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ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
PROVA
Sumário
I – Face à declaração fiscal dos arguidos, o Ministério Público não tem que fazer prova de que os elementos fornecidos pelos próprios arguidos correspondem à realidade fáctica. II - Só tem, para efeitos de crime de abuso de confiança fiscal (em sentido amplo), que fazer prova de que os arguidos declararam e omitiram o dever de pagamento do devido. III – Desta forma, se dá ao tipo penal em causa uma específica conformação, em que aquilo que são os pressupostos do ilícito criminal (contrato de trabalho e salário) se supõem certos e seguros em função da própria actividade declarativa das entidades patronais arguidas, que nem se vê necessidade de os incluir nos elementos objectivos do tipo. Tal reflecte-se, naturalmente, na concreta prova a produzir.
Texto Integral
Recurso 167/11.2TACUB.E1
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:
No Tribunal Judicial da Comarca de Cuba correu termos o processo comum singular supra numerado no qual são arguidos: A, pessoa colectiva nº (…); e B, (…),
a quem foi imputada a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 107º nº 1 e 105º nºs 4 e 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias e pelo art.º 30º nº 2 do Código Penal.
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Foi comunicada alteração da qualificação jurídica, sendo que, à arguida Sociedade A foi aditada à imputação jurídico-criminal constante da acusação a mencionada no art.º 12º nºs 2 e 3 do RGIT.
O arguido B ofereceu contestação e juntou documentos (fls. 287 a 303).
Foi deduzido pedido de indemnização civil (fls. 266 a 270) pelo Instituto da segurança Social, IP no montante de € 6.913,98 (seis mil novecentos e treze euros e noventa e oito cêntimos), não tendo sido apresentada contestação ao mesmo.
Por sentença de 08 de Novembro de 2012 decidiu o tribunal recorrido:
Ø Condenar a arguida Sociedade A pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, pp. pelos artigos 12º nºs 2 e 3, 105.º n.ºs 4 e 7º e 107º nº 1 todos do R.G.I.T., na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros);
Ø Condenar o arguido B pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social pp. pelos artigos 105.º, n.ºs 4 e 7 e 107º nº 1 ambos do R.G.I.T., na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (três euros), no total de € 600,00 ( seiscentos euros);
Ø Julgar o pedido de indemnização civil totalmente provado e em consequência condenar a arguida Sociedade A e o arguido B no pagamento ao Instituto de Segurança Social, IP do montante de € 6.913,98 acrescido de juros até efectivo e integral pagamento.
Ø Condenar os arguidos no mais legal.
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Os arguidos interpuseram recursos da decisão, com as seguintes conclusões:
A arguida A 1º O objecto do presente recurso é a sentença do Tribunal Judicial de Cuba de 08/11/2012, lida e depositada em 12/11/2012, que condenou a arguida A na multa de 1.250,00 €. 2º Estão impugnados os seguintes pontos da matéria de fato: a) "3. O arguido B, em nome, representação e interesse da sociedade arguida, estava obrigado a descontar mensalmente das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários os montantes relativos às contribuições a efectuar à Segurança Social, montantes esses que, até ao décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que respeitassem, estava, igualmente, obrigado a enviar à Segurança Social"; Este ponto de facto corresponde ao n. 3 dos Factos provados da sentença (FACTO 3) b) "4. Por conta das obrigações perante a Segurança Social, o arguido B, actuando sempre em nome, representação e interesse da sociedade arguida, descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários, relativas aos meses de Maio de 2005, Agosto de 2005 a Julho de 2006 e Novembro de 2010, o montante global de 7.047,81 € (sete mil e quarenta e sete euros e oitenta e um Cêntimos)" - Este ponto de facto corresponde ao n. 4 dos Factos provados da sentença (FACTO 4). 3º O FACTO 3 consubstancia matéria de Direito, pelo que deve ser excluído do elenco dos factos provados / factos não provados enumerados na sentença 4º O FACTO 4 deve ser dado por não provado, com base na seguinte prova: a) Declarações da testemunha C - nas seguintes passagens da gravação (em minutos e seguintes): 03:19a 03:50; 04:35a 04:46; 06:55a 07:20; 07:29a 07:58; b) Declarações da testemunha D - nas seguintes passagens da gravação (em minutos e seguintes): 06:35 a 06:54; c) Declarações da testemunha E - nas seguintes passagens da gravação (em minutos e seguintes): 01 :47 a 02:23; 02:30 a 03:03; 03:50 a 04:06; 05: 20a 05:52; d) Declarações do arguido B - nas seguintes passagens da gravação (em minutos e seguintes): 00:20 a 02:60; 06:00 a 07:50; 08:50 a 09:10; 09:30a 10:32 5º O depoimento da testemunha C é irrelevante, na medida em que se limita a interpretar as declarações de remunerações juntas ao processo, nada acrescentando em relação às mesmas (uma mera repetição) pelo que a sua valoração constitui erro notório na apreciação da prova - artigo 410° n. 2 c) do Código de Processo Penal- o que implica o reenvio do processo nos termos do artigo 426° n. 1 do mesmo Código. 6º As declarações de "remunerações", produzidas e enviadas pelo contabilista F, não correspondem à realidade, porque pressupõem o pagamentos de remunerações e a retenção das quotizações, factos estes que não ocorreram, conforme as declarações do arguido B e das testemunhas D e E. 7º O arguido B declarou que não pagou salários nem reteve quotizações - passagens da gravação especificadas no artigo 4° destas conclusões. 8º A testemunha D declarou que só recebeu um salário, sem retenção das quotizações - passagens da gravação passagens da gravação especificadas no artigo 4° destas conclusões. 9° A testemunha E declarou que só recebeu um salário, sem retenção das quotizações - passagens da gravação passagens da gravação especificadas no artigo 4° destas conclusões. 10º A valoração das declarações de "remunerações"; desconformes com a realidade, porque não houve pagamento de remunerações e retenção de quotizações; constitui erro notório na apreciação da prova - artigo 410° n02 c) do Código de Processo Penalo que implica o reenvio do processo nos termos do artigo 426° n01 do mesmo Código 11º O FACTO 4 deve ser considerado não provado. 12º O FACTO 4 não preenche a tipicidade do crime de abuso contra a segurança social, cujo tipo no-los é dado pelo artigo 107° n. 1 do RGIT, em articulação com os artigos 11°, 12°,258° e 276° do Código do Trabalho e com os artigos 44°,46°,42° n. 2, 40° n. 1 e 43° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social. 13º São elementos do tipo de crime de abuso contra a segurança social: a) Existência jurídica de contrato de trabalho (v.g. a identificação das partes e os demais elementos); b) O pagamento do salário; c) A efetivação e retenção do desconto para a Segurança Social, ou seja, a constituição de uma situação jurídica de depósito em que o gerente passa a ser depositário das quotizações; d) A não entrega, dentro do prazo, do desconto destinado à segurança social, o que se traduz na inversão do título de depósito para uma situação jurídica de apropriação. 14º O FACTO 4 não corresponde a tais elementos. 15º A matéria de facto provada - FACTO 4 - é insuficiente para a decisão, o que constitui o vício do artigo 410° n. 2 al. a) do Código de Processo Penal, o que obriga ao reenvio do processo nos termos do artigo 426° n. 1 do mesmo Código 16º Os factos dados como provados, na sentença, enumerados nos ns 1 a 20 sob a epígrafe 1. FACTOS PROVADOS, não preenchem o tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no artigo 107° n. 1 do RGIT. 17º Têm que ser provados os contratos de trabalho, pagamento das remunerações, a retenção das quotizações e a sua não entrega dentro do prazo legal; o que não foi feito. 18º A sentença, objeto do presente recurso, viola os artigos 11°, 12°, 258° e 276° do Código do Trabalho; os artigos 44°, 46°, 42° n. 2, 40° n. 1 e 43° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Socia; o artigo 107° n. 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias e o artigo 410° n. 2 al. a) e al. c) do Código de Processo Penal. Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso, decidindo-se o seguinte: a) Considerar-se não provado o FACTO 4 e absolver- se a arguida A; ou b) Considerarem-se verificados o vício de erro notório na apreciação da prova - artigo 410° n. 2 c) do Código de Processo Penal - e o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão - artigo 410° n. 2 a ) do Código de Processo Penal; reenviando-se o processo nos termos do artigo 426° n. 1 do Código de Processo Penal.
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B I – O recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social pp. pelos artigos 105.º, n.ºs 4 e 7 e 107.º n.º 1, ambos do RG.I.T., na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (três euros), no total de € 600,00 (seiscentos euros), sendo ainda, juntamente com a arguida Sociedade A, condenado no pagamento ao Instituto de Segurança Social, IP do montante de € 6.913,98, acrecido de juros até efetivo pagamento, bem como a taxa de justiça e respetivas custas. II – O Tribunal deu como provado no ponto II. DA FUNDAMENTAÇÃO, 1. Factos provados, n.º 4 que "Por conta das obrigações perante a Segurança Social, o arguido B, actuando sempre em seu nome, representação e interesse da sociedade arguida, descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários, relativas aos meses de Maio de 2005, Agosto de 2005 a Julho de 2006 e Novembro de 2007 a Novembro de 2010, o montante global de 7.047,81 € (sete mil e quarenta e sete euros e oitenta e um cêntimos) e também que, 19. Os montantes referentes a Maio de 2005 e Agosto a Outubro de 2005, foram declarados prescritos em 22.11.2011 pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, Secção de Processo Executivo de Beja" III - Formando a sua convicção no depoimento, decisivo, da testemunha C, bem como à documentação apresentada pela Segurança Social, I.P. IV – Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorretamente os referidos factos, porquanto em relação aos mesmos não foi produzida prova concludente. V – Com efeito, do depoimento das testemunhas, nada ficou provado daquilo que o Tribunal considerou provado. VI – Assim, da análise da prova produzida resulta que não ficou minimamente demonstrado que o recorrente "descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários, relativas aos meses de Maio de 2005, Agosto de 2005 a Julho de 2006 e Novembro de 2007 a Novembro de 2010, o montante global de 7.047,81 € (sete mil e quarenta e sete euros e oitenta e um cêntimos)", e nem que "Os montantes referentes a Maio de 2005 e Agosto a Outubro de 2005, foram declarados prescritos em 22.11.2011 pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, Secção de Processo Executivo de Beja". VII – Por outro lado, de todos os depoimentos, exceptuando o da testemunha C, resultou o contrário daquilo que foi considerado provado. VIII - Desta forma, o Tribunal a quo violou, entre outros: - o art.º 32.º n.º 2 (principio in dubio pro reo) da CRP; - os art.ºs 97.º, n.º 5 e 340.º do CPP IX - Por outro lado, do texto do acórdão recorrido resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a) do n.º 2 do art.º 410.º, do CPP. Em suma, nos presentes autos, não só ficou cabalmente que o recorrente não praticou o crime em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais vem acusado e quanto à sua culpa, pelo que deve ser absolvido do crime em que foi condenado. Termos em que, e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o acórdão recorrido, tudo com as legais consequências.
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O Ministério Público apresentou resposta, com as seguintes conclusões:
A. É a própria sociedade arguida que nas suas Alegações de recurso diz que “as ditas declarações de remunerações, cuja existência e validade dependem do pagamento das remunerações e da retenção das quotizações, que são pressupostos das mesmas. Primeiro pagam-se as remunerações e retêm-se as quotizações. Só depois se elaboram e enviam as declarações respectivas. Sem pagamento das remunerações e a retenção das quotizações não há lugar a emissão das respectivas declarações” o mesmo é dizer que se foram emitidas e enviadas aquelas declarações, então, é porque as remunerações foram pagas e as quotizações retidas. B. A conclusão de que o arguido descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores os montantes relativos às contribuições para a Segurança Social, encontra, pois, suporte razoável naquelas declarações de remunerações, pois que as mesmas não teriam sido emitidas nem enviadas se tal não tivesse acontecido. C. O arguido limita-se a argumentar que não se fez prova suficiente para se dar como provado que o arguido descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores os montantes relativos às contribuições para a Segurança Social, na medida em que, pasme-se, ele o nega. D. Isso mesmo já resultava da motivação da decisão de facto constante da Sentença, sucede, contudo, que, como ali se diz “o arguido prestou um depoimento que não nos mereceu qualquer credibilidade, mostrando-se muito hesitante e periclitante, dando apenas explicações à medida que ia sendo confrontado com os factos e dando resposta muito evasivas como “já não me lembro bem” e “acho que sim” e assumiu uma postura em julgamento de completa desculpabilização, colocando a responsabilidade do sucedido no contabilista e referido que mesmo depois de lhe dizer para não enviar as declarações, este o continuou a fazer. Tais declarações não nos mereceram qualquer credibilidade, pois não descortina este tribunal razão para o contabilista continuar a processar os descontos se o arguido lhe comunicasse que deixou de ter trabalhadores ao seu serviço. Não vislumbrou este tribunal qualquer razoabilidade nestas declarações”. E. E continua, “ao que acresce, se atentarmos nas declarações enviadas à Segurança Social referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2008, constatamos que são indicados os números de dias que os trabalhadores efectivamente prestavam serviço à sociedade arguida, o que atesta que a sociedade arguida através do seu gerente comunicava à contabilidade que trabalhadores tinha ao serviço nos períodos respectivos e sobre que número de dias deveriam incidir os descontos, pois se assim não fosse o normal seria que a contabilidade atendendo aos contratos de trabalho processasse os descontos mensalmente”. F. Até podia ser que numa situação em que não houvesse qualquer comunicação entre o gerente e o contabilista este emitisse e remetesse as declarações de remunerações com base nos contratos celebrados, mas não no caso em apreço em que, por um lado, o arguido terá dito ao contabilista para não enviar as declarações, e por outro lado, quando resulta demonstrado que a sociedade arguida através do seu gerente comunicava à contabilidade que trabalhadores tinha ao serviço nos períodos respectivos. Tal não seria razoável. G. Acresce que o arguido não suporta a sua versão com base em quaisquer meios de prova, além de que, verdadeiramente, não impugna as razões invocadas para a formação da convicção do tribunal. H. Resulta ainda da motivação da decisão de facto constante da Sentença que “relativamente à incoerência resultante da postura do arguido em sede de contestação escrita e em sede de julgamento, pois que naquela assumiu que fez planos prestacionais com a Segurança Social e que é seu propósito pagar a esta, portanto, admitindo que reteve as quantias indicadas na acusação e as tomou por boas, pois que ninguém assume o pagamento de quantias e celebra acordos prestacionais se efectivamente não reconhecer que deve, e agora trazer aos autos a versão de que não pagou quaisquer salários”. E neste particular nem outra conclusão se impunha. É evidente a contradição do arguido_ como quer agora fazer crer que não pagou quando lá atrás assumiu o pagamento das quantias em dívida… Daí que seja razoável a conclusão: se assumiu o pagamento, é porque reconhece que deve. I. Finalmente, decorre da motivação da decisão de facto constante da Sentença que “nem se diga que o depoimento das testemunhas E e D atestam as declarações do arguido, pois que as declarações enviadas à Segurança Social no que respeita a estes trabalhadores o foram nos períodos em que as mesmas disseram ter estado a trabalhar para a sociedade arguida”. J. Por tudo isto, é manifesto que a conclusão de que o arguido descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores os montantes relativos às contribuições para a Segurança Social encontra suporte razoável na prova constante dos autos e produzida em sede de audiência de julgamento, não só naquelas declarações de remunerações juntas aos autos, donde resultam os pagamentos dos salários e os descontos efectuados, mas sobretudo da postura anterior do arguido que tendo assumido o pagamento da quantia em dívida só poderá com isso significar que reconhece a dívida e ainda atendendo à completa falta de razoabilidade da explicação que deu em julgamento quando pretendeu fazer crer que foi o contabilista que, contra as suas instruções, processou os descontos e remeteu as declarações. K. Só se os meios de prova determinarem e forçarem decisão diversa da proferida é que se pode concluir ter a 1.ª instância incorrido em erro na apreciação da prova legitimador da respectiva correcção pelo Tribunal Superior. Não basta, pois, que as provas permitam, dentro da liberdade de apreciação das provas, uma conclusão diferente. A decisão diversa a que se alude terá que ser a única possível ou, concede-se, no mínimo, a possível mas com elevada probabilidade, e não apenas uma das possíveis dentro da liberdade de julgamento. L. O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente. Se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior. M. A decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada. N. No caso em apreço é manifesto que as razões justificativas invocadas para a formação da convicção do tribunal encontram suporte razoável nos meios de prova, nomeadamente, nas declarações de remunerações juntas aos autos donde resultam os pagamentos dos salários e os descontos efectuados, mas sobretudo da postura anterior do arguido que tendo assumido o pagamento da quantia em dívida só poderá com isso significar que reconhece a dívida e ainda atendendo à completa falta de razoabilidade da explicação que deu em julgamento quando pretendeu fazer crer que foi o contabilista que, contra as suas instruções, processou os descontos e remeteu as declarações. Por outras palavras, O. Não resulta demonstrada pelos meios de prova indicados pela recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, para que aquele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, o que não sucede. P. Aliás, constata-se que o arguido, ora recorrente, limita-se a argumentar que não se fez prova suficiente para se dar como provado que o arguido descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores os montantes relativos às contribuições para a Segurança Social, na medida em que pura e simplesmente ele o nega, mas nada mais diz acerca das acima mencionadas razões justificativas invocadas para a formação da convicção do tribunal. Q. Nada diz acerca da razão para que o contabilista continuasse a processar os descontos caso o arguido lhe tivesse comunicado que deixou de ter trabalhadores ao seu serviço;--- Nada diz acerca de resultar demonstrado que o gerente comunicava à contabilidade que trabalhadores tinha ao serviço nos períodos respectivos;--- e nada diz acerca do facto de o arguido ter assumido o pagamento das quantias em dívida o que não faria caso não reconhecesse que deve. R. Os fundamentos invocados pelo tribunal a quo para que tivesse dado como provado que o arguido descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores os montantes relativos às contribuições para a Segurança Social são logicamente razoáveis e os meios de prova supra referidos legitimam a razoabilidade das conclusões e a convicção do tribunal acerca de que o arguido descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores os montantes relativos às contribuições para a Segurança Social. S. A decisão proferida é assim legítima e razoável e a prova produzida não a exclui. Por conseguinte, a decisão baseada nos elementos de prova supra cabe no perímetro de razoabilidade permitido pela liberdade judicial de apreciação da prova, sendo o julgamento assim proferido inatacável. Fica-nos, assim, a convicção criada no espírito do julgador pela prova produzida. T. Em conclusão: não é possível alterar a decisão da matéria de facto, pois que a prova produzida não impõe decisão diversa da proferida e daí que fique prejudicada a apreciação da decisão jurídica, improcedendo, pois, o recurso. Termos em que deverá considerar-se que a Sentença não incorre em qualquer erro notório de apreciação da prova e, não sendo possível alterar a decisão da matéria de facto, deverá a mesma ser integralmente confirmada, com a improcedência do recurso.
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A Exmª. Procuradora-geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer defendendo a improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e o arguido não apresentou resposta.
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B - Fundamentação: B.1.1 -O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. A arguida A., é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto social a manutenção e reparação de imóveis e serviços de limpeza.
2. O arguido B é sócio gerente da arguida A., e nessa qualidade actua em nome, representação e interesse da mesma.
3. O arguido B, em nome, representação e interesse da sociedade arguida, estava obrigado a descontar mensalmente das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários os montantes relativos às contribuições a efectuar à Segurança Social, montantes esses que, até ao décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que respeitassem, estava, igualmente, obrigado a enviar à Segurança Social.
4. Por conta das obrigações perante a Segurança Social, o arguido B, actuando sempre em nome, representação e interesse da sociedade arguida, descontou das remunerações que efectivamente pagou aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários, relativas aos meses de Maio de 2005, Agosto de 2005 a Julho de 2006 e Novembro de 2007 a Novembro de 2010, o montante global de 7.047,81 € (sete mil e quarenta e sete euros e oitenta e um cêntimos).
5. O arguido B, actuando sempre em nome, representação e interesse da sociedade arguida, decidiu, atentas as dificuldades económico-financeiras por que a mesma se encontrava a passar, assegurar o pagamento de salários e fornecedores, optando por não entregar à Segurança Social o montante global de 7.047,81 € (sete mil e quarenta e sete euros e oitenta e um cêntimos) nem até ao décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que respeitavam cada um dos descontos efectuados nem nos noventa dias subsequentes, bem sabendo que a tal estava obrigado.
6. Depois de notificado para o efeito, o arguido B também não pagou o montante de 7.047,81 € (sete mil e quarenta e sete euros e oitenta e um cêntimos) no prazo de trinta dias que lhe foi concedido para o efeito.
8. O arguido B agiu com o inequívoco e bem sucedido propósito de alcançar para a arguida A. – em nome e no interesse da qual actuou – uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em beneficio da mesma da quantia de 7.047,81 € (sete mil e quarenta e sete euros e oitenta e um cêntimos), a que sabia não ter direito.
9. O arguido B agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, em nome, representação e no interesse da sociedade arguida, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
10. O arguido B é empresário na área da limpeza auferindo mensalmente uma quantia que estima em cerca de € 700,00 a € 800,00.
11. Vive com a esposa que se encontra desempregada e dois filhos de oito e cinco anos de idade.
12. Tem outro filho de 16 anos que vive com a mãe e para quem contribui com a quantia de € 80,00 mensais.
13. Paga a título de renda de casa a quantia de € 400,00 mensais.
14. Está a pagar em prestações duas multas no montante de € 500,00 e € 1.500,00.
15. A sociedade arguida tinha um volume de negócios que estima em cerca de € 9.000,00 mensais e tinha ao seu serviço cerca de 8/10 trabalhadores, encontrando-se neste momento inactiva.
16. Não tem qualquer património.
17. Ao arguido B são conhecidos os seguintes antecedentes criminais:
a) em 03-11-2004, por sentença transitada em julgado em 18-11-2004, proferida no âmbito do Processo n.º 257/03.5 TAEVR do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Évora, pela prática, em 01.10.2002, de um crime de violação de obrigação de alimentos, na pena de três meses de prisão suspensa por dois anos na condição de pagar à ofendida € 1.800,00 no prazo de seis meses, já declarada extinta por despacho de 06/03/2007;
b) em 16-11-2007, por sentença transitada em julgado em 28-04-2008, proferida no âmbito do Processo n.º 98/04.2 TAEVR do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Évora, pela prática, em 2001, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 6,00, já declarada extinta por despacho de 24/09/2010;
c) em 22-11-2010, por sentença transitada em julgado em 01-12-2010, proferida no âmbito do Processo n.º 2751/08.2 PAPTM do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, pela prática, em 13.10.2008, de um crime de abuso de confiança, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 6,00;
d) em 15-03-2011, por sentença transitada em julgado em 04-04-2011, proferida no âmbito do Processo n.º 282/08.0 GCPMT do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Portimão, pela prática, em 2008 de um crime de ameaça agravada na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
18. O arguido tem de habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.
19. Os montantes referentes a Maio de 2005 e Agosto a Outubro de 2005, foram declarados prescritos em 22.11.2011 pelo Instituto de Gestão Financeira da segurança Social, IP, Secção de Processo Executivo de Beja.
20. Em 11 de Abril de 2012 foi deferido um plano prestacional pela Segurança Social, para pagamento das quantias em divida.
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B.1.2 – Não se provaram os seguintes factos da contestação com relevância para a decisão da causa:
1. Conforme indicação dos serviços da Segurança Social a divida relativa ao ano de 2005 e até Julho de 2006 foi considerada prescrita.
2. A divida actual respeita ao período compreendido entre Novembro de 2007 a Novembro de 2010.
3. Que neste momento o arguido está a cumprir um acordo de pagamento firmado com a segurança Social.
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B.1.3 –E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto: «Para alicerçar a sua convicção, o Tribunal atribuiu relevância ao conjunto da prova produzida e analisada em sede de audiência, entrecruzada com os documentos juntos aos autos, segundo a livre convicção do julgador e as regras da lógica e da experiência comum. O arguido em declarações referiu que deixou de pagar à Segurança Social as importâncias devidas, atenta as dificuldades financeiras porque a sociedade passou, tendo, inclusive, deixado de pagar os salários dos trabalhadores. Mais referiu que a sociedade deixou de ter actividade em Janeiro/Fevereiro de 2009 e tentou fazer acordos com a Segurança Social e iniciou pagamentos em prestações por conta dos montantes em divida, mas não conseguiu cumprir o plano acordado. Esclareceu que não obstante não ter trabalhadores ao serviço desde o início de 2009, o contabilista continuou a enviar as declarações para a Segurança Social, mesmo depois de lhe dizer para não o fazer. Terminou por dizer que também desde o inicio de 2009 não auferia qualquer salário como gerente da sociedade arguida. Confrontado com o teor de fls.347 a 354, qual seja, a declaração da Autoridade Tributária e Aduaneira onde resulta que a sociedade arguida à data de 01.10.2012 encontra-se em actividade desde 04.08.2004, referiu que foi o contabilista que não encerrou a actividade. A testemunha C, cuja razão de ciência assenta no facto de ser funcionário da Segurança Social desde Setembro de 2010, referiu que o montante das quotizações que foram retidas e não entregues cifram-se em € 7047,81, mas apenas está em divida o valor de € 6.913,98, uma vez que os valores anteriores a Novembro de 2005 foram declarados prescritos pela Segurança Social. Mais esclareceu que tais montantes foram apurados de acordo com as declarações enviadas pela sociedade. Confirmou que foram feitos planos prestacionais com o arguido, sendo que o último é referente a contribuições e quotizações, sendo o valor em divida de € 31.000,00. Prestou um depoimento, isento, imparcial e convicto e por isso positivamente valorado pelo tribunal. A testemunha D, trabalhador da sociedade arguida, referiu que exerceu funções na mesma desde 18 de Novembro de 2008 a 15 de Fevereiro de 2009 e confirmou que o arguido era o gerente da sociedade arguida. Por sua vez a testemunha E referiu que trabalhou na sociedade arguida nos finais de 2008 princípios de 2009 e que exercia funções de pedreiro. Ambas as testemunhas de forma pouco esclarecedora, porque evasiva, referiram que apenas receberam um salário e que não lhes foi passado qualquer recibo, sendo que o vencimento era equivalente ao salário mínimo nacional. Por sua vez, o arguido prestou um depoimento que não nos mereceu qualquer credibilidade, mostrando-se muito hesitante e periclitante, dando apenas explicações à medida que ia sendo confrontado com os factos e dando respostas muito evasivas, como “ já não me lembro bem” “ acho que sim” e assumiu uma postura em julgamento de completa desculpabilização, colocando a responsabilidade do sucedido no contabilista e referido que mesmo depois de dizer a este para não enviar as declarações, este o continuou a fazer. Tais declarações não nos mereceram qualquer credibilidade, pois não descortina este tribunal razão para o contabilista continuar a processar os descontos se o arguido lhe comunicasse que deixou de ter trabalhadores ao seu serviço. Não vislumbrou este tribunal qualquer razoabilidade nestas declarações. E nem se diga, que o depoimento das testemunhas E e D, atestam as declarações do arguido, pois que, as declarações enviadas à Segurança Social no que respeita a estes trabalhadores o foram nos períodos em que as mesmas disseram ter estado a trabalhar para a sociedade arguida, excepção feita à declaração de fls. 151 que se reporta ao mês de Abril de 2009, referente à testemunha E. Daqui resulta que o arguido comunicou à contabilidade respectiva, quando e quais os trabalhadores que deixaram de estar ao seu serviço, ao que acresce, se atentarmos nas declarações enviadas à Segurança Social referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2008, constatamos que são indicados os números de dias que os trabalhadores efectivamente prestavam serviço à sociedade arguida, o que atesta que a sociedade arguida através do seu gerente comunicava à contabilidade que trabalhadores tinha ao serviço nos períodos respectivos e sobre que número de dias deveriam incidir os descontos, pois se assim não fosse o normal seria que a contabilidade atendendo aos contratos de trabalho processasse os descontos mensalmente, ou seja, por referência a trinta dias. E não se olvidando que não é ao arguido a quem cabe fazer a prova da acusação, pois que é o Ministério Público quem tem de provar que os factos constantes dos autos são crime e que foram praticados pelo arguido, sempre se dirá, que estando as declarações enviadas à Segurança Social pela sociedade arguida nos autos, a prova que cabia ao Ministério Público está feita, o que significa, que era o arguido quem tinha de provar a nova versão dos factos que trás aos autos, o que, para nós, não logrou conseguir. Por outro lado, e não descurando este tribunal que a prova é feita em audiência de julgamento, impõe-se umas breves palavras, relativamente, à incoerência resultante da postura do arguido em sede de contestação escrita e em sede de julgamento, pois que naquela assumiu que fez planos prestacionais com a Segurança Social e que é seu propósito pagar a esta, portanto, admitindo que reteve as quantias indicadas na acusação e as tomou por boas, pois que ninguém assume o pagamento de quantias e celebra acordos prestacionais, se efectivamente não reconhecer que deve, e agora trazer aos autos a versão de que no período entre Fevereiro de 2009 e Novembro de 2010 não pagou quaisquer salários. Ora, é sabido que, na formação da sua livre convicção, ao Tribunal não está vedada a possibilidade de retirar ilações dos factos probatórios, socorrendo-se de um raciocínio dedutivo ou indutivo, apoiado nos princípios da lógica e fundamentado nas regras do normal acontecer. Não se duvidando, pois, da incontornável impossibilidade de alcançar um conhecimento esgotante da realidade fenomenológica passada no sentido suposto pela afirmação de uma certeza histórica quanto à verificação dos factos introduzidos em juízo, impõe-se seja feita uma apreciação global e correlativa de toda prova produzida, valorando-a dialecticamente e inferindo a partir dos factos expressamente afirmados aqueles outros que são sugeridos por um critério de experiência comum ou pela lógica subjacente à normalidade das coisas. Por tudo isto e porque o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de julgamento não invalida a prova produzida nos autos através de documentos e corroborada pela testemunha C, as declarações do arguido não resistiram à objectividade e concludência de tais meios de prova. Por último, relevou ainda o teor, devidamente ponderado, de todos os demais documentos juntos aos autos, designadamente: - mapa de valores deduzidos e não entregues de fls.6 a 13, 35 a 50, 229 a 244; - certidão de registo comercial de fls.66 a 69; e - notificação para pagamento voluntário de fls.219, e - extractos de remunerações de fls.72 a 75, 92 a 173. Quanto à situação económica e pessoal do arguido baseou-se o tribunal nas declarações do arguido, não se descortinando, nesta parte razões para lhe retirar credibilidade. Relativamente aos antecedentes criminais, o tribunal valorou o certificado do registo criminal juntos aos autos. Quanto aos factos não provados da contestação tal resultou de prova diametralmente oposta, pois no que concerne ao ponto 3. foi o próprio arguido quem referiu que fez planos prestacionais com a Segurança Social, mas que não cumpriu por dificuldades económicas, e quantos aos factos sob os incisos 1 e 2 tal resultou das declarações da testemunha C que confirmou que o valor em divida, por efeito da prescrição, dizia respeito apenas ao período de Novembro de 2005 a Julho de 2006 e Novembro de 2007 a Novembro de 2010.»
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Cumpre conhecer. B.2.1 - O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência, ou não, dos vícios indicados no art. 410°, n.° 2, do Código de Processo Penal de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/10/95 in D.R., I-A de 28/12/95.
Três são as questões a abordar no recurso da arguida, duas no recurso do arguido. Estas duas coincidem com as duas primeiras do recurso da arguida. São elas:
- a insuficiência da matéria de facto para a decisão, enquanto vício de conhecimento oficioso - conclusão 15ª da arguida e IX do arguido;
- a impugnação dos factos provados 4 – recursos de ambos os arguidos – e 3 (recurso da arguida) - conclusões 2ª a 11ª da arguida e II a VIII do arguido;
- a não integração dos factos no tipo penal imputado - conclusões 12 a 14 e 16ª e 17ª da arguida;
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B.2.2 – O facto dado como provado em 3. como matéria de direito.
Alega a arguida que o facto provado sob 3) é exclusiva matéria de direito. Reza tal facto: “O arguido B, em nome, representação e interesse da sociedade arguida, estava obrigado a descontar mensalmente das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros de órgãos estatutários os montantes relativos às contribuições a efectuar à Segurança Social, montantes esses que, até ao décimo quinto dia do mês seguinte àquele a que respeitassem, estava, igualmente, obrigado a enviar à Segurança Social”.
É certo que não se pode afirmar que o parágrafo que antecede esteja prenhe de factos naturalísticos puros, à excepção do nome do arguido e das expressões “montante” e “décimo quinto dia”. Nem sequer os termos “sociedade”, “trabalhadores”, “remunerações”, “mês seguinte”, “membros de órgãos”, “contribuições”, “Segurança Social” são factos naturalísticos puros, idênticos a “noite”, “faca”, “veneno”, etc.
Mas também é verdade que todas as realidades constantes de tal parágrafo têm um significado que já entrou no discurso quotidiano, ao menos em sectores especificados da sociedade. Têm um significado que, sendo técnico, já entrou na linguagem vulgar e são entendidos pelo cidadão comum, não obstante o nível de compreensão possa variar consoante o grau de cultura.
E sendo o arguido um empresário com o 9º ano de escolaridade e sócio gerente da sociedade arguida sabe, seguramente, o significado dos termos utilizados.
Não se tratando, de facto, de factos “brutos”, é inquestionável que os “factos processados” referidos no indicado parágrafo não põem em causa o direito de defesa do arguido.
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B.2.3 – O recurso sobre matéria de facto está estabelecido na lei quer para apreciação dos vícios indicados no nº. 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, quer para a apreciação de outros vícios de facto da decisão, desde que possam ser apreciados numa base puramente racional (erros de apreciação, erros de raciocínio, contradições, insuficiências) e que assentem numa base factual ou probatória existente nos autos (lógica factual, prova documental ou por referência a declarações orais documentadas).
Recentemente o STJ, por acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/2012 veio a consagrar a seguinte jurisprudência, alterando ligeiramente o entendimento anterior sobre o ónus de impugnação recursal: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às provadas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Podemos concluir que as exigências se apresentam agora com uma configuração alternativa quanto a um dos requisitos e ao recorrente é exigível que cumpra os seguintes ónus processuais:
a) A indicação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
b) A indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
c) Se a acta contiver essa referência, a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal);
d) Ou, alternativamente, se a acta não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).
E, há que convir, os recorrentes cumpriram, de forma cabal, completa e explícita o seu ónus de impugnação quanto aos requisitos formais, pelo que conheceremos de facto.
Indicaram os pontos de facto que são objecto da sua impugnação, fazendo-o por remissão para prova oral (declarações e depoimentos), indicando as concretas passagens por remissão para a acta.
Resta saber se as razões da impugnação dos recorrentes impõem uma diversa apreciação, visto não bastar que se indiquem as provas que permitam uma diversa apreciação da matéria de facto. O legislador exige que a recorrente indique as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto.
E este é desiderato que os recorrentes não logram alcançar.
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B.2.3 - A inconformidade revelada pela recorrente arguida revela um vício de raciocino, aliás bem demonstrado pelo magistrado do Ministério Público no tribunal recorrido.
Afirma a não prova de existência de contratos de trabalho e inexistência de remunerações e respectivas deduções, fundamentando a afirmação com as características do depoimento da testemunha C (mera confirmação do que consta de documentos constantes dos autos) e os depoimentos de testemunhas (D, G ou E) a afirmarem a existência de apenas um salário e inexistência de deduções. Faz o arguido acrescer as suas próprias declarações como elemento de prova determinante para se concluir que as declarações enviadas pelo contabilista foram abusivas e contra as suas instruções.
Ora, não só estes elementos de prova não “impõem” outra decisão, como sequer “permitem” outra convicção.
É evidente que um depoimento meramente esclarecedor de outros meios de prova é admissível. Também não exclui esse depoimento a força probatória dos documentos referidos pela testemunha e outros não referidos e constantes dos autos.
O mais que se pode afirmar é que o depoimento é inútil se os documentos já existem nos autos e fazem prova dos factos que são “objecto” do processo. Mas essa inutilidade deixa de existir se o tribunal entende que o depoimento é necessário para explicitar os documentos.
Os depoimentos das testemunhas – actuais ou anteriores e possivelmente futuros trabalhadores dos arguidos – não impõem qualquer tipo de convicção e são de mais que discutível credibilidade se pretendem convencer que o contrato de trabalho celebrado se destinava a durar por um mês.
Por outro lado está por esclarecer o sentido das expressões “só recebeu um salário” e “não lhe fez nenhum desconto para a Segurança Social”. E se esse sentido é favorável aos arguidos. Mas seja qual for o significado das expressões elas nunca poderão ser entendidas como salvíficas.
Pouco crível é, igualmente, que o contabilista assuma a existência de contratos de trabalho inexistentes e os declare contra expressa indicação dos arguidos.
E aqui centramos a fundamentação naquilo que parece ter escapado aos recorrentes.
Primo, o sistema é declarativo, no sentido de que se os arguidos declaram que têm trabalhadores, que lhes pagaram salários e que efectuaram descontos a opção legislativa vai no sentido de as assumir como existentes.
Secundo, se houve alteração das circunstâncias de facto impõe-se uma obrigação declarativa contrária e, máxime, a cessação da actividade em termos formais. Não basta cessar, é necessário declarar a cessação.
Tertio, se o contabilista contrariou instruções expressas, essa prova impõe-se em sede de audiência de julgamento de forma adequada, pois que nenhum tribunal acreditará que um contabilista contrarie instruções declarativas por declarações de arguido em sede de julgamento. Não é crível.
Muito menos no decurso de um prazo de incumprimento que se espraia de Maio de 2005, Agosto de 2005 a Julho de 2006 e Novembro de 2007 a Novembro de 2010. São, no total, quatro anos. Aliás, neste ponto é ver os documentos de fls. 92 a 172, resultantes das declarações da arguida à Segurança Social. Quatro anos de incumprimento e de resistência do contabilista à realidade empresarial? E porque se manteve o seu contrato com a empresa arguida?
Ou seja, as razões apontadas pelos recorrentes não têm a capacidade de sustentar – cada uma de per si ou em conjunto – as pretensões de impugnação.
Aliás, a argumentação dos recorrentes apresenta alguns alçapões lógicos.
Desde logo o apontado pelo Ministério Público em sede de resposta ao recurso. Depois, a recorrente alega a inexistência de contratos de trabalho por mais de um mês em contra-posição com a afirmação – fls. 411, in fine – de que o contabilista enviou as declarações apenas com base nos contratos de trabalho, sem querer saber se os salários haviam sido pagos e os descontos efectuados. Ou seja, afinal os contratos de trabalho existiriam, os salários e os descontos é que poderiam não existir, ocasionalmente ou por sistema.
Em suma, não só não ocorre o vício de conhecimento oficioso previsto no artigo 410º, n. 2, al. c) do Código de Processo Penal como os recorrentes não demonstram – em sede de impugnação de factos nos termos do artigo 412º, ns. 4 e 5 do mesmo diploma - que se imponha diversa apreciação factual.
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B.4 – Os recorrentes vieram arguir, igualmente, a existência de insuficiência da matéria de facto para a decisão, enquanto vício de conhecimento oficioso. No entanto nada adiantam que sustente tal afirmação, bastando-se com a afirmação da sua existência.
E essa postura verifica-se quer nas conclusões, quer nas motivações pelo que o tribunal não pode convidar os recorrentes a explicitar a sua posição pois que isso corresponderia à concessão de novo prazo de recurso. Não se vislumbra o vício oficiosamente.
Se a razão da afirmação se funda na inexistência de elementos constantes do tipo, essa será matéria analisada infra.
Razão porque esta razão recursiva é improcedente. * B.5 – O motivo final de inconformidade da recorrente concretiza-se na invocação de não integração dos factos no tipo penal imputado.
Em seu entender o tipo penal – o abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do RGIT – integra os seguintes elementos: o contrato de trabalho, o pagamento do salário, a efetiva retenção do desconto e a não entrega dentro do prazo legal.
Quer-nos parecer, no entanto, que o artigo 107º do RGIT não permite tal leitura, considerando que, nos termos do artigo 9º n. do Código Civil, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
O que o tipo penal contempla é que as entidades empregadoras “que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas …”
Ou seja, comete este crime quem não entregar à segurança social, total ou parcialmente, prestação deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar.
Isto é, também nesta sede argumentativa os arguidos olvidaram o cariz declarativo do sistema de pagamentos à Segurança Social.
Porque foram os próprios arguidos que declararam a existência dos contratos de trabalho, remunerações e descontos.
Assim, de acordo com a disciplina legalmente prevista, as entidades empregadoras procedem de acordo com as suas próprias declarações ao desconto no vencimento bruto dos trabalhadores que mensalmente remuneram do montante correspondente à percentagem legalmente fixada, montante esse que, estando originariamente afecto à segurança social, passam a deter de forma precária, a título de fieis depositárias.
Razão por que havia quem entendesse em sede de RJIFNA – vide acórdão do STJ de 14-03-2001 - que o bem jurídico tutelado era a “segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico com documentos no domínio específico da prática fiscal – e não o património fiscal como tal – que configura o bem jurídico directa e primacialmente protegido” pelo tipo de abuso de confiança fiscal.
As diferenças dogmáticas entre os tipos dos dois regimes e entre o crime de abuso fiscal e o contra a Segurança Social não alteram essa apreciação, com a qual concordamos.
É certo que hoje se propende para considerar “bem jurídico tutelado” a “arrecadação dos tributos recebidos ou retidos” [1] mas o certo é que nos elementos objectivos do tipo se supõe a existência de contrato de trabalho, do pagamento do salário e a efetiva retenção do desconto.
Assim, face à declaração dos arguidos, o Ministério Público não tem que fazer prova de que os elementos fornecidos pelos próprios arguidos correspondem à realidade fáctica.
Só tem que fazer prova de que os arguidos declararam e omitiram o dever de pagamento do devido. E desta forma se dá ao tipo penal “abuso de confiança” fiscal (em sentido amplo) uma específica conformação em que aquilo que são os pressupostos do ilícito criminal (contrato de trabalho e salário) se supõem certos e seguros em função da própria actividade declarativa das entidades patronais arguidas que nem se vê necessidade de os incluir nos elementos objectivos do tipo.
De outra banda esta conformação do tipo penal reflecte-se, naturalmente, na concreta prova a produzir, conforme se pode constatar no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04-06-2013 (Processo 952/09.5TALLE.E1, relatora a Desemb. Ana Barata de Brito) «(1). Na ausência de contra-indícios, as declarações de remunerações remetidas pelo próprio arguido/contribuinte à Segurança Social – declarações onde constam discriminados os trabalhadores do empregador/arguido, os montantes dos salários pagos e as contribuições retidas – constituem prova (indirecta) bastante de que tais remunerações foram pagas e deduzidas as contribuições devidas à Segurança Social.»
Assim é indubitável, em qualquer dos meses a que nos reportamos, que os montantes retidos pela sociedade arguida pertenciam à segurança social, razão pela qual àquela apenas era consentido que actuasse como detentora, encontrando-se-lhe vedado que dos mesmos dispusesse como sendo bens próprios e disponíveis.
Provou-se igualmente que o arguido, legal representante da sociedade arguida, actuou de forma voluntária, consciente e livre, bem sabendo que os montantes referentes às contribuições, deveriam ser entregues nos cofres do Estado e não ignorando que a não entrega correspondia a conduta ilegal e punível.
E tanto sabia que, por factos de 2001, sentença de 2007, transitada em julgado em 2008 - facto provado 17, c) – já o arguido foi condenado por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Enfim, mostram-se preenchidas as condições de punibilidade previstas no artigo 105.º do RGIT, uma vez que não foram entregues à Segurança Social as importâncias liquidadas, no prazo de 90 dias a contar do termo do prazo previsto para a entrega (105.º, n.º 4 do RGIT), nem se procedeu ao pagamento no prazo de 30 dias das prestações em dívida, apesar de os arguidos terem sido notificados para tal, com a informação de que, caso o fizessem, tais factos não seriam considerados para efeitos de julgamento.
Convém recordar que para a verificação do crime não é necessário que o agente retire um proveito directo das quantias retidas, exigindo apenas a lei a apropriação, para que se verifique o crime em análise, independentemente da finalidade que lhe venha a ser dada. [2]
Resta afirmar que não ocorre falta de fundamentação na decisão recorrida nem razão alguma para que se faça operar o princípio in dubio pro reo.
Operar o princípio in dubio pro reo pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório, o que manifestamente não ocorre no caso dos autos.
Razões porque o recurso é totalmente improcedente.
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C - Dispositivo: Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 2ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em declarar improcedentes os recursos interpostos.
Custas pelos arguidos com 4 (quatro) UCs de taxa de justiça.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 21 de Outubro de 2014
João Gomes de Sousa
Felisberto Proença da Costa
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[1] - Prof. Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário”, pag. 243, UCE, 2009.
[2] - Cfr. Acórdãos da Relação de Lisboa, de 15.02.2007 e 07-05-2013.