio da confiança, segundo o qual o agente que adopta um comportamento adequado pode confiar que os outros procederão de idêntico modo, deixa de se aplicar quando essa confiança, em face de circunstâncias do caso, reconhecíveis para o agente, se apresente como injustificada. O princípio da confiança cede relativamente a comportamentos (mesmo ilícitos) de terceiros com os quais um agente consciente deva razoavelmente contar.
No caso presente, para ter evitado o resultado teria bastado ao arguido uma visualização do velocípede a tempo de se poder ter desviado dele, o que não sucedeu em virtude de uma sua condução imprudente. E tendo a vítima, embora não do modo como devia, criado ainda a possibilidade de ser vista, a actuação desta não afasta a imputação normativa do resultado à conduta do arguido.
Por tudo se conclui que o resultado morte ainda se explica normativamente pela actuação do arguido e que a conduta deste realiza então os crime e contra-ordenação da acusação.
Mas tendo sido inicialmente absolvido em 1ª instância, e tendo esta Relação procedido à alteração da matéria de facto e ao enquadramento jurídico-penal dos factos de modo a concluir pela condenação, impõe-se assegurar os direitos de defesa e o direito ao recurso, com a consequente e oportuna possibilidade de reapreciação da medida da pena por uma instância superior.
Também na leitura do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (e embora o direito ao recurso não resulte directamente do disposto no art. 6º da Convenção), devem os recursos obedecer às regras mínimas exigíveis a um processo equitativo, encontrando-se o duplo grau de jurisdição em matéria penal consagrado no art. 2º do protocolo nº 8 de 1984.
A Relação não pode funcionar, simultaneamente, como tribunal da primeira e da última condenação, ou seja, como tribunal da única condenação, o que desrespeitaria o duplo grau de jurisdição em matéria penal.
Revestindo a questão da determinação da sanção uma relativa autonomia (arts 469º n.º 2 e 470º do Código de Processo Penal), mas sobretudo porque assim o impõe a garantia do duplo grau de jurisdição, de tutela constitucional no que respeita ao arguido (art. 32 nº 1 da Constituição da República Portuguesa), deverão os autos baixar à 1ª instância, para aí ser proferida decisão sobre a pena e a coima (sem prejuízo da declaração de prescrição do procedimento contra-ordenacional, se ocorrer entretanto).
4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar parcialmente procedente o recurso, alterando a matéria de facto nos termos explanados em (a);
- Julgar o arguido autor de um crime de homicídio por negligência do art. 137º, nº 1 Código Penal e de uma contra-ordenação dos art.º 61º n.º 1 al. c) e art.º 145º n.º 1 al. j) do Código Estrada;
- Determinar que os autos regressem à 1ª instância, para reabertura da audiência e prolação de decisão sobre a pena e a coima.
Sem custas.
Évora, 18.02.2014
Ana Maria Barata de Brito
Maria Leonor Vasconcelos Esteves