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ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
EXECUÇÃO FISCAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Sumário
I - A responsabilidade civil emergente da prática de um crime de abuso de confiança fiscal é regulada pela lei civil, para a qual remete quer o artigo 129º do Código Penal quer o artigo 3º do RGIT. No caso de o arguido ter sido gerente de uma sociedade entretanto declarada falida, a sua responsabilidade não é meramente subsidiária, nem há que aplicar o instituto da reversão, por o regime de responsabilidade previsto na Lei Geral Tributária ser específico do direito tributário e referir-se às dívidas das prestações tributárias em que o devedor directo é o ente colectivo.
II - A circunstância de ter sido instaurado um processo de execução fiscal para cobrança das prestações em falta e respectivos juros de mora não impede que se demande o arguido no enxerto cível deduzido em processo penal.
III - Para efeitos do pedido cível, não obstante a descriminalização do crime de abuso de confiança fiscal no que concerne às prestações de valor inferior a €7500, aplica-se a lei vigente à data dos factos (artigo 12º, n.º1 do Código Civil). Assim, não obstante a descriminalização operada, se os factos provados integram todos os pressupostos geradores de responsabilidade civil impõe-se a condenação no enxerto cível.
Texto Integral
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
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I- Relatório
No 3º Juízo Criminal de Guimarães, no âmbito do processo comum singular nº 214/03.1IDBRG, por sentença de 12 de Junho de 2009, o arguido Nuno R..., com os demais sinais dos autos, foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105, nºs 1, 2 e 4 do RGIT, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 9 (nove euros).
Na procedência parcial do pedido de indemnização civil deduzido pelo Estado, o arguido foi, ainda, condenado a pagar-lhe “a quantia de € 23 637,40 (vinte e três mil, seiscentos e trinta e sete euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, nomeadamente a decorrente do artº 3º/1 do DL nº 73/99 de 16/03, desde a data do vencimento de cada uma das respectivas prestações tributárias e sobre os respectivos montantes até integral pagamento.”
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Inconformado com esta decisão, o arguido dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
1.º Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. _ e sgs que condenou o arguido, como autor material, pelo crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo art.° 24.°, 1, do RJFINA, aprovado pela Lei n..º 20-N90, de 15 de Janeiro, a uma pena de multa de 90 (noventa) dias de multa a uma taxa diária de € 9,00 (nove) Euros, num total de € 810,00 (oitocentos e dez euros) e a pagar ao Estado, a título de indemnização, a quantia de € 23.637,40 (vinte de três mil seiscentos e trinta e sete euros e quarenta cêntimos).
2º Ficou demonstrado que:
- Algumas das referidas quantias foram cobradas e recebidas efectivamente de clientes da sociedade, concretamente da empresa M..., Lda., no âmbito de vendas efectuadas, e retidas por conta de IVA e as restantes quantias respeitam à aquisição de matérias-primas efectuadas pela sociedade G... Calçado, Lda. á sociedade Calçado F..., Lda., para abatimento de um crédito da primeira sociedade sobre a segunda
- Na verdade, a sociedade G... Calçado, Lda., era, à data, um dos principais credores da sociedade Calçado F..., Lda.,
- para abatimento da referido crédito, foi acordado entre ambas as sociedades que a sociedade G... Calçado, Lda., adquiriria à sociedade Calçado F..., Lda., algumas matérias-primas, nomeadamente, couro e peles de vacas.
- a sociedade apresentava "naquele período de tempo dificuldades financeiras, que viriam a culminar na sua declaração de falência".
3.º Para o preenchimento do tipo exigia-se que a não entrega da prestação deduzida fosse acompanhada de apropriação. O agente teria de fazer sua a prestação deduzida, de a fazer confundir e integrar no seu património à imagem do que está previsto no artigo 205º do CP, isto é, de operar uma inversão do título da posse ou detenção.
4º No que respeita às vendas efectuadas à sociedade G... - e, conforme decorre dos documentos juntos aos autos, respeitantes a Março, Abril, Maio e Junho de 2001 - não houve qualquer entrega de dinheiro à F... para pagamento das facturas em causa.
5.º Não ocorreu qualquer apropriação de «prestação tributária (...) que tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar» (art.° 24.°, 1 e 2 do RJIFNA).
6.º É que o valor não foi recebido, mas apenas houve «abatimento de um crédito».
7.º A infracção só acontece «se o infractor inverter o título de posse e fizer sua a prestação tributária retida ou recebida, incorporando-a no seu património» (NUNO SÁ GOMES, Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 1997, pag. 261).
8.º Não havendo recebimento, logicamente não pode haver inversão do título de posse ou incorporação no património da empresa ou próprio.
9.º «O crime de abuso de confiança fiscal exige a apropriação da prestação tributária e, estando em causa coisa fungível, como é o dinheiro, a apropriação não se concretiza com a mera disposição injustificada da coisa ou com a sua não entrega no tempo e pela forma juridicamente devidos» (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de Dezembro de 2004 (Rec. 0411036 in www.dgsi.pt/jtrp.nsf).
10.º Como é evidente, a inversão do título de posse apenas pode acontecer nos casos em que existe um pagamento efectivo ao sujeito passivo de IVA.
11.º O que é necessário atender é que, para efeitos fiscais, não há aqui qualquer apropriação ou inversão de título de posse.
12.º No caso, e tal como se provou, não ocorreu qualquer entrega de dinheiro da G... à F..., apenas sendo o valor da venda descontado ao grande crédito que aquela tinha sobre esta. Não houve pois apropriação.
13.º E recorde-se que a F..., naquela altura, lutava com enormes dificuldades financeiras, que viriam a culminar na sua falência. Não havia pois com que pagar esse imposto, uma vez que não foi recebido qualquer importância que o permitisse fazer.
14.º Aliás, foi este o entendimento do Tribunal da Comarca de Lousada, em que o ora arguida vinha acusada do mesmo tipo de crime e, em face de matéria de facto em tudo semelhante, foi o arguido absolvido - proc. 916/01.7TALSD do 2.º Juízo desse comarca, protestando juntar-se cópia da respectiva sentença absolutória.
15.º Ao entender diferentemente, a sentença recorrida violou o disposto no art.° 24.º do RJIFNA e art.º 105.º do RGIT.
16.º Assim, o arguido deve ser absolvido quanto a essa matéria factual.
17.º Porém, da matéria dada como provada não se alcança com exactidão quais aquelas que correspondem às vendas feitas à G... e as restantes. Não se consegue, assim, fazer a destrinça concreta entre as várias situações fácticas, com consequências jurídicas diversas.
18.º Deste modo, devem os autos baixar à 1ª instância para fixação dessa matéria de facto.
Para além disso,
19.º O pedido de indemnização deveria ter sido totalmente indeferido por ser legalmente inadmissível.
20.º Por via de especial - a Lei Geral Tributária; Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro -, a responsabilidade dos membros dos órgãos sociais é meramente subsidiária e estes dispõem ali de mecanismos processuais e de defesa que quer a lei penal quer a lei civil não contemplam.
21.º Ao condenar-se alguém numa pena e numa indemnização e ao impor-se uma condição de suspensão, tiveram-se, necessariamente, por verificados os respectivos requisitos, incluindo os da culpa quanto ao crime (dolo) e quanto à responsabilidade civil (dolo ou negligência) e tanto bastará para se actuar em conformidade com lei e dar por implícito o futuro eventual uso daqueles mecanismos e meios de defesa».
22.º Nos termos do art.º 129° do Código Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil e será, pois, através da lei civil que se devem determinar os pressupostos da indemnização e bem assim toda e qualquer questão atinente que envolva os princípios gerais das obrigações.
23.º Por via de lei especial - a Lei Geral Tributária -, a responsabilidade dos membros dos órgãos sociais é meramente subsidiária e estes dispõem ali de mecanismos processuais e de defesa que quer a lei penal quer a lei civil não contemplam.
24.º Assim, e de acordo com o disposto nos art.ºs 20, n.º 1; 21°; 22, n.ºs 2 e 3; 23°, n.ºs 1 e 2; e 24° da LGT, a imposição de pagamento como condição de suspensão da pena deve respeitar a natureza subsidiária da obrigação dos agentes que actuam em nome de outrem.
25.º Beneficiando os membros dos corpos sociais da reversão, o incidente reversório só é típico do processo de execução fiscal consequente ao não pagamento e, sendo a sua responsabilidade definida como subsidiária, ela depende da prova de que o património da pessoa colectiva se tornou insuficiente por culpa do obrigado subsidiário.
26.º No âmbito fiscal, para que o património do devedor subsidiário responda pela dívida tributária de outrem cujo património não é bastante (ou até já nem existe), é preciso que a administração fiscal prove que ele agiu com culpa relativamente à insuficiência de bens do sujeito fiscal, podendo o devedor subsidiário chamar à acção ou ao incidente os condevedores subsidiários solidários com ele, incluindo os Técnicos Oficiais de Contas.
27.º Assim, no caso de não pagamento, seja por que razão for (incluindo, como é óbvio, com o cumprimento da pena de prisão), a execução a instaurar para cobrança do pedido cível tem que ser uma execução fiscal contra o devedor principal e onde o devedor subsidiário dispõe da reversão que contra ele tem que ser movida, só respondendo, como se disse, se, perante a insuficiência de bens do devedor tributário, a administração fiscal provar que o substituto agiu com culpa quanto àquela insuficiência.
28.º«Em resumo:
O regime coercivo ou judicativo (os referidos efeitos judicativos do facto jurídico) é o seguinte:
- O devedor directo - aquele a quem a dívida foi transmitida por lei - responde pela obrigação principal e pelas obrigações acessórias(juros);
- Através da acção executiva tributária (cfr. art.ºs 22°. e 103°. da LGT e Tit. IV do CPPT).
Mas, o credor tributário goza de garantias constituídas sobre outros sujeitos, que são os devedores subsidiários identificados na lei. O regime legal mostra que estes são garantes dessas dívidas e respondem patrimonialmente (com o seu património).
A responsabilidade dos garantes, como mostra o seu regime, é indirecta e só se constitui pela verificação de certos requisitos, que são verificados pelo incidente de reversão aberto na acção executiva instaurada contra o devedor directo. Esses requisitos são os seguintes:
1°) instauração da acção executiva contra o devedor directo;
2°) verificação, na acção executiva, da insuficiência dos bens do devedor directo para satisfazer o crédito do credor tributário;
3°) Abrir-se a via reversória, pela Administração Tributária, contra o devedor subsidiário para este oferecer a sua oposição;
4°) Decisão reversória com indicação dos pressupostos da responsabilidade:
legitimidade (qualidade) de responsabilidade subsidiária;
- crédito do credor;
- práticas de actos ilícitos por parte do devedor subsidiário;
- culpa (dolo ou negligência) do devedor subsidiário; e
- nexo de causalidade (arts. 22°, n.ºs 3 e 4, 23°. e 24°. da LGT).
Decretada a reversão, o devedor subsidiário tem ainda os direitos de:
- Exigir a excussão prévia do devedor directo;
- Pagar a dívida, no prazo de 30 dias a contar da citação para a execução, beneficiando da isenção de juros e custas (art°s 23°, n.ºs 2 e 5 da LGT).
29.º Aliás, também perante o comércio jurídico privado os titulares dos órgãos sociais se subordinam a regras específicas - as do art.º 78° do Código das Sociedades Comerciais - que não se compadecem com outros critérios que não os derivados do risco próprio da actividade comercial e dos da sua gerência ou administração, mas, ainda assim, se exigindo a inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção dos credores sociais.
30.º Na ausência de outros, os critérios a seguir para se demonstrar a responsabilidade daqueles titulares poderão (deverão?) ser aqueles que, na ausência de dolo, preenchem a situação da insolvência negligente, p. e p. no art. 228º do Código Penal, ou seja, grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas e grave negligência no exercício do cargo ou, até, o não uso de providências de recuperação.
31.º E sendo devedores potenciais - e não se tendo, no processo crime ou no pedido cível alegado e demonstrado os pressupostos de que depende a sua responsabilidade civil subsidiária - não podem ser como tal condenados.
32.º Acrescente-se, ainda, que, relativamente aos Juros - as mais das vezes elevadíssimos -, também não é possível a condenação (ou a sua inclusão na condição de suspensão) pela simples razão de que, não tendo ainda sido aberto o incidente da reversão e a consequente notificação para oposição, o devedor subsidiário ainda não foi declarado revertido e não lhe foi dada a faculdade de pagar voluntariamente e sem juros – art.º 23° da LGT.
33.º Mesmo para a responsabilidade emergente da prática de crimes ou contra-ordenações pelas pessoas colectivas, a responsabilidade dos membros dos corpos sociais é, também, meramente subsidiária e dependente, ou por reversão ou por alegação e prova dos factos nos respectivos processos, da condição de demonstração da sua culpa na insuficiência dos bens da pessoa colectiva – art.º 7°-A, n.º 1 do RGIFNA; art.º 8°, n.º 1 do RGIT.
34.º O pedido de pagamento dos impostos devidos não deve ser feito pelo pedido de indemnização cível em processo conexão com o processo crime, mas através da execução fiscal, eventualmente por via da reversão da mesma contra os administradores do responsável inicial.
35.º Este entendimento, aliás, vem sendo reiterado por este Tribunal da Relação de Guimarães, ainda recentemente, como decorre do acórdão de 6 de Janeiro de 2006, (rec. 2042/05-2):
«I - Conforme resulta do art.º 8° do RGIT, os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são apenas subsidiariamente responsáveis, no âmbito de processo crime, pelas multas penais aplicadas à sociedade.
II - Do teor conjugado dos art°s 8° do RGIT e 24° da Lei Geral Tributária, extrai-se o seguinte:
a) Que a responsabilidade subsidiária tributária reveste natureza civil, pois que como tal é sempre tratada;
b) Que esta surge numa situação em que:
- O obrigado, na relação tributária, ao cumprimento do imposto não o fez; .- Foi contra ele instaurado um processo de execução fiscal;
- Nesse processo verificou-se, ou que não há bens para pagar a dívida fiscal, ou
- que esses bens são insuficientes; e
- A execução fiscal vai então reverter contra eventuais responsáveis.
c) Que o procedimento de reversão contra algum ou alguns dos responsáveis
subsidiários deve ser realizado nas hipóteses previstas nos art.s 23° e 24° da Lei Geral Tributária e 153°, nO 2 do CPPT e segundo o ritual previsto nos artigos 23, nO 4 e 60 da Lei Geral Tributária, em conjugação com o art. 45 do CPPT.
III- Revestindo aquela responsabilidade natureza civilista, não pode a mesma ser executada no âmbito do processo penal, pese embora o princípio da suficiência, pois em causa está um regime especial que, como tal se impõe ao regime geral».
36.º Aliás, o arguido foi já confrontado com execuções fiscais relativas a montantes em causa nestes autos (processos fiscais n.ºs 0418200101026461 e apensos e 0418200101030493 - Serviço de Finanças de Guimarães I, cuja cópia se protesta juntar), em que o ora arguido tomou posição processual e se opôs à execução. Assim, a administração fiscal já procurou executar esses montantes pelas competentes vias, não fazendo sentido que, a coberto do pedido de indemnização cível em processo crime, procure cobrar duas vezes o mesmo montante.
37.ºAssim, mostra-se violado o disposto no art.° 129.° do Código Penal, 71.° e sgs. do Código de Processo Penal, 22.°, 23.° e 24.º da Lei Geral Tributária e 153.° do Código de Processo e Procedimento Tributário.
38.º Mais evidente se torna o raciocínio supra referido, no que ao caso em concreto diz respeito, relativamente aos factos que eram imputados ao arguido relativamente aos meses de Março,
Abril e Maio de 2001.
39.º Relativamente a esses meses, foi julgado extinto o procedimento criminal, ao abrigo do disposto no art.° 113.° da Lei n.º 64-N2008 de 31/12 que alterou o artigo 105.°, n.º1 do RGIT, uma vez que os valores aí discutidos eram inferiores a € 7.500,00.
40.º Então, uma vez extinto esse procedimento criminal por descriminalização, temos que esses factos desaparecem do objecto processual, não podendo ser conhecidos pelo Tribunal para outros efeitos.
41.º No âmbito do artigo 71 ° do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime, tem de ter na sua base uma conduta criminosa, que determina o funcionamento do princípio da adesão.
42.º Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", I, pág. 128, "(...) o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado".
43.º Não havendo Crime, porque o legislador entendeu que não deveria aqui haver qualquer crime, então esses factos deverão ter-se como afastados do processo.
44.º Decidindo em contrário, a sentença sub iudice violou o disposto nos art.ºs 71.° do Código de Processo Penal e 129.° do Código Penal.
Termina pedindo que seja “absolvido do crime que vinha acusado, pelo menos quanto a parte das quantias relativas às vendas feitas à sociedade G..., com clara pouca relevância, e ser absolvido do pedido de indemnização cível, assim se fazendo a devida e costumada JUSTIÇA.”
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O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 720.
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Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral emitiu parecer pronunciando-se pela procedência parcial do recurso com a redução do pedido civil para a quantia de €9838.
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Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, foram colhidos os vistos legais.
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II-Fundamentação1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo: A) Factos provados (transcrição):
«1. A sociedade “Calçado F..., Lda” tinha por objecto a actividade de manufactura de calçado, encontrava-se registada para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas pela actividade CAE 019301, enquadrada para efeitos de IVA no regime de periodicidade mensal, e inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Guimarães, com o nº de matrícula 1 241 770712.
2. A mesma, por sentença proferida em 04 de Janeiro de 2002 nos autos nº 724/2001 que correram termos no 1 ° Juízo Cível deste Tribunal, foi declarada falida, tendo a respectiva sentença transitado em julgado em 26 de Fevereiro de 2002, mostrando-se já registada na Conservatória do Registo Predial e Comercial de Guimarães.
3. O arguido Nuno António Martins Romão era gerente da sociedade arguida, determinando a vontade desta.
4. Nos períodos de imposto infra indicados, a referida sociedade representada pelo seu gerente e ora arguido, não entregou, simultaneamente com as respectivas declarações periódicas referidas na al. a) do nº 1, do art° 40° e art. 26°, ambos do CIVA, os seguintes montantes, mostrando-se já decorridos os 90 dias dentro dos quais o teria de fazer:
Período a que respeita a infracção
Montante da prestação tributária em falta (IVA)
Termo do prazo para cumprimento da obrigação
Março de 2001
€5 947,68
10/05/2001
Abril de 2001
€ 744, 53
11/06/2001
Maio de 2001
€ 7 106,41
10/07/2001
Junho de 2001
€ 9 838,78
10/08/2001
Total
€ 23 637,40
5.Algumas das referidas quantias foram cobradas e recebidas efectivamente de clientes da sociedade, concretamente da empresa M..., Lda, no âmbito de vendas efectuadas, e retidas por conta de IVA e as restantes quantias respeitam à aquisição de matérias-primas efectuada pela sociedade G... Calçado, Lda à sociedade Calçado F..., Lda para abatimento de um crédito da primeira sociedade sobre a segunda.
6. Na verdade, a sociedade G... Calçado, Lda era, à data, um dos principais credores da sociedade Calçado F..., Lda.
7. Para abatimento do referido crédito, foi acordado entre ambas as sociedades que a sociedade G... Calçado, Lda adquiriria à sociedade Calçado F..., Lda algumas matérias-primas, nomeadamente, couro e peles de vacas.
8. As quantias de IVA acima mencionadas pertenciam ao Estado Português, tendo-se constituído a sociedade Calçado F..., Lda na obrigação legal de entregar nos cofres do Estado Português, tais montantes, nos termos e nos prazos legais.
9. Notificado para em 30 dias proceder ao pagamento das prestações tributárias em dívida referidas na acusação, acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável junto da administração tributária, o arguido não o fez.
10. O arguido era gerente da sociedade Calçado F..., Lda, gerindo o destino da empresa, tratava e assinava os pertinentes documentos relacionados com a área financeira e administrativa da sociedade e decidindo da afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações correntes, incluindo o pagamento de impostos.
11. O arguido, ao não entregar nos cofres do Estado as quantias retidas a título e por conta de IVA, agiu na qualidade de representante da referida sociedade comercial, no interesse e por conta desta, com o propósito concretizado de se apropriar em benefício da referida sociedade das quantias acima mencionadas, bem sabendo que estava legalmente obrigado a entregá-las ao Estado.
12. O arguido sabia que as importâncias efectivamente retidas a título de IVA - no valor global de € 23 637,40- pertenciam ao Estado Português e que tinha a obrigação legal de as entregar, nos prazos legais, nos cofres da Direcção dos Serviços de Cobrança de IVA.
13. O arguido Nuno R... agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo proibida e punida a sua conduta.
Mais se provou:
14. O arguido Nuno R... não procedeu ao pagamento de todas as aludidas quantias devido ao facto de sociedade “Calçado F... Lda” apresentar naquele período de tempo dificuldades financeiras, que viriam a culminar na sua declaração de falência.
15. O arguido Nuno R... não tem antecedentes criminais.
16. É engenheiro químico, encontrando-se reformado.
17. Aufere mensalmente € 1 500,00, correspondentes a 2/3 da pensão de reforma (1/3 da referida pensão encontra-se penhorado).
18. É divorciado.
19. Vive com uma companheira.
20. A companheira encontra-se reformada, auferindo de pensão de reforma €870,00.
21. Não tem filhos a cargo.
22. Vive em casa de um filho.
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B) Factos não provados (transcrição)
«Não se provou que a sociedade “Calçado F..., Lda” tivesse liquidado a quantia de € 25 042,87 respeitante ao mês de Agosto de 2001, nem que essa quantia fosse devida ao Estado.
Não se provou que o arguido Nuno R... se tivesse apropriado em benefício próprio dos montantes de IVA não entregues ao Estado.
Não se provou que as dificuldades financeiras da sociedade “Calçado F..., Lda” impedissem em absoluto a entrega dos montantes de IVA ao Estado.»
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C) Motivação (transcrição):
«O arguido Nuno R... confessou que nos períodos em causa na acusação exerceu as funções de gerente da sociedade “Calçado F..., Lda”. Confessou ainda ter sido notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento das prestações tributárias em dívida referidas na acusação, acrescidas dos juros respectivos e do valor da coima aplicável junto da administração tributária, não o tendo feito.
Afirmou, contudo, que a referida sociedade encerrou no ano de 1999. O que sucedeu foi que a sociedade G... Calçado, Lda adquiriu algumas matérias-primas à sociedade Calçado F..., Lda como forma de abatimento de um crédito que aquela tinha para com esta.
Afirmou ainda que desconhece quaisquer vendas efectuadas pela Calçado F..., Lda à sociedade M..., Lda no período em causa nestes autos.
Assim, na sua opinião, não teria existido qualquer apropriação dos montantes de IVA liquidados, sendo certo que relativamente ao IVA respeitante ao mês de Agosto de 2001 existiu um lapso de uma funcionária, tendo sido enviada erroneamente a declaração respeitante a esse período.
Explicou ainda as dificuldades financeiras evidenciadas pela sociedade Calçado F... Lda ao longo do tempo.
Sem querer entrar, por ora, em discussões jurídicas sobre o conceito de “apropriação” ou se o IVA respeitante à aquisição de matérias-primas pela sociedade Calçado F..., Lda à sociedade G... Calçado, Lda era ou não devido(o que se fará em seu devido tempo), importa evidenciar que, quanto ao mais, as declarações do arguido não põem em causa o essencial da acusação, à excepção do alegado desconhecimento respeitante às vendas efectuadas à sociedade M..., Lda no período em análise.
Na verdade, não só essas vendas são comprovadas por outros elementos de prova, quer documentais, quer testemunhais, como não se compreende que o arguido desconhecesse as mesmas, pois o próprio reconheceu ter exercido a gerência da sociedade Calçado F..., Lda no período em causa nestes autos, o que mostra que tais afirmações são perfeitamente gratuitas e desprovidas de sentido.
A convicção do tribunal quanto aos elementos constitutivos do crime e ao modo como foi cometido baseou-se também nas declarações da testemunha José S... , técnico de administração tributária a exercer funções na Direcção de Finanças de Braga, o qual, de forma serena e isenta, confirmou os montantes parciais e totais de IVA que não foram entregues ao Estado e que tais montantes encontram-se ainda hoje integralmente em dívida.
Confirmou ainda que a indicação do IVA respeitante ao mês de Agosto de 2001 se deveu a mero lapso, em conformidade, de resto, com o já informado pela Direcção Geral dos Impostos a fls 332.
Parte do IVA liquidado reportava-se a vendas efectuadas à sociedade M..., Lda, tendo todo o IVA liquidado a essa sociedade sido recebido e o restante a aquisição de matérias-primas efectuadas pela sociedade G... Calçado, Lda à sociedade Calçado F..., Lda como forma de abater o crédito que aquela tinha para com esta.
Por último, acrescentou que, muito embora a sociedade Calçado F..., Lda pudesse não estar em plena actividade nos períodos referidos, dúvidas não existem que as transacções que deram origem ao IVA liquidado foram efectuadas. De resto, foi a própria sociedade que enviou as respectivas declarações de IVA.
Em terceiro lugar, baseou-se o tribunal no depoimento da testemunha António P..., administrador judicial da sociedade Calçado F..., Lda, o qual, muito embora tenha confirmado que a referida sociedade encerrou a sua actividade no ano de 1999, acabou por reconhecer que as transacções em causa nestes autos e a que já se fez referência (quer com a sociedade M..., Lda, quer com a sociedade G... Calçado, Lda) tiveram lugar. Confirmou ainda que o IVA indicado respeitante a Agosto de 2001 ficou a dever-se a mero lapso.
Em quarto lugar, baseou-se o tribunal no depoimento sereno, preciso e seguro da testemunha Maria S..., empregada da sociedade G... Calçado, Lda, a qual, no que ora importa, confirmou que esta sociedade adquiriu matérias-primas à sociedade Calçado F..., Lda ao longo do período em análise e que tais aquisições não implicaram recebimento efectivo de dinheiro por parte desta última sociedade, mas sim um abatimento do crédito que a G... tinha sobre a F.... Por outro lado, afirmou que acha que as vendas efectuadas à sociedade M..., Lda (respeitantes a Maio de 2001) foram efectivamente pagas à sociedade F..., uma vez que as contas entre ambas as empresas encontram-se saldadas.
Em quinto lugar, baseou-se o tribunal no depoimento da testemunha Fernanda S..., empregada da G..., a qual se referiu às transacções efectuadas entre a sociedade G... e a sociedade F... e ao facto de o IVA respeitante a Agosto de 2001 não ser devido, pois o envio da respectiva declaração teve na sua origem um lapso de uma funcionária.
Tiveram-se ainda em consideração os elementos contabilísticos constantes dos autos, em particular os de fls 114 a 133, os quais comprovam, designadamente, que todas as vendas efectuadas à sociedade M..., Lda foram pagas.
Assim, a existência de meios financeiros para no período a que se reportam os presentes autos a sociedade Calçado F..., Lda cumprir as suas obrigações contributivas para com o Estado decorre, desde logo, do facto de esse pagamento ter ocorrido, sendo certo que o montante dos respectivos cheques dava certamente para pagar o IVA liquidado (cfr. fls 125 a 128).
Baseou-se ainda o tribunal na certidão de sentença de fls 28 a 31, na certidão da Conservatória do Registo Comercial de fls 80 a 90, na informação de fls 332 e nas notificações de fls 460 a 463, 465 e 470, devidamente analisadas em sede de audiência de julgamento.
Quanto ao elemento subjectivo do crime em causa nos autos, a prova é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras de experiência comum. Desta perspectiva, pode dizer-se, com segurança, que o arguido Nuno R... (até pela sua formação superior e pela sua experiência no ramo empresarial) não podia deixar de saber que estava obrigado a entregar, nos períodos em que exerceu a gerência da sociedade Calçado F..., Lda, os montantes acima mencionados ao Estado e que a sua não entrega constituía crime.
Relativamente à situação sócio-económica do arguido, as suas declarações e os docs de fls 481 a 485, à falta de outros elementos.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, o C.R.C de fls. 478.
No que respeita aos factos não provados, cumpre dizer que nenhuma outra prova se produziu em audiência que permitisse dar como provados outros factos para além dos que, nessa qualidade, se mencionaram.»
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II- Fundamentação. 1. Conforme é sabido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)
No presente recurso são as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:
· A falta de recebimento do IVA
· A ausência de apropriação
· A responsabilidade civil subsidiária por via do incidente da reversão
· A impossibilidade da dedução do pedido de indemnização civil por pendência de execução fiscal;
· O quantum indemnizatório: a inclusão dos montantes inferiores a €7500
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2. As questões da falta de recebimento do IVA e da apropriação §1. Uma explicação prévia.
Ao contrário do que o recorrente afirma - e toda a sua argumentação subsequente tem este pressuposto - o arguido não foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo art.º 24º,1, do RJFINA, aprovado pelo Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro”, mas sim por um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1,2 e 4 do RGIT.
A este respeito impõe-se algumas palavras adicionais.
Nestes autos o arguido foi inicialmente acusado pela prática de “um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos arts 6º/1, 7º/3 e 24º/ 1 e 5, do D.L. n.º 20-A/90, de 15.1, na redacção dada pelo D.L. 394/93 de 24 de Novembro e Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho, e actualmente pelos arts. 6º/1, 7º/3 e 105º da lei 15/2001, de 5 de Junho (RGIT)” (cfr. acusação de fls. 151-154; sublinhado nosso).
Por decisão instrutória de 16 de Março de 2007, o arguido foi pronunciado “pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, com os fundamentos de facto e de direito constantes da acusação” (cfr despacho de pronúncia de fls. 355; sublinhado nosso)
Após cumprimento do disposto no artigo 358º do CPP (cfr. acta de fls. 487), por sentença 26 de Novembro de 2008 o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos art. 105, nºs 1, 2 e 4 do RGIT e 30º, n.º2 do Código Penal.
Por decisão sumária de 20 de Abril de 2009, foi ordenada a devolução dos autos à primeira instância para que reabrisse a audiência com vista à apreciação de questões novas suscitas pela introdução de um limite ao valor da prestação tributária de "valor superior a € 7500", constante da nova redacção do n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, conferida pelo disposto no artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009 (cfr. fls. 601-603).
Reaberta a audiência o arguido Nuno R... foi expressamente advertido de que “dada a descriminalização das prestações não superiores a €7500, o crime de abuso de confiança fiscal de que está acusado não terá sido cometido na forma continuada, uma vez que apenas uma das prestações em dívida é superior a 7500,00” (cfr. acta de fls. 613).
Uma vez que a única prestação em dívida de valor superior a €7500, é respeitante a IVA relativo ao mês de Junho de 2001, com vencimento em 10 de Agosto de 2001, é obvio que o crime se consumou em data posterior à entrada em vigor do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (em vigor desde 5 de Julho de 2001-artigo 13º daquela Lei).
Anote-se que a alteração da qualificação jurídica constante quer da acta de fls. 487, quer da sentença 26 de Novembro de 2008 foi rigorosamente correcta.
Nestes autos estava em causa o IVA respeitante a diversos períodos que se estendiam de Março de 2001 a Junho de 2001.
O Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, entrou em vigor em 5 de Julho de 2001 (artigo 13º daquele diploma legal).
Conforme referido, o tribunal recorrido integrou as diversas condutas numa continuação criminosa.
Estando em causa um crime continuado, como bem assinala Jescheck, tão decisivo é o momento da comissão do primeiro acto parcial como do último: o momento da comissão do crime continuado, como no crime permanente, é todo o espaço de tempo, que vai até à terminação do acto” (Tratado de Derecho Penal, trad. espanhola, Barcelona, vol I, pág. 185).
Por isso, aplica-se sempre a lei nova, ainda que mais severa, desde que a execução ou o último acto tenham cessado no domínio da mesma lei [naturalmente que se a incriminação foi estabelecida pela lei nova, o agente só responde pelos factos posteriores à sua entrada em vigor, não tendo relevância, para o efeito, os praticados no domínio da lei antiga] - cfr. neste sentido, Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal, 1º vol., 2ª ed., Lisboa, 1995, pág. 105, Maia Gonçalves, Código Penal Português, 12ª ed., Coimbra, 1998, pág. 59.
Não há assim que distinguir, como faz Lopes Rocha, sobre o momento em que teve lugar a conduta mais grave, que determina a pena do crime continuado (Aplicação da Lei Criminal no Tempo e no Espaço, in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, Lisboa, 1983, págs. 104-105; no mesmo sentido, Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra, 1990, pág. 58 a 62, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, Lisboa/S.Paulo, 1997, págs.277-278 e Figueiredo Dias, Direito Penal- Parte Geral, tomo 1, Coimbra, 2004, pág. 183).
Por isso que, no caso dos autos, não ocorra qualquer fenómeno de sucessão de leis, não havendo que proceder à comparação de regimes para aplicar a mais favorável aos arguidos, mas tão somente que aplicar a vigente à data da prática dos factos (RGIT) [cfr. neste sentido o Ac. da Rel. de Lisboa de 15-2-2006, proc.º n.º 6008/05-3ªsecção, rel. Telo Lucas, assim sumariado: “prolongando-se os factos integradores do crime de abuso de confiança fiscal quer no domínio do RJFINA (D.L. n.º 20-A/90, de 15/01 com as alterações do DL 394/93 de 24/11) quer já na vigência do RGIT (D.L. n.º 15/2001, de 5/06), é este o regime aplicável e não o anterior, já que, tratando-se de uma infracção continuada, a sua consumação cessa com a prática do último acto, já do domínio da nova lei, não havendo lugar à aplicação do regime mais favorável do n.º 4 do art. 2º do Código Penal”, in www.pgdlisboa.pt].
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§2. Como muito bem se observou na douta decisão recorrida, a jurisprudência, incluindo a desta Relação de Guimarães, tem divergido sobre a relevância de o IVA liquidado não ter sido recebido.
Assim, o Ac. desta Relação de 9 de Junho de 2005, in www.dgsi.pt: considerou “necessário (…), como passo prévio da apropriação do imposto, o recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado. Assim, a prova deste recebimento é indispensável, pelo menos de forma parcial, mas representativa, para daí se poder concluir que à não entrega do imposto corresponde a apropriação do mesmo.”
Contrariamente, o Ac. desta Relação de 20/11/06, in www.dgsi.pt entendeu que:
“O IVA contabilizado é devido independentemente de o preço dos bens vendidos ou dos serviços prestados ser ou não recebido ou de se pedir qualquer compensação, pois dos preceitos respectivos do Código do IVA (cf., em especial os arts 16º a 40º) e da configuração do imposto em causa, resulta inequivocamente que a declaração das operações efectuadas e o montante final liquidado (encontrado, e que serve simultaneamente de reconhecimento da obrigação de pagamento) não depende da efectiva cobrança do imposto aos clientes.
“Com efeito, o exercício de uma actividade sujeita a IVA é aleatória nos seus resultados líquidos e, por isso, envolve vantagens e riscos e imputar o imposto nas transacções com os clientes e não o receber é um risco do próprio operador tributário, que apenas tem a válvula de escape prevista no artº 71º do CIVA para reposição da verdade tributária.
Acresce que, em conformidade, em todos os diplomas legais que passaram a punir a falta de pagamento, total ou parcial, do imposto é expressamente consignado que se trata da prestação tributária deduzida e não da que tiver sido efectivamente recebida. (…)”
Neste último sentido, e por mais recentes, vejam-se os Acs da Rel. do Porto de 1-10-2008, proc.º n.º 0842659, rel. Cravo Roxo, in www.dgsi.pt e de Lisboa de 4-2-2009, in Col. de Jur. ano XXXIV, tomo 1, págs.160-164.
Nestes autos, a questão assume relevância em função da configuração do crime de abuso de confiança fiscal.
Como é sabido, diversamente do disposto no artigo 24º, n.º1 do RJIFNA, na versão introduzida pelo Dec.-Lei n.º 394/93, o artigo 105º do RGIT não faz referência expressa à apropriação total ou parcial das quantias deduzidas
Porém, alguma jurisprudência, na sequência do Ac. do STJ de 24 de Março de 2003 (Col. de Jur., ano XI. Tomo 1, pág. 234 e ss) vem entendendo que muito embora o RGIT não faça expressa referência à apropriação, ela está todavia contida, pelo menos de forma implícita, no espírito do texto normativo, sendo uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias.
Assim, o Ac. do do STJ, de 3-4-2003 (Col de Jur.- Acs. do STJ, ano XXVIII, tomo 1, pág. 234 ) afirmou que “ Muito embora no actual RGIT (art. 105.º-2) - e ao contrário do que sucedia com o anterior RJIFNA (art. 24.º) - não se faça expressa referência à apropriação, todavia, ela está contida, pelo menos de forma implícita, no espírito do texto normativo, sendo ela uma consequência lógica do desvio do destino das prestações tributárias retidas, não se podendo dizer que a apropriação de que antes falava o legislador visava tão só o enriquecimento do património pessoal do agente e já não o desvio das prestações para fins de gestão da empresa (pagamento a fornecedores ou empregados), pois a lei não faz essa distinção, além de que a ideia fulcral do crime de abuso de confiança, seja ele fiscal ou não, é sempre a de que se dá a valores licitamente recebidos um rumo diferente daquele a que se está obrigado” E conclui: “ não parece que entre os dois normativos haja essa diferença substantiva ... pois as diferenças são apenas literais que não de fundo, tudo não passando de uma mera diferença de redacção(…).” No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os seguintes Acs da Rel. do Porto: de 19-5-2004, proc.º n.º 0411450, rel. Manuel Braz, de 25-1-2006, proc.º n.º 0513220, rel. Élia São Pedro,, de 24-5-2006, proc.º n.º 0516360, rel. Paulo Valério e de 30-1-2008, proc.º n.º 0714688, rel. Jorge França, todos in www.dgsi. pt.
Pela nossa parte, a alteração legislativa não é meramente literal, de forma, mas antes de substância, afigurando-se-nos que a conduta incriminada consiste na mera não entrega à administração fiscal, dentro de determinado prazo, das quantias pecuniárias envolvidas.
No domínio do diploma anterior (RIJFNA) a exigência da apropriação total ou parcial das quantias deduzidas implicava que o crime de abuso de confiança fiscal fosse um crime especial, correspondendo em traços largos ao tipo comum de abuso de confiança em que a apropriação se traduz na inversão do título de posse: o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus –cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra, 1999, pág. 103.
Segundo a melhor doutrina o tipo objectivo de ilícito de abuso de confiança não será integrado pela mera confusão ou o simples uso da coisa fungível, mas, mais tarde, pela sua disposição de forma injustificada ou pela não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos; ao que, é claro, terá de acrescer o dolo correspondente.
Estas exigências que suscitam problemas específicos e delicados no que se refere à apropriação de coisas móveis absolutamente fungíveis, como o dinheiro, agudizaram-se no âmbito fiscal.
E foi precisamente para por cobro a esses problemas que ocorreu a alteração legislativa que alterou a configuração do crime de abuso de confiança fiscal, afastando-a da do crime de abuso de confiança comum.
Recorda-se que o Prof. Germano Marques da Silva, esclareceu que “a alteração foi propositada”, porquanto “as opiniões dominantes nos trabalhos preparatórios foram no sentido de que importava clarificar a norma relativamente ao elemento apropriativo, tendo-se considerado que quem deduziu e não entregou se apropriou” (Notas sobre o regime geral das infracções tributárias, in Direito e justiça, vol. XV, 2001, tomo 2, págs. 67-68)
Como lapidarmente se demonstrou no Ac. da Rel do Porto de 17-1-2007, proc.º n.º 0642766, rel. Isabel Pais Martins (in www.dgsi.pt):
“Com a entrada em vigor da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou um novo regime geral para as infracções tributárias (RGIT), o crime de abuso de confiança contra a segurança social foi configurado de forma distinta.
No regime actualmente em vigor, o preenchimento do tipo de abuso de confiança fiscal prescinde do elemento apropriação e basta-se com a não entrega à administração tributária de prestação tributária deduzida, nos termos da lei, ou de prestação tributária que tenha sido recebida e que haja a obrigação legal de liquidar.
Deste modo, o regime actual conformou o tipo de abuso de confiança fiscal em termos mais amplos porque menos exigentes.
Basta-se com a mera não entrega dos montantes deduzidos. Não requer que se verifique a apropriação desses montantes.
A apropriação e a mera não entrega são conceitos perfeitamente distintos e esta apenas poderá constituir uma presunção do intuito apropriativo. A diferente caracterização do tipo legal de abuso de confiança fiscal (…) corresponde a diversas perspectivas do legislador e estamos em crer que a consagração da forma nuclear da não entrega decorre das dificuldades suscitadas pela prova da efectiva apropriação em termos de ilícito fiscal.”
Na linha daquela primeira orientação, o recorrente sustenta que não existiria crime porquanto, não tendo existido recebimento efectivo de dinheiro, não teria havido apropriação.
Simplesmente a questão não se chega a colocar nestes autos porquanto qualquer que seja a perspectiva a adoptar, sempre se mostrariam verificados os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal.
Efectivamente, provou-se que o IVA liquidado à sociedade M..., Lda foi efectivamente recebido pela sociedade Calçado F..., Lda e que o IVA restante se refere a dações em cumprimento feitas pela firma Calçado F..., Lda à sociedade G... Calçado, Lda.
Por isso a única questão em aberto reporta-se à dação em cumprimento feita pela firma Calçado F..., Lda à sociedade G... Calçado, Lda.
No caso em apreço, conforme resulta da documentação junta aos autos, nomeadamente a fls. 136 e 135-143 e da motivação da decisão de facto e é, de resto, confirmado pelo próprio arguido, de uma forma muito clara, quer no seu requerimento de abertura de instrução (cfr. fls. 218 e seguintes) quer na motivação do presente recurso, a quantia devida a título de IVA referente ao mês de Junho de 2001 é respeitante a uma transacção comercial efectuada naquele mês e ano que foi objecto de uma dação em cumprimento feita pela firma Calçado F..., Lda à sociedade G... Calçado, Lda.
Existem, deste modo, actos concludentes de que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa como proprietário, sendo certo que a apropriação se pode traduzir na simples fruição e disposição ut dominus, em proveito próprio ou alheio, pelo devedor das prestações deduzidas ou recebidas e que estava obrigado a entregar.
De resto, a questão foi analisada e decidida pela sentença recorrida em moldes que merecem a nossa total concordância e por isso dispensam outras considerações.
Como ali se referiu:
“Na verdade, a dação em cumprimento, à semelhança, por exemplo, da compensação de créditos, é uma forma de extinção das obrigações cujo regime está consagrado nos arts 837º e ss do Código Civil.
No caso vertente, a Calçado F..., Lda entregou à sociedade G... Calçado, Lda vários bens móveis como forma de pagamento de uma dívida que tinha para com aquela. Consequentemente, foi liquidado o IVA que era devido por tal negócio.
Ora, é completamente inócuo para o problema que nos ocupa que pela entrega de tais bens, a F... não tenha recebido dinheiro por parte da G..., pois, se não houve recebimento de dinheiro, houve um abatimento do débito.
É que, como é jurisprudência pacífica, a apropriação não tem de ser necessariamente material, podendo ser - como quase sempre é - apenas contabilística.
De resto, o problema já foi tratado pela Relação de Guimarães a propósito da compensação de créditos, mas cujas considerações são transponíveis “mutatis mutandis” para o caso em que em causa está não a compensação de créditos, mas uma dação em cumprimento.
Decidiu-se no Ac. RG de 3/12/07, proferido no Procº nº 1 546/07- 2ª secção: “ (…) A isto, permita-se apenas acrescentar que se é absurda a tese da impunidade quando não há recebimento efectivo, é ainda mais peregrina a de que a compensação não traduz um recebimento. (…) A compensação é, nem mais nem menos, uma operação comercial, contabilística, com reflexos no Deve e Haver dos sujeitos e, por isso, deve incluir a contabilização do IVA respectivo, com todas as consequências legais. De todo o modo, relembre-se que a tese da necessidade de apropriação está há muito ultrapassada com a entrada em vigor da Lei nº 15/2001. Com a entrada em vigor de tal diploma, o tipo legal de crime ora em análise sofreu significativas alterações, deixando, por exemplo, de se exigir a específica intenção de apropriação para que se verifique uma conduta faltosa penalmente relevante, tal como era exigido no artº 24º do RJIFNA, para que se considerasse preenchido, na íntegra o tipo de crime (cf. neste sentido, Alfredo de Sousa, Infracções Fiscais, 38 ed., Almedina, Coimbra,1998, p. 108). Assim, para a consumação do crime basta que o agente não efectue a entrega da prestação a que estava legalmente obrigado, não sendo necessário que a faça coisa sua.”
Improcede, deste modo, a argumentação do recorrente, não se vislumbrando, consequentemente, qualquer utilidade ou necessidade em ordenar a peticionada baixa dos autos à 1ª instância para fixação dos períodos concretos a que se reporta quer as transacções comerciais com a sociedade Marques de Freitas quer a dação em cumprimento com a sociedade G... Portuguesa Calçado Lda.
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4. A questão da responsabilidade civil subsidiária por via do incidente da reversão
§1. Segundo o recorrente o pedido de indemnização deveria ter sido totalmente indeferido por ser legalmente inadmissível.
A tese sustentada pelo recorrente inspira-se claramente no pretenso Ac. da Relação de Guimarães de 3 de Maio de 2001, proc.º n.º 1363/03-1, rel. Nazaré Saraiva, disponível até 26-10-2009 in www.dgsi.pt, o qual teria decidido que «por via de lei especial - a Lei Geral Tributária - a responsabilidade dos membros dos órgãos sociais é meramente subsidiária» pelo que, ainda que condenados cumulativamente com a sociedade pela prática de crime, a sua responsabilidade tributária é apenas indirecta, na qualidade de garantes, «e só se constitui pela verificação de certos requisitos que são verificados pelo incidente de reversão aberto na acção executiva instaurada contra o devedor directo» (a sociedade).
Resulta deste pretenso acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que não há que distinguir para efeitos da responsabilidade dos administradores das sociedades o serem eles próprios também agentes do crime dos demais casos de responsabilidade tributária das sociedades.
Pelo contrário a decisão recorrida fundou-se no artigo 129.° do Código Penal, considerando que a responsabilidade civil dos administradores emergente de crime tributário é regulada nos termos da lei civil.
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§2. A questão não é nova e tem sido objecto de análise por parte de alguma jurisprudência e doutrina.
A favor da tese desenvolvida pelo recorrente não conhecemos qualquer jurisprudência publicada.
O referido Ac. da Rel. de Guimarães de 3 de Maio de 2004 com o conteúdo acima referido não existe.
O que ocorreu foi que, por lamentável lapso, o voto de vencido de um dos desembargadores adjuntos foi inserido na base de dados do ITIJJ como se se tratasse do acórdão.
Esta anomalia foi corrigida em 26-10-2009.
A demais jurisprudência citada pelo recorrente reporta-se ao artigo 8º do RGIT que nada tem que ver, directamente, com o caso dos autos, por aquele normativo legal se referir apenas à responsabilidade pelas multas aplicadas como sanção.
Na doutrina, a favor da responsabilidade subsidiária por aplicação da Lei Geral Tributária, destaca-se o estudo de José Manuel Tomé de Carvalho “Breves Nótulas sobre a Natureza jurídica da Responsabilidade dos Titulares de Órgãos Sociais das pessoas Colectivas, Fiscalidade - Revista de Direito e Gestão Fiscal, n.11, Julho 2002, pág. 75 e seguintes
Pelo contrário, a tese desenvolvida na sentença recorrida colhe os favores do Prof. Germano Marques da Silva - Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus administradores e Representantes, Lisboa/S.Paulo, 2009, págs. 440-457; e é claramente dominante na jurisprudência dos tribunais superiores, incluindo desta Relação de Guimarães, como pode ser ilustrado pelos seguintes arestos:
- Ac. da Rel. de Guimarães de 17-6-2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo 3, pág. 293.
- Ac. da Rel. de Guimarães de 28-10-2007, proc.º n.º 214/07, rel. Filipe Melo;
- Ac. da Rel. de Guimarães de 19-7-2007, proc.º n.º 857/07, rel. Estelita de Mendonça;
- Ac. da Rel. do Porto de 30-09-2009, proc.º n.º 16/05.0IDBGC, rel. Francisco Marcolino;
- Ac. da Rel. do Porto de 20-04-2009, proc.º n.º 08187625, rel. Maria Leonor Esteves;
- Ac. da Rel. do Porto de 28-2-2007, proc.º n.º 0615916, rel. Guerra Banha;
- Ac. da Rel. do Porto de 20-9-2006, proc.º n.º 0611503, rel. Jorge França;
- Ac. da Rel. do Porto de 7-1-2004, proc.º n.º 0341618, rel. Conceição Gomes;
- Ac. da Rel. do Porto de 26-6-2002, proc.º n.º 0210386, rel. Clemente Lima;
- Ac. da Rel. de Évora de 30-6-2004, Col. de Jur., ano XIX, tomo 3, pág. 265;
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§2. Afigura-se-nos que esta posição acolhida na sentença recorrida e que merece os favores da jurisprudência dominante e da melhor doutrina é aquela que melhor se adequa à letra e ao espírito da Lei.
Os termos da questão são por demais conhecidos.
Por isso vamo-nos limitar a enunciar sinteticamente as razões da nossa opção, fazendo apelo ao estudo pormenorizado e clarividente do Prof. Germano Marques da Silva.
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§3. O art. 22.°, n.º 3, da Lei Geral Tributária dispõe que «a responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo determinação em contrário, apenas subsidiária» e no seu art. 24. ° que os administradores respondem pelas dívidas tributárias [n.º1, al. a)] cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação e [n.º1, al. b)] por aquelas cujo prazo de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.
O regime de responsabilidade previsto nos referidos artigos da Lei Geral Tributária é específico do direito tributário e refere-se ás dívidas das prestações tributárias em que o devedor directo é o ente colectivo.
§4 Quer por força do disposto no artigo 3º do RGIT, quer por força do disposto no artigo 8º do Código Penal, são aplicáveis aos crimes tributários as normas da parte Geral do Código Penal e por isso também o seu artigo 129º, salvo disposição em contrário.
Ora, inexiste no RGIT qualquer disposição que obste à aplicação daquele artigo 129º do Código Penal.
Ao contrário do que parece subjacente à tese o recorrente da prática do crime para além das consequências de natureza criminal, podem emergir outros efeitos para além da manutenção da dívida de imposto que a prática do crime pretendeu frustrar.
“O valor do dano causado à administração tributária corresponde, em regra, ao valor da prestação tributária em falta, mas a causa do dano é outra, é a prática do crime. Pode até suceder que o crime não tenha causado prejuízo equivalente ao da prestação tributária em dívida, ou porque não existe qualquer prestação tributária em dívida ou porque o prejuízo causado pelo crime foi inferior ao do valor da prestação tributária devida. Nem o RGIT nem a LGT afastam a regra geral constante dos arts. 483.° a 498.° do Código Civil, aplicáveis por remissão do art. 129.° do Código Penal, porque nunca se referem aos danos emergentes do crime, salvo quando o art. 3.°, al. c), do RGIT manda aplicar subsidiariamente as disposições do Código Civil”
“A unidade e coerência do sistema impõem que se distinga a responsabilidade pelo pagamento do imposto (responsabilidade tributária), sendo então aplicável a legislação tributária, nomeadamente a Lei Geral Tributária, e a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do ilícito criminal causador de dano à administração tributária ou à administração da segurança social” (Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal, cit., pág. 455)
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§5 Pode, assim, concluir-se que pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil.
Em síntese e parafraseando o douto Ac. da Rel. do Porto de 28-07-2007, o que está em causa nestes autos não é a responsabilidade do recorrente pelas dívidas tributárias da sociedade de que foi gerente e que entretanto foi declarada insolvente. O que está aqui em causa é, antes, a responsabilidade civil do recorrente emergente da prática de um crime de abuso de confiança fiscal por que foi condenado e quanto a esta ela é determinada e regulada de acordo com as regras do Código Civil para o qual remete quer o artigo 129º do Código Penal, quer o artigo 3º do RGIT.
Por isso que também nesta parte improceda a argumentação do recorrente.
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5. A impossibilidade da dedução do pedido de indemnização civil por pendência de execução fiscal.
Segundo o recorrente, “foi já confrontado com execuções fiscais relativas a montantes em causa nestes autos (processos fiscais n.ºs 0418200101026461 e apensos e 0418200101030493 - Serviço de Finanças de Guimarães I, cuja cópia se protesta juntar), em que o ora arguido tomou posição processual e se opôs à execução. Assim, a administração fiscal já procurou executar esses montantes pelas competentes vias, não fazendo sentido que, a coberto do pedido de indemnização cível em processo-crime, procure cobrar duas vezes o mesmo montante” (conclusão 36º).
Não lhe assiste razão.
Em primeiro lugar não se encontra comprovado nos autos, pela via adequada, a existência e pendência das execuções a que o recorrente faz referência.
Depois, as razões que ficaram enunciadas no precedente n.º 4 (§§3,4 e 5) conduzem inevitavelmente à improcedência da posição sustentada pelo recorrente.
Naquela supostas execuções pretende-se efectivar a responsabilidade pelo pagamento do imposto (responsabilidade tributária), sendo então aplicável a legislação tributária, nomeadamente a Lei Geral Tributária, pelo que a a responsabilidade do gerente, agora recorrente, é meramente subsidiária
No enxerto cível deduzido nestes autos, está em causa a responsabilidade emergente do crime de abuso de confiança fiscal, consequência civil resultante da prática do ilícito criminal causador de dano à administração tributária, em que o arguido responde a título principal. Uma vez reconhecido o direito pode o credor executar o património individual do arguido, sem qualquer moratória.
Por isso, conforme a jurisprudência tem vindo insistentemente a realçar, perante argumentação idêntica à do recorrente:
- “mesmo correndo termos execução fiscal sobre o contribuinte e arguido, tal circunstância não obsta a que a Administração tributária fique na posse de mais título executivo, consequentemente, que o tribunal criminal não tenha competência para conhecer daquele pedido civil” - Ac. da Rel. de Coimbra de 2-11-2005, proc.º n.º 2296/05, rel. Félix Almeida;
- “a existência de título executivo ou título de igual valor não impede que se demandem os arguidos no enxerto cível deduzido em processo penal” - Ac. da Rel. de Coimbra de 13-6-2007, proc.º n.º 1173/04.1TDLSB.C1, rel. Jorge Dias; no mesmo sentido os Acs. da mesma Rel. de 9-7-2008, proc.º n.º 81/05.01DMGR.C1, rel. Orlando Gonçalves, de 1-10-2008, proc.º n.º 187/06.9IDACB.C1, rel. Jorge Dias e de 11-2-2009, proc.º n.º 930/04.TACBR-A.C1 e, já anteriormente, o - Ac. da Rel. de Évora de 30-6-2004, Col. de Jur., ano XIX, tomo 3, pág. 265;
- “A circunstância de o assistente [Instituto de Segurança Social] já dispor de título executivo para poder exigir coercivamente o pagamento das prestações em faltas e respectivos juros de mora em nada colide com a dedução deste pedido civil nem pode obstar à admissibilidade deste pedido” – Ac. da Rel. do Porto de 24-10-2007, proc.º n.º 0713235, rel. Guerra Banha;
-“não há litispendência, por falta de identidade de causa de pedir, entre o pedido de indemnização civil deduzido em processo por crime de abuso de confiança fiscal referente às prestações tributárias apropriadas e processos de execução fiscal anteriormente instaurados relativamente às mesmas quantias - Ac. da Rel. do Porto de 12-3-2003, proc.º n.º 0212572, rel. Manuel Braz, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
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6. A questão do quantum indemnizatória: a inclusão dos montantes inferiores a €7500
§ Segundo o recorrente os montantes inferiores a €7500 não podem fundar a condenação do pedido de indemnização civil uma vez que extinto o procedimento criminal por descriminalização, os factos desaparecem do objecto processual, não podendo ser conhecidos pelo Tribunal para outros efeitos, sendo certo que no âmbito do artigo 71 ° do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime, tem de ter na sua base uma conduta criminosa, que determina o funcionamento do princípio da adesão.
Também o Ministério Público nesta Relação, embora reconhecendo a complexidade da questão, sustenta que “com a referida despenalização se mostraram apagados todos os efeitos, ainda que civis do facto anteriormente ilícito”
Do mesmo modo, no acórdão da Rel. do Porto de 25-2 de 2009, proc.º n.º 0816634, rel. Luís Teixeira, in www.dgsi.pt, num caso em que todas as prestações não pagas eram inferiores a €7500, embora ao nível do dispositivo apenas se tivesse decidido “…absolver os recorrentes da prática do crime por que foram condenados, julgando extinto o procedimento criminal contra os mesmos”, consignou-se, em sede de fundamentação, que: “Com a nova redacção do artigo 105º, n.º1 do RGIT, a conduta dos recorrentes foi descriminalizada. Tanto basta para que aos mesmos não seja imputada a partir da entrada em vigor daquela norma, qualquer responsabilidade criminal bem como qualquer responsabilidade civil, pois esta apenas era apreciada e reconhecida neste processo, em virtude do ilícito criminal”
Segundo parece, nesta orientação parte-se do pressuposto de que em processo penal, a absolvição criminal implica, ipso facto, a absolvição cível.
Não podemos, porém, sufragar tal entendimento.
Se os factos provados integrarem todos os pressupostos geradores da responsabilidade civil, não obstante a descriminalização operada, impõe-se a condenação no enxerto cível.
É o que resulta da conjugação do n.º1 do artigo 377º do CPP - “A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado…” - com o Assento do STJ n.º 7/99- “ Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se a absolvição do arguido este dó poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual” (in DR de 3 de Agosto de 1999 e BMJ n.º 488, pág. 49).
Não pode argumentar-se com a despenalização ou com o princípio da adesão para, de algum modo, considerar prejudicada a apreciação do pedido cível no que concerne aos montantes inferiores a €7500.
A questão é de direito substantivo.
Nos termos do artigo 129º do Código de Processo Penal, a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
É, pois, à lei civil, isto é, ao Código Civil que deverá buscar-se a solução para este problema.
Ora, se é certo que, nos termos do n.º2 do artigo 2º do Código Penal, a lei penal opera retroactivamente, já em matéria civil, atento o disposto no artigo 12º, n.º1 do Código Civil aplica-se a lei vigente à data dos factos. A lei só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
Por isso, “se o facto era ilícito à data em que foi praticado, não deixa de o ser para efeitos de responsabilidade subjectiva ou extracontratual só porque, entretanto, uma nova lei penal introduziu um outro pressuposto de punibilidade” (Ac. da Rel do Porto de 17-03-1999, proc.º n.º 09910073, rel. Melo Lima, in www.dgsi.pt).
Isto significa que para efeitos do pedido cível, não obstante a referida descriminalização do crime de abuso de confiança fiscal, no que concerne às prestações inferiores a € 7500 aplica-se a nível substantivo a lei vigente à data dos factos.
Neste sentido, cfr. v.g. a seguinte jurisprudência da Rel. do Porto:
- Ac. de 17-03-1999, proc.º n.º 09910073, rel. Melo Lima ;
- Ac. de 10-10-2001, proc.º n.º 0110749, rel. Manuel Braz;
- Ac. de 29-04-2004, proc.º n.º 0443311, rel. Isabel Pais Martins;
- Ac. de 27-5-2009, proc.º n.º 343/05.7TAVNF.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias)
No caso em apreço, não obstante a descriminalização operada, os factos provados integram todos os pressupostos geradores da responsabilidade civil.
Impunha-se, por conseguinte, a condenação no enxerto cível.
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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com 8 UC de taxa de justiça.