OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
ARRENDAMENTO RURAL
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
Sumário


I. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista, o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.
II. A nulidade consistente em omissão de pronúncia, ocorre apenas quando o tribunal deixa de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, ou das quais deve conhecer oficiosamente, mas não quando deixa de rebater, um a um, os argumentos invocados pelas partes, ou quando utiliza uma argumentação improcedente, pois, nesta derradeira hipótese o que há é erro de julgamento.
III. Para que os arrendatários rurais possam beneficiar da faculdade de uso, fruição e disposição da cortiça produzida por sobreiros existentes nos prédios locados, tal deverá ser expressamente convencionado no respectivo contrato escrito de arrendamento rural, por força do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 2º do Regime do Arrendamento Rural, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10.
IV. Tendo a testadora onerado o imóvel deixado à requerente com a criação de um direito de arrendamento rural a favor dos requeridos, fixando a respectiva renda, referindo que a mesma é inalterável sem o acordo dos arrendatários, e nada mais tendo referido no que diz respeito à regulação de tal relação contratual, e não se tendo apurado que tal matéria conste de qualquer outro escrito que se pudesse considerar integrante da dita relação, está excluída do arrendamento a cortiça produzida no prédio locado.

Sumário do relator

Texto Integral


Acórdão na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. SANTA CASA ..., contribuinte fiscal n.º …, com sede …, representada pelo respectivo Provedor A…, instaurou procedimento cautelar comum, contra, J..., portador do Cartão do Cidadão n.º …, residente …, e mulher M..., portadora do Cartão do Cidadão n.º …, residente …, pedindo que se reconheça, provisoriamente, que a Requerente é proprietária de dois prédios rústicos denominados Cabril, e da cortiça produzida pelas respectivas árvores neles sitas, e que, nessa qualidade, tem o direito de fazer entrar neles os membros da sua Mesa e as pessoas com quem queira negociar a cortiça, bem como se ordene a notificação dos Requeridos para que se abstenham de praticar quaisquer actos que impeçam a livre circulação nesses termos, e para que mantenham sem cadeado o portão de acesso a tais prédios ou, em alternativa, facultem à Requerente uma chave do mesmo.
Requereu ainda, que, para dissuadir o incumprimento dos Requeridos, se imponha uma sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por cada dia em que os Requeridos impeçam a entrada nos prédios para extracção da cortiça.
Fundamenta a sua pretensão, em síntese, no facto de ser proprietária de tais prédios rústicos, em virtude de ter sido beneficiária de um legado nesse sentido no testamento da anterior proprietária, testamento esse que simultaneamente instituiu os Requeridos como arrendatários rurais de tais prédios, nada tendo sido referido em tal testamento sobre a propriedade da cortiça, pelo que a mesma pertence à proprietária, ora Requerente, face ao teor do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25/10, detendo, pois, o direito de entrar nos terrenos e levar consigo aos mesmos pessoas com quem queira negociar a cortiça.
Acrescenta que, sendo o presente ano de 2013 ano de extracção da cortiça (o que apenas sucede de 9 em 9 anos), e tendo a Requerente publicado os correspondentes anúncios manifestando a intenção de extracção e venda da cortiça, inesperadamente estão os Requeridos a criar obstáculos e a impedir a entrada nos prédios do pessoal da Santa Casa e das pessoas com quem esta pretende negociar a cortiça a ser extraída, tendo o Requerido declarado que não autorizava que ninguém entrasse nos prédios para ver a cortiça, sendo certo que os prédios estão vedados em todo o seu perímetro e a entrada está fechada por portão com cadeado, cuja chave a Requerente não possui, pelo que, perante esta situação, os candidatos à compra têm medo de entrar nos prédios para ver a cortiça e a extrair, e a Requerente tem receio de os incentivar a entrar por medo de conflitos físicos, donde a necessidade de recurso a juízo.
Alega ainda que a extracção da cortiça no presente ano é urgente porque a época de extracção da cortiça começa em Maio e vai acabar em breve no mês de Julho, e a extracção nos anos posteriores redunda em prejuízo grave para a Requerente por a cortiça passar a ter calibre que a desaconselha para a indústria, perdendo valor, sendo tal prejuízo dificilmente reparável por não se conhecerem bens aos Requeridos.

2. Devidamente citados, os Requeridos deduziram oposição ao peticionado, defendendo, em síntese, que a cortiça dos sobreiros existentes nos prédios em causa nos autos lhes pertence, tendo sido essa a vontade da anterior proprietária e testadora ao lhes atribuir o direito ao arrendamento e exploração dos prédios, sem excluir do seu objecto qualquer matéria existente nos imóveis como é o caso da cortiça, sendo que já aquando da anterior extracção de cortiça ocorrida nos sobreiros existentes nos prédios em causa nos autos, ocorrida no ano de 2004, os Requeridos manifestaram-se perante a Santa Casa contra a ocorrência de tal extracção e quanto ao destino da cortiça e do produto da sua venda, reclamando para si, logo nessa altura, o produto da venda dessa mesma cortiça, por ser essa a vontade da testadora.
Invocam ainda que, considerando o direito de que se arrogam à cortiça, não podem aceitar as invasões aos prédios arrendados sem qualquer pré-aviso da Requerente ou de quem se apresenta em nome desta, não vigorando o regime de livre entrada nos prédios em causa nos autos. Insurgem-se, ainda, os Requeridos contra a suposta rigidez do período de extracção, visto que a extracção pode ocorrer nos 9 anos, nos 10 anos, ou ainda em anos posteriores em algumas regiões, recusando que a não extracção durante este ano cause prejuízo sério e de difícil reparação à Requerente, concluindo que não se encontram verificados os pressupostos para o decretamento da providência requerida, além de que, mesmo a proceder a pretensão da Requerente, toda a actividade de extracção da cortiça e posterior pagamento deverá ser orientada pelos Requeridos, e o produto da venda da cortiça extraída deverá ser depositada à ordem dos autos até à decisão transitada em julgado no âmbito da acção principal quanto à propriedade da cortiça.

3. Na sua oposição, os Requeridos requereram ainda a condenação da Requerente (e do seu representante legal, o respectivo Provedor) como litigante de má fé, em multa e em indemnização não inferior a € 9.000,00 a favor dos Requeridos, a incluir honorários de advogado, pelo facto de a Requerente deduzir pedido que manifestamente sabia ser destituído de fundamento e alterar a verdade dos factos, bem como instaurar os presentes autos após nove anos de inactividade e após ter recusado as diligências dos Requeridos no sentido de esclarecer as condições do arrendado.
Em resposta, a Requerente pugnou pela sua absolvição, bem como do respectivo Provedor, do pedido de condenação como litigante de má fé.

4. Produzida a prova veio a ser proferida sentença (ref. 337578) que julgando o procedimento integralmente procedente decidiu:
I) Reconhecer provisoriamente a Requerente SANTA CASA … como proprietária dos seguintes prédios rústicos: a) Rústico, denominado Cabril, sito na freguesia …, concelho de …, com a área de 7,6750 ha, inscrito na matriz sob o artigo …, Secção H, descrito na CRP de … sob o n.º …/19901205, da freguesia da …; b) Rústico, denominado Cabril, sito na freguesia da …, concelho de …, com a área de 45,2250 ha, inscrito na matriz sob o artigo …, Secção H, descrito na CRP de … sob o n.º …/19940518, da freguesia da …;
II) Reconhecer provisoriamente a Requerente SANTA CASA … como proprietária da cortiça produzida pelas árvores sitas nos prédios referidos em I), e que, nessa qualidade, tem o direito de fazer entrar em tais prédios os membros da sua Mesa Administrativa e as pessoas com quem queira negociar a cortiça a ser extraída;
III) Determinar que os Requeridos J... e M..., se abstenham de praticar quaisquer actos que impeçam a livre circulação nos termos referidos em II), e, ainda, que os mesmos mantenham sem cadeado o portão de acesso a tais prédios ou, em alternativa, facultem à Requerente uma chave do cadeado de tal portão;
IV) Determinar a aplicação aos Requeridos J... e M..., de uma sanção pecuniária compulsória de € 50,00 por cada dia em que os mesmos impeçam a entrada da Requerente, ou de alguém a seu mando, nos prédios referidos em I) para extracção da cortiça;
V) Absolver a Requerente SANTA CASA … e o respectivo Provedor, do pedido de condenação como litigante de má fé.

5. Inconformados com a decisão interpuseram os Requeridos recurso para esta Relação, a qual motivaram, com consta de fls. 163 a 273.
Após convite do relator para sintetizarem as conclusões do recurso (cf. despacho de fls. 357/358), apresentaram os recorrentes a peça que consta de fls. 367 a 469, reduzindo as conclusões anteriormente apresentadas às seguintes [segue transcrição]:

I – Do Alegado Pelas Partes
A. Salvo o devido respeito e que é muito, entendem os recorrentes que a douta sentença enferma, e de forma ostensiva, de vários vícios, desde logo, de
a) erro notório na apreciação da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal, por confissão, documental e de documento autêntico, considerando o depoimento de parte, sendo que a sua análise global nos conduz a decisão bem diversa, ou melhor, oposta, da produzida;
b) de vício manifesto na apreciação de diversos e concretos pontos de facto e assim incorrectamente julgados;
c) de violação de várias normas jurídicas, seja quanto às regras do ónus da prova e erro claro quanto ao sentido de que normas que constituíram fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
B. Estamos perante erro notório quanto ao valor probatório do documento autêntico junto aos autos – leia-se testamento - cujo teor se terá de concluir foi reforçado pela prova testemunhal produzida e assim perante uma violação dos princípios interpretativos da vontade da declarante e dessa forma estamos perante erro de interpretação e assim aplicação do nº 1 e do nº2 do artigo 2187º do Código Civil.
C. Acresce ainda estarmos perante uma clara violação do sentido interpretativo das normas relativas à locação e nomeadamente quanto às obrigações do locatário previstas no artigo 1037º do CCivil nomeadamente a constante da alínea b) do mesmo artigo.
D. Acresce ainda que no seio da decisão apresenta ela mesmo contradição considerando a matéria dada como provada e as consequências jurídicas daí extraídas.
Vejamos então
E. Nos presentes autos pretendeu a ora recorrida, através de procedimento cautelar, que lhe fosse reconhecida a qualidade de proprietária de dois prédios rústicos, decorrente de testamento outorgado em 1999, e a propriedade, ainda que provisoriamente, da cortiça neles produzida, e que por se encontrarem arrendados deviam os arrendatários abster-se de quaisquer actos impeditivos do exercício desses direitos.
F. Alega ainda da capacidade produtiva de cortiça dos prédio e do seu preço e ainda, e aqui o pretenso fundamento da providência, da necessidade da extracção decorrer no ano de 2013 e nos meses de Junho a Agosto (artigos 13º do RI), alegando ainda dos obstáculos dos arrendatários àquela mesma extracção (artigo 19º do RI), bem como,
G. com o justo receio de uma vez verificado o seu direito (propriedade das cortiças) ser o mesmo dificilmente reparável por estes não terem bens conhecidos (artigo 36º do RI) e as verbas advindas da venda da cortiça fazer muita falta à requerente (artigo 35º do RI), mais alegando, para fundamentar a extracção neste ano de 2013, o risco de incêndio.
Ao invés,
H. Os recorrentes, na oposição, impugnam a propriedade da cortiça, alegando, isso sim, que a mesma lhes pertence, na qualidade de arrendatários, atendendo à relação de arrendamento, imposta enquanto encargo, via testamentária, tal como alegam nos artigos 7º e 8º e 24º e 25º da oposição.
E tal como se concluiu supra, estamos perante o ponto nuclear do presente recurso:
I. Os recorrentes chamam à colação o testamento alegando que a focagem em causa deve ter como objecto a interpretação da vontade da testadora expressa no seu testamento.
J. Na verdade, entendem os recorrentes que as condições da relação de arrendamento se devem encontrar na vontade da testadora ainda que esta se encontre expressa de forma incompleta na medida em que o arrendamento surge como verdadeira “imposição de um encargo a uma liberalidade, que é, tal como a condição, uma cláusula acessória típica, integra na chamada cláusula modal, pois modera, isto é, limita, a liberalidade pura.” (Ac. Trib Relação de Coimbra de 05-02-2013 in site dgsi).
K. E, não concedendo, mais alegam que o direito da proprietária em entrar no arrendado obedece a normas e regras e não de acordo com o seu belo prazer[artigo 27 e 38 e 39º e 42º da oposição], bem como quanto ao carácter de urgência da medida pretendida em sede judicial alegam ainda os requeridos, que a extracção, pode ocorrer no ano de 2014 não tendo de ocorrer este ano de 2013 (artigos 47, 53, 55 e 56 da oposição)

II – Da Douta Sentença
Do Erro da Questão a Decidir
Só que, em sede de douta sentença, afigura-se que existiu um pré-juízo na apreciação de toda a matéria, e de toda a prova produzida, que contagia, e contagiou, toda a necessária apreciação e direccionou, erradamente e aprioristicamente, a decisão.
L. Se em sede de sentença, e, permita-se afirmar, bem, haveria que averiguar da probabilidade séria da existência do direito e do fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, já a sentença lavra em erro, e estrutural, quando afirma que se terá de averiguar “ . . . se o contrato de arrendamento de que os requeridos beneficiam sobre o prédio em causa nos autos abrange ou não a cortiça produzida pelos sobreiros nele sitos [seguindo a sentença e que se coloca em crise].
E estamos perante o primeiro erro e erro de base da douta sentença.
NA VERDADE,
M. em causa, isso sim, a interpretação da vontade da testadora e assim a amplitude da reserva ou do encargo – o arrendamento - que recai sobre o direito de propriedade da requerente, em que, via testamentária, a mesma foi instituída para daí concluir da propriedade da cortiça.
N. Ao centrar o ponto de aferição no conteúdo do contrato de arrendamento que não foi, nem poderia ter sido, celebrado entre as partes, pelo menos ao arrepio da vontade da testadora, como se alegou, levou a que ficasse inquinada toda a apreciação da matéria de facto e assim a conclusão, dos factos, ainda que indiciariamente, se deram como provados.

E, partindo daquele [errado] ponto a aferir, foram dados como provados vários factos que merecem resposta diversa da que foi dada pelo que estamos perante a violação de vários normativos.

Do primeiro vício da douta sentença:
Na verdade,
O. a douta sentença:
a) não submete à sua apreciação, e assim não procede à sua interpretação e integração, o documento autêntico em causa - o testamento (documento junto aos autos a fls 18 a 21 e junto com o requerimento inicial);
b) não submete o mesmo a um exercício de interpretação por forma a obter o contributo para apurar da vontade da testadora não dando relevância a pormenores da vontade manifestada (destino de bens móveis; o encargo da missa durante certo tempo; o encargo da manutenção do jazigo; a qualidade de arrendatários; a alteração da renda só possível de acordo com a vontade dos arrendatários) e assim não reconstrói a vontade da testadora, optando, erradamente, por procurar aferir se o contrato de arrendamento rural (como se o mesmo tivesse sido celebrado pelas partes ?!) engloba ou não os sobreiros e assim a cortiça.
P. E assim não podemos deixar de concluir que estamos perante uma questão que ao tribunal cumpria apreciar e decidir, o que não ocorreu, refugiando-se, isso sim, numa aplicação supletiva do regime de arrendamento rural ao tempo do falecimento e da outorga do testamento. Tal matéria não foi objecto de apreciação: em causa está a violação o nº 1 do artigo 659º, sendo assim conduzidos ao normativo da alínea d) do artigo 668º e assim à nulidade da sentença e necessariamente, a uma reapreciação da prova. Para além do mais, estamos perante a violação da parte final do nº 3 do artigo 659º do CPC pois a sentença não procedeu ao exame crítico da prova documental – o testamento – e que lhe cumpria conhecer.
Q. Ainda que assim não se entenda, a douta decisão padece do vício manifesto na apreciação da prova produzida e assim considerando a prova documental, testamento e comunicações dos requeridos, e testemunhal considerando desde logo o depoimento do antigo provedor da requerente e que exercia funções ao tempo do falecimento da testadora, estando perante um erro claro quanto ao sentido da norma do artigo 2187º do CCivil, e assim da interpretação do testamento, quando sem proceder à interpretação do próprio texto do documento autêntico, desvaloriza, sem fundamento, os depoimentos das testemunhas, e, num salto lógico dedutivo infundado, chama à colação o regime legal para integrar a vontade da testadora.

III – Do Facto Incorrectamente Julgado: da condição de arrendatários dos recorrentes
R. Assim, como objecto ainda de critica, por incorrectamente julgada, surge a matéria alegada nos artigos 6º e 7º e 8º do requerimento inicial, objecto de diligências probatórias e objecto de resposta em sede de sentença nos números 6, 7 e 8 da fundamentação de facto (constantes nas alegações supra). Quanto à qualidade de arrendatários dos recorrentes, vertida no ponto 6 do RI, é esta facto, erradamente, dado como provado: acontece que nenhuma das testemunhas apresentadas pela própria requerente conhecia os requeridos e as condições em que os mesmos aí se encontravam em momento anterior ao falecimento, e nunca nada lhe foi transmitido pela testadora, bem como as testemunhas apresentadas pelos requeridos (JB, MB e JC) referem apenas que os requeridos eram trabalhadores ou colaboradores da testadora.
Do segundo vício da douta sentença:
S. Apesar de os depoimentos das testemunhas da recorrida, considerados credíveis, nunca terem referido a qualidade de arrendatários dos recorrentes, erradamente, a sentença decide da sua qualidade de arrendatários (ponto 6 da fundamentação de facto), tendo de se concluir estarmos perante um facto incorrectamente julgado.
Ao qualificar os arrendatários como arrendatários em momento anterior ao falecimento ou ao testamento, estamos perante um facto incorrectamente julgado já que nenhuma prova foi produzida que permitisse tal conclusão fáctica.
Estamos perante uma clara violação dos normativos referentes ao ónus da prova e à apreciação da prova produzida: ou seja, estamos perante uma clara violação dos artigos 342º e 346º do CCivil e assim do regime do ónus da prova. De facto, ainda que os recorrentes não tivessem logrado provar da vontade da testadora, sempre a douta sentença se deveria ter socorrido do plasmado no artigo 346º do CCivil no sentido de que em sede de contraprova os requeridos lograram colocar em dúvida os factos, e, nessa perspectiva, a questão deveria ter sido decidida contra a parte onerada com a prova, isto é, a requerente – e assim ter sido proferida decisão no sentido de indeferimento da providência requerida por a requerente não ter provado o que lhe competia, ou seja, a prova de que a propriedade das cortiças decorre da vontade da testadora.

Do terceiro vício da douta sentença:
T. Mas, apesar de considerar provada tal qualidade, ao longo de toda a sentença são enquadrados apenas como trabalhadores da testadora, reconduzindo-nos a douta sentença a novo vício quando, considerando-os arrendatários, não deduz daí quaisquer conclusões de direito.
É que, se a relação de arrendamento existia em momento anterior ao falecimento, ou à outorga do testamento, a renovação do contrato de arrendamento – matéria que a douta sentença chama à colação - não ocorreria em 2014 mas em outra data anterior.
U. Estamos perante uma contradição entre a matéria dada como provada e a fundamentação de direito, podendo assim sermos conduzidos à nulidade da sentença, em conformidade com a alínea c) do nº 1 do artigo 668º do CPC.

Do quarto erro da douta sentença:
V. Quanto aos pontos 7 e 8 do RI (artigos 7º e 8º da fundamentação de facto da douta sentença), acerca da qualidade de arrendatários dos requeridos e da extensão do seu direito de arrendatários, sendo o ponto nuclear em que a sentença lavra em erro, como se alega supra como primeiro erro da sentença, deveria esta indagar da vontade da testadora e não deveria refugiar-se no texto da lei. De facto, o testamento não tem, nem tinha de ter, e é normal que não tenha, qualquer referência à duração do arrendamento ou à questão de se aferir se este englobava os sobreiros: a resposta, mais um vez, está na construção da vontade da testadora.
W. E a vontade da testadora não pode deixar de ir no sentido de que era a de beneficiar os ora requeridos no sentido da existência de uma estabilidade quanto ao valor da renda que não pode deixar de significar uma estabilidade na relação de arrendamento imposta, enquanto encargo, à beneficiária Santa Casa, facto este que assim deveria ser tido como provado considerando a prova testemunhal produzida (JB, MB, JC (testemunha do testamento).
X. Nesta matéria será ainda de considerar o depoimento de JT (provedor da santa Casa ao tempo do falecimento): O testamento é que lhe dava todos os direitos!” “Mas depois, assim como a Misericórdia de Marvão tem quase 500 anos de existência, e para já é um mau negócio…. mas em princípio a Santa Casa durará mais 400 ou 500 ou mais anos e portanto o que poderia ser agora mau, no futuro…porque o J. também não dura sempre. Deus queira que ande cá mais 30 ou 40 ou 50 anos, mas não dura sempre!”
Y. E, perante toda a prova assim produzida, não poderia, nem deveria, a douta sentença desvalorizar toda esta prova testemunhal, embora se admita que o erro/vício ora apontado decorre afinal do primeiro vício: da não interpretação da vontade da testadora.
Teremos de concluir estarmos perante novo vício de um outro concreto ponto de facto incorrectamente julgado na medida em que a prova produzida nos conduz a decisão diversa da proferida, encontrando-nos perante o caso da alínea b) do nº 1 do artigo 685º B do CPC.

E concomitante a este temos ainda um
Quinto vício da douta sentença:
Z. Para além do mais, as regras do ónus da prova preconizam que impendia sobre a recorrida o ónus de provar que da interpretação do testamento resultava que a cortiça lhe pertenceria. E a ora requerente nada provou e nenhum contributo apresentou nos autos que permitisse concluir que o sentido da vontade da testadora era de limitar o arrendamento quanto à duração e quanto ao seu objecto, excluindo os sobreiros. Assim, se se deveria ter indagado da vontade da testadora, recaia sobre a recorrida o ónus de provar que a vontade daquela ia no sentido de não incluir os sobreiros, o que não se verificou.
Estamos pois perante uma clara violação dos normativos relativos ao ónus da prova e assim perante uma clara violação dos artigos 342/a e 346 do Código Civil.
Perante a prova produzida apenas se poderia concluir que a vontade da testadora era a de que o arrendamento tinha por objecto todo o monte sem excepção.

Do sexto vício da douta sentença:
AA. Tendo ainda por fio condutor a indagação da vontade da testadora, deveria a douta sentença ter considerado os pontos 12 e 29 do RI e 32 e 30 da oposição (julgado nos termos do nº 10 e 11 da fundamentação de facto), e assim o facto provado que as habitações integravam o arrendado. E uma vez dado como provado tal facto ser ele mesmo constituído um contributo para a integração e preenchimento da vontade da testadora. E se aqui se terá de considerar que tal matéria apenas pode ser dada como provada recorrendo ao depoimento das testemunhas dos requeridos identificadas como JB, MB e JC, e já supra transcritas, não se pode aceitar que os seus depoimentos sejam completamente desvalorizados – até descredibilizados - quanto em causa a inclusão dos sobreiros.
Ora, terá de se afirmar que a douta sentença sofre de vício na medida em que o concreto ponto de facto ora em causa e como ele mesmo foi julgado impunham decisão diversa da proferida

De um sétimo erro da douta sentença:
BB. Considerando ainda o ponto 11 (da fundamentação de facto), como ligado ao anterior, não poderia a douta sentença deixar de chamar à colação, também, a missiva enviada pelos requeridos à identificada MH, ao 18 de Outubro de 2004 {cerca de sete meses após o falecimento da testadora} em que os mesmos realçavam a necessidade do bom cumprimento do testamento [documento nº 3 junto com a oposição], bem como, não poderia deixar de ser considerado o documento 4 junto com a oposição em que os requeridos dão a conhecer à Santa Casa, ora requerente, que “. . . o testamento não pode deixar de ser cumprido. . . . “ (sic documento 3 junto com a oposição).

CC. Parece que de novo a sentença se centra no contrato de arrendamento pressupostamente celebrado e não tanto na vontade, in casu, expressa claramente pela testadora. Reiterando o erro já invocado, a douta sentença, de novo, decide de forma diversa àquela que a prova produzida impunha.

De um oitavo vício da douta sentença:
DD. E, considerando o facto dado como provado constante do número 12, 14 e 15 da fundamentação de facto, e extraído dos pontos 66º, 69º, 75º e 76 da oposição e 40º do RI (da recusa de a requerente receber renda após a morte da testadora e receber a notificação judicial avulsa) terá também aqui de se aferir de um outro contributo para a construção da vontade da testadora: a recusa do recebimento da renda traduzia a interpretação que a ora requerente fez da vontade da testadora, e assim do encargo, ou seja, da imposição de uma limitação ao direito de propriedade em que, via testamento, havia sido investida. Nesta matéria é elucidativo o depoimento do Provedor da Santa Casa ao tempo do falecimento, o identificado JT.
EE. Numa palavra: o arrendamento, na interpretação dada pela Santa Casa, era vitalício - duraria perante a vida dos arrendatários, sem limites quanto à extensão e conteúdo desse arrendamento imposto pela testadora.
Parece que de novo a sentença se centra no contrato de arrendamento pressupostamente celebrado e não tanto na vontade, in casu, expressa claramente pela testadora. Reiterando o erro já invocado, a douta sentença, de novo, decide de forma diversa àquela que a prova produzida impunha.

De um nono vício da douta sentença: da norma jurídica violada: do primeiro requisito dos procedimentos cautelares:
FF. Da matéria ora analisada, teremos de concluir que nenhuma prova foi produzida no sentido de se poder afirmar, ainda que apenas indiciariamente, da propriedade da cortiça a favor da requerente.
Da prova produzida teria de se concluir da não verificação do primeiro requisito para a procedência da providência, resultando daí, necessariamente, a improcedência da mesma.
E desta forma, estamos claramente perante a violação dos normativos reguladores dos requisitos para a procedência das providências e assim devem ter-se por violadas as normas dos nº 1 e 2 do artigo 381º do CPC.

De um décimo vício da douta sentença: da norma jurídica violada: do segundo requisito dos procedimentos cautelares:
GG. Em referência ao segundo requisito tenhamos em consideração a matéria dos artigos 13º, 14, 37º, e 48º do RI e 55º e 80º da oposição (pontos 20 a 24 da fundamentação de facto): da necessidade de extracção da cortiça este ano de 2013. Quanto à prova deste mesmo facto, a sentença labora em confusão e contradição necessariamente prejudicial para a boa decisão da causa, decidindo de forma e sentido diverso àquele que a prova produzida impunha.

HH. Ao invés da prova de que a extracção teria de ocorrer no ano de 2013 sob pena de prejuízo na qualidade da cortiça e assim quanto à sua rentabilidade, ficou claramente provado que a extracção poderia ocorrer no ano de 2014 sendo solução tecnicamente adequada: tal prova resulta de diversos depoimentos, do documento nove junto pela recorrida (a fls 36 dos autos) quando aceita que a extracção poderia não ocorrer no ano de 2013, ou por ocasião do referido anúncio, caso, uma vez analisadas as propostas recebidas, “. . . as mesmas não lhe convenham.”
II. Isto é, uma vez não provada a imperiosidade da extracção da cortiça a ter de ocorrer no ano de 2013, como resultava do alegado e peticionado, apenas e só se teria de concluir, por não ter resultado provado, que o requisito do periculum in mora, enquanto segundo requisito para a procedência do pedido cautelar formulado, não se encontra verificado.
E desta forma, estamos claramente perante a violação dos normativos reguladores dos requisitos para a procedência das providências e assim devem ter-se por violadas as normas do nº 1 do artigo 381º do CPC.
JJ. Nem se pode aceitar, as teses, diríamos peregrinas, e que confessadamente criticamos, que o risco de incêndio justifica e fundamenta a decisão da extracção neste ano de 2013, bem como tal decisão não pode encontrar o seu fundamento no facto de até Julho de 2014 não ser possível obter a sentença definitiva.
ASSIM,
KK. E, uma vez não provada a propriedade da cortiça a favor da requerente nem sequer indiciariamente – pela interpretação da vontade da testadora, e uma vez não provada a urgência da extracção, ou seja não verificados os requisitos que se devem ter verificados para prolação de decisão favorável não poderia a decisão ser outra que não fosse a contrária à proferida.

Ainda que considerando uma segunda ordem de vícios, pela sua importância, não podem os recorrentes deixar de os indicar:
De um décimo primeiro erro da douta sentença: novo erro na apreciação da matéria fáctica:
LL. Considerando os artigos 20, 21 e 22 do RI (artigos 27 e 28 da fundamentação de facto) provado ficou que um dos interessados (na aquisição das cortiças) afinal entrou no prédio, sem problemas, não obstante, facto dado como provado (artigo 38º e 42º da oposição e 35 da fundamentação de facto) não ter existido, por parte da requerente, qualquer pré-aviso aos requeridos quanto aos concretos dias das deslocações ao monte e quem aí se iria aí deslocar, bem como, quanto à matéria alegada no artigo 30º do RI (artigo 34 da fundamentação de facto) ficou provada a existência de um cadeado e de uma vedação. Ora, daqui conclui a douta sentença do receio dos candidatos à aquisição da cortiça a entrarem nos prédios . . . por medo de conflitos físicos. Nenhum facto foi dado como provado – na actuação, condutas ou comportamentos dos requeridos – que permita concluir para tal potencialidade de conflitos físicos. E, de novo, a apreciação factual do MM Juiz labora em erro, pois da totalidade do depoimento das testemunhas MF, MB, JC e JB, nada permite concluir da eventualidade de conflitos físicos.
Estamos assim perante concretos meios probatórios que deveriam ter conduzido a decisão diversa da ora impugnada quanto aos precisos pontos da matéria fáctica.

De um décimo segundo vício da douta sentença: da errada interpretação de normativo dos deveres do arrendatário:
MM. Em sede de douta sentença parece isso sim ter sido omitido, e de novo a mesma lavra em erro, que as simples regras do bom senso, da boa actuação de um bom pai de família, impõem que a visita a casa de alguém – arrendatário - seja anunciada e até pedida. Não podia a douta sentença não ter considerado que a recorrida nunca avisou os recorrentes das pretensas visitas e deveria isso sim ter concluído que a qualidade de senhorio não confere um direito sem regras a essa mesma visita ou exercício do direito de examinar – e por maioria de razão a quem é estranho ao objecto locado como in casu os interessados. O direito que cabe ao senhorio nos termos da alínea b) do artigo 1308º do CCivil deve ser exercido de forma conciliatória o que não se verificou in casu. Não só foi dado ao normativo em causa um sentido que não corresponde ao espírito do mesmo, como, ao impor a política de porta aberta como que legitima o incumprimento do dever de cuidado, de vigilância e de manutenção que cabem ao arrendatário.
Estamos pois perante uma errada interpretação da alínea b) do artigo 1038º do CCivil.
NN. A douta sentença elaborou, ainda, como que num convite a que as condutas, por parte dos arrendatários, os recorrentes, tendentes a garantir que não ocorram medidas susceptíveis de provocar a perda da coisa ou a sua deterioração não sejam cumpridas ou sejam cumpridas em menor medida, e ao impor a conduta de portão aberto (ponto 3 da decisão), a decisão labora em erro grave de interpretação dos normativos relacionados com a relação locatícia, nomeadamente, das normas da alínea d) do artigo 1038º e do 1044º ambos do Civil.
O pedido formulado pela requerente é manifestamente ilegal como ilegal é a sentença que decidiu nesse mesmo sentido: manter o portão aberto ou entregar chave ao senhorio.

De um décimo terceiro vício da douta sentença
OO. Acresce ainda que os factos constantes dos números 11, 34, 49, 35 do RI e 52 da oposição (39 a 44 – da fundamentação de facto) ou seja quanto à quantidade da cortiça a extrair e ao seu preço, não podem ser dados como provados da forma como constam da fundamentação de facto, porquanto só a prova pericial permite obter conclusões minimamente seguras, prova que não foi produzida.
PP. E aqui, competia à requerente a prova da quantidade e do preço da cortiça, o que não logrou fazer. As provas trazidas a julgamento não poderiam ter conduzido à fundamentação de facto que a sentença apresenta. Em causa está a violação da correcta e adequada interpretação dos normativos relativos ao ónus prova, nomeadamente os artigos 341º, nº 1 do 342º e 346º do CCivil.

De um décimo quarto vício da douta sentença
QQ. Por último, não podem os requeridos/recorrentes deixar de colocar em crise, também, a matéria alegada no artigo 35º do RI e dada como provada (consignada no número 43 da fundamentação de facto) – da necessidade da verbas da venda – na medida em que se baseia apenas e só da genérica necessidade das verbas em causa, sem qualquer informação concreta, leia-se factual, do desequilíbrio financeiro da requerente. Ademais, e de novo, esquece a douta sentença, aliás, desvaloriza por completo, o facto de a requerente ter, em certo momento, ponderado a não aceitação da liberalidade como expressamente foi referido pela testemunha João de Deus.
RR. Assim, as não provas trazidas a julgamento não poderiam ter conduzido a tal fundamentação de facto pelo que estamos perante um erro de apreciação das provas, como melhor se alegará infra.

De um décimo quinto vício da douta sentença:
SS. Atendendo ainda ao documento autêntico que o testamento constitui, não podemos deixar ainda de considerar que também as normas quanto ao valor probatório dos documentos autênticos foram objecto de errónea leitura por parte do MM Juiz e assim de erro notório quanto ao sentido que deveria ter sido atribuído às mesmas. E em causa estará também afinal o princípio da fé pública do escritura pública. Teremos aqui de afirmar que, nos termos do nº 1 do artigo 371º do Código Civil os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público.
A sentença ao decidir como o apresentado violou por erro de interpretação, e de aplicação, o disposto nos artigos 371º do Código Civil.

De uma grande síntese das conclusões: dos três principais vícios:
TT. Assim estamos perante a violação do nº 3 do artigo 659º do CPCivil na medida em que o tribunal não conheceu da questão da interpretação da vontade da testadora e assim também violação da alínea d) do artigo 668º do CPCivil e perante a violação dos normativos, ou do correcto sentido da interpretação dos mesmos: 342 nº 1, 346º, 2187º e 371º do CCivil.
UU. Considerando o exposto, teria de se concluir que dando o primeiro requisito - fumus bonus iuris – como não provado teria a douta sentença caminhado num sentido inverso ao proferido.
VV. Resultou ainda claro que a operação de descortiçamento poderia ocorrer no décimo ano, isto é, apenas em 2014. Não existindo o justo receio de prejuízo sério, já que a cortiça extraída para o ano de 2014 não sofreria qualquer menos valia em termos de qualidade e em termos de quantidade teria de se concluir pela não verificação desse segundo requisito em termos de procedimentos cautelares.
Assim,
Deve a douta sentença ser considerada como ferida de nulidade atentos os fundamentos invocados e se assim não se entender,
Deve ser revogada a sentença recorrida, por erro de apreciação de toda a prova carreada para os autos, seja a prova testemunhal produzida, mediante audição dos depoimentos gravados, seja a prova documental junta, e ainda o valor probatório do documento autêntico, bem como a errónea interpretação de vários normativos, e assim ser substituída a sentença proferida por outra que considere não se encontrarem verificados os requisitos da providência, seja o da existência do direito, seja o justo receio de prejuízo irreparável, com todas as consequências legais.
Assim decidindo V. Exas, Venerandos Desembargadores, farão JUSTIÇA.

6. A recorrida apresentou contra-alegações, que constam de fls. 288 a 294, nas quais conclui pela verificação dos pressupostos de que depende a providência, pugnando pela manutenção do decidido.

7. O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, mas por lapso subiu nos próprios autos, pelo que após devolução do processo principal à 1ª instância foi o apenso de recurso devidamente instruído remetido a esta Relação para conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar a decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 660.º, n.º 2, 684.º, n.º 3 e 685º-A, nº 1, todos do Código de Processo Civil [na redacção vigente à data da decisão recorrida, anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho].
Nas suas extensas alegações e conclusões, estas sintetizadas a convite do relator, os recorrentes, além de exporem a posição de cada uma das partes e o decidido na sentença, apontam à decisão recorrida 15 vícios, que envolvem arguição de nulidades, impugnação da matéria de facto e considerações jurídicas quanto à interpretação de diversos normativos e sobre a verificação dos requisitos de que depende a procedência do procedimento em causa, as quais, devidamente analisadas, implicam a apreciação e decisão das seguintes questões:
(i) Das nulidades da sentença;
(ii) Da impugnação da matéria de facto; e
(iii) Dos requisitos da providência.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 – Por testamento público outorgado no Cartório Notarial de … em 20 de Abril de 1999, junto a fls. 18 a 21 dos autos e que se considera integralmente reproduzido, FM… legou a MB… um prédio urbano na Rua de…, e à mesma senhora e a MP… todos os bens móveis, e instituiu “herdeira do remanescente” a Requerente SANTA CASA ... (artigo 1.º do R.I.).
2 – No remanescente referido em 1), compreendiam-se os seguintes bens imóveis:
i) Rústico, denominado Cabril, sito na freguesia da …, concelho de …, com a área de 7,6750 ha, composto de oliveiras, sobreiros, eucaliptos, terra de cultura arvense e prado natural, inscrito na matriz sob o artigo …, Secção H, descrito na CRP de … sob o n.º …/19901205, da freguesia da …;
ii) Rústico, denominado Cabril, sito na freguesia da …, concelho de …, com a área de 45,2250 ha, composto de prado natural, terra de cultura arvense, sobreiros, oliveiras, vinha e cultura de regadio, inscrito na matriz sob o artigo …, Secção H, descrito na CRP de … sob o n.º …/19940518, da freguesia da … (artigo 2.º do R.I.).
3 – A testadora FM... faleceu em 4 de Março de 2004 (artigo 3.º do R.I.).
4 – À data da morte da referida FM..., os prédios referidos em 2) estavam na sua esfera de domínio, com inscrição da propriedade no registo predial, a seu favor, o primeiro pelas inscrições G-1 (Ap. 02/950679) e G-2 (Ap.07/180594), o segundo pela inscrição G-1 (Ap.09/180594) (artigo 4.º do R.I.).
5 – Com base no testamento supra referido, a Requerente fez inscrever no registo predial, a seu favor, a propriedade plena dos prédios referidos em 2), pela Ap.1 de 2005/04/27, registo esse que se mantém em seu benefício até ao momento, conforme certidões do registo predial juntas a fls. 22 e 23 que se consideram integralmente reproduzidas (artigo 5.º do R.I.).
6 – À data da outorga do testamento, os Requeridos trabalhavam nos prédios referidos em 2) em parte como arrendatários rurais, noutra parte como empregados agrícolas da testadora, e nessa posição se mantiveram até à data da morte dela (artigo 6.º do R.I.).
7 – No mesmo testamento pelo qual a Requerente foi instituída herdeira dos prédios referidos em 2), dispôs também a testadora FM... que era sua vontade que os Requeridos continuassem como arrendatários dos referidos prédios, com a renda anual de 200.000$00, a qual só poderia ser alterada com o acordo dos Requeridos, conforme testamento junto a fls. 18 a 21 dos autos (artigo 7.º e 8.º do R.I.).
8 – Não se declarou expressamente no referido testamento qual o período de vigência do contrato de arrendamento com os Requeridos, nem qual a sua finalidade (artigo 8.º do R.I.).
9 – Mediante comunicações de Outubro de 2004, juntas a fls. 76 e 77, os Requeridos afirmaram perante MB… e perante a ora Requerente, a sua condição de beneficiários do testamento enquanto arrendatários dos prédios referidos em 2) (artigo 31.º da Oposição).
10 – Desde a data do falecimento da testadora que os Requeridos utilizam como sua habitação as construções existentes nos prédios referidos em 2) destinadas à habitação, em concreto a casa que faz parte de tais prédios (artigo 12.º e 32.º da Oposição).
11 – Alegando a sua qualidade de arrendatários, no dia 12 de Julho de 2005 os Requeridos solicitaram a MB... que a mesma removesse todos os bens móveis da casa de habitação existente nos prédios referidos em 2), conforme comunicação junta a fls. 74 que se considera reproduzida, tendo tal remoção vindo a ocorrer dias mais tarde (artigo 29.º e 30.º da Oposição).
12 – Tendo pleno conhecimento do testamento referido em 1), a Requerente, no ano de 2005, quando perfazia um ano após a morte da testadora, recusou-se a receber a renda paga pelos Requeridos, apesar da comunicação do Requerido junta a fls. 37 dos autos que se considera reproduzida (artigo 75.º e 76.º da Oposição).
13 – Perante tal recusa, os Requeridos depositaram o valor da renda na Caixa Geral de Depósitos, dando conhecimento de tal facto à Requerente, conforme comunicação de fls. 84 dos autos que se considera reproduzida (artigo 77.º da Oposição).
14 – Em 10 de Março de 2005, os Requeridos requereram a notificação judicial avulsa da Requerente com vista a reduzir a escrito o contrato existente entre as partes, enviando à Requerente com tal notificação o denominado “contrato de arrendamento rural” junto a fls. 38 dos autos (artigo 40.º do R.I.; artigo 66.º da Oposição).
15 – A Requerente recusou-se a receber a referida notificação judicial avulsa e os documentos anexos à mesma, conforme certidão junta a fls. 83 dos autos que se considera reproduzida (artigo 69.º da Oposição).
16 – A Requerente recusou-se a assinar o denominado contrato de arrendamento que lhe foi enviado pelos Requeridos, referido em 14), sem que, conhecendo o teor do aludido contrato, apresentasse uma qualquer contraproposta de redacção (artigo 70.º e 72.º da Oposição).
17 – Após a referida oposição da Requerente, que se prolongou durante sensivelmente o primeiro ano após a morte da testadora FM..., a Requerente consentiu que os Requeridos continuassem nos prédios como arrendatários, passando estes a pagar a renda de 200.000$00 por ano (actualmente € 1.000,00) e a Requerente a receber-lha, aceitando a Requerente, desde então e até à actualidade, os Requeridos como arrendatários dos prédios (artigo 9.º do R.I.; artigo 14.º da Oposição).
18 – Os dois prédios referidos em 2) são confinantes entre si, formando os dois um conjunto de afectação rústica, ambos com montado de sobro e sobreiros dispersos, em idade de produção de cortiça, a carecer, tal como a terra, de regular tratamento (artigo 10.º do R.I.).
19 – O tratamento dos sobreiros é feito regularmente com poda, e a época normal de extracção de cortiça corre a partir dos finais de Maio, podendo ir até Julho ou Agosto consoante o tempo climatérico o permitir, podendo ir até Agosto com tempo mais fresco, enquanto com tempo quente o termo tem de ser antecipado (artigo 12.º e 33.º do R.I.).
20 – A cortiça não pode ser extraída antes de perfazer 9 anos de idade, não sendo também aconselhável que o seja depois de perfazer 10 anos de idade, porque a cortiça passa a ter calibre que a desaconselha para a indústria e, por a idade não aumentar a valia, a passagem de um ano a partir dos 10 anos redunda por si em prejuízo, desvalorizando-se a cortiça com a permanência na árvore (artigo 13.º e 48.º do R.I.).
21 – A cortiça e as próprias árvores ressentem-se fisiologicamente com a alteração do ciclo de extracção para ano superior aos 10 anos de idade da cortiça, visto que quanto mais tempo estiver na árvore, mais a cortiça engrossa, perdendo qualidade, e mais difícil e arriscada se torna a extracção porque ela pode arrastar consigo mais facilmente o entrecasco, que é a fonte produtiva da nova cortiça, deixando à vista o lenho, com deterioração da camada de formação de cortiça (artigo 37.º e 48.º do R.I.).
22 – O descortiçamento no caso da “cortiça amadia” ou “cortiça mansa” – ou seja nas extracções posteriores à primeira e segunda extracção – pode ocorrer normalmente de 9 em 9, ou de 10 em 10 anos (artigo 55.º da Oposição).
23 – A última extracção de cortiça nos prédios referidos em 2) teve lugar no ano de 2004, pelo que, tendo passado 9 anos, o ano de 2013 é ano de extracção da cortiça nos referidos prédios (artigo 14.º do R.I.).
24 – A extracção da cortiça dos prédios referidos em 2), e subsequente venda, poderá também ocorrer em 2014, sendo tal solução tecnicamente adequada (artigo 80.º da Oposição).
25 – A Requerente anunciou, publicamente, no dia 25 de Março de 2013, a intenção de venda da cortiça nos prédios referidos em 2), bem como as respectivas condições de venda, através de editais do teor do que se junta a fls. 35 e 36 dos autos, que se considera reproduzido (artigo 19.º do R.I.).
26 – No ponto 7.º das denominadas “condições de venda de cortiça – 2013”, juntas a fls. 36 dos autos e que se consideram aqui reproduzidas, a Requerente reservou-se o direito de não aceitar qualquer das propostas apresentadas caso as mesmas não lhe convenham (artigo 58.º da Oposição).
27 – Após o referido anúncio público, JF… foi aos prédios referidos em 2), com conhecimento e autorização da Requerente, para ver a cortiça e poder fazer uma proposta, tendo o Requerido João o deixado entrar nos prédios (artigo 20.º e 21.º do R.I.).
28 – No dia 17 de Abril de 2013, MF…, com consentimento e autorização da Requerente, foi aos prédios referidos em 2) para ver a cortiça, e o Requerido J… disse-lhe que o não deixava ver a cortiça e que ia chamar a GNR por invasão de propriedade (artigo 22.º do R.I.).
29 – No mesmo dia 17 de Abril, o Provedor da Requerente e alguns mesários foram ao local dos prédios com vista a falar com o Requerido, mas não puderam entrar por o portão estar fechado com corrente e cadeado, tendo após contacto telefónico conseguido que o Requerido aceitasse falar com eles no dia seguinte (artigo 23.º e 24.º do R.I.).
30 – Nesse seguinte dia, o Requerido abriu-lhes o portão, deixando-os entrar, e, mal entraram, logo o fechou nas suas costas com cadeado (artigo 25.º do R.I.).
31 – O Provedor da Requerente quis marcar uma data para entrada dos candidatos à compra da cortiça, tendo o Requerido respondido que não autorizava que ninguém lá entrasse enquanto não dissessem quem tinha recebido o dinheiro da cortiça de 2004 (artigo 26.º do R.I.).
32 – Os prédios referidos em 2) estão actualmente vedados por rede de arame em todo o seu perímetro, e a entrada está fechada por portão, com cadeado, de que os Requeridos não deram chave à Requerente (artigo 28.º do R.I.).
33 – Os Requeridos só recentemente passaram a utilizar cadeado no portão, após o anúncio referido em 25), quando, antes, o portão apenas tinha um trinco (artigo 29.º do R.I.).
34 – Perante esta situação os candidatos à compra têm medo de entrar nos prédios para ver a cortiça e depois para a extrair, e a Requerente tem receio de os incentivar a entrar por medo de conflitos físicos (artigo 30.º do R.I.).
35 – Os candidatos à compra da cortiça deslocaram-se, no presente ano, aos prédios referidos em 2), com vista a verem a cortiça a ser extraída, sem que existisse da parte da Requerente um pré-aviso aos Requeridos quanto aos concretos dias em que tais deslocações iriam ser efectuadas (artigo 38.º e 42.º da Oposição).
36 – Em Dezembro de 2012, os Requeridos procuraram esclarecer e informaram a Requerente, na pessoa do seu Provedor, da sua posição e do direito que invocavam, no sentido de que, a seu ver, a sua qualidade de arrendatários lhes concedia o direito ao arranque da cortiça e ao produto da venda da mesma (artigo 84.º da Oposição).
37 – Em 2004, após o falecimento da testadora FM..., os Requeridos já estavam nos prédios referidos em 2) e não criaram obstáculos à extracção da cortiça, apesar de, alegando a sua condição de arrendatários dos prédios, terem os Requeridos, logo em 2004, discordado do ocorrido quanto à extracção da cortiça, e quanto ao destino da mesma e do resultado da sua venda (artigo 27.º do R.I.; artigo 33.º da Oposição).
38 – O produto da venda da cortiça extraída em 2004 dos prédios referidos em 2), foi recebida por terceiros que não a ora Requerente (artigo 34.º da Oposição).
39 – A capacidade de produção dos sobreiros existentes nos prédios referidos em 2), é de, pelo menos, cerca de 350 arrobas de cortiça, no ciclo legal de nove anos (artigo 11.º do R.I.; artigo 52.º da Oposição).
40 – A arroba de cortiça dos prédios referidos em 2) vale cerca de € 20,00 (artigo 11.º do R.I.; artigo 52.º da Oposição).
41 – A cortiça a extrair nos prédios referidos em 2) tem um valor de cerca de € 7.000,00 (artigo 34.º e 49.º do R.I.).
42 – A cortiça do Cabril tem o mesmo calendário de extracção da cortiça de uma outra herdade da Requerente, a do Matinho, tendo sido postas a concurso, simultaneamente, a extracção de ambas, e se para toda em conjunto facilmente se encontra comprador, para a do Cabril isoladamente é isso mais difícil (artigo 38.º do R.I.).
43 – O valor referido em 41) faz muita falta à Requerente pela sua permanente necessidade de fazer face à sua obra de assistência (artigo 35.º do R.I.).
44 – Não se conhecem aos Requeridos bens que permitam compensar a Requerente do valor referido em 41) (artigo 36.º do R.I.).
45 – A maior parte do terreno dos prédios referidos em 2) é de sequeiro e não tem sementeiras (artigo 41.º do R.I.).
46 – A Requerente exigirá aos compradores da cortiça e aos trabalhadores com vista à extracção da mesma, que, em caso de permissão de entrada nos prédios referidos em 2), em tudo respeitem e não prejudiquem a exploração e os interesses dos Requeridos, tendo o cuidado de nada estragar e de fechar os portões que tenham de ser abertos (artigo 41.º e 50.º do R.I.).
*
B) – O Direito

1. Das nulidades da sentença
1.1. Começam os recorrentes por invocar que a sentença: “a) não submete à sua apreciação, e assim não procede à sua interpretação e integração, o documento autêntico em causa - o testamento (documento junto aos autos a fls 18 a 21 e junto com o requerimento inicial); b) não submete o mesmo a um exercício de interpretação por forma a obter o contributo para apurar da vontade da testadora não dando relevância a pormenores da vontade manifestada (destino de bens móveis; o encargo da missa durante certo tempo; o encargo da manutenção do jazigo; a qualidade de arrendatários; a alteração da renda só possível de acordo com a vontade dos arrendatários) e assim não reconstrói a vontade da testadora, optando, erradamente, por procurar aferir se o contrato de arrendamento rural (como se o mesmo tivesse sido celebrado pelas partes ?!) engloba ou não os sobreiros e assim a cortiça.” (cf. conclusão O.)
Assim, concluem os recorrentes que “…estamos perante uma questão que ao tribunal cumpria apreciar e decidir, o que não ocorreu, refugiando-se, isso sim, numa aplicação supletiva do regime de arrendamento rural ao tempo do falecimento e da outorga do testamento. Tal matéria não foi objecto de apreciação: em causa está a violação o nº 1 do artigo 659º, sendo assim conduzidos ao normativo da alínea d) do artigo 668º e assim à nulidade da sentença e necessariamente, a uma reapreciação da prova. Para além do mais, estamos perante a violação da parte final do nº 3 do artigo 659º do CPC pois a sentença não procedeu ao exame crítico da prova documental – o testamento – e que lhe cumpria conhecer.” (cf. conclusão P.).

Pretendem, deste modo, invocar a nulidade consistente em omissão de pronúncia, a qual ocorre quando o tribunal deixa de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, ou das quais deve conhecer oficiosamente, mas não quando deixa de rebater, um a um, os argumentos invocados pelas partes, ou quando utiliza uma argumentação improcedente, pois, nesta derradeira hipótese o que há é erro de julgamento.
Como refere Antunes Varela (in RLJ, ano 122, pág. 112), “não pode confundir-se de modo nenhum, na boa interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto e de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão”.
Também, Alberto dos Reis ensinava (in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág 143), que “são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
E como se escreve no Acórdão do STJ de 06-05-2004 (Proc. 04B1409, disponível em: www.dgsi.pt) “ ... terá o julgador que identificar, caso a caso, quais as questões que lhe foram postas e que deverá decidir. .... E se, eventualmente, o juiz, ao decidir das questões suscitadas, tem por assentes factos controvertidos ou vice-versa, qualifica juridicamente mal uma determinada questão, aplica uma lei inapropriada ou interpreta mal a lei que devia aplicar, haverá erro de julgamento, mas não nulidade por omissão de pronúncia”.
Ora, no caso concreto, não só o julgador valorou o testamento na fundamentação da matéria de facto, como interpretou as suas disposições no sentido de apurar da probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente da providência, que era o que estava em causa nos autos, o que fez no ponto A) da fundamentação de direito.
É certo que da interpretação do testamento não extraiu o julgador as conclusões que interessavam aos recorrentes, e até pode ter interpretado e qualificado erradamente as disposições testamentárias, violando o disposto no artigo 2187º do Código Civil, como estes invocam, mas tal não constituiu nulidade por omissão de pronúncia, mas sim erro de julgamento, questão que oportunamente será apreciada aquando da verificação dos requisitos da providência.

1.2. Invocam ainda os recorrentes a nulidade da sentença a que se reporta a alínea c) do n.º 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, que ocorre quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Tal nulidade reconduz-se a um vício lógico no raciocínio do julgador em que as premissas de facto e de direito apontam num sentido e a decisão segue caminho oposto, ou, pelo menos, direcção diferente.
No caso, apontam os recorrentes que se considerou como provado que os requeridos eram em parte arrendatários da testadora e na fundamentação da sentença se considerou que eram apenas trabalhadores desta, o que tem relevância face ao regime da renovação do contrato.
A divergência no caso, residiria, então, entre a fundamentação de facto e a de direito.
Porém, trata-se de mera irregularidade, porquanto, como bem entenderam os recorrentes, o julgador, não obstante a referência feita no ponto 6 da matéria de facto à situação dos requeridos como arrendatários (em parte dos prédios), considerou na fundamentação da sentença que os requeridos eram trabalhadores da testadora e que a posição de arrendatários só se constituiu por via do testamento, com a morte da testadora e por vontade desta, pelo que a menção na matéria de facto a tal situação, ocorreu por erro e não pode subsistir, como adiante se verá a propósito da impugnação da matéria de facto.
Deste modo, não ocorre divergência entre a fundamentação e a decisão tomada, mas uma questão de erro na resposta à matéria de facto que será alterada.
*
2. Da impugnação da matéria de facto
2.1. Consideram os recorrentes ter sido incorrectamente julgada a matéria de facto constante dos artigos 6º, 7º e 8º do requerimento inicial, que corresponde aos pontos 6º, 7º e 8º da matéria de facto, relativamente à sua condição de arrendatários.
Com referência a esta matéria foi dado como provado que:

6 – À data da outorga do testamento, os Requeridos trabalhavam nos prédios referidos em 2) em parte como arrendatários rurais, noutra parte como empregados agrícolas da testadora, e nessa posição se mantiveram até à data da morte dela (artigo 6.º do R.I.).
7 – No mesmo testamento pelo qual a Requerente foi instituída herdeira dos prédios referidos em 2), dispôs também a testadora FM... que era sua vontade que os Requeridos continuassem como arrendatários dos referidos prédios, com a renda anual de 200.000$00, a qual só poderia ser alterada com o acordo dos Requeridos, conforme testamento junto a fls. 18 a 21 dos autos (artigo 7.º e 8.º do R.I.).
8 – Não se declarou expressamente no referido testamento qual o período de vigência do contrato de arrendamento com os Requeridos, nem qual a sua finalidade (artigo 8.º do R.I.).

2.1.1. Quanto ao ponto 6 da matéria de facto, alegam os recorrentes que nenhuma das testemunhas arroladas pela requerente conhecia os requeridos e as condições em que os mesmos aí se encontravam em momento anterior ao falecimento da testadora, e que as testemunhas arroladas pelos requeridos apenas referem que estes eram trabalhadores ou colaboradores da testadora.
Concluem assim, que, em caso de dúvida deveria tal facto ser dado como não aprovado tendo em conta as regras sobre o ónus da prova.
Na fundamentação da decisão de facto referiu-se que:
“O representante legal da Requerente, AS…, Provedor da Requerente desde Agosto de 2010, (…) bem como as testemunhas AC… – vogal da Direcção da Requerente desde 2010 –, CS… – membro da Mesa Administrativa da Requerente desde 2010 –, Madre MS… – Directora da Requerente desde 2006 à actualidade, tendo anteriormente já exercido tais funções entre 1982 e 1996 –, AM… – secretário da Mesa Administrativa da Requerente desde 2010 –, MF… – tesoureiro da Mesa Administrativa da Requerente desde Outubro de 2010 –, e JT… – antigo Provedor da Requerente entre 1992 e 2010 –, informado, em geral, o presente Tribunal, de forma clara, segura e coerente entre si, que se revelou credível, sobre o modo como o monte Cabril chegou à propriedade da Requerente através de um legado no testamento de FM...; sobre o facto de os Requeridos terem ficado arrendatários de tal imóvel em virtude do mesmo testamento; sobre as funções exercidas pelos Requeridos em tal imóvel antes da morte da testadora; (…)” (sublinhado nosso).
Porém, daqui não se retira quais as concretas funções anteriormente exercidas pelos requeridos e, ouvidos os depoimentos, verifica-se que, neste aspecto, assiste razão aos recorrentes, pois dos depoimentos prestados não resulta prova indiciaria suficiente de que os recorridos fossem em parte arrendatários da falecida testadora. O que as testemunhas referem é que estes eram trabalhadores e colaboradores da falecida, referindo mesmo a testemunha AS…, Provedor da requerente, que conhecia os requeridos como caseiros, feitores, “com actividade não ligada ao arrendamento”, e que quem explorava a propriedade era a testadora.
Aliás, há elementos seguros para afirmar que a referência na matéria de facto à anterior situação de arrendatários por banda dos requeridos, constitui mero lapso, pois, como bem apontam os recorrentes, quanto ao aspecto jurídico da causa, considerou-se a relação de arrendamento estabelecida pelo testamento na data da morte da testadora, e não antes.
Deste modo, determina-se a alteração do ponto 6 da matéria de facto, que passa a ser do seguinte teor:
6 – À data da outorga do testamento, os Requeridos trabalhavam nos prédios referidos em 2) como empregados agrícolas da testadora, e nessa posição se mantiveram até à data da morte dela (artigo 6.º do R.I.).

2.1.2. Quanto aos pontos 7. e 8. da matéria de facto, a argumentação dos recorrentes, expendida nas conclusões V. a Z. não consiste em verdadeira impugnação da matéria de facto, nem põe em causa os factos fixados, porquanto os mesmos reflectem o alegado pela requerente, em correspondência com o constante no testamento. Tais factos resultam do documento em causa e por isso tinham que ser dados como provados.
A suposta vontade da testadora não está abrangida na matéria dos referidos artigos.

2.2. Referem ainda os recorrentes que: “Tendo ainda por fio condutor a indagação da vontade da testadora, deveria a douta sentença ter considerado os pontos 12 e 29 do RI e 32 e 30 da oposição (julgado nos termos do nº 10 e 11 da fundamentação de facto), e assim o facto provado que as habitações integravam o arrendado. E uma vez dado como provado tal facto ser ele mesmo constituído um contributo para a integração e preenchimento da vontade da testadora. E se aqui se terá de considerar que tal matéria apenas pode ser dada como provada recorrendo ao depoimento das testemunhas dos requeridos identificadas como JB…, MB… e JC…, e já supra transcritas, não se pode aceitar que os seus depoimentos sejam completamente desvalorizados – até descredibilizados - quanto em causa a inclusão dos sobreiros. Ora, terá de se afirmar que a douta sentença sofre de vício na medida em que o concreto ponto de facto ora em causa e como ele mesmo foi julgado impunham decisão diversa da proferida.” (conclusão AA).
Se bem se entende a pretensão dos recorrentes deveria ser dado como provado que os sobreiros integram o arrendado, como as referidas habitações.
Ora a matéria do artigo 32º da oposição, reporta-se ao facto de os requeridos habitarem a casa que faz parte do prédio rústico indicado na petição inicial e no testamento, e tal facto foi considerado provado no ponto 10 da matéria de facto que se transcreve:
10 – Desde a data do falecimento da testadora que os Requeridos utilizam como sua habitação as construções existentes nos prédios referidos em 2) destinadas à habitação, em concreto a casa que faz parte de tais prédios (artigo 12.º e 32.º da Oposição).
E, a matéria do artigo 30º e também 29º da oposição foi integrada na resposta dada no ponto 11 da matéria de facto, onde se consignou como provado que:
11 – Alegando a sua qualidade de arrendatários, no dia 12 de Julho de 2005 os Requeridos solicitaram a MB... que a mesma removesse todos os bens móveis da casa de habitação existente nos prédios referidos em 2), conforme comunicação junta a fls. 74 que se considera reproduzida, tendo tal remoção vindo a ocorrer dias mais tarde (artigo 29.º e 30.º da Oposição).
Ora a questão da “inclusão dos sobreiros” no arrendado não fazia parte da matéria alegada nestes artigos, pelo que não podia o tribunal incluí-la nas respostas dadas.
Também aqui, verdadeiramente, não parece que os recorrentes estejam a impugnar a matéria de facto, mas, antes, a divergir das conclusões que dela se retirou em sede de fundamentação de direito quanto à titularidade dos sobreiros, o que é coisa diferente.

2.3. No mais, tudo o que vem alegado, como aparente pedido de alteração da matéria de facto, traduz a manifestação do inconformismo dos recorrentes com a decisão do pleito, nomeadamente quanto à verificação dos requisitos da providência, seja quanto ao direito invocado quanto à propriedade dos sobreiros e da cortiça, seja quanto aos factos que fundamentam o periculum in mora.
Na verdade, os recorrentes, não obstante terem sido convidados a concretizar as questões que pretendiam ver apreciadas, indicando-as de forma clara e concisa, nem sempre fizeram com precisão a distinção entre o que é a impugnação da matéria de facto e o que constitui a sua discordância em relação às razões de direito que levaram à procedência da providência, sendo que, verdadeiramente, do que discordam é da interpretação e da aplicação que na sentença se faz dos factos provados, designadamente quanto à interpretação do testamento e à vontade da testadora, que são divergentes das suas, e quanto às normas aplicadas.
De resto, importa afirmar que as questões relativas à alteração da matéria de facto no que se reporta ao apuramento da vontade da testadora, com recurso à prova testemunhal, com referência ao direito aos sobreiros e à cortiça, ainda que se tivessem como perceptíveis e adequadamente colocadas nas alegações, seria irrelevante o seu conhecimento, em face da solução jurídica do pleito, por não terem apoio no testamento, como adiante se verá.
De todo o modo, sempre se dirá que dos depoimentos invocados não resulta com segurança a alteração de quaisquer outros factos dados como provados ou não provados na sentença, quando em confronto com as demais provas produzidas, e tendo em conta a motivação de facto constante da decisão recorrida. As provas em que a sentença se baseou nas respostas dadas permitem a prova indiciária dos factos nela consignados, que é o que para a decisão cautelar interessa.
Os documentos mencionados e os depoimentos das testemunhas que os requerentes transcrevem, relativamente aos pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados, não são suficientes para afastar a prova indiciária dos factos dados como assentes na sentença, nem para fundamentar os que nela não foram considerados provados, para se poder concluir pela existência de erro na apreciação das provas.
Deste modo, com excepção da alteração efectuada ao ponto 6 dos factos provados, improcede o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.

3. Dos requisitos da providência
3.1. Pretende a requerente nestes autos que se reconheça, provisoriamente, que é proprietária de dois prédios rústicos denominados Cabril, e da cortiça produzida pelas respectivas árvores neles sitas, e que, nessa qualidade, tem o direito de fazer entrar neles os membros da sua Mesa e as pessoas com quem queira negociar a cortiça, bem como se ordene a notificação dos Requeridos para que se abstenham de praticar quaisquer actos que impeçam a livre circulação nesses termos, e para que mantenham sem cadeado o portão de acesso a tais prédios ou, em alternativa, facultem à Requerente uma chave do mesmo.
Para tanto, com fundamento nos factos alegados recorreram ao presente procedimento cautelar, ao abrigo do disposto no artigo 381º do Código de Processo Civil, o qual depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
· Probabilidade séria da existência do direito invocado pelo requerente, a aparência do direito (fumus boni iuris);
· Fundado receio de que, na pendência da acção, esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora);
· Adequação da providência requerida a assegurar a efectividade do direito ameaçado; e
· Inaplicabilidade ao caso de qualquer uma das providências especificadas no código.
Exige-se ainda que o prejuízo resultante da providência não seja superior ao dano que com ela se pretende evitar.
Quanto ao primeiro requisito, apenas se pede ao Tribunal uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança. Não é, com efeito, necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero fumus boni iuris, ou seja, que o direito se apresente como verosímil.
Mas, como se disse, para além da verificação do fumus boni iuris, importa que se mostre preenchido o requisito consistente no fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado no procedimento cautelar, o periculum in mora, sendo que o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em simples conjecturas, antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da acção pendente ou a instaurar posteriormente.

3.1.2. São precisamente estes dois requisitos que os recorrentes questionam no recurso, mas sem razão, podendo, desde já adiantar-se que se concorda com o entendimento sufragado na decisão recorrida.
Vejamos:

3.1.3. Concluiu-se na sentença que a requerente era proprietária do imóvel em causa nos autos e que os recorrentes não tinham a faculdade de uso, fruição e disposição dos sobreiros implantados na propriedade, nem da cortiça pelos mesmos produzida, por não serem de sua pertença e tais direitos não estarem incluídos no arrendamento instituído pela testadora em seu benefício.
Efectivamente, como se diz na bem fundamentada sentença, com a qual se concorda e, por isso, se passa a transcrever:
“Face à factualidade dada como provada, constatamos que a propriedade plena dos prédios rústicos referidos no facto provado 2), doravante designados por Cabril, encontra-se registada no registo predial, em benefício da Requerente, desde 27/4/2005 até ao momento, conforme se constata pelas certidões do registo predial juntas a fls. 22 e 23.
Tendo estado subjacente à inscrição registal de tais prédios em benefício da Requerente a circunstância de os mesmos lhe terem sido deixados por testamento pela sua anterior proprietária FM..., que também beneficiava, a seu favor, e à data da sua morte (4/3/2004), de inscrição registal de tais prédios no registo predial (cf. factos provados 1) a 5)).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito.
Deste modo, para todos os efeitos legais, sempre se presumiria que a testadora FM... era proprietária do Cabril, pelo que, ao deixar por testamento tal imóvel à Requerente, esta adquiriu por tal via – sucessão por morte – a propriedade do mesmo (cf. artigo 1316.º, 2024.º, 2026.º, 2179.º).
Donde se conclui inequivocamente que a ora Requerente é legítima proprietária dos prédios rústicos em causa nos autos, denominados por Cabril, desde a data da morte da referida testadora, em 4/3/2004 (cf. artigo 1317.º, al. b) do Código Civil).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 1305.º do Código Civil, o proprietário goza, de modo pleno e exclusivo, dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem.
Não obstante, o conteúdo de tal direito de propriedade poderá ser comprimido ou limitado, caso incida sobre a coisa seu objecto um qualquer direito real de gozo menor, ou um direito pessoal de gozo, que faculte simultaneamente a outrem um qualquer nível de aproveitamento das utilidades facultadas pelo bem em causa.
Entre tais direitos pessoais de gozo encontra-se o decorrente dos contratos de locação, que consiste na relação contratual pela qual uma das partes se obriga a proporcionar a outrem o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição (cf. artigo 1022.º do Código Civil), designando-se arrendamento quando a coisa locada se traduza num bem imóvel (cf. artigo 1023.º do Código Civil).
Ora, resulta da factualidade dada como provada que, no mesmo testamento pelo qual a Requerente foi instituída herdeira do Cabril – testamento esse outorgado no Cartório Notarial de … em 20 de Abril de 1999, e junto a fls. 18 a 21 dos autos –, dispôs também a testadora FM... que era sua vontade que os Requeridos continuassem como arrendatários dos referidos prédios, com a renda anual de 200.000$00, a qual só poderia ser alterada com o acordo dos Requeridos, não se tendo declarado expressamente no referido testamento qual o período de vigência do contrato de arrendamento com os Requeridos, nem qual a sua finalidade (cf. factos provados 7) e 8)).
Assim, não se pode senão concluir que no referido testamento a testadora onerou o imóvel Cabril através da criação ex novo de um direito de arrendamento em benefício dos ora Requeridos, o que constitui um legado em seu benefício (cf. artigo 2030.º, n.º 2 do Código Civil).
Donde resulta que o direito de propriedade da Requerente sobre o Cabril passou a estar limitado pelo aludido direito de arrendamento dos Requeridos, que confere a estes a faculdade de gozo sobre o referido imóvel, como vimos supra, deixando, assim, a Requerente de poder usar, fruir e dispor a plenitude das faculdades e utilidades proporcionadas por tal imóvel.
Tendo-se aferido que no imóvel Cabril existem sobreiros com capacidade para produção de cortiça, para a decisão do caso concreto cumpre aferir se a faculdade de uso, fruição e disposição de tais sobreiros, e da cortiça pelos mesmos produzida, se encontra ou não abrangida pelos poderes de gozo atribuídos aos Requeridos sobre o imóvel Cabril como consequência da sua instituição como arrendatários do mesmo através do supra referido testamento.
Ora, como vimos, no referido testamento a testadora apenas declarou que era sua vontade que os Requeridos fossem arrendatários dos referidos prédios, e fixou a correspondente renda, não tendo, no entanto, expressamente declarado nada nem sobre a finalidade de tal contrato, nem sobre o seu período de vigência.
Assim, face às lacunas de regulação de tal relação locatícia criada pelo referido testamento, e existente entre a Requerente e os Requeridos, não se pode senão concluir que se terá de recorrer, a título supletivo, à legislação vigente à data da morte da referida testadora (4/3/2004), que constitui o momento do início da referida relação locatícia (cf. artigo 2032.º e 2050.º do Código Civil).
Nesse momento, vigorava o regime do arrendamento rural aprovado pelo Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, com as subsequentes alterações (doravante RAR 88).
Ora de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1.º de tal RAR 88, a locação de prédios rústicos para fins de exploração agrícola ou pecuária, nas condições de uma regular utilização, denomina-se rural.
Estabelecendo o n.º 2 de tal artigo que, presume-se rural o arrendamento que recaia sobre prédios rústicos quando do contrato e respectivas circunstâncias não resulte destino diferente.
Assim, tendo em conta que, no caso dos autos, os Requeridos foram instituídos arrendatários pelo supra referido testamento de dois prédios rústicos (cf. factos provados 2) e 7)), sem qualquer outra referência ou indicação, não se pode senão concluir que tal testamento criou uma relação de arrendamento rural entre a Requerente e os Requeridos sobre o imóvel Cabril, portanto, com a finalidade de exploração agrícola ou pecuária do mesmo.
Por outro lado, não tendo sido estabelecido no testamento qualquer prazo de duração de tal relação contratual locatícia, nem resultando do mesmo que a testadora visou criar um arrendamento ao agricultor autónomo (…), conclui-se necessariamente que tal relação de arrendamento rural com os Requeridos foi estabelecida pelo prazo mínimo de 10 anos previsto no n.º 1 do artigo 5.º do RAR 88, enquanto regime-regra não afastada por estipulação das partes. Parecendo mesmo resultar da alegação dos Requeridos constante da sua oposição (cf. artigo 8.º a 11.º) que os mesmos aparentemente consideram que tal relação foi estabelecida por um prazo de 20 anos ou mesmo sem qualquer limite temporal, supostamente de forma vitalícia para os Requeridos, o que não podemos concordar.
Donde resulta que, tendo-se iniciado na data da morte da testadora, em 4/3/2004, tal contrato de arrendamento rural com os Requeridos tem o seu término no dia 4/3/2014, sem prejuízo da sua renovação automática em caso de inexistência de denúncia das partes (cf. artigo 5.º, n.º 3 e 18.º do RAR 88).
(…)”
Igualmente se concorda, pelas razões invocadas na sentença, que o novo regime
do arrendamento rural, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro, doravante RAR 2009, não era aplicável ao caso dos autos, quer pela circunstância de ainda não se ter atingido, à data da decisão recorrida, o termo do prazo inicial de duração do contrato de arrendamento rural existente entre as partes – o que só sucederia em 4/3/2014 –, quer pelo facto de o contrato de arrendamento existente entre as partes ainda não ter sido alterado e adaptado em função do novo regime legal decorrente do RAR 2009, pelo que a relação locatícia de arrendamento rural existente entre as partes relativa ao imóvel Cabril continua a ser regida pelo antigo RAR 88, apesar da entrada em vigor do RAR 2009.
Ora, como igualmente se diz na sentença: “…, dispõe o n.º 2 do artigo 2.º do RAR 88, que o arrendamento rural, além do terreno e vegetação permanente de natureza não florestal, abrange ainda as construções destinadas habitualmente aos fins próprios da exploração normal dos prédios locados e também à habitação do arrendatário.
Estabelecendo ainda o n.º 2 de tal artigo 2.º do RAR 88, de forma bastante clara, que, salvo cláusula expressa em contrário, não se considera compreendido no arrendamento, nomeadamente, a cortiça produzida por sobreiros existentes nos prédios locados (cf. al. c) de tal normativo).
Assim, torna-se evidente que, caso os arrendatários pretendam beneficiar da faculdade de uso, fruição e disposição da cortiça produzida por sobreiros existentes nos prédios locados, tal deverá ser expressamente convencionado no respectivo contrato escrito de arrendamento rural, sob pena de aplicação da regra supletiva de que a mesma pertence ao locador do bem.
Com efeito, ao referir-se a lei a “cláusula expressa” não restam grandes dúvidas de que apenas se pode estabelecer uma solução contrária quando exista um contrato escrito de arrendamento rural, e no mesmo se clausule expressamente tal solução.
Ora, no caso dos autos não existe qualquer contrato de arrendamento rural escrito existente entre as partes, tendo tal relação contratual, como vimos, sido instituída apenas pelo testamento de FM... junto a fls. 18 a 21 dos autos, que constitui o único documento escrito relativo ao mesmo.
Ora, compulsado o teor de tal testamento, conclui-se que no mesmo a testadora apenas constituiu os Requeridos como arrendatários do Cabril, e fixou a respectiva renda, referindo que a mesma é inalterável sem o acordo dos Requeridos, nada mais tendo sido referido no que diz respeito à regulação de tal relação contratual.
Assim, em tal testamento não foi referido absolutamente nada pela testadora sobre o destino da cortiça produzida pelos sobreiros existentes no Cabril, nem se apurou que tal matéria conste de qualquer outro escrito que se pudesse considerar fazer parte da regulação de tal relação contratual, que, como vimos, não existe.
Assim, não se pode senão concluir que, no caso dos autos, não existe nenhuma cláusula expressa em contrário que tenha sido estabelecida pelas partes de modo a afastar a regra supletiva decorrente do disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 2.º do RAR 88.
Donde se conclui necessariamente que a cortiça produzida pelos sobreiros existentes no Cabril não se considera compreendido no contrato de arrendamento estabelecido pela testadora sobre tal imóvel em benefício dos Requeridos.(…)”
Importa acrescentar, que não é pelo facto de a testadora ter manifestado a intenção de os requerentes continuarem como seus arrendatários e no testamento ter dado destino a outros bens e instituído encargos, que se pode extrair a conclusão de que foi sua vontade que o arrendamento incluísse os sobreiros e cortiça. Tal manifestação de vontade, ainda que tivesse sido querida pela testadora não está expressa no texto do testamento nem dele se pode inferir, pelo que nesta matéria, face à lacuna do testamento, sempre teria que se recorrer às normas supletivas legais.
Acresce que, mesmo que se tivesse provado, o que não sucedeu, de que era vontade da testadora FM... que a cortiça do Cabril fosse atribuída aos Requeridos enquanto objecto do contrato de arrendamento que a mesma lhes concedeu, tal não alteraria a decisão proferida nos autos.
Com efeito, dispõe o artigo 2187.º do Código Civil, sob a epígrafe de “interpretação dos testamentos”, que embora na interpretação das disposições testamentárias se deva observar o que pareça mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, não poderá surtir qualquer efeito a vontade do testador que não tenha, em tal contexto, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
Tendo nós visto que em todo o texto do testamento nada foi referido sobre o destino da cortiça produzida pelo Cabril, tendo a testadora se limitado a declarar que os Requeridos continuavam como arrendatários de tal imóvel, sem especificar minimamente qualquer o objecto e o conteúdo de tal direito, sempre se teria de concluir que tal putativa vontade da testadora de atribuir a cortiça aos Requeridos, nunca teria no contexto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso, pelo que nunca poderia ser valorada tal pretensa vontade da testadora.
Assim, impõe-se a conclusão de que a cortiça produzida pelos sobreiros existentes no Cabril não se encontra compreendida no objecto do contrato de arrendamento estabelecido a favor dos Requeridos, e que a requerente tem o direito de fazer entrar no Cabril os membros da sua Mesa com vista a exercer o seu direito de propriedade pleno e exclusivo sobre tais sobreiros, nomeadamente cuidando, usando, fruindo e dispondo deles – entre os quais se encontra o direito de proceder ao descortiçamento, vender a cortiça e se apropriar do produto da sua venda –, bem como fazer entrar em tal imóvel as pessoas com quem queira negociar a cortiça, com vista a observarem tal cortiça de molde a poderem apresentar propostas com vista à rentabilização de tal produto através da sua venda futura.
Constituindo tudo meros actos de exercício do seu direito de propriedade sobre os sobreiros implantados no Cabril, pelo que os mesmos são decorrência da lei e são expressamente permitidos pelo disposto no n.º 1 do artigo 1037.º do Código Civil, mesmo no confronto com os arrendatários, ora Requeridos.
Deste modo, a oposição dos Requeridos ao exercício de tais direitos pela Requerente constitui uma actuação ilícita, sendo ainda de referir que, enquanto locadora, a Requerente sempre teria o direito de examinar a coisa locada, mesma na parte que é objecto do contrato de arrendamento, como decorre expressamente do disposto na al. b) do artigo 1038.º do Código Civil, pelo que nunca os Requeridos poderão impedir o acesso da Requerente ao imóvel Cabril, donde resulta que, tendo-o fechado a cadeado, terão de facultar uma cópia da chave do mesmo à Requerente, como se disse na sentença.
Assim, beneficia indiciariamente a Requerente do direito que pretende tutelar através dos presentes autos, encontrando-se, assim, preenchido o requisito do fumus boni iuris, como bem se conclui na sentença.

3.2. Quanto ao segundo requisito da providência, temos por manifesto que face aos factos apurados, descritos nos pontos 25, e 27 a 34, que com a sua conduta os Requeridos estavam a impedir a Requerente de proceder ao descortiçamento da cortiça existente no ano de 2013 no Cabril, levantando sérias suspeitas de que pretendiam apropriar-se da cortiça, que, aliás consideram sua.
Deste modo era séria e grave a lesão pelos Requeridos do direito de propriedade da Requerente sobre os sobreiros existentes no Cabril e respectiva cortiça produzida pelos mesmos, tanto mais, que se apurou que o ano de 2013 era ano de extracção de cortiça no Cabril e que, na melhor das hipóteses, tal extracção poderia ocorrer no máximo até Agosto, caso o tempo se mantivesse mais fresco – não podendo a extracção ser efectuada posteriormente, do ponto de vista técnico –, podendo ir apenas até Julho, em caso contrário, sendo certo que à data da decisão se aproximava o final de Julho, pelo que a extracção da cortiça no Cabril assumia manifesta urgência.
É verdade que, como dizem os recorrentes, provou-se que a cortiça do Cabril também poderá ser extraída (no máximo) no ano de 2014 – entre finais de Maio e Agosto –, sem perder qualidade e valor. Contudo, nada garante que, quando chegado tal momento, tal cortiça ainda existisse no Cabril, atentos, entre múltiplas outras possibilidades, como é consabido das regras da experiência comum, os elevados índices de incêndios e fogos florestais que, nos meses estivais, têm afectado as zonas rurais no nosso país nos últimos anos, em especial numa zona tão quente do Alentejo como é aquela onde se insere o imóvel Cabril.
Além de que, como se diz na sentença, à luz das regras da experiência comum e da prática forense, não é minimamente previsível que a acção declarativa principal de que os presentes autos de procedimento cautelar são preliminares, estejam dirimidos com decisão transitada em julgado, a tempo da próxima época de extracção de cortiça, até no máximo Agosto de 2014, pelo que é manifesta a necessidade e urgência dos presentes autos com vista a possibilitar em tempo útil a extracção da cortiça existente no imóvel Cabril, visto que se apurou também que, a partir dos 10 anos de idade, a cortiça passa a ter calibre que a desaconselha para a indústria e, por a idade não aumentar a valia, a passagem de um ano a partir dos 10 anos redunda por si em prejuízo, desvalorizando-se a cortiça com a permanência na árvore.
Acresce que a cortiça a extrair no Cabril tem um valor previsível de cerca de € 7.000,00, valor esse que a Requerente perderá caso tal cortiça não seja extraída em tempo útil, e que se apurou indiciariamente que não são conhecidos aos Requeridos bens que permitam compensar a Requerente da perda de um valor de cerca de € 7.000,00, indiciando-se, assim, a inviabilidade e frustração de uma eventual acção executiva que fosse instaurada contra os Requeridos com vista a obter o ressarcimento dos danos causados à Requerente pela sua conduta ilícita, após a competente acção declarativa, computados previsivelmente no referido montante.
Deste modo, concorda-se que existia, à data do decretamento da providência um fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da Requerente sobre os sobreiros e cortiça existentes no monte Cabril, causada pela conduta dos Requeridos dada como indiciariamente provada, verificando-se o requisito do periculum in mora para o direito da Requerente.

4. Estavam pois reunidos os requisitos de que dependia a procedência da providência, pelo que, não tendo os recorrentes logrado afastar no recurso tais requisitos, improcede a apelação, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
IV – Decisão

Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.
*
Évora, 19 de Junho de 2014
(Francisco Xavier)
(Elisabete Valente)
(Cristina Cerdeira)