ARRENDAMENTO COMERCIAL
DESPEJO ADMINISTRATIVO
DENÚNCIA DO ARRENDAMENTO PELO SENHORIO
OPOSIÇÃO
Sumário

Mantém-se, em regra, em vigor a proibição de denúncia ad nutum do senhorio de contrato de arrendamento de natureza não habitacional, celebrado em 22/12/1953, pois se trata de contrato de duração ilimitada, por força do regime vinculístico que vigorava anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 257/95, de 30/9 (que veio estender a reforma do RAU de 1990 aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, passando a prever a possibilidade de celebração de arrendamentos dessa natureza com “duração limitada”).

Texto Integral


Proc. nº 557/14.9YLPRT.E1-2ª (2014)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)

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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Perante o Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), foi instaurado, por (…) e (…) contra (…), procedimento especial de despejo, ao abrigo dos artos 15º e seguintes da Lei nº 6/2006, de 27/2, na redacção conferida pela Lei nº 31/2012, de 14/8 (Novo Regime do Arrendamento Urbano, doravante NRAU), por referência a contrato de arrendamento celebrado em 22/12/1953, com vista a obter a desocupação do locado, com fundamento na cessação desse contrato, por efeito de denúncia e de oposição à renovação do prazo, alegadamente operada por prévia notificação judicial avulsa da requerida, efectuada em 20/11/2012.

No âmbito do referido procedimento especial de despejo, deduziu a requerida a sua oposição, nos termos do artº 15º-F do NRAU, sustentando a falta de fundamento da pretensão dos requerentes, para o que alegou estar o contrato em apreço, respeitante a arrendamento não habitacional celebrado anteriormente à vigência do Decreto-Lei nº 257/95, de 30/9, sujeito ao regime vinculístico consagrado na legislação anterior a esse diploma, que impedia a denúncia do contrato pelo senhorio. Mais requereu a condenação dos requerentes em multa não inferior a 10 vezes a taxa de justiça devida, ou seja, não inferior a 3.060,00 €, por aplicação do artº 15º-R, nos 1 e 2, do NRAU.

Remetidos os autos a tribunal, ao abrigo do artº 15º-H do NRAU, e ouvidos os requerentes (que contrariaram a argumentação da requerida e reiteraram o pedido de desocupação do locado, sustentando ter ocorrido a caducidade do contrato de arrendamento em apreço, pelo decurso do prazo máximo de 30 anos, previsto no C.Civil para este tipo de contratos), foi entendido dispor-se já de todos os elementos necessários à decisão do mérito da causa, pelo que foi de imediato lavrada sentença em que se decidiu declarar verificada excepção dilatória inominada, por inaplicabilidade do NRAU ao arrendamento em causa, não decretando o despejo do locado, com absolvição da requerida da instância, nos termos do artº 576º, nº 2, do NCPC.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: o contrato de arrendamento em causa nos autos é de natureza não habitacional e foi celebrado em 22/12/1953, pelo que se trata de um contrato de duração ilimitada, por força do regime vinculístico que vigorava anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 257/95, de 30/9 (que veio estender a reforma do RAU de 1990 aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, passando a prever a possibilidade de celebração de arrendamentos dessa natureza com “duração limitada”); o artº 59º, nº 1, do NRAU, manda aplicar o seu regime às relações contratuais constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias; sendo assim, mostram-se aplicáveis ao contrato em apreço as normas do regime transitório previsto nos artos 27º e 28º do NRAU, de que decorre não ser possível aplicar-se-lhe (conforme artº 28º, nº 2, do NRAU) a norma da alínea c) do artº 1101º do C.Civil (na redacção do NRAU), que prevê a possibilidade de denúncia por livre iniciativa do senhorio; não podendo ser validamente denunciado o arrendamento pelo senhorio, não haverá fundamento para o despejo pretendido. Pelo Tribunal a quo foi ainda decidido não condenar os requerentes por uso indevido do procedimento especial de despejo, ao abrigo do disposto no artº 15º-R do NRAU, por não se terem apurado elementos bastantes no sentido da utilização abusiva de fundamentos que não pudessem ignorar.

Inconformados com tal decisão, dela apelaram os requerentes, formulando as seguintes conclusões:

«a) Nos termos do artº 639º do CPC os recorrentes identificam como normas jurídicas violadas, na douta decisão recorrida, os artigos 59º, nº 3, do NRAU, inaplicável pela douta decisão recorrida e que reconduziria à possibilidade do exercício do direito dos AA., ora recorrentes, tal qual o manifestaram na cessação do arrendamento em causa, sendo que o sentido com que essa norma deveria ter sido aplicada e interpretada é o mesmo já aqui vertido, aliás no seguimento da correcta interpretação levada a efeito pelo Egrégio Supremo Tribunal de Justiça no mencionado Douto Aresto.

b) Os AA., ora recorrentes, entendem que a douta decisão recorrida deveria ter aplicado a mencionada norma, também ela referida pelo Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, nos exactos termos ali mencionados e interpretados.

c) Nestes termos, entendem os AA., ora recorrentes, que, independentemente da comunicabilidade do artº 50º do NRAU (porque aplicável ope legis), poderiam os AA. recorrentes ter deduzido oposição à renovação, tal qual vem mencionado pelo Douto Aresto do STJ mencionado.

d) Ora, de acordo com o estatuído no NRAU, qualquer que seja a modalidade de arrendamento – habitacional ou para fins não habitacionais – e o respectivo tipo de duração – com prazo certo ou com prazo indeterminado –, o locador passa, também, a gozar do direito de se opor à renovação ou de denunciar, livremente, o contrato.

e) Eliminou-se do monopólio da oposição à renovação, por parte do inquilino, que se traduzia para o senhorio no regime da prorrogação forçada do vínculo contratual (regra da renovação ou prorrogação obrigatória do contrato de arrendamento).

f) Refere o acórdão do Egrégio STJ, de 27/05/2010 (in CJ/STJ, 2010, II, 96, em www.dgsi.pt):

“O critério geral de delimitação do âmbito temporal da aplicação desta lei, está fixado no artigo 59º, nº 1, do NRAU, que estipula que “o NRAU aplica­-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”, acrescentando o respectivo nº 3, que “as normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável”. Em relação ao contrato, como acto constitutivo, não obstante o silêncio do diploma, as condições da sua validade formal e substancial devem continuar a ser regidas pela lei, então, em vigor, como já se disse, em face da antecedente transição do Código Civil de 1966 para o RAU. Porém, quanto aos efeitos do contrato, isto é, quanto ao contrato como relação, as normas transitórias, expressamente ressalvadas pelo artigo 59º, nº 1, podem ser de carácter formal, determinantes da continuação da vigência da lei antiga para as relações já constituídas, como é o caso do artigo 26º, nº 4, a), que dispõe no sentido de que “os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: continua a aplicar-se o artigo 107º do RAU”, ou da não aplicabilidade da lei nova, como acontece com o artigo 26º, nº 4, c), que estipula que “não se aplica a alínea c) do artigo 1101° do Código Civil”, ou de carácter material, instituindo uma regulação própria para essas relações, não coincidente com a lei antiga nem com a lei nova, como é o caso dos artigos 57º [transmissão por morte no arrendamento para a habitação] e 58º [transmissão por morte no arrendamento para fins não habitacionais], todos do NRAU. Porém, mesmo quando os critérios de delimitação intertemporal apontam para a primazia do NRAU, só quanto aos preceitos imperativos essa aplicação está, de imediato, garantida, mas não já quanto às normas supletivas, que apenas se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao da norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é esta a norma aplicável, em conformidade com o preceituado pelo artigo 59º, nº 3, do mesmo diploma legal.”»


A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida. Sustentam ainda nas contra-alegações que os requerentes fizeram uso de meios cuja falta de fundamento não podiam ignorar, pelo que reiteram o pedido de condenação dos requerentes em multa não inferior a 10 vezes a taxa de justiça devida, por aplicação do artº 15º-R, nos 1 e 2, do NRAU.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar do acerto do entendimento dos requerentes, contrário ao do tribunal a quo, no sentido de que é admissível a possibilidade de imediata denúncia pelo senhorio do contrato em causa nos autos, por aplicação do regime decorrente do NRAU. Mais se suscita a questão da viabilidade substantiva e processual da pretensão da recorrida de condenação dos requerentes em multa, por eventual uso indevido ou abusivo do procedimento especial de despejo, ao abrigo do disposto no artº 15º-R do NRAU.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«1. Através de documento escrito de 22 de Dezembro de 1953, (…) declarou dar de arrendamento à sociedade requerida, o prédio urbano sito na Rua (…), sito na freguesia de (…), concelho de (…), pelo período de seis meses, com início no dia 1 de Dezembro de 1953, e por períodos renováveis de igual tempo.

2. O referido contrato foi participado ao serviço de finanças e liquidado o imposto de selo devido.

3. Através de comunicação judicial avulsa concretizada em 20/11/2012 foi dado conhecimento à requerida de que: "(…) Atendendo a que o contrato de arrendamento referido iniciou a sua vigência em 1 de Dezembro de 1953 ou seja há mais de trinta anos e que (…) tem um prazo de seis meses sucessivamente prorrogável nos termos legais (…) não pretende a A. manter em vigor o presente contrato de arrendamento para além do período de renovação em curso, respeitando o prazo legal de um ano para a comunicação (…) pretendendo os senhorios impedir a renovação do contrato mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a um ano (artigos 1097º e 1095º, do Código Civil), pelo decurso do prazo máximo de 30 anos previsto no CC (…) fazendo cessar o contrato de arrendamento por denúncia à renovação em 1 de dezembro de 2013, com a entrega do imóvel até ao dia 1 de dezembro de 2013, em conformidade com o disposto no artigo 1096º, nº 2, do Código Civil."»


B) DE DIREITO:

1. Está em causa nos presentes autos o contrato de arrendamento celebrado entre as partes (mais propriamente entre …, avô da requerente e de que esta foi herdeira, e a entidade requerida), em 22/12/1953. Por esse contrato foram dados de arrendamento os primeiros andares com sótãos de dois prédios pertencentes ao senhorio (que passaram a estar ligados por uma porta de comunicação – conforme cláusula 6ª do contrato), ficando estabelecido um prazo de 6 meses, renovável por períodos iguais (como consta da cláusula 1ª do contrato, transcrita no ponto 1. da matéria de facto supra). Ficou igualmente acordado que a requerida utilizaria o locado para ali instalar a sua sede social e ali se dedicar aos fins próprios das sociedades recreativas (conforme cláusula 3ª do contrato).

Pelos elementos descritos, não oferece dúvidas que estamos perante um contrato de arrendamento urbano para fim não habitacional – e que se trata de contrato celebrado em data anterior à vigência do RAU de 1990 (Decreto-Lei nº 321/90, de 15/10) e também anterior à vigência do Decreto-Lei nº 257/95, aplicável especificamente aos contratos não habitacionais.

Pretendem os requerentes que a circunstância de ter sido estabelecido para este contrato um prazo de 6 meses renováveis permitiria considerá-lo como contrato com prazo certo, que estaria assim sujeito ao limite máximo de 30 anos previsto no actual artº 1095º, nº 2, do C.Civil (e também, desde sempre, no artº 1025º desse Código) – e daí extrairiam, por um lado, a ocorrência de caducidade do contrato (pelo decurso desse prazo, que teria sido alcançado em 1983) e, por outro, a possibilidade de, perante a renovação automática do contrato (operada nos termos do artº 1096º, nº 1, do C.Civil), ser admissível a dedução de oposição a essa renovação por parte do senhorio, ao abrigo do artº 1097º do C.Civil. Toda esta construção se basearia na aplicação do artº 59º do NRAU, que permitiria a aplicação desse novo regime às “relações contratuais constituídas que subsistam” à data da entrada em vigor do NRAU (nº 1) e das suas normas supletivas a esses contratos anteriores “quando não sejam em sentido oposto ao da norma supletiva vigente aquando da celebração” (nº 3).

Diga-se, desde já, que esta leitura das coisas constitui uma subversão daquilo que resulta dos sucessivos regimes do contrato de arrendamento e faz tábua rasa das normas transitórias do NRAU, que são ressalvadas no mesmo nº 1 do citado artº 59º e das quais resulta uma solução totalmente diversa (e que coincide com aquela que foi acolhida na decisão recorrida).

Comece-se por salientar aquilo que é dado pacífico na doutrina e na jurisprudência sobre os contratos de pretérito, inclusive quanto aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais. Por força do disposto no primitivo artº 1095º do C.Civil, nos arrendamentos a que se referia a secção em que se integrava essa norma (respeitante aos arrendamentos de prédios urbanos para qualquer fim lícito – fosse a habitação, o comércio ou a indústria, o exercício de profissão liberal ou qualquer outro fim – e aos arrendamentos não rurais de prédios rústicos, como decorria da epígrafe da Secção VIII e da classificação inserta no artº 1086º), não gozava o senhorio do direito de denúncia, sem prejuízo das excepções do artº 1096º, operando a renovação automática desses contratos. Por sua vez, o nº 1 do artº 1083º estabelecia que a esses arrendamentos apenas se aplicariam as normas das secções I a VI “no que não esteja em oposição com as desta” secção VIII – o que afastava a aplicação do limite máximo de 30 anos previsto em geral para a locação (no artº 1025º). A esse regime convencionou-se designar de “vinculístico”, assim significando a impossibilidade, em regra, de o senhorio pôr termo ao contrato, por sua livre disposição (proibição de denúncia ad nutum pelo senhorio) – e que se aplicava indistintamente aos contratos habitacionais e não habitacionais. Só com o RAU de 1990 e o Decreto-Lei nº 257/95 é que passou a ser possível a celebração de “contratos de duração limitada” (na expressão do RAU – v. artº 98º) ou “com prazo certo” (na expressão do NRAU – v. novos artos 1094º e 1095º do C.Civil), pelo que os contratos subsistentes anteriores (pré-RAU e pré-Decreto-Lei nº 257/95) são “contratos vinculísticos” e caem na categoria de “contratos sem duração limitada” (na expressão do NRAU).

Ora, para esses “contratos sem duração limitada” mais antigos (pré-RAU e pré-Decreto-Lei nº 257/95) – como é o caso do contrato em apreço – regem as normas transitórias dos artos 27º a 29º do NRAU, em particular o artº 28º. E na parte em que esta última disposição remete para a aplicação do regime previsto no artº 26º, “com as necessárias adaptações” (regime dos contratos pós-RAU e pós-Decreto-Lei nº 257/95, mas pré-NRAU), deve entender-se que tal remissão se reporta apenas ao regime ali previsto para os “contratos sem duração limitada”. Como afirma FRANCISCO DE CASTRO FRAGA, na categoria de contratos sem duração limitada «incluem-se os contratos vinculísticos: muito embora celebrados com prazo certo (normalmente seis meses ou um ano), na prática eram de duração indeterminada, porque sujeitos a renovação obrigatória para o senhorio» [in MENEZES CORDEIRO (Coord.), Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, Coimbra, 2014, p. 469].

Que decorre então da aplicação do artº 28º do NRAU? Não obstante a consagração de uma submissão genérica desses contratos de pretérito mais antigos ao NRAU (nos termos do artº 26º, por remissão do artº 28º, e em consonância com o já referenciado artº 59º, nº 1, todos do NRAU), são ressalvadas as “especificidades” expressamente consignadas. E que resulta dessas especificidades para os contratos não habitacionais (como é também o caso do contrato em apreço)?

Num primeiro momento (com a redacção primitiva do NRAU, constante da Lei nº 6/2006), ficou estabelecido que, a esses contratos mais antigos, habitacionais ou não habitacionais, não se aplicava a al. c) do artº 1101º do C.Civil (na redacção introduzida por essa mesma Lei nº 6/2006), que veio prever a possibilidade de o senhorio denunciar o contrato “mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a cinco anos sobre a data em que pretenda a cessação” (artº 26º, nº 4, al. c), ex vi do artº 28, ambos do NRAU). Apenas se excepcionava aquela proibição da denúncia ad nutum do senhorio (e apenas em relação aos arrendamentos não habitacionais) em situações de trespasse ou locação do estabelecimento e de transmissão inter vivos de posições sociais em mais de 50% (artº 26º, nº 6, als. a) e b), ex vi do artº 28, ambos do NRAU).

Num segundo momento (com a redacção actual do NRAU, introduzida pela Lei nº 31/2012), continua a estabelecer-se que, a esses contratos mais antigos, não se aplica a al. c) do artº 1101º do C.Civil (que, na nova redacção dada pela Lei nº 31/2012, reduziu a antecedência da denúncia do senhorio, admitida por essa disposição legal, de cinco para dois anos), agora por consagração expressa no novo nº 2 do artº 28º do NRAU, e renovam-se as excepções à proibição da denúncia ad nutum do senhorio (e apenas para os arrendamentos não habitacionais) quanto às situações já antes previstas, com o aditamento da referência à “cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal” (agora inscritas directamente no novo nº 3 do artº 28º do NRAU), com a particularidade de, nessas situações, continuar a antecedência da denúncia a ser, como anteriormente, de cinco anos (e não a de dois anos, da nova al. c) do artº 1101º do C.Civil).

De tudo resulta a manutenção, em regra, da proibição de denúncia ad nutum do senhorio em contratos como aquele que está em causa nos autos. Isto justifica a afirmação de FRANCISCO DE CASTRO FRAGA no sentido de que a «”reforma de 2006” (…) não implicou progresso, e muito menos substancial, na ultrapassagem do vinculismo quanto aos contratos de pretérito, mormente nos mais antigos – habitacionais pré-RAU e não habitacionais pré-DL 257/95 – que mantiveram, quase intocável, essa característica, designadamente quanto ao seu elemento fundamental: a sua duração muito para além do prazo estipulado, sem ou mesmo contra a vontade do senhorio» (ob. cit., p. 466). No mesmo sentido se pronuncia LUÍS MENEZES LEITÃO, ao referir, em relação a esses contratos mais antigos, que «o senhorio continua a não poder efectuar a denúncia mediante comunicação ao arrendatário, ao contrário do que hoje se prevê no art. 1101º c) (art. 28º, nº 2, NRAU) (…). Desta forma, é mantido o vinculismo que sempre caracterizou estes contratos, o que limita a faculdade de denúncia pelo senhorio aos casos agora referidos nos arts. 1101º a) e b), salvo nas hipóteses hoje previstas no art. 28º, nº 3, NRAU. A aplicação desta denúncia ocorre assim apenas nos arrendamentos para fins não habitacionais, onde se volta a permitir a denúncia do senhorio com uma antecedência elevada para cinco anos, quando, após a entrada em vigor da Lei 31/2012, de 14 de Agosto, ocorre trespasse, locação do estabelecimento ou cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal (art. 28º, nº 3, a) NRAU) ou uma transmissão inter vivos da posição ou posições sociais da sociedade arrendatária que determine a alteração da titularidade em mais de 50% (art. 28º, nº 3, b) NRAU)» (Arrendamento Urbano, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 183-184).

Nesta conformidade, afigura-se evidente que, no caso dos autos, não ocorreu a caducidade do respectivo contrato e que continua vedada a possibilidade de livre denúncia desse contrato pelo requerentes senhorios (e também da sua oposição à renovação automática do contrato), que apenas seria possível – tratando-se de arrendamento não habitacional – nas hipóteses contempladas nas alíneas a) e b) do nº 3 do artº 28º do NRAU, que não foram invocadas, nem se mostram verificadas. Foi, assim, totalmente inoperante, para os efeitos pretendidos, a notificação judicial avulsa promovida pelos requerentes.

Em todo o caso, a Lei nº 31/2012 veio trazer novos contornos ao regime vinculístico desses antigos contratos, na medida em que ressalvou ainda, na redacção que deu ao nº 1 do artº 28º do NRAU, as “especificidades (…) dos artigos 30º a 37º e 50º a 54º”. Com essa menção procurou-se criar a possibilidade de uma futura “transição para o NRAU”. Como diz FRANCISCO DE CASTRO FRAGA, segundo «o regime estabelecido pela “Reforma de 2012” (…), por iniciativa do senhorio, os contratos mais antigos poderão passar ao regime não vinculístico, decorrido um prazo que pode variar entre cinco e sete anos» (ob. cit., p. 467). Com efeito, e em relação aos contratos não habitacionais (e conforme artos 50º a 54º do NRAU), prevê-se a possibilidade de “transição para o NRAU”, por iniciativa do senhorio, de forma a abranger, nomeadamente, a “duração do contrato” (artº 50º, al. a)), o que pode merecer a invocação pelo arrendatário de circunstâncias obstativas da transição (como será o caso de ter sede no locado uma “associação privada sem fins lucrativos” que se dedique a “actividade recreativa” e seja “declarada de interesse público ou de interesse nacional ou municipal”, situação que poderá eventualmente aplicar-se à requerida – artº 51º, nº 4, al. b)) e, na falta de acordo das partes, fará adiar a transição para o NRAU por um período de cinco anos (artº 54º, nº 1), só após o qual se poderá considerar o contrato celebrado com prazo certo de dois anos (artº 54º, nº 6, al. b)). Ou seja, nessa hipótese, só «decorridos sete anos após a iniciativa do senhorio, o contrato, se ele o desejar, cessa por caducidade» (assim, FRANCISCO DE CASTRO FRAGA, ob. cit., p. 501, ex vi p. 516).

No entanto, de pouco releva curar aqui do que poderão ser as futuras vicissitudes do contrato dos autos. O que importa reter é que não houve qualquer iniciativa dos requerentes de “transição para o NRAU” (e mesmo que houvesse, não teriam ainda decorrido os prazos e trâmites necessários para a consumação dessa transição), pelo que está fora de questão a submissão do caso às disposições do Código Civil, introduzidas pelo NRAU, cuja aplicação os requerentes sustentam (nomeadamente, os artos 1095º a 1097º).

Não sendo, pois, possível, quer a denúncia (ou a oposição à renovação) dos requerentes em relação ao contrato em apreço, quer a aplicação a este do regime introduzido no Código Civil pelo NRAU, nos termos expostos, é óbvio que não tem viabilidade substantiva a pretensão dos requerentes de despejo imediato deduzida nos autos, nem viabilidade processual o uso por aqueles do presente procedimento especial de despejo.

Coloca-se então a questão da solução processual para as hipóteses de uso impróprio do procedimento especial de despejo (instituído nos artos 15º a 15º-S do NRAU, conforme redacção da Lei nº 31/2012). Como se disse, o tribunal a quo considerou que essa situação de inaplicabilidade do NRAU ao arrendamento dos autos configuraria uma excepção dilatória inominada, pelo que dela conheceu ao abrigo do artº 15º-H, nº 3, do NRAU, com a consequente absolvição da requerida da instância, nos termos do artº 576º, nº 2, do NCPC. Com efeito, afigura-se correcta essa qualificação: trata-se de situação equiparável à de uso indevido do requerimento de injunção, que tem sido igualmente qualificada como excepção dilatória inominada pela jurisprudência (v., por todos, o Ac. RL de 8/11/2007, Proc. 9037/2007-8, in www.dgsi.pt). E no mesmo sentido se pronunciou LAURINDA GEMAS (v. «Algumas questões controversas do novo regime processual de cessação do contrato de arrendamento», in Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2013, nº 2, pp. 7-37, em particular, p. 20, nota 41).

2. Como vimos, foi entendido pelo tribunal a quo não existirem elementos bastantes para a condenação em multa dos requerentes pelo uso indevido do meio processual “procedimento especial de despejo”, ao abrigo do artº 15º-R do NRAU – contrariamente ao que foi peticionado pela requerida na sua oposição à pretensão de despejo, deduzida no âmbito desse procedimento. Por sua vez, voltou a requerida a formular idêntico pedido já em sede de contra-alegações.

Não se questiona aqui que possa ter havido um uso abusivo do “procedimento especial de despejo”, já que ficou demonstrada a evidência da impossibilidade legal de despejo imediato do locado e da inadequação do meio processual usado. Porém, constata-se que não houve, de iniciativa da requerida, a interposição de um recurso relativamente a essa parte da decisão de 1ª instância que não atendeu ao seu pedido de condenação em multa e em que a requerida ficou vencida.

Conforme dispõe o nº 1 do artº 633º do NCPC, «se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável». Ora, da não-interposição de recurso pelo recorrido quanto à parte da decisão em que não obtém vencimento, decorrem duas consequências: por um lado, a aceitação tácita, pelo recorrido, da decisão nessa parte, sem que a sua inacção possa depois ser suprida ou contrariada por via das suas contra-alegações de recurso (cfr. artº 633º, nº 3, do NCPC); e, por outro, a delimitação negativa do objecto do recurso, na medida em que ocorre o trânsito em julgado da decisão na parte não recorrida e fica o tribunal de recurso impedido de se pronunciar sobre essa parte da decisão (ou seja, «os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso», como reza o artº 635º, nº 5, do NCPC).

Daí se extrai a impossibilidade deste tribunal de recurso se pronunciar sobre a questão da eventual aplicabilidade de multa aos requerentes por uso indevido do “procedimento especial de despejo”, ao abrigo do artº 15º-R do NRAU, enquanto matéria que extravasa o objecto do presente recurso.

Nesta conformidade, resta apenas concluir no sentido de que não se vislumbra qualquer razão para alterar o que foi decidido na 1ª instância, quanto à matéria que é objecto do recurso. E assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma: não merece censura o juízo decisório formulado na decisão recorrida (e na parte em que foi objecto de recurso pelos requerentes), quanto à procedência de excepção dilatória inominada (por inaplicabilidade do NRAU ao arrendamento em causa) e consequente absolvição da requerida da instância, não se mostrando violadas as disposições legais mencionadas nas respectivas alegações de recurso.

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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes (artº 527º do NCPC).

Évora, 15 / Jan. /2015

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes
Mário João Canelas Brás