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LIQUIDAÇÃO DA PENA
HOMOLOGAÇÃO
Sumário
1. O artigo 80.º do CP determina o desconto da detenção, da prisão preventiva e da obrigação da permanência na habitação, por inteiro no cumprimento da pena de prisão; o critério do desconto não deve ser o mesmo da pena, ou seja, aquele que o artigo 479.º prevê para a contagem da penaque, a seguir-se, prejudica o condenado por não permitir proceder ao efectivo desconto dos dias de detenção realmente sofridos.
2. A exigência legal expressa de homologação pelo juiz da liquidação da pena efectuada pelo Ministério Público (nova redacção dada, em 2010, ao n.º 4 do art. 477.º) envolve um controlo judicial que não se basta com a mera ordem de “comunicação” ou de “não comunicação” da liquidação da pena; a decisão judicial de “homologação” pressupõe a admissibilidade da rectificação, pelo juiz, da contagem da pena liquidada pelo Ministério Público.
Texto Integral
Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo Comum Colectivo nº 1231/12.6PBFAR do 2° Juízo Criminal de Faro foi proferido despacho em que se decidiu não homologar a contagem da pena aplicada ao arguido A. e efectuada pelo Ministério Público, substituindo-a por uma outra liquidação feita pela Senhora Juíza.
Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo:
“1- O arguido foi condenado na pena de 9 anos e 6 meses de prisão.
2 - Foi detido à ordem destes autos a 4/11/2012.
3 - À ordem do processo 31/11.5PEF AR esteve privado da liberdade de 3/7/2011 a 22/8/2012 (1 ano, 1 mês e 19 dias).
4 - Impõe-se assim proceder ao desconto desse período no cumprimento da pena de prisão (art. 80º do Código Penal).
5 - Contudo procedeu-se à liquidação da pena do arguido, com base numa data, que é uma ficção, sem qualquer correspondência com a realidade (16 /9/2011-fls.l025).
6 - O arguido foi detido no dia 4 de Novembro de 2012, pelo que não se pode dizer que iniciou o cumprimento da pena no dia 16 de Setembro de 2011.
7 - Se não se tivesse de efectuar qualquer desconto, a liquidação da pena seria a seguinte:
5/6 em 4/10/2020
O termo da pena ocorria em 4/05/2022.
8- A estas datas tem de se descontar 1 ano, 1 mês e 19 dias.
Assim 4/10/2020 menos 1 ano l mês e 19 dias dá 15/08/2019 e 4/05/2022 menos 1 ano, 1 mês e 19 dias dá 15/03/2021.
9- A liquidação efectuada pela Exmº Sr, Dr., Juiz a fls. 1025 é manifestamente irreal porque se baseia num dado fictício (nunca se pode dizer que o arguido iniciou o cumprimento no dia 16/9/2011).
10- Por outro lado o Juiz do processo não tem competência para alterar a liquidação da pena (ou cômputo da pena) efetuado pelo Ministério Público.
11-0 Juiz do processo apenas homologa (ou não) o cômputo referido no art° 477 n° 4 do C.P. Penal.
12- Se o Juiz não concorda com a liquidação da pena efetuada pelo Ministério Público, não a homologa, contudo não pode alterar a liquidação da pena efetuada (art° 477 n° 4 do C.P.Penal).
13- Foram violados os artigos 477 n° 2 e 4 do Código de Processo Penal, 80 n01 do Código Penal e 3° n01 alínea g) do Estatuto do Ministério Público.
Face ao exposto o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outra decisão que homologue a liquidação da pena efetuada a fls. 1023, deste modo se fazendo a costumada.”
O arguido não respondeu ao recurso
Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta pronunciou-se no sentido da procedência.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.
2. O despacho recorrido é o seguinte:
“Por acórdão cumulatório já transitado em julgado, o arguido A. foi condenado numa pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.
O arguido foi detido à ordem do processo n.º 31/11.5PEFAR, a correr termos neste 2° Juízo Criminal, em 03 de Julho de 2011 (cfr. fls. 5 e seguintes daqueles autos), tendo-lhe sido aplicada medida de coacção de prisão preventiva em 04 de Julho de 2011 (cfr. fls. 66 e seguintes do processo 31/11.5PEFAR).
Em 30 de Julho de 2012 foi alterada a medida de coacção para obrigação de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância electrónica (cfr. fls. 561 e seguintes do processo n." 31/11.5PEFAR).
Por incumprimento, em 22 de Agosto de 2012, da medida de coacção aplicada, veio a mesma a ser revogada e aplicada a medida de coacção de prisão preventiva quando o arguido fosse detido- cfr. fls. 714 e 715 do processo n.º 31/11.5PEFAR.
Em 04 de Novembro de 2012 o arguido foi detido à ordem dos presentes autos (cfr. fls. 3), tendo-lhe sido aplicada medida de coacção de prisão preventiva em 05 de Novembro de 2012 (cfr. fls. 41 e seguintes).
Tendo em consideração o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2011, publicado no Diário da República nº 225, I Série, de 23/11/2011, o período em que arguido esteve sujeito a medida de coacção privativa da liberdade no âmbito do processo n.º 31/11.5PEF AR deve ser descontado na pena a cumprir nestes autos.
Entre 22 de Agosto de 2012 (data de incumprimento da obrigação de permanência na habitação aplicada no processo n.º 31/11.5PEFAR) e 04 de Novembro de 2012 (data da detenção nos presentes autos), decorreram 2 meses e 13 dias.
Consequentemente, e por referência à data de início de cumprimento de medida de coacção privativa da liberdade no processo n.º 31/11.5PEFAR (03 de Julho de 2011) e avançando o período em que o arguido esteve em incumprimento, isto é, 2 meses e 13 dias, obtém-se como data de referência para início da contagem da pena o dia 16 de Setembro de 2011.
Assim, procede-se à liquidação da pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão nos seguintes termos:
Início: 16 de Setembro de 2011
Meio da Pena: 16 de Junho de 2016;
Dois terços da pena: 16 de Janeiro de 2018; Cinco sextos da pena: 16 de Agosto de 2019; Termo da Pena: 16 de Março de 2021.
Extraia certidões para cumprimento do disposto no artigo 477.°, nº l , do Código de Processo Penal e remeta com observância do disposto no artigo 35.° da Portaria nº 280/2013, de 26 de Agosto.
Dê conhecimento ao Tribunal de Execução de Penas, ao estabelecimento prisional onde o arguido se encontra recluso e à Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais.
D.N..”
3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a apreciar são a da contagem da pena aplicada ao arguido e a dos poderes do juiz quando profere o despacho a que se refere o art. 477º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Considera o recorrente que o despacho judicial é errado na sua substância e, também, que a Senhora Juíza extrapolou os seus poderes de cognição e decisão, ao não se ter limitado a homologar ou a não homologar a liquidação de pena.
Efectuada a liquidação da pena no processo pelo Ministério Público, a Senhora Juíza substituiu-a por outra que efectuou por despacho (não) homologatório.
A divergência começa por partir dum diferente entendimento quanto ao início do cumprimento da pena, ou seja, quanto à data (primeira) a averbar como início de privação da liberdade e a contar no cumprimento da pena a executar nos autos.
A essa diferença subjaz a existência de um período intermédio de “não detenção”, ou seja, um período de tempo de liberdade que mediou entre o incumprimento da detenção domiciliária (ocorrido a 22.08.2012) e a (nova) detenção à ordem dos presentes autos (em 04.11.2012).
Não se detecta discordância quanto aos tempos de privação de liberdade a descontar na pena, bem como quanto ao período de liberdade a não descontar.
A Senhora Juíza procedeu à alteração do início da detenção, não por ter considerado que esta afinal não se verificara a 04.11.2012 à ordem dos autos, e a 03.077.2011 no Proc. nº 31/11.5PEFAR (inexiste aqui discordância), mas por entender que, ocorrendo um período intermédio de não detenção, aquele início deveria “avançar” nessa exacta medida.
É o que se retira do despacho: “Consequentemente, e por referência à data de início de cumprimento de medida de coacção privativa da liberdade no processo nº 31/11.5PEFAR (03 de Julho de 2011) e avançando o período em que o arguido esteve em incumprimento, isto é, 2 meses e 13 dias, obtém-se como data de referência para início da contagem da pena o dia 16 de Setembro de 2011”.
Esta forma de liquidação desvirtua a realidade, é desprovida de utilidade, e cria perturbação e confusão processuais.
Na verdade, ao considerar como iniciada a pena em 16.11.2011, sabendo-se que o condenado (e sabendo-o o próprio) se encontra em detenção a contar na pena desde 03.07.2011 (nessa data, à ordem de outro processo) e preso preventivamente à ordem dos autos desde 04.11.2012, sempre ficaria por compreender este novo marco ficcionado de 16.11.2011.
A metodologia seguida no despacho judicial carece de sustentação válida merecedora de acolhimento, tendo aqui razão o recorrente quando diz que esta data “é uma ficção sem qualquer correspondência com a realidade”.
No entanto, a liquidação apresentada pelo Ministério Público mostra-se incorrecta, assim sucedendo também na efectuada no despacho recorrido.
Foi esta a liquidação do Ministério Público:
“Pena: 9 anos e 6 meses de prisão
Detido (à ordem dos autos) a 04.11.2012
Privado de liberdade à ordem do proc. 31/11, de 03.07.2011 a 22.08.2012 (1 ano 1mês 19dias)
Meio da Pena: 16.06.2016;
Dois terços da pena: 13.01.2018;
Cinco sextos da pena: 15.08.2019;
Termo da Pena: 15.03.2021”
Foi esta a liquidação da Senhora Juíza:
“Início: 16 de Setembro de 2011;
Meio da Pena: 16.06.2016;
Dois terços da pena: 16.01.2018;
Cinco sextos da pena: 16.08.2019;
Termo da Pena: 16.03.2021”.
No entanto, a liquidação da pena correcta será a seguinte:
“Início (detenção à ordem dos autos): 04.11.2012; Meio da Pena: 14.06.2016; Dois terços da pena: 12.01.2018; Cinco sextos da pena: 15.8.2019; Termo da Pena: 14.03.2021”.
O termo da pena, ora rectificado, obteve-se começando por aditar 9 anos e 6 meses a 04.11.2012 (= 04.05.2022), procedendo-se seguidamente à subtracção de 416 dias de detenção efectivamente sofrida à ordem do processo englobado no cúmulo.
Igual procedimento se adoptou (e se deve adoptar) para encontrar, mutatis mutandis, os meio, dois terços e cinco sextos da pena.
Na verdade, o arguido esteve privado de liberdade à ordem do Proc. 31/11, de 03.07.2011 a 22.08.2012, ou seja, durante 416 dias.
Esses 416 dias correspondem ao tempo de detenção, ou seja, aos dias de detençãoefectivamente sofridospelo arguido.
O art. 80º do Código Penal determina o desconto da detenção, da prisão preventiva e da obrigação da permanência na habitação, por inteiro no cumprimento da pena de prisão.
E o Código Penal não determina, porque não prevê, que o critério do desconto deva ser o mesmo da pena, ou seja, o mesmo critério que o art. 479º prevê para a contagem dapena (assim também Vítor Pereira Pinto, “Elementos sobre Cômputo de Penas”, Cej, intra-net).
O critério legal do desconto (art. 80º do Código Penal) não é o critério da pena (art. 479º do Código Penal) e o entendimento contrário, que o Ministério Público e a Senhora Juíza seguiram contra legem, prejudica o condenado, pois não permite proceder ao efectivo desconto dos dias de detenção realmente sofridos.
No caso presente, caso se procedesse ao desconto de 1a 1m 19d, em vez dos 416d de privação de liberdade efectivamente sofridospelo arguido, o fim da pena ocorreria a 16.03.2021, e não a 14.03.2021, como sucede.
Idênticas divergências sobreviriam, sempre contra o condenado, mutatis mutandis nos meio, dois terços e cinco sextos da pena.
Não tem também razão o Ministério Público quando defende que, na decisão a que se refere o art. 477º, nº 4 do Código de Processo Penal, os poderes de cognição do juiz se circunscrevem a “homologar” ou a “não homologar” a liquidação de pena efectuada pelo Ministério Público, não podendo o juiz proceder a correcções de contagem, quando entender ser caso disso.
Na verdade, o art. 477º do Código de Processo Penal “define os deveres procedimentais a cargo do Ministério Público (promotor da execução), após o trânsito em julgado da decisão condenatória” (Maia Costa, Código de Processo Penal comentado, Henriques Gaspar e outros, 2014, p. 1699), quer referentes à liquidação da pena, quer às comunicações devidas.
Mas as alterações de 2010 ao Código de Processo Penal deram nova redacção ao nº 4 do art. 477º, que passou a estipular que “o cômputo previsto nos nºs 2 e 3 pelo é homologado pelo juiz”. Normatizou-se, assim, uma prática já relativamente instituída.
Esta actual exigência legal expressa de “homologação” envolve um controlo judicial sobre o cômputo da pena efectuado pelo Ministério Público, evidenciando que os poderes de decisão do juiz quanto à pena de prisão efectiva não se esgotam no momento da prolação da sentença.
Ao homologar a contagem da pena efectuada pelo Ministério Público – não se podendo bastar já com uma mera ordem de “comunicação” da liquidação da pena ou de “não comunicação”, como podia suceder até 2010 – o juiz torna-a uma sua decisão.
Esta decisão judicial, como sucede com qualquer outra, não pode deixar de pressupor a admissibilidade dos vários sentidos que a singularidade do caso concreto justificar.
O juiz tem (agora expressamente) um dever legal de controlar/garantir que a pena por si proferida na sentença corresponde efectivamente à pena liquidada no processo pelo Ministério Público. Decisão esta que não pode deixar de abranger uma possibilidade de correcção da contagem da prisão efectuada por aquele magistrado, o qual, discordando, sempre poderá recorrer, então, do despacho não homologatório.
4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar parcialmente procedente o recurso, embora por outros fundamentos, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que proceda à liquidação da pena nos termos já enunciados.