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SENTENÇA PENAL
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS MERAMENTE CIRCUNSTANCIAIS
Sumário
I - O aditamento, na sentença, de facto meramente circunstancial que, não contendendo com os direitos de defesa, mais não faz do que permitir enquadrar e compreender melhor os factos delituosos praticados, todos eles já previamente descritos (se bem que de um modo mais depurado) na acusação, não integra uma alteração de factos juridicamente relevante, em nenhum dos sentidos previstos nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo singular n.º 1345/11.OPBSTB do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Setúbal foi proferida sentença em que se condenou os arguidos A. e B. em co-autoria de um crime de ofensas à integridade física simples do art. 143º nº 1, do Código Penal, cada um, na pena de quarenta (40) dias de multa à razão diária de 5 €, o que perfaz a quantia de 200 € (trezentos e cinquenta euros).
Inconformado com o decidido, recorreram os arguidos, concluindo:
O A,
“I- O presente recurso tem como toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática de um crime em co-autoria de ofensas à integridade física simples previsto e punido pelo artº. 143º, nº. 1 do Código Penal, na pena de 40 dias de multa à razão diária de 5€, o que perfaz a quantia de 200,00€.
II- O Tribunal a quo considerou provado que “A 02 de Agosto de 2011 foi celebrado acordo de promoção e protecção, na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens Concelho de Setúbal, relativamente à menor C. em que são progenitores, S e J e avós paternos JC e JS em que ficou a menor entregue aos cuidados dos avós paternos, na companhia dos progenitores.”
III- Conforme já destacamos tal facto não consta da acusação.
IV- Ora, um dos princípios em que assenta o processo penal é o princípio do acusatório ou da acusação consagrado no artº 32º, nº. 5 da CRP, nos termos do qual o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
V- Pelo exposto, a sentença recorrida é nula, nos termos do artº. 379º, nº. 1, alínea b), do C.P.P., porquanto condenou o Recorrente por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e condições previstos no artº. 358º e 359º do C.P.P..
VI- É a sentença nula no seu conjunto, pois a lei não admite a redução, nos termos do disposto no naº. 1, alínea b do artº. 379º do C.P.P..
VII- Resulta assim que, o efeito da nulidade da sentença é a repetição do acto, nos termos do disposto no artº. 122º, nº. 2 do C.P.P.
VIII- A tomada de conhecimento no processo de novos factos, surgidos durante o julgamento, só é admissível nos termos do artigo 358º do C.P.P..
IX- Violou assim o Tribunal a quo o disposto no artº. 358º do C.P.P..”
O B,
“- Nos termos do art. 379º, nº. 1, alínea b), do C.P.P., é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos no artº. 358º e 359º do C.P.P.
- Nos presentes autos a douta sentença sofre de nulidade ao condenar os arguidos com base em factos não constantes da acusação, sem que aos arguidos tenha sido dada a possibilidade de defesa.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo:
“1. Entendem os recorrentes que se imporia ao tribunal “a quo” ter dado cumprimento ao disposto no art.º 358.º, do Cód. Proc. Penal, dando conhecimento aos arguidos de novos factos que resultaram da discussão da causa.
2. De acordo com tal preceito, qualquer alteração não substancial dos factos só impõe a respectiva comunicação ao arguido quando essa alteração tiver relevo para a decisão da causa.
3. No caso dos autos, a alteração indicada pelos recorrentes não se enquadra, a nosso ver, no citado dispositivo, porquanto em nada contende com a acusação, ou seja, não descaracteriza o quadro factual descrito nessa peça processual, pelo que não releva para alteração a qualificação jurídica ou para a determinação da moldura legal.
4. Pelo que nenhum reparo nos merece a douta sentença recorrida, devendo as condenações dos recorrentes ser mantidas nos seus precisos termos.”
Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer também no sentido da improcedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:
“No dia 5 de Agosto de 2011, cerca das 9 horas e 18 minutos, quando a ofendida J se encontrava na Rua Dr., nesta cidade e comarca de Setúbal, foi abordada pelos arguidos os quais a agarraram, pelos membros superiores e a empurraram.
Tal sucedeu na sequência de uma altercação da ofendida com S, por causa da filha desta e neta menor da ofendida.
Os empurrões e apertões produzidos pelos arguidos causaram à ofendida, de forma directa, para além de dores, traumatismos no membro superior direito.
Lesões que demandaram, para serem debeladas, um período de 3 dias.
Os arguidos agiram em concertação de esforços e intentos, conseguindo molestar fisicamente a queixosa, agindo de forma livre e voluntária, conscientes da ilicitude e subsunção criminal da sua conduta.
A 02 de Agosto de 2011 foi celebrado acordo de promoção e protecção, na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens Concelho de Setúbal, relativamente à menor C. em que são progenitores, S. e J. e avós paternos JC e JS em que ficou a menor entregue aos cuidados dos avós paternos, na companhia dos progenitores.
Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas os arguidos foram ao encontro de S., a pedido da mesma, que lhes comunicou telefonicamente que “lhe queriam tirar a menina”.
Os arguidos trabalham na empresa X, exercendo as funções de empregados de limpeza, auferindo o ordenado mínimo nacional.
O arguido A. vive com a mãe, não tendo despesas mensais.
Por sentença proferida a 29 de Março de 2009, transitada em julgado a 02/04/2009, no âmbito do proc n.ºxxx/06.4PBSTB que correu termos 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, o arguido A. foi condenado, por factos ocorridos em Agosto de 2006, pela prática do crime de furto na forma tentada na pena de 100 dias de multa à razão diária de € 3,00 o que perfez a pena o total de € 300,00.
O arguido B:
É actualmente companheiro de S..
Paga de renda de casa 220 € por mês, tem a seu cargo um filho de 8 anos.
Tem ainda de despesas mensais, quantia não concretamente apurada, em luz, gás e água.
Tem o 4º ano de escolaridade.
Não tem antecedentes criminais.
Foi ainda considerada a seguinte matéria de facto não provada:
“Os arguidos agarraram a ofendida pelo pescoço tendo de forma directa, causado traumatismo no pescoço.
Tentando os arguidos, em vão, retirar a neta menor da ofendida do seu colo para a entregar à mãe.”
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar (é a mesma nos dois recursos) respeita à nulidade da sentença prevista no art. 379º, nº1-b) do Código de Processo Penal.
Na alegação dos recorrentes, o tribunal procedeu a uma alteração não substancial dos factos, não comunicada aos arguidos, o que integraria a nulidade apontada.
Tal alteração consistiria no aditamento dos factos seguintes, a final dados como provados na sentença:
“A 02 de Agosto de 2011 foi celebrado acordo de promoção e protecção, na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens Concelho de Setúbal, relativamente à menor C. em que são progenitores, S. e J. e avós paternos JC e JS em que ficou a menor entregue aos cuidados dos avós paternos, na companhia dos progenitores. Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas os arguidos foram ao encontro de S., a pedido da mesma, que lhes comunicou telefonicamente que “lhe queriam tirar a menina””.
Estes factos não constavam, efectivamente, da acusação. E eles não foram previamente comunicados aos arguidos. O que, por si só, não implica que tenha sido cometida a nulidade de sentença prevista no art. 379º, nº1-b) do Código de Processo Penal.
Da estrutura acusatória do processo, com assento constitucional (art. 32º, nº5 da Constituição da República Portuguesa) decorre que impende sobre o acusador a exposição total do facto que imputa ao arguido. É ao acusador, só a ele, que cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e do processo.
O juiz não pode ajudar aquele que acusa, compondo a acusação deficiente, estando-lhe vedado acrescentar factos quer no momento a que se refere o art. 311º do Código de Processo Penal, quer (em regra) posteriormente.
Mas sendo o sistema do Código de Processo Penal português de acusatório impuro, ou de acusatório mitigado por um princípio da investigação (oficiosa, pelo juiz, art. 340º nº1 do Código de Processo Penal), de modo a viabilizar nos limites do possível (com a salvaguarda das garantias de defesa) a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, o juiz pode intervir excepcionalmente na narrativa dos factos das acusações (do Ministério Público e do assistente), reconformando-os ou mesmo acrescentando-os.
Essa reconformação da acusação, sempre que se trate de uma verdadeira alteração de factos juridicamente relevante, opera-se por via dos mecanismos previstos nos arts 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Estas duas normas servem a prossecução das finalidades do processo penal garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido. Visa-se punir, na medida do possível, pelos factos (e crime) doacontecido e, não, punir por factos artificialmente construídos no processo, nem por um título fictício de crime. Este objectivo não é porém absoluto nem ilimitado.
Assim, esquematicamente, pode dizer-se que o processo está sujeito a um princípio de vinculação temática do qual decorre que são os factos (normativos) que criam a acusação que fixam e delimitam o objecto do processo; que este princípio se desdobra nos sub-princípios da identidade – os factos devem permanecer os mesmos desde a acusação até ao trânsito da decisão –, da unidade – os factos devem ser conhecidos na totalidade – e da consumpção – se o não foram, em princípio também já não podem ser conhecidos noutro processo (cfr. Cruz Bucho, Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal, www.trg.mj.pt.).
A possibilidade de o juiz de julgamento vir a aditar, mesmo oficiosamente, novos factos só conhecidos na audiência de discussão e julgamento mereceu juízo de não inconstitucionalidade: é uma exigência do princípio da verdade material, não contende com o princípio da independência e imparcialidade do julgador e não viola o princípio da presunção de inocência (Acórdão TC 442/99).
Cumpre, assim, precisar a fronteira dentro da qual os poderes de cognição do juiz se podem movimentar livremente, definindo até que ponto o julgador pode alterar uma acusação, em cumprimento do princípio da investigação e em obediência a uma verdade material, sem contender com o princípio da vinculação temática (Acórdão TC 674/99).
O critério orientador da distinção de regimes (do art. 358º e do art. 359º do Código de Processo Penal) situa-se na garantia de uma defesa eficaz por parte do arguido.
Na definição do art. 1º – al. f) do Código de Processo Penal, “alteração substancial dos factos” é aquela que tiver por efeito a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
No reverso, será não substancial a alteração (de factos) que a não tenha.
As modificações da base factual do processo que não se repercutam nas situações previstas na al. f) do art. 1º podem ser levadas em conta pelo tribunal, devendo no entanto cumprir-se o art. 358º do Código de Processo Penal quando contendam com o exercício dos direitos da defesa.
De tudo resulta que poderão ocorrer alterações nos enunciados fácticos da acusação que não relevem para a decisão da causa e/ou não contendam com os direitos de defesa. Como tal, estas não carecem de qualquer notificação.
No limite, será sempre casuisticamente que cumprirá ajuizar da eventual relevância dos desvios à narrativa factual desenvolvida pelo Ministério Público na acusação, operados na sentença.
No caso presente, o aditamento feito à acusação é juridicamente inconsequente, quer para a realização do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo.
Afigura-se também aparentemente inócuo para a determinação da medida da pena, sendo seguramente irrelevante pelo menos num sentido desfavorável aos condenados.
Dito de outro modo, o enunciado aditado é um mero facto circunstancial que mais não faz do que permitir enquadrar e compreender melhor os factos delituosos praticados, previamente descritos na acusação de um modo mais depurado.
A relevarem, ou a terem relevado, seria até em sentido favorável aos arguidos, pois estes teriam afinal agido num quadro fenomenologicamente mais perceptível ou compreensível.
Acresce que nenhum dos arguidos explica em que medida ou de que forma a sua defesa teria ficado prejudicada com a “não comunicação”, já que dúvidas inexistem quanto a uma real possibilidade de aditamento dos factos em causa na sentença. Pois a configurar-se uma alteração de factos juridicamente relevante, ela sempre seria “não substancial”.
Os recorrentes limitam-se a arguir a nulidade de sentença “por arguir”, não concretizando em que medida o aditamento em causa possa ter funcionado contra eles, ou em que ponto possa ter coarctado os direitos de defesa. E, na leitura que fazemos, tal não resulta também dos dados do processo.
Como o Sr. Procurador-geral Adjunto sinaliza no parecer, a aplicação do art. 358º pressupõe que a alteração possa contender com a defesa do arguido o que, na situação presente, não se mostra ter acontecido.
Assim sendo, é de concluir que o aditamento factual operado não configura “alteração de factos” juridicamente relevante, nos sentidos previstos nos artigos 358º e/ou 359º do Código de Processo Penal, pelo que não foi cometida a nulidade de sentença que consistiria em “condenar por factos diversos dos descritos na acusação (…) fora dos casos e das condições previstas nos arts 358º e 359º”.
4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedentes os recursos, confirmando-se a sentença.