RESOLUÇÃO DE ACTO PREJUDICIAL À MASSA
COMUNICAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA
Sumário

A comunicação de resolução deve fazer necessária referência aos três pontos/requisitos essenciais que resultam do artº 120º do CIRE: 1) o acto ser prejudicial à massa insolvente; 2) o acto ter sido praticado em determinado período anterior à data do início do processo de insolvência (4 anos na versão originária do diploma e 2 anos na versão conferida pela Lei nº 16/2012, de 20/4); 3) haver má fé do terceiro (que se presume quando no acto tenha participado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, como se estabelece no nº 4 daquela disposição legal, sendo que essa relação especialé claramente delimitada no artº 49º do CIRE).

Texto Integral

Proc. nº 157/13.0TBCUB-F.E1-2ª (2014)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)

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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na Instância Local de (…) – Comarca de (…), em que foram declarados insolventes (…) e mulher, (…), foi exercida pelo administrador da insolvência, contra (…), por carta registada com aviso de recepção (AR) datada de 30/9/2013, a resolução em benefício da massa insolvente de contrato de compra e venda (em que foram vendedores os insolventes e adquirente o referido (…), celebrado em 5/4/2012 e que teve como objecto prédio urbano registado sob o nº … na Conservatória do Registo Predial da (…), com base no artº 120º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3, invocando ter essa transacção sido efectuada com o objectivo de subtrair o referido bem aos credores dos insolventes, por realizada num contexto de irreversível insolvência dos vendedores e de relação familiar, enquanto sogros e genro respectivamente, entre vendedores e adquirente.

Pelo mencionado adquirente foi deduzida impugnação da resolução, ao abrigo do artº 125º do CIRE, tramitada em processo autónomo, que corre por apenso ao processo de insolvência. Na respectiva petição inicial concluiu o impugnante formulando os seguintes pedidos: «a) declarar-se nula e de nenhum efeito, por falta de motivação e fundamentação, a resolução em benefício da massa insolvente da transmissão consubstanciada num negócio de compra e venda, celebrado através de escritura pública realizada em 05.04.2012, mantendo-se a eficácia do negócio resolvido; b) caso assim não se entenda, deverá a presente acção prosseguir de forma a determinar a validade da transmissão efectuada; c) em alternativa ou subsidiariamente, e apenas no caso de a presente impugnação não vir a proceder, ser a massa insolvente condenada a pagar ao A. a quantia de 40.000,00 €, acrescida de juros desde a data da celebração do negócio (…)».

Nas contestações da R. Massa Insolvente e da assistente (…), CRL» (como tal admitida por despacho certificado a fls. 196-197), requereram estas, nomeadamente, o indeferimento da arguição de nulidade e ineficácia da declaração de resolução do contrato de compra e venda, por não ocorrer qualquer vício nessa declaração, em virtude de a mesma ter explicitado suficientemente os seus fundamentos, quais sejam a identificação do acto a resolver, a sua prejudicialidade para a massa insolvente e a má fé do adquirente (a presumir em função da relação de parentesco existente entre vendedores e adquirente). E solicitaram, subsequentemente, que fosse declarada a validade da resolução do contrato e negado o pedido de restituição da quantia peticionada.

No despacho saneador (certificado a fls. 199-203), entendeu o tribunal de 1ª instância dispor já de elementos bastantes para conhecer do primeiro dos pedidos formulados – ou seja, o de declaração de nulidade da comunicação de resolução –, tendo decidido julgar improcedente tal pedido. Na fundamentação da sua decisão, o M.mo Juiz a quo considerou, essencialmente, o seguinte: a questão suscitada pelo impugnante, no sentido de que a declaração de resolução não continha suficiente fundamentação de facto (por alegadamente não indicar os motivos concretos do preenchimento dos requisitos da resolução), respeita à suficiência da comunicação efectuada e constitui questão prévia relativamente à da apreciação da própria validade da resolução; essa questão prévia, por condicionar o prosseguimento dos autos, deve (e pode) ser, desde já, apreciada; a declaração de resolução deve integrar os factos concretos essenciais que revelem os motivos para a destruição do negócio e permitam ao destinatário a sua posterior impugnação, mas isso não significa que essa declaração deva conter uma exaustiva indicação dos fundamentos da resolução; a lei basta-se com a identificação do acto a resolver, a ocorrência deste nos 2 anos anteriores ao processo de insolvência, a prejudicialidade do acto em relação à insolvência e a má fé de terceiro (que se presumirá em caso de relação especial entre este e o insolvente); no caso concreto, a carta de resolução continha elementos suficientes para satisfazer aquelas exigências legais, como bem revela a defesa apresentada pelo impugnante, com alegação de factos para prova em contrário dos pressupostos da resolução, do que se infere a plena percepção do conteúdo da declaração. E remeteu-se para momento posterior, já em sede de julgamento, apurar questões como as saber se o impugnante tinha conhecimento da situação patrimonial dos insolventes à data do negócio ou se a venda prejudicou os credores dos insolventes, com o conhecimento do impugnante (cfr. temas da prova, a fls. 202).

É deste despacho saneador que decidiu parcialmente do mérito da causa, e na parte em que foi proferida tal decisão, que vem interposto pelo impugnante o presente recurso de apelação, cujas alegações culminam com as seguintes conclusões:

«1. Manifesta-se a óbvia discordância do recorrente relativamente ao entendimento expresso na decisão recorrida.

2. Entende o ora recorrente estarem verificados todos os requisitos para que fosse julgada procedente a declaração de nulidade e ineficácia invocada, por falta de motivação e fundamentação, da resolução em benefício da massa insolvente na transmissão.

3. Dispõe o nº 1 do art° 123° do CIRE que "1 – A resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração da insolvência."

4. Em consonância com o regime geral da resolução, no qual se consagra que a mesma se pode fazer por simples declaração à outra parte – cfr. artigo 436°, número 1, do Código Civil (C.C.) –, esta norma não exige que a resolução se concretize através de acção judicial, bastando-se, para o efeito, com uma simples comunicação por carta registada com aviso de recepção.

5. A resolução opera-se assim por meio de uma declaração unilateral receptícia, que, neste caso, se funda na lei e que, para ser eficaz, tem de chegar ao conhecimento do destinatário, produzindo os seus efeitos logo que recebida/conhecida por este.

6. Acontece que a declaração de resolução terá que conter os fundamentos da mesma sem o que será afectada de nulidade.

7. Com efeito, atendendo a que o terceiro tem o direito de impugnar a resolução através da acção prevista no artigo 12.° do C.I.R.E., este tem de conhecer previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são invocados.

8. É que só neste caso estará o destinatário da resolução em condições de perceber a declaração resolutiva e de, se assim o entender, a impugnar.

9. Sendo que, e ademais, a deficiência de fundamentação do acto nem tão pouco pode ser suprida em sede de contestação à acção de impugnação, com indicação de novo quadro factual ou outros vícios.

10. A carta resolutiva – por se tratar de declaração receptícia e por estarem em causa factos constitutivos do direito que o Administrador da Insolvência exercita – tem, por isso, de conter a fundamentação factual que determina a resolução.

11. Lendo a carta através da qual o Administrador da Insolvência procedeu à declaração de resolução, constata-se que a mesma não contém qualquer fundamento que justifique tal resolução.

12. Pois na referida missiva, a Massa Insolvente declara resolvida a transmissão acima descrita, invocando para tal os pressupostos constantes "(…) 120º nº 1 a 4 e 5 a) e b) do C.I.R.E."

13. Mas não alega quaisquer factos, nem esclarece porque motivos se encontram preenchidos tais pressupostos, limitando-se a remeter para as referidas disposições legais.

14. Nem o nexo de causalidade entre a transacção e insolvência de (…) e de (…).

15. Em bom rigor, o Administrador da Insolvência, na sua missiva, não alega factos que traduzam a prejudicialidade dos actos por ela visados.

16. Nem os que caracterizam a má fé do Autor.

17. O próprio tribunal a quo, no despacho ora recorrido, não demonstra que o Administrador da Insolvência tenha invocado factos concretos resultado da análise dos actos do mesmo que aquele mais não fez do que invocações genéricas.

18. Não existindo portanto qualquer fundamentação concreta e factual.

19. A missiva não indica a data do início do processo de insolvência, nem sequer a data em que teria tido conhecimento da realização da transacção.

20. O Administrador da Insolvência limita-se, na carta enviada ao recorrente, em moldes estandardizados, a proceder à resolução de um acto, consubstanciado num negócio de compra e venda.

21. Pois que, de concreto, nada alega ou diz.

22. O texto transcrito na carta resolutiva são meras conclusões, sem qualquer quadro factual de suporte, como era seu dever e obrigação.

23. O recorrente não pretendeu prejudicar os credores porque na realidade desconhecia se os insolventes tinham ou não credores, quais os montantes em dívida e se tinham ou não mais bens que fossem suficientes para o pagamento das suas dívidas.

24. O recorrente não conhecia nem era obrigado a conhecer a situação económico-financeira dos insolventes e a verdade é que o Administrador de Insolvência não alega (nem poderia algar pois os mesmos não existem) na sua missiva factos que permitam demonstrar o contrário, limitando-se mais uma vez a remeter para preceitos legais genéricos.

25. Além disso, improcede igualmente o argumento de que o bem se manteria na esfera do património familiar, pois o recorrente, apesar de genro dos insolventes, encontra-se casado com a filha daqueles no regime da separação de bens, o que significa que não há qualquer comunhão de património.

26. Pelo que não pode resultar demonstrado que o recorrente estava de má ­fé e pretendeu prejudicar quem quer que fosse.

27. No caso concreto, a má fé não se presume, tem que ser demostrada e provada, tendo por base factos concretos, não bastando considerações genéricas.

28. Além disso, mais que alegar genericamente, cabia demostrar factualmente que da transmissão resultou a origem ou agravamento da situação de insolvência. Ou seja, o nexo causal.

29. Pois o negócio em si mesmo podia não ser prejudicial à massa, importa aferir dos reflexos que tiveram nos insolventes – se causaram a sua insolvência ou agravaram o seu estado.

30. Tudo com base na factualidade existente.

31. O que não sucede.

32. Só com estes dados, seria possível aferir da prejudicialidade do acto.

33. Do negócio celebrado entre as partes não resultaram obrigações manifestamente desproporcionais entre as partes.

34. Nem os ora insolventes se encontravam, à data dos factos, em situação de insolvência, nem essa transmissão diminuiu, frustrou ou dificultou o pagamento dos credores de insolvência.

35. À data do negócio, os insolventes não tinha sequer iniciado o processo de Insolvência (que ocorreu em Maio de 2013).

36. Impunha-se, pois, ao Administrador da Insolvência invocar as circunstâncias que fundamentam a medida, maxime a prejudicialidade e a má fé ínsitas ao acto, especificando-as.

37. Redigida naqueles termos, não resulta da leitura da carta que o Sr. Administrador de Insolvência remeteu, quais os factos que servem de fundamento à resolução do negócio, além do negócio em si mesmo.

38. O administrador da insolvência está onerado com a alegação e prova dos factos constitutivos do direito de resolução que exerceu em benefício da massa falida, sem prejuízo do que decorre do princípio da aquisição processual.

39. Na notificação de resolução de negócio feita pelo Administrador em favor da massa, tem o Administrador de indicar os concretos factos que servem de fundamento da medida.

40. Não basta dizer que "o contrato ora resolvido é claramente prejudicial à massa insolvente".

41. Nem tal fundamentação se deveria ter revelado suficiente para o tribunal a quo.

42. Bastava ao Sr. Administrador de Insolvência uma breve consulta aos documentos e à escritura de compra e venda, para aferir que não existiu qualquer má fé negocial entre as partes.

43. Pelo que, não concretizando a declaração resolutiva, os factos constitutivos do direito que se pretendeu exercer, a resolução é nula e de nenhum efeito, por absoluta falta de motivação.

44. A comunicação resolutiva efectuada pela Ré Massa Insolvente preteriu assim uma formalidade essencial, porquanto não consubstancia a alegação de qualquer facto, apenas uma mera remissão para normas e conceitos legais.

45. E, uma vez que da existência de fundamento válido para tal resolução depende a legitimidade desse direito, a resolução sem motivo ou justificação é ineficaz.

46. Na realidade, nos termos do disposto no artigo 236° do C.C., não é forçoso concluir, com razoabilidade, que um declaratário normal, na posição do recorrente, possa deduzir da declaração da Ré Massa Insolvente o sentido (factos e razões que servem de fundamento) da resolução do negócio por parte desta.

47. Pelo que foi irremediavelmente prejudicado o direito do recorrente ao efectivo exercício do contraditório.

48. E, por conseguinte, tendo em conta tudo e todo o que precede, está a declaração resolutiva ferida de nulidade.

49. Para os devidos efeitos e consequências legais, deveria o tribunal a quo ter declarado nula e de nenhum efeito a resolução operada pelo Administrador da Insolvência, através de carta remetida a 30 de Setembro de 2013, o que, e desde já, se requer.

50. O que não aconteceu, no entender do recorrente, de forma errada e em clara preterição das normas legais aplicáveis.

51. Pelo que deve concluir-se pela procedência da declaração de nulidade e ineficácia, por falta de motivação e fundamentação, da resolução operada em benefício da massa insolvente.

52. O que deve obrigatoriamente determinar a revogação do despacho recorrido com a consequente substituição por outro que declare a nulidade e a ineficácia da resolução.»


A assistente contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do apelante resulta que a matéria a decidir se resume a apurar se, como entendeu o tribunal recorrido, deverá improceder o pedido de declaração de nulidade da comunicação de resolução em benefício da massa insolvente de contrato de compra e venda em causa nos autos – ou, dito de outro modo, saber se a comunicação de resolução desse contrato, formulada pelo administrador de insolvência e dirigida ao adquirente (impugnante da resolução e ora recorrente), satisfazia os requisitos formais necessários para que a mesma tivesse eficácia resolutiva.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:

Comece-se por salientar, como decorre do que já se enunciou supra quanto ao objecto do recurso, que aquilo que está em discussão no presente recurso não é saber se o contrato de compra e venda celebrado entre insolventes e impugnante se deve ter por resolvido – mas apenas, e tão só, saber se a comunicação de resolução era formalmente apta a produzir a resolução.

A decisão sob recurso apenas se pronuncia sobre a validade da comunicação de resolução e não sobre a validade da resolução: quanto a esta última matéria, relegou-se a sua apreciação para momento posterior, como bem evidencia a enunciação sumária acima formulada sobre os temas da prova. E, como é óbvio, o objecto do recurso não pode ir para além do âmbito da própria decisão recorrida.

Nas alegações de recurso do recorrente parecem confundir-se os dois referidos planos: tanto se fala em nulidade da resolução como em nulidade da comunicação de resolução; tanto se diz que a carta enviada não concretizava os factos que fundamentavam a resolução como se sustenta que não ocorriam as situações de prejudicialidade do acto para a massa insolvente ou de má fé dos intervenientes no acto. Ora, não é a mesma coisa saber se a comunicação de resolução continha a enunciação dos elementos fundantes da resolução ou saber se se verificavam em concreto esses elementos. E, neste momento, só está em questão o primeiro termo dessa distinção: trata-se apenas de apurar se a comunicação de resolução era ou não inteligível ou compreensível para o destinatário, no sentido de conter os elementos bastantes para se saber o que se pretendia resolver e por que se pretendia resolver.

É, pois, evidente que o presente recurso só terá de se pronunciar sobre esta questão, assim enunciada, ficando a cargo da 1ª instância, e mais adiante (no momento próprio do processo), apreciar se a resolução se deve ter por verificada. E, sendo assim, a matéria do recurso mostra-se claramente confinada à leitura da comunicação de resolução, apenas com o objectivo de verificar se a mesma continha os elementos bastantes para valer formalmente como declaração de resolução: se se considerar que os continha, então haverá que concluir que o pedido de declaração de nulidade da comunicação teria manifestamente de improceder, conforme se decidiu em 1ª instância – e não merecerá provimento o presente recurso.

Importa, pois, conhecer o teor da carta enviada pelo administrador de insolvência ao impugnante, sendo apenas essa a matéria de facto relevante para a apreciação do presente recurso. Eis o seu conteúdo:

«(…)
Venho pela presente, na qualidade de Administrador de Insolvência da Massa Insolvente supra identificada, nomeado por sentença proferida em 22/03/2013 e nos termos do disposto nos artigos 120°, nos 1 a 4 e 5, alíneas a) e b), do CIRE, declarar-lhe que procedo à RESOLUÇÃO do acto jurídico de transmissão consubstanciado num negócio de compra e venda, celebrado através de escritura pública realizada em 05/04/2012, na Conservatória dos Registos Predial e Comercial de (…), em que V. Exª adquiriu a (…) e (…) o prédio urbano destinado a habitação, situado na Rua das (…), n° 16 da freguesia e concelho da (…), inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial da (…) sob o nº (…).
A resolução ora operada tem natureza incondicional com base no facto de a venda ter sido celebrada há menos de dois anos antes da data do início do processo de insolvência e os insolventes não terem entregue à massa insolvente, até à data, o valor de 40.000,00€ referente ao negócio realizado.
De facto, a venda em causa, mais a mais nos termos e período temporal em que se efectivou, foi realizada com o intuito único de subtrair os bens imóveis ao alcance dos credores dos insolventes, tal como os intervenientes bem sabiam, mormente pelo facto de serem sogros e genro, que os insolventes não dispunham de bens suficientes e idóneos para o cumprimento das suas obrigações que não fosse o bem alienado.
Ora, este imóvel foi alienado com o conhecimento de que o mesmo representava o único meio garantístico para a solvência das dívidas dos insolventes.
Dito isto, verifica-se que todos os intervenientes sabiam que a situação dos Ex.mos Senhores (…) e (…) era de insolvência irreversível.
Como tal, resulta, além de presumida, provada a má fé dos intervenientes no negócio de compra e venda, já que todos mais não pretenderam do que prejudicar os credores dos ora insolventes, dissolvendo conscientemente o seu parco património passível de constituir garantia do pagamento, ainda que parcial, dos débitos daqueles, mantendo-o ainda assim na esfera patrimonial "familiar", agindo em tal propósito e com perfeita consciência do alcance dos seus actos.
O acto ora resolvido consubstancia actividade prejudicial aos interesses da massa insolvente, mormente por força da impossibilidade de apreensão e alienação do património objecto da compra e venda, o que diminui substancialmente o valor da massa insolvente em detrimento dos interesses dos credores.
Neste sentido, caso V. Ex.ª admita desde iá a resolução do negócio/compra e venda supra mencionada, nos termos supra elencados, sou a solicitar se digne confirmá-lo mediante declaração por escrito, bem como deverão os insolventes supra identificados proceder do mesmo modo.
Tal actuação de V. Ex.ª poderá revelar cooperação no âmbito do processo de insolvência em epígrafe mencionado e que poderá relevar em sede de incidente de qualificação da insolvência.
Sendo o que se me oferece comunicar-lhe de momento, sou, com os meus respeitosos cumprimentos e atentamente,
(…)»

Resulta do artº 120º do CIRE que os requisitos da resolução se reconduzem a três pontos essenciais: 1) o acto ser prejudicial à massa insolvente; 2) o acto ter sido praticado em determinado período anterior à data do início do processo de insolvência (4 anos na versão originária do diploma e 2 anos na versão conferida pela Lei nº 16/2012, de 20/4); 3) haver má fé do terceiro (que se presume quando no acto tenha participado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, como se estabelece no nº 4 daquela disposição legal, sendo que essa relação especial é claramente delimitada no artº 49º do CIRE). Trata-se de caracterização que surge na doutrina sem particulares divergências (v., por todos, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, reimpressão, Quid Juris, Lisboa, 2006, p. 431 ss., e ANA PRATA, JORGE MORAIS CARVALHO e RUI SIMÕES, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, Coimbra, 2013, p. 356).

Daqui se deduz que a comunicação de resolução deve fazer necessária referência a estes três pontos. Olhando ao teor da carta supra transcrita, verifica-se que nela se contém menção a todos esses aspectos: é claramente identificado o contrato a resolver (de compra e venda, celebrado em 5/4/2012, entre os insolventes e o destinatário, (…), como vendedores e adquirente respectivamente, e que teve como objecto prédio urbano registado sob o nº (…) na Conservatória do Registo Predial da …) e refere-se ter aquele ocorrido há menos de 2 anos à data do início do processo de insolvência (indica-se até que a insolvência foi decretada em 22/3/2013, também antes de decorridos 2 anos sobre a data do contrato); declara-se que a venda foi feita com o intuito de subtrair tal imóvel ao alcance dos credores, que os alienantes não dispunham de bens suficientes para cumprir as suas obrigações e que seria aquele o único bem disponível para solver dívidas dos alienantes; e afirma-se ser do conhecimento do adquirente, quer a prejudicialidade do contrato, quer a irreversibilidade da situação de insolvência dos alienantes, como decorrência da circunstância de alienantes e adquirente serem sogros e genro, respectivamente (o que configura a invocação da relação especial entre alienante e adquirente que funda a aludida presunção legal de má fé, já que o artº 49º, nº 1, al. c), do CIRE inclui nesse conceito a situação do “cônjuge de descendente” do devedor pessoa singular, sem distinguir quanto ao regime de bens do respectivo casamento). Seria necessário mais do que estas indicações para se poder consubstanciar uma válida comunicação de resolução?

Para a utilização do mecanismo da resolução em benefício da massa insolvente, o CIRE basta-se, como resulta do disposto no nº 1 do artº 123º, com o simples envio pelo administrador da insolvência de uma carta registada com aviso de recepção. Como declaram CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, a lei satisfaz-se com uma «exigência de formalidades mínimas, na declaração, o que se compreende dada a natureza da situação» (ob. cit., p. 443). Ora, esta menor exigência de solenidade da declaração afigura-se-nos um indicador seguro de que a declaração não tem de ser particularmente exaustiva, nem tem de conter uma descrição factual muito minuciosa: se não se impôs o exercício da resolução por via judicial, então não tem a respectiva declaração de se apresentar como se de uma petição inicial de acção de resolução se tratasse, com uma rigorosa e completa enunciação dos factos que fundamentam a resolução.

Será bastante uma sumária indicação dos elementos que permitam ao destinatário compreender em que circunstâncias se funda a pretensão de resolução. E, no caso concreto, é manifesto que isso foi feito: o destinatário ficou claramente ciente de qual o acto que se pretendia resolver e da invocação de dados – com suficiente dose de facticidade – caracterizadores dos requisitos legais da resolução (v.g., referência a datas que permitiam identificar o requisito temporal da resolubilidade, menção à inexistência de outros bens que garantissem a solvabilidade dos alienantes, alusão à relação familiar entre alienantes e adquirente). E tanto essa comunicação foi suficientemente percebida na sua dimensão fáctica, que o destinatário da mesma pôde amplamente opor-se à resolução através da presente acção de impugnação, expondo um vasto argumentário factual e jurídico com que pretende contrariar a ocorrência dos requisitos da resolução.

Alguma divergência jurisprudencial parece existir sobre este ponto – e disso dá cabal notícia o M.mo Juiz a quo na decisão recorrida (e também ANA PRATA, JORGE MORAIS CARVALHO e RUI SIMÕES, ob. cit., pp. 359-360) –, podendo identificar-se um núcleo de opiniões mais exigentes quanto ao conteúdo da declaração de resolução, que teria de conter uma descrição completa e exaustiva dos fundamentos da resolução (neste sentido, v., por todos, Ac. RG de 12/4/2011, Proc. 1264/09.0TBVCT-P.G1, in www.dgsi.pt, citado também pelos referidos autores), por oposição a outros entendimentos, que consideram que «as cartas resolutivas apenas carecem de indicação genérica e sintética dos pressupostos que fundamentam a resolução» (assim, Ac. RP de 29/9/2009, Proc. 252/06.2TBMDB-K.P1, idem). Pelas razões já acima expostas, aproximamo-nos deste último entendimento, sem prejuízo de aceitar, como alguma jurisprudência vem afirmando, que aquela declaração de resolução não pode ser também tão escassa que necessite ser depois suprida na contestação da acção de impugnação. Mas, reafirmando o que ficou dito, e em aplicação de tal critério (mesmo nessa mencionada versão mitigada), não se nos oferece dúvidas de que a comunicação em causa nos autos cumpriu suficientemente as exigências legais estabelecidas para a comunicação de resolução, pelo que é de excluir a ocorrência da sua pretensa nulidade.

Em suma: concorda-se com a decisão de improcedência, formulada pelo tribunal a quo no despacho saneador, quanto ao pedido de declaração de nulidade da comunicação de resolução, pelo que não merece provimento o presente recurso.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a presente apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.


Évora, 29 / 01 / 2015

Mário António Mendes Serrano

Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes

Mário João Canelas Brás