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REJEIÇÃO
INSTRUÇÃO
IDENTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
Sumário
I - Não sendo possível um requerimento de abertura de instrução contra desconhecidos ou incertos, pela mesma razão que não tem sentido, nem é possível, uma acusação contra desconhecidos ou incertos, se o assistente entender que com os dados que dispõe não consegue identificar a pessoa de quem continua a suspeitar ser o responsável pelo crime, a sua única alternativa perante o arquivamento do processo é o requerimento de mais diligências de investigação e a arguição da nulidade do inquérito por insuficiência do mesmo. II – Tal requerimento deve ser dirigido ao superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que proferiu o despacho de arquivamento e, não, através de requerimento de instrução, pelo que esta terá de ser rejeitada, por inadmissibilidade legal, decorrente, além do mais, da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa, em que se inclui o contraditório.
Texto Integral
Processo n.º 2927/13.0TASTB.E1
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos, acima identificados, da 1.ª Secção dos Serviços do M.º P.º do Tribunal Judicial de Setúbal, em que A e B se constituíram assistentes e apresentaram queixa contra os dirigentes ou representantes e agentes da firma a seguir identificada: C – (…) e Os titulares e utilizadores do telefone número (…) - supostos dirigentes ou representantes e agentes da firma – D – cujo endereço segundo a NET é – (…); Presumivelmente responsáveis pelo cometimento dos factos (…) que, no entender dos assistentes, consubstanciavam a prática dos seguintes ilícitos penais: - Burla na forma tentada (artº 217 -1-2 do CP) - Perturbação da vida privada (art.º 190º - 2 do CP) - Não cumprimento de obrigações relativas a proteção de dados (art.º 43.º c) d) da Lei 67/98 - Acesso indevido a dados pessoais (art.º 44. 2º - c) da Lei 67/98)
Tendo o M.º P.º de imediato e sem a prática de qualquer diligência proferido despacho de arquivamento dos autos, com base em os factos relatados na queixa não constituírem qualquer crime.
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Os assistentes não se conformaram com este arquivamento e apresentaram requerimento de abertura de instrução (RAI) contra: O(s) dirigente(s) executivo(s) ou representante(s) e agente(s) da firma a seguir identificada: C – (…) e O(s) titular(es) e utilizador(es) do telefone número (…) – suposto(s) dirigente(s) ou representante(s) e agente(s) da firma – D – cujo endereço segundo a NET é – (…);
Imputando-lhe(s) a prática dos acima mencionados ilícitos e terminando com o pedido de realização, entre outras, das seguintes diligências, em sede de instrução:
• Identificação da identidade das pessoas presumivelmente responsáveis pelos factos participados – (dirigente(s) executivo(s) ou representante(s) e agente(s) da C – e o(s) titular(es) e utilizador(es) do telefone número (…) – suposto(s) dirigente(s) executivo(s) ou representante(s) e agente(s) da firma – D ) • Constituição de arguido e inquirição dos mesmos sobre a factualidade discriminada no requerimento de instrução.
Tendo o Exm.º Senhor Juiz de Instrução Criminal (JIC) lavrado o seguinte despacho:
No requerimento que apresentaram a fls. 38-47 vêm os assistentes requerer a abertura de instrução.
Insurgem-se contra o despacho de arquivamento proferido nos autos pelo Ministério Público e que consta de fls. 25-27.
Nessa decisão, entendeu, em suma, o Ministério Público arquivar os autos por, no seu entender, os factos denunciados não possuírem relevância face à lei penal.
Como se sabe, e relativamente a factos sobre os quais assentou um despacho de arquivamento do processo penal por parte do Ministério Público, e desde que os mesmos sejam susceptíveis de fazer alguém incorrer na prática de crime público ou semi-público, pode o lesado, se constituído assistente, requerer a abertura de instrução.
A instrução assume neste caso a dimensão de tutela jurisdicional do direito da vítima, tutela esta que decorre do disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Na instrução leva-se a cabo, dito de uma forma simplista, a formulação de um juízo de sindicância. Sindicância no sentido de comprovação judicial, por um tribunal, da decisão do Ministério Público de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (artigo 286º, número 1, do Código de Processo Penal).
Ainda assim, é importante não perder de vista que o nosso processo penal está sujeito ao princípio do acusatório – artigo 32º, número 5, da Constituição da República Portuguesa.
A este propósito se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-5-2012, proc. número 2619/11.5TDPRT.P1, relatado por Mouraz Lopes, in www.dgsi.pt:
“Como já referimos noutro local, aprofundadamente (in A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Coimbra Editora, p.37), «a retenção do que é essencial no princípio do acusatório – a separação entre a entidade investigadora e acusadora e a entidade que julga, por um lado e a vinculação desta ao thema decidendum, organizado por aquela – é uma aquisição jurídico cultural indiscutível». A estrutura acusatória do processo penal, na perspectiva da jurisdição, é fundamentalmente assumida a sua dimensão orgânica, onde a diferenciação e a autonomia de papeis impõe o carácter absolutamente imparcial do julgador. Assumir uma vertente inquisitória, ou um tempero investigatório por parte do juiz, que claramente é estabelecido no CPP, não pode questionar a essência da impositividade constitucional. Ou seja nunca a imparcialidade do tribunal pode a qualquer título ser questionada. Reger-se-á, por isso e fundamentalmente o processo penal pelo princípio da máxima acusatoriedade. Essa uma decorrência da imposição constitucional decorrente da estrutura acusatória do processo penal.”
É nesta sequência que importa convocar o disposto no artigo 287º, número 2, do Código de Processo Penal, que rege o conteúdo do requerimento de abertura de instrução:
“O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.”
Ou seja, o legislador aceita a existência de um requerimento minimalista (não sujeito a “formalidades especiais”) mas que - quando apresentado pelo assistente - cumpra as exigências que decorrem para o acusador público do disposto no artigo 283º, número 3, do Código de Processo Penal.
E pode-se ler, nessa disposição legal, o seguinte:
“3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.
Daqui decorre que seja ónus do assistente, quando reage contra o despacho de arquivamento proferido pelo titular da acção penal, relativamente a determinada factualidade, mediante abertura de instrução (e relativamente a factualidade nova não poderá ele reagir desta forma) descrever essa determinada factualidade, a qual terá que ter a aptidão de, a provar-se, determinar a aplicação a alguém determinado de uma pena ou medida de segurança.
Em suma, tal factualidade terá que, a provar-se, permitir concluir que alguém determinado incorreu na prática de um ou mais crimes.
É essa factualidade que, considerando-se indiciada, será levada a julgamento, mediante despacho de pronúncia – artigo 308º, número 1, do Código de Processo Penal.
Incumbe pois, ao assistente, nestes casos, ónus de formular aquilo que já foi apelidado de “acusação alternativa”. E esta acusação alternativa não pode o tribunal formulá-la pelo assistente, ou sequer completá-la (poderá fazê-lo apenas nos estritos limites previstos no artigo 303º do Código de Processo Penal, mas este procedimento pressupõe a realização prévia de actos instrutórios donde resulte a nova factualidade), e tampouco convidar o assistente a corrigir o seu requerimento de abertura de instrução no sentido de a conter (neste sentido, a decisão proferida em sede de Acórdão de Fixação de Jurisprudência número 7/2005 (in DR. I-A, número 212, de 4 de Novembro de 2005, relativamente à qual não dissente este tribunal).
Se o tribunal assim não procedesse, violaria claramente o princípio do acusatório, transformando-se ele próprio em acusador, com a agravante de que iria proferir um juízo (no caso da instrução, de indiciação suficiente) sobre factualidade que ele próprio havia carreado para os autos. A sua imparcialidade poderia ser, com toda a lógica, colocada em causa pelo acusado em sede de pronúncia. E razões haveria para duvidar de que alguma hipótese de defesa ele tivesse nesta fase.
Sobre esta matéria, de forma bastante clara se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra em acórdão de 30-3-2011, proc. número 443/08.1TAILH.C1, relatado por José Eduardo Martins, nos seguintes termos:
“A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução. Existe uma semelhança substancial entre o requerimento de abertura de instrução e a acusação. Daí que o art.º 287º, n.º 2, do C. Proc. Penal, remeta para o art.º 283º, n.º 3, als. b) e c), do mesmo diploma legal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento de abertura de instrução. Em síntese, podemos afirmar que o requerimento para abertura da instrução formulado na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público deve fixar e delimitar o objecto do processo (como se tratasse de uma acusação deduzida pelo Ministério Público), limitando e condicionando os poderes de cognição do tribunal.”
Estamos, como é bom de ver, a aludir ao princípio da vinculação temática.
Detenhamo-nos um pouco mais sobre aquilo que se deve ter por “objecto do processo” (reportando-nos ao procedimento criminal). Bem como, em que termos é que o mesmo pode ser introduzido, fixado e modificado.
Como sabemos, o processo penal nasce com “a notícia do crime” – artigo 262º, número 2, do Código de Processo Penal.
Esta notícia pode assumir as mais variadas formas. Daí que se entenda que na notícia do crime, nos termos previstos no aludido preceito, não têm que estar presentes todos os elementos factuais que traduzam a enunciação clara, completa e precisa dos elementos da infracção eventualmente em causa.
Na realidade, o objecto do processo (no sentido de lastro factual que constitua alguém na prática de uma infracção criminal) durante o inquérito é fluído, porque de uma fase investigatória se trata (artigo 262º, número 1, do Código de Processo Penal)
É, contudo, no despacho final do inquérito que se define o objecto do processo. Objecto esse que apenas poderá vir a ser alterado nos estritos limites do disposto nos artigos 303º, 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Daí a especial importância de, no despacho de encerramento do inquérito, e independentemente do sentido da decisão do titular da acção penal, se enunciar de forma clara a factualidade sobre a qual incidiu a acção investigatória, seja aquela que foi objecto de arquivamento, seja aquela que foi objecto de acusação.
Ademais, tem-se por certo que a decisão de arquivamento do inquérito proferido ao abrigo do disposto no artigo 277º, número 1, do Código de Processo Penal acaba em certos casos por adquirir o efeito de caso decidido, daí a importância da delimitação do seu alcance em termos inequívocos. Tal como nos refere Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2009, pag. 724 e seguintes, "0 despacho final do inquérito proferido pelo MP não é uma sentença, nem beneficia da protecção constitucional do artigo 29°, n" 5, da CRP, mas ele produz efeitos jurídicos preclusivos importantes que são protegidos pela lei processual, isto é, ele tem força de caso decidido. As disposições dos artigos 279º, 282º, número 3, e 449º, número 2, prevêem o regime do caso decidido do despacho de arquivamento do Ministério Público.”
O requerimento de abertura de instrução tem uma importante função na definição do objecto do processo, mas a verdade é que não o pode ampliar para além dos limites da factualidade investigada em sede de inquérito e sobre a qual foi proferida decisão de mérito pelo titular da acção penal. Tal resulta logo, claramente, do disposto no artigo 286º, número 1, do Código de Processo Penal.
Se a instrução requerida pelo assistente incidisse sobre matéria criminal mais extensa que o inquérito, então o tribunal estaria a transformar-se em investigador penal, a assumir funções próprias do titular do inquérito, mais uma vez relembre-se, com grave prejuízo para a sua imparcialidade a para as garantias de defesa do arguido, que nunca poderia suscitar uma “nova instrução sobre a instrução”. E mais, não estaria a sindicar um real juízo de arquivamento, o qual não havia sido, inquestionavelmente, formulado pelo titular da acção penal no que toca a essa nova factualidade.
Em suma, e como nos ensina Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal , Vol. III, págs. 128 e segs.. a instrução não tem por finalidade directa a fiscalização ou complemento da actividade de investigação e recolha de prova realizada no inquérito. A instrução é actualmente uma actividade materialmente judicial e não de investigação ou materialmente policial ou de investigações.
É certo que no artigo 288º, número 4, do Código de Processo Penal, se refere que o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução. Mas esta investigação não tem os mesmos contornos da prevista no artigo 262º do mesmo diploma. O seu objecto está limitado pela letra do próprio preceito: “tendo em conta a indicação, constante do requerimento de abertura de instrução, a que se refere o número 2 do artigo anterior”.
Na senda do que se vem dizendo, é de aceitar também que a instrução requerida pelo assistente nunca pode ser dirigida contra incertos. E incertos aqui no sentido de que a sua identidade nunca foi apurada nos autos.
E isto assim porque a identificação de um qualquer agente é um acto puramente investigatório, e que apenas pode ser levado a cabo em sede de inquérito: “o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles” – artigo 262º, número 1, do Código de Processo Penal.
O mesmo não será dizer que é exigível que os agentes de um crime já tenham sido constituídos arguidos na data da abertura de instrução pelo assistente: na realidade eles assumem tal qualidade com o requerimento de abertura de instrução – artigo 57º, número 1, do Código de Processo Penal.
Mas o que é essencial, é que tais agentes sejam determináveis, isto é, que, além das acções que lhe são imputadas tenham sido objecto do inquérito, eles possam ser, por recurso aos elementos presentes no processo, concretizadamente identificados.
Do que ficou dito decorre que em caso algum, se poderá conferir ao tribunal, ab initio (isto é, no momento em que é requerida a instrução) a hipótese de escolher entre uma ou mais pessoas para objecto de acusação em sede de pronúncia, tal como é inadmissível que se dê ao tribunal a escolha, em termos livres, da qualificação legal das condutas que se pretende suficientemente indiciadas.
Incumbe efectivamente, ao assistente requerente da instrução, a imputação de condutas concretas a pessoas concretas, bem como a qualificação jurídico-penal dessas condutas.
Descendo ao caso vertente, constata-se que tal não sucede.
No requerimento de abertura de instrução de fls. 38 e seguintes – que é o que se aprecia – pode ler-se, a fls. 39:
“Renovam por isso integralmente a factualidade denunciada Contra O(s) dirigentes(s) executivo(s) ou representante(s) e agente(s) da firma a seguir identificada: C (…) O(s) titular(es) e utilizador(es) do telefone número (…) – suposto(s) dirigente(s) ou representante(s) e agente(s) da firma – D – cujo endereço segundo a NET é (…)”
Os sublinhados apenas aqui foram introduzidos.
Esta é a identificação que é fornecida ao tribunal sobre as pessoas a pronunciar.
Não só não se identificam cabalmente os autores dos factos considerados ilícitos pelos assistentes, como se dá a escolher ao tribunal a escolher entre diversas categorias que compreenderão necessariamente um número indeterminado de indivíduos.
A utilização das preposições “ou” e “suposto” denuncia claramente que os assistentes não sabem quem concretamente estão a “acusar”.
Requerer instrução contra os “utilizador(es) do telefone número (…)” nos termos preconizados, é manifestamente inaceitável face aos princípios que conformam o nosso processo penal. Para ilustrar o que se disse, basta atentar que esses “utilizadores”, poucos ou muitos, sejam eles quem sejam, assumiriam necessariamente a condição de arguidos – artigo 57º número 1 do Código de Processo Penal – com todos os direitos e deveres processuais inerentes a tal qualidade.
Aceita-se que o que pretendem os assistentes é que o tribunal investigue os autores das acções que descrevem na factualidade que a seguir descrevem. E depois, que em sede de pronúncia, os acuse pela sua prática, que os leve a julgamento pela prática dessa factualidade.
Mas tal investigação não cabe, como se crê ter deixado bem explanado, nos limites da instrução.
Sempre se dirá por fim, relativamente à imputação de factos contra incertos, que tem sido entendimento ao que se julga maioritário das nossas doutrina e jurisprudência que a mesma não é admissível. Tal decorre, evidentemente, da circunstância de tal incerteza só poder decorrer da eventual insuficiência da investigação realizada pelo Ministério Público no inquérito, a qual, como acima se disse, só pode ser sindicada por via da reclamação hierárquica [1].
Recentemente, o Tribunal da Relação de Évora analisou situação de contornos algo semelhantes à que sucede nos presentes autos. Fê-lo em acórdão de 12-6-2012, proc. número 60/09.9PBPTG.E1, relatado por Martinho Cardoso, e que pode ser consultado em www.dgsi.pt. Aí se pode ler o seguinte (com sublinhados nesta sede introduzidos):
“Não sendo possível um requerimento de abertura de instrução contra desconhecidos ou incertos, pela mesma razão que não tem sentido, nem é possível, uma acusação contra desconhecidos ou incertos, no caso do assistente entender que com os dados que dispõe não consegue identificar a pessoa de quem continua a suspeitar ser o responsável pelo crime, a sua única alternativa à conformação com o arquivamento do processo é o requerimento de mais diligências de investigação a que se refere o art.º 278.º e a arguição da nulidade do inquérito por insuficiência do mesmo, regulada nos art.º 120.º, n.º 2 al.ª d) e 3 al.ª c) - 2.ª parte, dirigido ao superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que proferiu despacho de arquivamento do inquérito ou um requerimento de reabertura do inquérito; o que não pode pretender é vir a obter essa identificação na fase da instrução, a qual terá de ser dirigida contra pessoas certas, por exigência da estrutura acusatória do processo penal e como garantia do contraditório, constitucionalmente imposto em relação à fase da instrução (art.º 32.º n.º 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa). Neste sentido, que nos parece pacífico na jurisprudência: acórdão da Relação do Porto de 23-1-02, Colectânea de Jurisprudência, 2002, I-229; e acórdãos da Relação de Lisboa de 25-6-02 e de 16-11-04, Colectânea de Jurisprudência, respectivamente 2002, III-143 e 2004, V-132. Assim, quando o assistente no seu RAI constatou que não lhe era possível deduzir uma verdadeira acusação (cfr. pontos 14.º a 16.º do mesmo, acima reproduzidos a fls. 2-3 do presente acórdão), isso deveria ter funcionado para o assistente como um alerta e anúncio do inevitável naufrágio do seu RAI, o aviso da impossibilidade processual de ser esse o meio adequado ao eficaz tratamento jurídico das suas pretensões e de que o caminho correcto a seguir seria o da reclamação hierárquica nos termos do art.º 278.º. Que a insuficiência da investigação realizada pelo M.º P.º no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação e que a errada valoração dos indícios colhidos na investigação é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução – é um aforismo que não pode ser tomado tout court, mas tem que ser habilmente interpretado: quando o art.º 278.º estabelece que o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento, este determinar que seja formulada a acusação só pode ser entendido como o resultado cumulativo ou alternado de uma diferente integração jurídica dos factos ou de uma diferente valoração dos indícios colhidos na investigação (caso em que superior hierárquico do magistrado do Ministério Público dirá ao seu subordinado qualquer coisa como isto: V.ª Ex.ª não deduziu acusação por entender que os factos X e Y não são crime, mas por esta e mais aquela razão são crime efectivamente, portanto deduza acusação; ou V.ª Ex.ª não deduziu acusação por não ter dado relevo aos factos X e Y ou ter entendido que não há indícios suficientes de que eles aconteceram, mas esta e mais aquela razão tais factos ocorreram efectivamente, pelo que deduza acusação). Logo, se o único problema detectado ao inquérito for apenas a insuficiência da investigação realizada pelo M.º P.º, esse problema deve ser sindicado apenas hierarquicamente por via de reclamação; se o único problema detectado ao inquérito for apenas a errada valoração dos indícios colhidos na investigação, esse problema deve ser sindicado apenas judicialmente por via da abertura de instrução; se ao inquérito forem detectados em simultâneo os dois problemas, insuficiência da investigação e errada valoração dos indícios colhidos na investigação (como foi o caso dos autos), então deve decididamente escolher-se apenas a reclamação hierárquica – caso contrário, poderá não se poder retirar da instrução todos os dividendos resultantes da prova que nela se produza por a mesma conduzir à nulidade da decisão instrutória tipificada no art.º 309.º (e que na reclamação hierárquica conduziria à reformulação da acusação). Que era o que aconteceria nos presentes autos se o JIC produzisse a prova testemunhal requerida pelo assistente e lhe desse uso na decisão instrutória. Não devia pois o recorrente verberar o tribunal "a quo" por excesso de formalismo[2], uma vez que o seu insucesso se deve exclusivamente ao meio processual errado que escolheu – o qual, diga-se também em abono da verdade, devia ter sido imediatamente atalhado pela Senhora Juiz de Instrução Criminal que a fls. 185 em vez de lhe admitir a abertura de instrução, lha devia era ter indeferido liminarmente por o RAI ser inepto para o efeito.”
Ou, em sentido concordante, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-6-2013, proc. número 57/11.9GAAFE.P1, relatado por Pedro Vaz Pato, também disponível em www.dgsi.pt:
“No requerimento de abertura de instrução (ver fls. 122 a 131 e a denúncia a fls. 3 e verso, para a qual remete tal requerimento) o assistente imputa a todos os arguidos (como agentes da G.N.R. de serviço no posto de Mogadouro na data indicada), genericamente, os crimes referidos, e não identifica qual, ou quais deles, pratica ao atos concretos (agressões, ameaça com arma, interrogatório intimidatório, colocação de um saco na cabeça, colocação de joelhos e de algemas, etc.) que também imputa a todos os arguidos genericamente. Solicita que possa identificar os arguidos que terão praticado cada um desses atos através de reconhecimentos a efetuar no âmbito da própria instrução. Como decorre do artigo 257º, nº 2, in fine, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução tem uma função em tudo análoga à da acusação. Como esta, é esse requerimento que delimita o objeto do processo e é no âmbito desse objeto assim delimitado que há-de situar-se a eventual pronúncia (da mesma forma que, na fase do julgamento, a sentença há-de situar-se no âmbito do objeto delimitado pela acusação, ou pela pronúncia, se a houver). Não pode ser no âmbito da própria instrução que esse objeto é delimitado. Estamos perante uma exigência do princípio da vinculação temática, princípio que é corolário do princípio acusatório (é a acusação, que delimita o objeto do processo, não a iniciativa do juiz, quer o da pronúncia, quer o do julgamento), assim como das garantias de defesa do arguido (este, quer na fase da instrução, quer na fase do julgamento, tem de saber quais os factos e crimes que lhe são imputados na acusação, para que deles se possa defender, e não seja surpreendido com alguma imputação de factos ou crimes só na pronúncia ou só na sentença, sem conhecimento prévio da mesma). Reflexo destes princípios é o regime (relativos à alteração de factos ou qualificação jurídica) dos artigos 303º e 309º (quanto à instrução e pronúncia) e 358º, 359º e 379º, nº 1, b) (quanto ao julgamento e à sentença), do Código de Processo Penal. Ora, no requerimento de abertura de instrução o assistente não chega a imputar a cada um dos arguidos os atos concretos a que faz referência; faz uma imputação genérica dos mesmos, pretendendo que tal imputação individualizada desses atos venha a resultar da própria instrução. Deste modo, o objeto do processo não está corretamente delimitado nesse requerimento (que, como vimos, desempenha funções em tudo análogas às da acusação). Para que os arguidos pudessem defender-se cabalmente na fase da instrução, necessário se tornaria que conhecessem, antes da eventual pronúncia, os atos concretos que lhe são imputados (não basta uma imputação genérica e indistinta de uma série de atos a uma série de arguidos), não podendo ser eles surpreendidos com tal imputação apenas na pronúncia. E será assim mesmo que possamos estar perante eventuais crimes praticados em coautoria. Essa circunstância não dispensa uma imputação concreta e individualizada de factos, pois esta imputação (que. além do mais, faz distinguir a responsabilidade de cada um dos arguidos) será sempre relevante na perspetiva dos direitos de defesa de cada um destes. No caso em apreço, a imputação de factos genérica e indistinta que consta do requerimento de abertura de instrução não permite, sequer, perceber com clareza se estamos perante crimes de ofensa à integridade física, coação e sequestro imputados a todos os arguidos como coautores, ou não (isto é, se em relação a alguns desses crimes são autores apenas alguns dos arguidos). Ora, se o requerimento de abertura de instrução não delimita corretamente o objeto do processo (pois essa delimitação supõe a imputação de atos concretos a cada um dos arguidos, e de crimes individualizados a cada um destes), não pode ser, por exigências dos princípios da vinculação temática, do acusatório e das garantias de defesa dos arguidos, a pronúncia a fazer tal delimitação. Estaremos perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução, nos termos do artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal (assim, o acórdão desta Relação de 23 de maio de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, t. III, pgs. 239 e segs.), ou de instrução sem objeto (assim o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 1993, in Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, t. III, pgs. 243 e segs., e Ravi Afonso Pereira in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 14º, nº 3, julho-setembro de 2004, em comentário ao acórdão da Relação de Lisboa de 14 de janeiro de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, t. III, pgs. 243 e segs.). De qualquer modo, não poderão os arguidos ser pronunciados. Essa pronúncia seria nula (assim, o acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1993, in Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, t. V, pg. 61 e segs.) ou mesmo inexistente (assim, o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 1993 e o acórdão da Relação de Lisboa de 20 de maio de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXII, t. III, pgs. 143 e segs.). Quando o assistente pretenda solicitar diligências de prova em ordem a identificar o arguido, ou a averiguar com precisão factos ainda desconhecidos mas necessários à descrição que deve constar do requerimento de abertura de instrução, deve fazê-lo no âmbito do inquérito (recorrendo, se for caso disso, à intervenção hierárquica, nos termos do artigo 278º do Código de Processo Penal), não sendo a própria instrução a sede própria para tal (ver, neste sentido, os acórdãos da Relação de Lisboa de 9 de Fevereiro de 2000, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, t. I, pgs. 153 e segs; de 20 de junho de 2002, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXVII, t. IIII, pgs. 143 e segs; e de 16 de novembro de 2004, ano XXIX, pgs. 132 e segs.). No caso em apreço, também cabia ao assistente identificar os arguidos eventuais autores dos atos descritos no requerimento de abertura de instrução no âmbito do inquérito ou em diligências extra-judiciais (que não se afiguram impossíveis), e não pretender que tal resultasse da própria instrução.”
Nos termos do disposto no número 3 do supra referido artigo 287º, número 2, do Código de Processo Penal: “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”.
Face a tudo o que ficou exposto, dúvidas não restam de que a presente instrução é inadmissível, uma vez que não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa dos arguidos (que nem sequer identifica cabalmente), estando em clara violação do disposto no artigo 283º, número 3, alínea b), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 287º, número 2, do mesmo diploma, sendo o seu objecto impossível e consequentemente inexistente.
Pelo exposto, outra solução não existe que, ao abrigo do disposto no artigo 287º, número 3, do Código de Processo Penal, rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por, atento o conteúdo do mesmo (e dele se extrair a violação do comando dos artigos 287º, número 2, e 283º, número 3, al. b) do mesmo diploma), se verificar uma inadmissibilidade legal da instrução.
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Inconformado com o assim decidido, os assistentes interpuseram o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1 - Na sequência da denúncia criminal, que originou estes autos, o despacho de arquivamento proferido pelo MP apenas se pronunciou sobre o crime de burla tentada participado, limitando-se, no essencial, a negar a existência do crime de burla;
2 - Sem mesmo se pronunciar sobre os artifícios que na opinião da participante constituem in casu o tipo legal (enunciados nos art.ºs 23, 24, 25 e 26 da participação – e agora também no requerimento de instrução com os mesmos números, mas em parte alterados e desenvolvidos.
3 - Não se tendo pronunciado sobre todos os ilícitos penais objecto da participação, que foram: - Burla na forma tentada (artº 217 -1-2 do CP) Perturbação da vida privada (art.º 190º - 2 do CP) Não cumprimento de obrigações relativas a proteção de dados (art.º 43.º c) d) da Lei 67/98 Acesso indevido a dados pessoais (art.º 44. 2º - c) da Lei 67/98)
4 - O requerimento de instrução dos ora recorrentes fundou-se na sua discordância, enquanto assistentes e ofendidos, com o despacho do MP de não acusação.
5 - No seu requerimento de instrução os ora recorrentes deram cabal cumprimento às formalidades e requisitos impostos pela lei, previstos no art.º 287º-3 do CPP, com as remissões dele constantes para o art.º 288º-3-b) e c) do CPP;
6 - Apesar do cumprimento de tais formalidades e requisitos, o requerimento de abertura de instrução dois ora recorrentes foi recusado.
7 - A única falha concretamente identificada que o despacho de que se recorre imputa ao requerimento de instrução é a de ter omitido a identificação dos arguidos;
8 - Tal imputação não é conforme com a verdade.
9 - Pois que o requerimento de instrução apresenta elementos que permitem identificar com precisão os autores dos factos participados, recorrendo-se a fontes de dados a que os tribunais têm fácil acesso.
10 - Acrescendo que as “indicações tendentes à identificação dos arguidos” a que se refere o art.º 283-3-a) do CPP nem sequer é um elemento obrigatório, nos termos da lei, do requerimento de instrução, como resulta à contrário do disposto no art.º 287º- 3 do CPP, que apenas remete expressamente para o disposto no artº 283 – 3 do CPP no que se refere às alíneas b) e c) , mas não para a referida alínea a)
11 – O despacho recorrido, ao indeferir a instrução requerida, violou os artigos 286º, 287º - 2 e 3 do e 283º - 3, todos do CPP e ainda os artigos 20º e 32º - 4 da Constituição da República Portuguesa.
.Requer-se pois que seja anulado o despacho recorrido e que aos ora recorrentes, porque estão cumpridas todas as exigências legais, formais e substanciais que justificam a instrução criminal, seja reconhecido o direito a que esta seja realizada, efectuando-se as diligências instrutórias por eles requeridas, ou outras que se mostrem necessárias, tudo nos termos gerais de direito e, em concreto, dos artigos 286º, 287º - 2 e 3 do e 283º - 3, todos do CPP e ainda nos termos dos artigos 20º e 32º - 4 da Constituição da República Portuguesa.
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A Ex.ma Magistrada do M.º P.º do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1 . O presente recurso coloca em crise a decisão proferida pelo Mmº Juiz a quo que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.
2. Tal requerimento é omisso desde logo, no se refere à identificação dos suspeitos a constituir como arguidos; e é igualmente omisso quanto aos atos ilícitos concretos que imputa a cada um dos arguidos, fazendo uma imputação genérica dos mesmos, o que inviabiliza a delimitação do objeto do processo, violando princípios de vinculação temática e acusatório.
3. Por despacho proferido pelo Mmº Juiz de Instrução, foi rejeitado por inadmissibilidade legal, nos termos do artigo 287º, n.º 3, parte final, do Código de Processo Penal, não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão n.º 7/2005, do Supremo Tribunal de Justiça.
4. A instrução é uma fase preliminar e facultativa do processo penal, que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
5. O Juiz de Instrução fiscaliza a decisão processual do Ministério Público de acusar ou de arquivar o inquérito.
6. E verifica se a acusação do Ministério Público ou o requerimento do assistente reúnem os pressupostos jurídico-factuais, que permitam a apreciação de mérito em sede de julgamento.
7. O requerimento de abertura de instrução por parte do assistente deve assim consubstanciar a sua essência, uma acusação, uma vez que também ele se dirige a sujeição do arguido a julgamento por factos susceptíveis de gerar a sua responsabilidade criminal.
8. Nos termos da lei, tal requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidade especiais, mas deve conter, concretamente: a sinopse das razões de facto e de direito, da discordância relativamente ao arquivamento do Ministério Público; a indicação dos actos de instrução que se pretende que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados em sede de inquérito, e dos factos que se pretende provar; a narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis.
9. Pretendendo-se a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa a julgamento, o requerimento de abertura de instrução tem que se conformar como uma verdadeira acusação.
10. É o requerimento que fixa o objecto do processo, delimitando o âmbito da ulterior actividade investigatória a desenvolver pelo Juiz de Instrução.
11. Deve assim conter a descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com a indicação precisa e completa dos factos que o requerente entende estarem indiciados, integradores dos elementos objectivos e subjectivos do crime, que justificariam a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança, devendo conter igualmente as normas legais aplicáveis.
12. Tendo a instrução sido requerida pelo assistente e não se contiver os requisitos específicos de uma acusação, tal requerimento é nulo. O requerimento apresentado pelo assistente deve sempre descrever, de modo autónomo, os factos imputados ao arguido, indicando ainda os tipos legais de crime que os mesmos integram (vide Ac. RP, de 21.06.2006, in www.dgsi.pt e Ac. RP de 23.05.2001, C.J., 2001, III, p.p. 238 a 240).
13. Quando o requerimento do assistente para abertura de instrução não narra factos que integrem um crime, não pode haver legalmente pronúncia.
14. Bem andou a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento de abertura de instrução, com base no disposto no art.º 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
15. Declinou, a decisão recorrida a possibilidade de convidar o assistente, aqui recorrente, a renovar o requerimento de abertura de instrução apresentado, nos termos do Ac. Uniformizador de Jurisprudência do S.T.J n.º 7/2005 ( DR I-A de 4/11/2005 ) que fixou a seguinte jurisprudência nesta matéria.
16. « Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido ».
17. Não preenchendo o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, os requisitos legais impostos pela alínea b) do n.º artigo 283º, aplicável por remissão do artigo 287º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Penal, impõe-se a rejeição por inadmissibilidade legal, conforme preceitua o artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
18. Não podendo o presente recurso proceder.
Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso do assistente, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal, fazendo assim V. Exªs, como sempre Justiça!
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Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta não emitiu parecer.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que a questão a desembargar no presente recurso é a de saber se, na sequência do despacho de arquivamento do inquérito ordenado pelo M.º P.º, o Senhor Juiz de Instrução Criminal decidiu bem ao indeferir o requerimento de abertura de instrução (RAI) formulado pelo assistente por o mesmo não conter a identificação do(s) arguido(s).
Sobre este assunto já anteriormente nos pronunciamos através de acórdão desta Relação de Évora de 12-6-2012, proferido no processo 60/09.9PBPTG.E1, com os mesmos relator e Exm.ª Desembargadora Adjunta, acessível em www.dgsi.pt – o qual, aliás, é citado no despacho recorrido – e que passamos a seguir, por continuar a ser esse o nosso entendimento nessa matéria.
Assim:
Dispõe o n.º 1 do art.º 262.º que «o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação».
O inquérito pode terminar ou com a acusação ou com o arquivamento, podendo este ocorrer ou porque se não verificou o crime ou porque se não verificou que o arguido o tenha praticado a qualquer título ou porque é legalmente inadmissível o procedimento ou, ainda, porque não foi possível ao M° P° obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes.
No caso dos autos e como acima já se disse, o M.º P.º arquivou o inquérito sem a prática de qualquer diligência por ter considerado não existirem indícios da prática de qualquer crime.
Por sua vez, o n.º 1 do art.º 286.º preceitua que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
Acresce que, nos termos do art.º 287.°, n.º 1 al. b), a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito só pode ser promovida através de requerimento do assistente para abertura da fase da instrução.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, em "Curso de Processo Penal", III vol., Verbo, 2.ª ed., pág. 148: «Neste, o assistente deve indicar as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à não acusação pelo M.º P.º; formalmente o assistente não acusa, indica como entende que deveria ter procedido o M° P°: que não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria ter feito. É esta acusação que o assistente entende que o Ministério Público deveria ter deduzido que vai delimitar substancialmente os poderes do juiz (art.º 309.º, n.º 1)».
A decisão de abstenção do Ministério Público de deduzir acusação, findo o inquérito dirigido contra pessoa(s) certa(s), é, assim, um pressuposto do requerimento do assistente para a abertura da instrução. Caso contrário, e como é óbvio, ficaria frustrada a razão de ser desta fase processual, ou seja, a de comprovar judicialmente a decisão do M° P° de não acusar arguido(s) previamente determinado(s) por factos que, no decurso do inquérito, foram objecto de investigação.
Não sendo possível um requerimento de abertura de instrução contra desconhecidos ou incertos, pela mesma razão que não tem sentido, nem é possível, uma acusação contra desconhecidos ou incertos, no caso do assistente entender que com os dados que dispõe não consegue identificar a pessoa de quem continua a suspeitar ser o responsável pelo crime, a sua única alternativa à conformação com o arquivamento do processo é o requerimento de mais diligências de investigação a que se refere o art.º 278.º e a arguição da nulidade do inquérito por insuficiência do mesmo, regulada nos art.º 120.º, n.º 2 al.ª d) e 3 al.ª c) - 2.ª parte, dirigido ao superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que proferiu despacho de arquivamento do inquérito ou um requerimento de reabertura do inquérito; o que não pode pretender é vir a obter essa identificação na fase da instrução, a qual terá de ser dirigida contra pessoas certas, por exigência da estrutura acusatória do processo penal e como garantia do contraditório, constitucionalmente imposto em relação à fase da instrução (art.º 32.º n.º 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa).
Ora não é de todo razoável que os assistentes continuem a insistir no presente recurso que o(s) arguido(s) estão identificados quando são referidos no RAI como O(s) dirigente(s) executivo(s) ou representante(s) e agente(s) da firma a seguir identificada: C – (…) e O(s) titular(es) e utilizador(es) do telefone número (…) – suposto(s) dirigente(s) ou representante(s) e agente(s) da firma – D – cujo endereço segundo a NET é – (…).
Neste sentido, que nos parece pacífico na jurisprudência: acórdão da Relação do Porto de 23-1-02, Colectânea de Jurisprudência, 2002, I-229; e acórdãos da Relação de Lisboa de 25-6-02 e de 16-11-04, Colectânea de Jurisprudência, respectivamente 2002, III-143 e 2004, V-132.
Assim, quando os assistentes no seu RAI constataram que não lhes era possível deduzir uma verdadeira acusação contra pessoa certa e determinada – e até, afinal, contra quantas pessoas o poderiam fazer –, isso deveria ter funcionado para os assistentes como um alerta e anúncio do inevitável naufrágio do seu RAI, o aviso da impossibilidade processual de ser esse o meio adequado ao eficaz tratamento jurídico das suas pretensões e de que o caminho correcto a seguir seria o da reclamação hierárquica nos termos do art.º 278.º.
Que a insuficiência da investigação realizada pelo M.º P.º no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação e que a errada valoração dos indícios colhidos na investigação é sindicada judicialmente por via da abertura de instrução – é um aforismo que não pode ser tomado tout court, mas tem que ser habilmente interpretado: quando o art.º 278.º estabelece que o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público pode, por sua iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente, determinar que seja formulada acusaçãoou que as investigações prossigam, indicando, neste caso, as diligências a efectuar e o prazo para o seu cumprimento, este determinar que seja formulada a acusação só pode ser entendido como o resultado cumulativo ou alternado de uma diferente integração jurídica dos factos ou de uma diferente valoração dos indícios colhidos na investigação (caso em que superior hierárquico do magistrado do Ministério Público dirá ao seu subordinado qualquer coisa como isto: V.ª Ex.ª não deduziu acusação por entender que os factos X e Y não são crime, mas por esta e mais aquela razão são crime efectivamente, portanto deduza acusação; ou V.ª Ex.ª não deduziu acusação por não ter dado relevo aos factos X e Y ou ter entendido que não há indícios suficientes de que eles aconteceram, mas por esta e mais aquela razão tais factos ocorreram efectivamente, pelo que deduza acusação). Logo, se o único problema detectado ao inquérito for apenas a insuficiência da investigação realizada pelo M.º P.º, esse problema deve ser sindicado apenas hierarquicamente por via de reclamação; se o único problema detectado ao inquérito for apenas a errada valoração dos indícios colhidos na investigação, esse problema deve ser sindicado apenas judicialmente por via da abertura de instrução; se ao inquérito forem detectados em simultâneo os dois problemas, insuficiência da investigação e errada valoração dos indícios (como foi o caso dos autos), então deve decididamente escolher-se apenas a reclamação hierárquica – caso contrário, poderá não se poder retirar da instrução todos os dividendos resultantes da prova que nela se produza por a mesma conduzir à nulidade da decisão instrutória tipificada no art.º 309.º (e que na reclamação hierárquica conduziria à formulação da acusação).
Pelo que não merecia o Senhor Juiz de Instrução Criminal as censuras que lhe são imputadas no recurso.
IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
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Évora, 13-05-2014
(elaborado e revisto pelo relator,
que escreve com a ortografia antiga)
João Martinho de Sousa Cardoso
Ana Brito
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[1] Vide, para melhor referência, Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pag. 751, anotação 7.