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BURLA TRIBUTÁRIA
CRIME DE RESULTADO
Sumário
I – O crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87.º do RGIT, exige, para o seu preenchimento, um comportamento ativo do agente, não se bastando com conduta omissiva do mesmo – a não comunicação à Segurança Social do início de nova atividade profissional.
II – Ao agente que, depois de lhe ter sido legitimamente concedido o subsídio de desemprego pelos Serviços da Segurança Social e passando a recebê-lo, não comunicou posteriormente a alteração das condições que estiveram na base da concessão desse subsídio, apenas pode ser imputada a prática de contra-ordenação, por preterição da obrigação legal dessa comunicação, nos termos dos arts. 42.º e 64.º do Dec. Lei n.º 220/2006, de 03.11.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal (1ª subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 9/06.0 TALLE, do 1º Juízo de Competência Criminal, do Tribunal Judicial de Loulé, mediante acusação do Ministério Público, precedendo apresentação de pedido de indemnização civil [deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P.], sem contestação por banda da arguida, foi submetida a julgamento a arguida A., filha de…, natural de …, concelho de Albufeira, nascida em 07.10.1965, divorciada e residente em … Alte, e por sentença proferida em 07.03.2008 e depositada em 14.05.2008, foi decidido:
“(…)
a) Condenar a arguida A. pela prática, em autoria material, de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87º, nº 1, do RGIT, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 4 (quatro euros), perfazendo o total de € 560;
b) Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Instituto da Segurança Social, I.P., e, consequentemente, condenar a arguida/demandada a pagar à identificada entidade a quantia de € 2.890,53 (dois mil oitocentos e noventa euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a notificação do pedido deduzido até integral pagamento;
(…)”.
Inconformada com a decisão, dela recorreu a arguida, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
“a. A Recorrente não determinou a Segurança Social a pagar-lhe quaisquer importâncias indevidas, uma vez que a Segurança Social tomou legitimamente essa decisão em Fevereiro de 2004, e a recorrente somente em Abril de 2004 passou a ter actividade remunerada.
b. O simples silêncio da Recorrente, nada dizendo sobre o seu emprego posterior, não preencheria o tipo legal do art. 81º do RGIT, pois este exige mais do que um simples aproveitamento da situação pré-existente, ainda que a Segurança Social desconhecesse o facto objecto do dever de comunicação.
c. Ocorre que, neste caso, a Segurança Social foi avisada de que a Recorrente estava a trabalhar, pois a entidade patronal participou tal facto mensalmente de Abril a Outubro de 2004, bem como pagou à mesma Segurança Social as contribuições devidas por esse trabalho remunerado.
d. De igual modo procedeu a Recorrente, que aceitou o desconto no seu salário das contribuições devidas e a sua entrega à Segurança Social.
e. A lei não prevê nenhuma forma especial de comunicação, pelo que, pelo menos para efeitos criminais, deve ter-se assim por preenchida a obrigação de comunicação.
Face ao exposto, requer-se a V. Exas. se dignem reformar a douta sentença a quo, absolvendo a Recorrente da prática do crime p. e p. pelo n.º 1 do art. 87º do Regime Geral das Infracções Tributárias, por não corresponder a sua conduta a qualquer ilícito criminalmente relevante.”.
Admitido o recurso [cfr. fls. 223], notificados os devidos sujeitos processuais, respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, concluindo que:
“1. O crime de burla tributária, previsto e punido pelo art. 87º do RGIT, pode ser praticado através de uma conduta omissiva do agente, verificados que se mostrem os requisitos definidos no art. 10º do Código Penal.
2. Todo aquele que beneficia de subsídio de desemprego tem o especial dever jurídico de comunicar à Segurança Social qualquer circunstância susceptível de determinar a cessação do pagamento do referido subsídio.
3. Uma dessas circunstâncias é o exercício de uma actividade profissional por conta própria ou por conta de outrem (art. 37º, nº 1-a), do Decreto-Lei nº 119/99, de 14 de Abril).
4. Este especial dever jurídico integra o pressuposto de aplicação do regime estabelecido no nº. 2 do art. 10º do Código Penal.
5. A arguida tinha conhecimento da obrigação de fazer essa comunicação.
6. Não a fazendo, incorreu na prática do crime de burla tributária, previsto e punido pelo art. 87º do RGIT.
7. Por tudo o exposto, deve a sentença recorrida ser confirmada e, em consequência, negar-se provimento ao recurso.
No entanto, Vossas Excelências ponderarão e farão, como sempre, justiça.”.
Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer afirmando que “(…)
Adere-se à argumentação expendida na Resposta ao recurso dada pela S.ª Procuradora Adjunta (…)”, concluindo, em consequência, que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela arguida.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido usado o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.
Foi realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II Como é sabido, o âmbito do recurso – seu objecto e poderes de cognição – afere-se e delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas no artigo 410º, nº 2, do aludido diploma, as cominadas como nulidade da sentença (cfr. artigo 379º, nºs 1 e 2, do mesmo Código) e as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
Vistas as conclusões do recurso em apreço, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância é a seguinte:
(1)- Saber se o silêncio da arguida, não comunicando à Segurança Social, facto susceptível de determinar a suspensão do subsídio social de desemprego que a arguida vinha auferindo, a faz incorrer na prática de um crime de burla tributária.
III
A sentença recorrida encontra-se fundamentada nos termos seguintes, que se transcrevem na parte pertinente ao conhecimento do recurso:
II.FUNDAMENTÇÃO A)FACTOS PROVADOS DA ACUSAÇÃO
L°. A arguida requereu em 09.01.2004 no Centro Distrital de Segurança Social de Faro subsídio de desemprego, o qual lhe foi deferido no dia 10.02.2004,por 540 dias, no montante de € 11,77 diários, com início em 09.01.2004.
2°. O subsídio foi processado até 31.01.2005, tendo cessado nesta data porquanto apurou a Segurança Social que a arguida, desde 01.04.2004 cumulava o subsídio de desemprego referido com retribuição de trabalho por conta de outrem.
3°. Efectivamente a arguida havia iniciado actividade laboral remunerada ao serviço da sociedade S.., SA, constando das folhas de remuneração deste contribuinte desde Abril de 2004.
4º. A arguida aquando da celebração do contrato de trabalho com a S…, S.A., não deu conhecimento do facto à Segurança Social, bem assim não comunicou à Segurança Social que cessasse a prestação de desemprego de que beneficiava.
5°. Beneficiou a arguida, indevidamente, de subsídio social de desemprego no montante global de € 3.522,00, correspondente ao período que mediou entre 01.04.2004 e 31.01.2005, correspondente ao período de tempo em que cumulou o subsídio de desemprego com a retribuição decorrente do contrato de trabalho.
6º. A Segurança Social só continuou a atribuir o subsídio de desemprego à arguida a partir de Abril de 2004 na convicção errónea de que a arguida se mantinha e manteria na situação de desemprego uma vez que a arguida não lhe deu conhecimento de que a sua situação de desemprego havia cessado, comunicação que bem sabia a arguida ser obrigatória.
7º. Com tal omissão pretendeu e logrou a arguida beneficiar do subsídio de desemprego, bem sabendo que a ele não tinha direito a partir de Abril de 2004, auferindo assim de prestação social que sabia indevida e lesando o património da Segurança Social, que a tal se opunha.
8º. Não desconhecia a arguida que ao iniciar a actividade laboral por parte de outrem estava obrigada a comunicar o início da actividade.
9°. Era do conhecimento da arguida que o subsídio de desemprego é uma prestação que visa a reparação na eventualidade de desemprego de beneficiários abrangidos pelo regime geral.
10°. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
11°. A arguida é beneficiária da Segurança Social n.º ------.
12°. Do referido montante indevidamente pago foi efectuada compensação com subsídios entretanto processados à beneficiária no montante global de € 631,46 (seiscentos e trinta e um euros e quarenta e seis cêntimos), encontrando-se o remanescente, no total de € 2.890,53 (dois mil oitocentos e noventa euros e cinquenta e três cêntimos), em dívida.
Mais se provou que:
13°. A arguida não tem antecedentes criminais.
14º. A arguida exerce serviços de limpeza no ramo da hotelaria sazonalmente, auferindo cerca de € 500 mensais.
15°. A arguida tem um filho menor com 9 anos de idade.
16°. A arguida tem o 4.° de escolaridade.
** B) FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram quaisquer outros factos além destes, contrários a estes ou com estes incompatíveis, não se tendo provado, designadamente, que a arguida sabia que a obrigação de comunicação que sobre si impendia tinha que ser cumprida no prazo de 24 horas.
** C) MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal quanto à veracidade dos factos considerados provados formou-se com base na apreciação global da prova produzida em audiência.
A arguida não prestou validamente declarações sobre os factos de que vinha acusada.
Consideraram-se, desde logo, os dados objectivos extraídos dos documentos juntos aos autos, designadamente, o requerimento de prestações de desemprego e a declaração de situação de desemprego, cuja cópia encontra-se junta a fls. 24 e 25, o despacho de deferimento do Instituto de Segurança Social, (fls. 27) o extracto de declaração de remunerações referente à sociedade S…, SA, do qual resulta que a referida sociedade declarou que entre Abril e Outubro de 2004 teve ao seu serviço a arguida, pagando-lhe um salário de cerca de 530 € mensais, a declaração emitida pela aludida empresa confirmativa de que a arguida exerceu efectivamente por sua conta as funções de empregada de quartos do dia 01.04.2004 ao dia 31.10.2004.
Foram ponderados os depoimentos das testemunhas S e F, directora do gabinete de investigação criminal e chefe de equipa de contabilidade do Instituto de Segurança Social, respectivamente. As testemunhas confirmaram a realização dos pagamentos do subsídio no período em causa, afirmaram que foi enviada à arguida ao nota de reposição e a mesma até à presente data não pagou a quantia em dívida, tendo, porém, o Instituto conseguido proceder a uma compensação parcial mediante o desconto parcelar do montante em dívida noutras prestações de subsídio de desemprego que posteriormente foram conferidas, encontrando-se, ainda, em dívida o montante de € 2.890,53. A testemunha S., não obstante não ter conhecimento concreto sobre as circunstâncias em que foi requerido o subsídio de desemprego em causa, esclareceu ainda que em regra é sempre comunicado ao requerente que tem a obrigação de comunicar aos serviços de segurança social o início de nova actividade, sendo que no verso do requerimento consta expressamente escrita essa advertência. A testemunha, afirmou ainda que quando a arguida foi convocada para comparecer no Instituto a fim de prestar declarações sobre os factos, foi proposto à mesma a possibilidade de proceder à reposição em prestações do montante em dívida, ao que a mesma se recusou.
Consideraram-se, por outro lado, os depoimentos das testemunhas MM e MC, colegas de trabalho da arguida na referida entidade patronal. As referidas testemunhas confirmaram que a arguida trabalhava sazonalmente nos hotéis da sociedade S., SA, sendo habitualmente admitida ao serviço nas épocas de maior afluência de clientes. Mais, confirmaram que a arguida trabalhou no ano 2004 para a aludida sociedade, sem todavia, saber precisar os meses exactos em que a arguido esteve efectivamente ao serviço.
A factualidade não provada resultou da circunstância de sobre a mesma não ter sido feita prova suficiente que permitisse concluir de modo seguro pela sua verificação.
Ora, procedendo a uma análise crítica da prova produzida à luz das regras da experiência e segundo juízos de normalidade, o Tribunal não teve dúvidas em considerar provados os factos que acima se deixaram descritos. Desde logo e no que aos factos objectivos respeita, resultam os mesmos inequivocamente dos documentos juntos aos autos, documentos esses cuja validade não foi questionada, e dos depoimentos das testemunhas, funcionárias da assistente, atenta a sua razão de ciência e que se nos afiguraram totalmente credíveis por isentos e espontâneos.
Da mesma forma, da conjugação dos depoimentos das testemunhas MM e MC, com a declaração da S…, S.A. e o extracto de remunerações enviado por esta à assistente dúvidas não restam que a arguida passou a exercer funções por conta daquela entidade, recebendo uma contraprestação mensal a partir de Abril de 2004.
No que ao conhecimento e intenção da arguida respeita dúvidas também não se suscitaram ao Tribunal, porquanto não obstante não ter sido produzida prova directa sobre se a arguida no momento em que apresentou o requerimento a pedir o subsídio foi expressamente advertida da obrigação que sobre si recaía de comunicar o início de actividade laboral à assistente, a verdade é que tal obrigação decorre expressamente da lei e afigura-se uma decorrência lógica para qualquer cidadão médio, pois se o subsidio se destina a reparar a situação do requerente que se encontra desempregado e sem auferir qualquer rendimento, natural se afigura que assim que o requerente volte a exercer uma actividade laboral deixe de receber a aludida prestação, assim como natural se afigura que seja o mesmo a comunicar à entidade a quem requereu a prestação a alteração da situação que esteve na origem da atribuição.
Sendo que a experiência mostra-nos que é do conhecimento geral de qualquer cidadão, por mais diminuta que seja a sua formação, que impende sobre si tal obrigação.
Acresce que a circunstância de a arguida passara a constar das folhas de remuneração apresentadas pela entidade referida patronal e de por essa forma a assistente ter acesso a essa informação em nada altera a convicção do Tribunal, pois a arguida de forma consciente beneficiou durante nove meses do subsídio em causa sem revelar qualquer preocupação em saber a razão de tal atribuição e quando lhe foi solicitada a devolução da quantia indevidamente paga, ainda que em prestações, recusou-se a fazer qualquer pagamento, circunstâncias que revelam de forma clara que a arguida quis e continua a querer, não obstante consciente da censurabilidade da sua conduta, obter tal vantagem patrimonial.
Relativamente aos antecedentes criminais e às condições pessoais da arguida, atendeu-se ao certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 99 (datado de 29.11.2007), bem como aos esclarecimentos por si prestados no que a tal matéria respeita.
III. DIREITO A) ENQUADRAMENTO JURÍDICO - RESPONSABILIDADE CRIMINAL
Vem a arguida acusada da prática do crime de burla tributária, p. e p. pelo art. 87.°, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Em conformidade com o estatuído no citado preceito legal incorre na prática de um crime "quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro…".
Por via da censura do enunciado comportamento o legislador pretendeu reforçar a protecção dos interesses patrimoniais do Estado, pondo fim, de forma inequívoca, à discussão sobre a possibilidade ou não de o Estado ser sujeito passivo do crime de burla.
O referido ilícito encontra-se numa relação de especialidade relativamente ao crime de burla comum previsto no art. 217.º do Código Penal. A especialidade em relação ao crime de burla é determinada directamente atendendo à especial identidade do burlado e indirectamente face à natureza das atribuições patrimoniais, necessariamente da competência daquelas entidades.
Porém, à semelhança da burla comum, este crime traduz-se numa forma de subtracção do património alheio, no caso necessariamente das entidades expressamente identificadas, distinguindo-se do furto porque a coisa objecto do crime, neste caso as atribuições patrimoniais, transita para o agente por entrega voluntária das referidas entidades.
Essa passagem da coisa (atribuições patrimoniais) da esfera da administração tributária ou da segurança social para o poder de outrem é conseguida por meio de fraude do burlão.
Como ensina o PROF. CAVALEIRO FERREIRA "o uso ou emprego de meio típico de burla tem de ser idóneo para induzir em erro, ou, mais claramente, toda a acção típica na burla é indução em erro mediante o uso ou emprego de determinados meios; estes meios são o fio condutor do engano" - in parecer publicado na S.J., XIX, 1970, p. 301 e ss.
"E preciso que essa conduta enganatória seja causa determinante do erro de outrem, erro que, por sua vez, deve ser causa da "entrega" de disposição do património" - cfr. PROF. CAVALEIRO FERREIRA, ob. cit.
Tem, pois, de existir uma relação directa entre o engano ou erro produzido e os actos que directamente vão defraudar o património do burlado (administração tributária ou a administração da segurança social) - vide LOPES DE ALMEIDA. A. C. LOPES DO REGO, GUILHERME DA FONSECA, J. MARQUES BORGES E M. VARGES GOMES, Crimes contra o património em geral (notas ao CP, artigos 313 a 333), Rei dos Livros, Lisboa, 1983, p. 12 ss.
Acresce que para além da referida idoneidade a burla tributária surge como um ilícito de execução vinculada, na medida em que a sua consumação depende da verificação de um especial modo de agir, isto é, o uso do erro ou engano tem de ser provocado por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos.
São assim elementos do enunciado tipo:
- a obtenção para o agente ou terceiro de um enriquecimento ilegítimo;
- que o agente, para obtenção de um enriquecimento ilegítimo, induza em erro ou engane a administração tributária ou a administração da segurança social;
- que o erro ou engano seja produzido por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou por outros meios fraudulentos;
- que através desses meios, determine a identificadas entidades a efectuar atribuições pecuniárias.
Tem sido entendimento de alguma jurisprudência - vide acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.02.2006, in CJ, T.I, 2006, p. 258 - que a burla tributária, contrariamente ao que sucede com a burla comum não se exige o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado, ou seja, uma qualquer actuação astuciosa, sendo bastante para a sua verificação o uso de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos.
Todavia, sempre se dirá, que tal ideia permanece, pelo menos, subjacente na referência aos meios fraudulentos.
Entende PAULO DÁ MESQUITA que o diferente grau de exigência relaciona-se com o específico contexto relacional em que o sujeito passivo da relação tributária tem obrigações legais específicas - cfr. A tutela penal das deduções e reembolsos indevidos de imposto, in Revista do ministério Público, Ano 23.º, n.º 91, 2002, nota 24, p. 64.
Refira-se, ainda que, o tipo de ilícito em apreço, na exacta medida em que o pode ser a burla comum, é susceptível de comissão por omissão nos termos gerais do art. 10.0 do Código Penal, entendimento que perfilhamos no seguimento na doutrina dominante - vide PROF. EDUARDO CORREIA, in Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parle Especial, AAFDL, p. 139, e PROF. ALMEIDA COSTA, in Comentário Conimbricense, Parte Especíal, T. II, p. 309. Sucede que, em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 10.º do Código Penal, somente se verificará uma burla por omissão quando sobre o sujeito activo pré exista um dever de informar, esclarecer, elucidar o sujeito passivo, ou seja, o comportamento do agente só preenche o tipo quando pré existe um dever de informar e é omitida a acção adequada a evitar o resultado típico.
Com pertinência para o caso em apreço importa ter presente, na sequência do que antecede, o disposto no art. 50.° do DL n.º 119/99 de 14.04 "1. Durante o período de concessão das prestações de desemprego os beneficiários são obrigados a comunicar à competente instituição de segurança social qualquer facto susceptível de determinar: a) a suspensão ou a cessação das prestações" ... 2. A comunicação prevista no número anterior deve ser efectuada no prazo de cinco dias a contar da data do conhecimento do facto.”
E, bem ainda, o preceituado no art. 37.°, n.º 1, al. a) do mesmo diploma nos termos do qual "determinam a suspensão do pagamento das prestações de desemprego as seguintes situações inerentes à situação laboral ou profissional do beneficiário o exercício de actividade profissional por conta própria ou por conta de outrem;
Cumpre, neste momento, apreciar se os factos considerados provados são susceptíveis de integrar ou não o ilícito penal imputado à arguida pela acusação.
Com relevância para a decisão da causa apurou-se no essencial que a arguida, encontrando-se desempregada, solicitou junto do Instituto de Segurança Social que lhe fosse atribuído o subsídio de desemprego, tendo este lhe sido atribuído com efeito desde 09.01.2004 até 31.01.2005 no montante diário de € 11,77. Que em 01.04.2004 e até 31.10.2004 a arguida prestou trabalho remunerado por contra a sociedade S…, S.A., sem que o tenha comunicado ao Instituto de Segurança Social, cumulando durante esse período o aludido subsídio com a retribuição, porquanto erroneamente o Instituto pressupôs que a arguida durante aquele período de tempo continuava a reunir todos os pressupostos de atribuição do subsídio. A arguida tinha conhecimento que estava obrigada a comunicar ao Instituto a alteração da sua situação laboral e agiu pretendendo continuar a receber o subsídio, não obstante saber da censurabilidade da sua conduta.
Atenta a factualidade prova, verifica-se que a arguida recebeu indevidamente entre 01.04.2004 e 31.01.2005 o subsídio de desemprego, porquanto o seu direito à aludida prestação suspendeu-se com o início da actividade laboral a favor da sociedade S., o que se traduziu necessariamente num enriquecimento da sua esfera patrimonial, pois beneficiou de quantias a que não tinha direito.
Resultou, por outro, lado que as prestações em causa foram-lhe atribuídas somente em virtude de a assistente estar erroneamente convencida de que a arguida durante o período em questão continuava a preencher os pressupostos legais que determinam a atribuição do subsídio em causa, sendo que a atribuição tem carácter sucessivo, porquanto pressupõe a verificação em cada momento das condições do beneficiário.
Resulta, outrossim, que o erro/engano em que laborou a assistente teve origem no comportamento da arguida que ocultou a alteração da sua situação laboral, ao omitir a conduta correspondente ao dever legal que se lhe impunha de comunicar à assistente tal alteração. A arguida deliberadamente, consciente da sua obrigação, não forneceu uma informação essencial à determinação da vontade da assistente, omissão essa que atento o especial dever que sobre si recaía configura um meio idóneo à provocação do erro.
Neste sentido pode ler-se no citado acórdão do Tribunal da Relação de Évora (de 01.02.2006, in CJ, T.I, 2006, p. 258) que " ... a ocultação dum facto que legalmente devia ter revelado à administração tributária, aqui SS (a comunicação do início de uma actividade remunerada) ocultação que determinou a administração da Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais (processamento de subsídio social de desemprego que não aconteceria caso o arguido tivesse cumprido o seu dever jurídico de informação) das quais resultou um enriquecimento do agente ..." constitui um meio fraudulento.
Sucede que a circunstância de a arguida passara a constar das folhas de remuneração apresentadas pela entidade patronal S. e de por essa forma a assistente ter acesso a essa informação em nada afecta a obrigação da arguida/beneficiária, pois a obrigação existe e justifica-se precisamente porquanto a estrutura do sistema não permite por si garantir de forma eficaz o património colectivo.
Termos em que se conclui estarem verificados os pressupostos do crime pelo qual a arguida vem acusada, impondo, nessa medida, a sua responsabilização.
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Em sede de alegações a Defesa veio invocar uma qualificação diversa dos factos imputados à arguida, alegando que a factualidade vertida na acusação é tão só susceptível de integrar a prática de um ilícito contra-ordenacional e não de um crime.
De harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 5.º do DL n.º 119/99 de 14 de Abril "a reparação da eventualidade de desemprego dos beneficiários abrangidos pelo regime geral é efectivada mediante a atribuição de prestações.".
Da conjugação das previsões dos art. 37.º e 50.º do mesmo diploma resulta que o exercício de actividade profissional por conta própria ou por conta de outrem determina a suspensão do pagamento das prestações de desemprego, ficando o beneficiário obrigado a comunicar a causa de suspensão no prazo de cinco dias a contar da data do conhecimento do facto.
Preceitua, por seu turno, o n.º 3 do art. 54.º do mesmo diploma, que "o incumprimento dos beneficiários dos deveres para com as instituições de segurança social, previsto no presente diploma, fica subordinado ao regime das contra-ordenações no âmbito dos regimes de segurança social. ".
Dispõe, por último, o art. 9.º, alínea b), do DL n.º 64/89 de 25.02 que "constitui contra-ordeneção relativa à concessão de prestações a falta de comunicação determinante da concessão indevida de prestações...", estatuindo o art. 10.º que "o exercício de actividade normalmente remunerada durante o período de tempo que esteja a ser concedido o subsídio de desemprego ou doença, ainda que se não prove o pagamento da correspondente remuneração, constitui contra-ordenação punível com coima de 15.000$00 a 100.000$00.".
Entretanto entrou em vigor a Lei n.º 220/2006 de 3 de Novembro que revogou o DL n.º 119/99, introduzindo uma nova reforma no quadro legal da eventualidade de desemprego. Todavia a entrada em vigor da nova lei não trouxe qualquer alteração que seja pertinente para o caso em apreço, mantendo o mesmo quadro legal no que à questão que aqui nos importa.
Da análise dos enunciados normativos resulta, com efeito, que o comportamento da arguida é susceptível de integrar, outrossim, a prática de suas contra-ordenações, porquanto ficou demonstrado que a mesma durante o período de tempo em que estava a ser concedido o subsídio de desemprego exerceu actividade normalmente remunerada, não tendo procedido à comunicação a que estava legalmente obrigada do início da nova actividade.
Todavia, como decorre do preceituado no n.º 3 do art. 50.° do DL n.º 119/99 (actual art. 42.°, n.º 4) o recebimento de prestações indevidas obriga não só à sua restituição dos montantes indevidamente recebidos como pode dar lugar a responsabilidade contra-ordenacional ou criminal.
Com efeito, da análise dos enunciados preceitos resulta claro que o âmbito de protecção das normas previstas em análise, não obstante possa haver uma relação de causalidade entre ambas. Isto porque, os elementos integrantes de um tipo e de outro não são totalmente coincidentes, assim como, o seu âmbito de protecção é diferente.
Desde logo, enquanto por via da contra-ordenação o legislador previu o sancionamento da simples falta de comunicação, por um lado e por outro, do exercício de actividade durante o período de concessão, independentemente da actividade exercida ser remunerada ou não e sem que se verifique necessariamente uma situação de prestação indevida, visando essencialmente garantir a transparência e a optimização dos recursos do sistema, relativamente ao ilícito criminal o legislador reservou a reacção punitiva para as situações mais graves em que efectivamente o comportamento do beneficiário se traduza num real prejuízo para a segurança social (enriquecimento ilegítimo), visando, desse modo, directamente a tutela do património colectivo e centrando a censura no resultado da acção - enriquecimento ilegítimo (pressuposto que não subjaz à contra-ordenação).
Nesta conformidade e de harmonia com o estatuído no artigo 20.° do DL n.º 433/82, 27.10, a arguida deverá ser punida a título de crime ainda que o seu comportamento possa constituir, outrossim, as contra-ordenações previstas nos aludidos normativos, porquanto entre umas e outro subjaz uma situação de concurso aparente, sendo que as contra-ordenações serão consumidas pelo crime por serem causais do mesmo e a natureza deste ser mais grave que a daquelas.
IV
Como supra se deixou editado, o concreto objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da correspondente motivação, sem prejuízo da apreciação dos vícios da decisão sobre matéria de facto, de harmonia com o estatuído no artigo 410º, nº 2, do Código Processo Penal, desde que resultem do texto da decisão recorrida ou das nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos prevenidos no nº 3, do mesmo preceito legal e cujo conhecimento ex officio se impõe a este Tribunal ad quem.
Neste conspecto, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, não se perfila a existência de qualquer um dos vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal. A matéria de facto dada como provada é bastante para a decisão de direito, inexistem contradições insuperáveis de fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não se afigurando, por outro lado, que haja situações contrárias à lógica ou à experiência comum, constitutivas de erro patente detectável por qualquer leitor da decisão, com formulação cultural média.
Por outro, também não padece a sentença ou o processo de qualquer nulidade que não deva considerar-se sanada.
Posto isto, a factualidade assente na primeira instância mostra-se sedimentada.
Impõe-se, agora, apreciar a única questão [(i)] trazida ao conhecimento deste Tribunal ad quem pela recorrente, qual seja a de saber se o silêncio da arguida, não comunicando à Segurança Social, facto susceptível de determinar a suspensão do subsídio social de desemprego, que vinha auferindo, a faz incorrer na prática de um crime de burla tributária.
Dispõe o artigo 87º, nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05.06 (e doravante designado por RGIT) que “Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias”.
Não podemos deixar de salientar que a decisão recorrida discorre abundantemente sobre este assunto, tomando posição no sentido de que a factualidade ali assente integra o cometimento pela arguida de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nº 1, do RGIT.
Porém, não podemos também deixar de referir que é evidente a divergência de entendimento a este propósito na jurisprudência, divergência que se estende a este Tribunal da Relação de Évora, onde se podem encontrar decisões de sentido desencontrado.
Divergência que, em verdade, se centra na possibilidade por uns defendida e, por outros contrariada, de o referido crime poder ser, ou não, cometido por omissão.
Defendendo a possibilidade de o crime de burla tributária poder ser cometido por omissão [para além do citado na decisão recorrida], v.g. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08.012013, proferido no processo nº 1298/11.4 TAABF.E1, disponível inwww.dgsi.pt/jtre, assim sumariado: “I - A conduta omissiva do agente pode enquadrar a prática de crime de burla tributária, nos casos abrangidos pelo art. 10.º, n.º 2, do Código Penal. II - O pagamento de subsídio social de desemprego configura “atribuição patrimonial”, cujo efeito como tal se mantém mesmo que a conduta omissiva do agente se reporte a momento posterior à sua concessão, traduzida em que não comunicou à Administração da Segurança Social a alteração das condições que estiveram na base dessa concessão, assim violando o dever de garante imposto pelo art. 42.º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 220/06, de 03.11”.
Em sentido diverso, v.g. os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 08.11.2005, proferido no processo nº 1598/05-1 e de 28.01.2014, proferido no processo nº 16/12.4 TDEVR.E1, ambos publicados em www.dgsi.pt/jtre e bem assim aquele que subscrevemos, como relatora, proferido no processo nº 312/11.8 TAABF.E1, disponível no mesmo local.
Como ali exaramos e, aqui, renovamos, pela similitude de situações, sem necessidade de outros considerandos, “(…) Em obediência aos princípios da legalidade e da tipicidade, impõe-se começar por verificar se a conduta em causa corporiza qualquer ilícito penal: para a conduta humana assumir a dignidade de um crime, é indispensável que coincida formalmente com a descrição feita em norma incriminadora. Não basta, pois, que alguém tenha cometido um facto anti-social, merecedor da reprovação pública, se esse facto escapou à previsão do legislador. Isto, sem esquecer que o direito penal constitui sempre a ultima ratio.
Cabe, assim, à lei, e só a ela, especificar quais os factos ou condutas que constituem crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, optando o legislador por fazê-lo através de modelos ou tipos que têm como função aferir se determinados comportamentos humanos se amoldam ao desenho arquitectado pelo legislador, deve a acção tida como censurável ser típica, isto é, corresponder a um dos «esquemas» ou «delitos-tipo» objectivamente descritos na lei penal.
Analisado o tipo do crime de burla tributária, tal como configurado no artigo 87º, do RGIT, conclui-se que os elementos que preenchem e informam a respectiva tipicidade são os seguintes: (i) A prática de factos que consistam em falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos; (ii) Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
A norma incriminatória aqui em causa está estruturada como um crime de resultado, apresentando-se como um verdadeiro tipo de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada (porque a ofensa ao bem jurídico decorre como consequência de uma determinada forma de comportamento, não um qualquer, é o tipificado na norma), mas, ao mesmo tempo, erige elementos integradores mais formais.
E o nº 4 do mesmo preceito determina um critério de solução definitiva das situações de concurso de normas, em abono da especialidade (de natureza patrimonial tributária e não comum) dos valores tutelados em causa, afastando-o (designadamente no tocante ao concurso com os crimes de burla comum dos artigos 217º e 218º, do Código Penal ou da falsificação).
Não se desconhecendo as posições veiculadas por alguma jurisprudência e doutrina acerca do cometimento de alguns crimes de burla por omissão, (…), afigura-se-nos que o crime aqui em causa resiste a esse entendimento, pois exige actos positivos do agente, ou seja, (como se afirma no Acórdão acima mencionado [o de 08.11.2005, proferido no processo nº 1598/05-1 – introdução nossa cabal esclarecimento]) «meio fraudulento “activo”», ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que directamente induziu o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente, que, aproveitando-se da circunstância da vítima desconhecer a nova realidade, continua a receber as prestações que lhe foram atribuídas. Neste sentido também se dirige o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.01.2011, proferido no processo nº 370/06.7TACBR.C1 e os Acórdãos desta Relação de 31.01.2006, (relator Domingos Duarte), in CJ, Ano XXXI, pág.257 e 258, e de 13.01.2009, (relatora Maria José Nogueira), in CJ, Ano XXXIV, tomo I, pág.277 e 278. Em sentido contrário, o Acórdão desta mesma Relação de 7.02.2006, (relator Rui Maurício), publicado no mesmo tomo da CJ, pág.258 a 261. [- É um crime só praticado por erro ou engano sobre factos que o agente provocou, como o afirmam Carlos Adérito da Silva Teixeira e Sofia Margarida Correia Gaspar, no estudo publicado em “Comentário das Leis Extravagantes, vol. II, Edição UCE, pág. 413. O meio enganoso tem de ser a causa efectiva pela qual a administração se encontra em erro.].
No caso em apreço, é imputado ao arguido a prática de um crime em virtude de não ter declarado o início de trabalho remunerado e, por isso, ter continuado a receber o subsídio social de desemprego que lhe havia sido atribuído pelos serviços competentes da Segurança Social.
Temos, sem dúvida, uma conduta ilícita do arguido, a ocultação à Segurança Social de um facto – o reinício da sua actividade profissional, por conta de outrem, como porteiro. O arguido tinha o dever legal de comunicar à Segurança Social, no prazo de 5 dias úteis, a alteração da situação que determinou a atribuição da prestação do subsídio social de desemprego, de harmonia com o disposto nos nºs 2, alínea a) e 3 do artigo 42º, do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3 de Novembro, o que não fez.
Porém, a conduta omitida pelo arguido, posto que ilícita, não configura qualquer “encenação”, (…), pois, aquela, na sua raiz etimológica pressupõe uma conduta activa (preparar um cenário para uma representação ou dispor as coisas com o fim de iludir) e também não era idónea à atribuição patrimonial, mas tão-somente à continuação do processamento e pagamento da prestação de subsídio social de desemprego que já lhe havia sido atribuída, em prestações mensais durante determinado prazo, o que não teria acontecido se a alteração superveniente da sua situação laboral fosse prontamente comunicada. [Conforme decorre do nº 1 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3/11, “A reparação da eventualidade de desemprego dos beneficiários abrangidos pelo regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem é efectivada mediante a atribuição de prestações”. Essas prestações só são atribuídas a requerimento do beneficiário, posto que este reúna as respectivas condições de atribuição.].
Não obstante reconhecermos a validade de alguns dos argumentos aduzidos, (em sentido contrário), a verdade é que perfilhamos o entendimento de que o crime de burla tributária não pode ser cometido por omissão.
De facto, como dizem Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, no estudo acima referido, “o simples silêncio do arguido não configura, em nosso entender, um meio fraudulento, e a burla, como já referimos, é um crime de execução vinculada. Por outro lado, este crime pressupõe uma conduta activa por parte do agente, que dirige a sua actuação no sentido de enganar a administração estadual [e não meras condutas omissivas do agente, aspecto que obsta à tese defendida pelo Ministério Público da equiparação da omissão à acção, nos termos do art. 10.º do Código Penal, o que encontra fundamento na parte final do n.º 1 do citado preceito, “salvo se outra for a intenção da lei”].
Acresce que a lei refere expressamente que a conduta do agente “determina” a atribuição da prestação. Ora, querendo abranger as condutas em que o agente omite circunstâncias modificativas supervenientes, o legislador teria de admitir que a conduta do agente era apta a “manter” a prestação já atribuída, o que não é o caso. Na burla tributária, o legislador concretizou a “matriz” dos meios fraudulentos e fê-lo com referência, unicamente, a condutas activas declarar falsamente, falsificar, adulterar. Não comunicando estes factos novos, o agente aproveita-se do engano em que administração se encontra, não tendo, contudo, sido ele o autor desse logro.
E para sancionar o incumprimento por parte do beneficiário do dever legal de comunicação, aqui em causa, o legislador instituiu sanções contra-ordenacionais.
Na verdade, o artigo 64º, nº 1 do citado Decreto-Lei nº 220/2006, preceitua que “constitui contra-ordenação punível com coima de € 100 a € 700 o incumprimento dos deveres para com os serviços ou instituições de segurança social previstos no nº 2 do artigo 42º”, podendo, ainda, ser aplicada ao beneficiário, simultaneamente com a coima a que houver lugar, a sanção acessória de privação de acesso às prestações de desemprego pelo período máximo de dois anos, contado a partir da decisão condenatória definitiva, nos termos do artigo 65º do mesmo diploma legal.
Tal contra-ordenação é tramitada segundo o regime das contra-ordenações no âmbito dos regimes de segurança social (cfr. artigo 64º, nº 4, do citado Decreto-Lei, da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro e, na parte não revogada do Decreto-Lei nº 64/89, de 25 de Fevereiro).
O regime que se encontra estabelecido vem na linha do já previsto nos artigos 50º e 54º, nº 3, do Decreto-Lei nº 119/99, de 14 de Abril, que o Decreto-Lei nº 220/2006, no seu artigo 86º, veio revogar.
Ressalvado, pois, o devido respeito por diferente opinião, cremos que a situação configurada nos autos não integra o crime de burla tributária, por que o arguido foi acusado (sendo que, dado o valor da quantia em causa - € 5.335,86 -, se encontra, desde logo, afastada a eventualidade da prática do crime, p. e p. pelo artigo 106º, do RGIT), pelo que tal conduta omissiva imputada ao arguido apenas o poderá fazer incorrer na prática de uma mera contra-ordenação.
Por isso que, em nosso entender, (…), os factos em questão não serem subsumíveis a qualquer norma jurídico-criminal, (…).”.
Porque assim, in casu, a conduta da arguida, omitindo a comunicação à Segurança Social do início de actividade profissional, não obstante saber da obrigatoriedade de o fazer, é seguramente ilícita, como moralmente censurável, porém, como referido, nem todo o comportamento ilícito é necessariamente criminoso, sendo certo que importa reservar a incriminação para aqueles actos em que seja insuficiente a intervenção de outros ramos do direito. Ora, o certo é que a omissão da comunicação do início de uma actividade profissional é, no caso, sancionada como contra-ordenação, nos termos prevenidos nos artigos 64, nº 1 e 42º, nº 2, do Decreto-Lei nº 220/2006, de 03.11, e “No caso de violação do dever de comunicação do início de actividade profissional determinante da suspensão do pagamento das prestações previsto no n.º 2 do artigo 42.º, e tendo em conta a gravidade da infracção, pode ser aplicada ao beneficiário, simultaneamente com a coima a que houver lugar, a sanção acessória de privação de acesso às prestações de desemprego pelo período máximo de dois anos, (…)”.
Em suma, ressalvado sempre o devido respeito por entendimento diverso, a conduta imputada à arguida, na primeira instância, não é susceptível de integrar a prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nº 1, do RGIT, mas, outrossim, é susceptível de integrar o cometimento de uma contra-ordenação, p. e p. pelos artigos 64º e 65º, do Decreto-Lei nº 220/2006, de 03.11.
Vale o exposto por se afirmar, que do cometimento do crime por que foi a arguida condenada pelo Tribunal a quo deve a mesma ser absolvida.
Relativamente ao pedido de indemnização civil, na medida em que fundado na responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, o entendimento ora expresso por este Tribunal ad quem sobre a subsunção legal da factualidade dada como provada na primeira instância, não preclude a apreciação que dele ali se fez e que em tal factualidade (sedimentada) o mesmo se ancorava.
V
Tendo em consideração o estatuído no artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal, não há lugar ao pagamento de custas por banda da recorrente.
VI Decisão
Nestes termos acordam em: A– Conceder provimento ao recurso interposto pela arguida A. e, consequentemente, absolvê-la da prática do crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87º, nº 1, do RGIT, pelo qual foi condenada na decisão recorrida;
B) – Não serem devidas custas.
[Texto processado e integralmente revisto pela relatora (cfr. artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal)]
Évora, 30 de Outubro de 2014
Maria Filomena Valido Viegas de Paula Soares Fernando Ribeiro Cardoso João Manuel Monteiro Amaro (Vencido, porque manteria a condenação da arguida, com os fundamentos constantes do Acórdão desta Relação de Évora de 08.01.2013, proferido no processo nº 1298/11.4 TAABF.E1, de que foi relator o Juiz Desembargador Sérgio Corvacho e que subscrevi como Adjunto)