ACTIVIDADES PERIGOSAS
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – O art. 493º, nº 2 do CC estabelece uma inversão do ónus da prova presumindo a culpa do demandado, ao qual cabe provar que empregou todas as cautelas exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos ocorridos;
II – Em relação às actividades perigosas, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade provando que empregou todas as providências exigidas para evitar o efeito danoso;
III – Explorando a ré um kartódromo, que cede para corridas e competições organizadas por outros e aluga individualmente karts, tal actividade pode considerar-se perigosa, o que deve ser aferido em face do circunstancialismo concreto;
IV – De harmonia com o Regulamento Nacional de Circuitos de Karting, Competição e lazer, em vigor desde 01.01.1998, todas as provas desportivas dessa natureza só podem efectuar-se mediante a existência de seguro que garanta a responsabilidade civil dos concorrentes em relação a terceiros;
V – Os organizadores de provas desportivas são responsáveis pelos danos causados por essa actividade, a menos que haja culpa do próprio lesado na produção desses danos;
VI – Tendo o autor saído do kart, infringindo as regras de segurança que lhe impunham a permanência nesse veículo, há culpa da sua parte na produção do acidente, pelo que não pode ser imputada à recorrente a responsabilidade pelos danos que aquele sofreu.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Proc. n.º 2321/05.7TBVCT.G1


I – AA..., residente na ........, Braga, intentou a presente acção declarativa de condenação, com a forma ordinária, contra;

“ BB ...Companhia de Seguros, S.A.”, com sede na Rua, Porto, e,
“CC...., S.A.”, com sede no lugar de, Viana do Castelo, pedindo a condenação solidária das Rés a pagar-lhe a quantia global de € 21.618,16, de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados a partir da citação e até efectivo e integral pagamento.

Alega, sinteticamente, para o efeito, que, no dia 01 de Maio de 2002, pelas 12,30h, no Kartódromo de Viana do Castelo, de que a segunda Ré é proprietária e exploradora, o Autor conduzia um Kart alugado pela Incentivo.
Teve um despiste e o Kart que conduzia ficou preso na gravilha.
Como não conseguia retirar o veículo do lugar, saiu do interior do mesmo e começou a empurrá-lo, na tentativa de o recolocar em pista.
Quando assim procedia, foi embatido por um outro Kart que nessa pista circulava em condições idênticas, tendo sido atingido violentamente no pé esquerdo.
Em consequência desse acidente, resultaram ferimentos no Autor, que lhe determinaram dores, padecimento e sequelas, e prejuízos decorrentes do acidente e resultantes das sequelas dos ferimentos sofridos.
A segunda Ré transferiu para a BB... a responsabilidade civil pelos danos verificados em consequência da utilização dos Karts na actividade que explora. E daí o accionar dessa Ré, como entidade para quem havia sido transferida a responsabilidade civil emergente da circulação e danos causados por esses veículos, e da Incentivo como tomadora do seguro e exploradora do Kartódromo.

A Ré BB... Portugal contestou.
Aceita a existência de um contrato de seguro, do ramo responsabilidade civil geral, celebrado com a Ré CC... e relativo à actividade desenvolvida no Kartódromo explorado por esta.
Excepciona, porém, a não cobertura do acidente em causa nos autos pelo dito seguro, que exclui da responsabilidade que assumiu os danos, sejam de que natureza forem, causados entre si pelos pilotos dos Karts e os causados aos próprios Karts.
Impugna, por desconhecimento, as circunstâncias em que o acidente se deu e as consequências que do mesmo derivaram para o Autor.
Conclui pela improcedência da acção.
A Ré Incentivo também apresentou contestação.
Confirma a ocorrência do sinistro e a sua participação à Ré seguradora.
Impugnando a versão do sinistro descrita pelo Autor, apresenta uma outra por via da qual entende que o acidente ocorreu por exclusiva culpa deste, porquanto desrespeitou as regras de segurança em vigor no Kartódromo, que são comuns a todos os equipamentos do género, e que lhe foram, tal como aos demais utilizadores da pista, que na ocasião participavam numa prova, explicadas.
Conclui também pela improcedência da acção.

O Autor replicou, impugnando a matéria de excepção alegada nas contestações e concluindo como na petição inicial.


Efectuado o julgamento foi proferida sentença na qual se decidiu:
Julgar procedente o pedido formulado na presente Acção nº 2321/05.7 pelo autor AA..... de Castro contra a ré “CC..., S.A.” e, consequentemente, condeno esta ré no pagamento da quantia total € 21.618,16 (vinte e um mil seiscentos e dezoito euros e dezasseis cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano (Portaria n.º 291/2003 de 8 de Abril), contados desde citação e até efectivo e integral pagamento
Julgar improcedente o pedido formulado contra a ré “BB...., Companhia de Seguros”, que do mesmo vai absolvida.


Quer o autor quer a ré Incentivo interpuseram recurso da sentença.
As alegações de fls. 471 a 475, apresentadas pelo autor terminam com a seguintes conclusões:
Tendo em consideração o vencimento mensal, idade, IPP e demais factos dados como provados, e ainda a ampliação do pedido, que foi deferida a indemnização peticionada a este título nunca deveria ser inferior a € 90.000,00.
A essa indemnização deverá acrescer a peticionada a título de danos não patrimoniais constantes do pedido.
Foram violadas as normas constantes dos artigos 564º, n.º 1, 562º e 566º, n.º 1 do Código Civil.

As alegações de fls. 481 a 498, da ré CC..., S. A, terminam com conclusões, assim sintetizadas:
Resposta ao quesito 4º da base instrutória.
A actividade desenvolvida pela apelante não se inscreve nos critérios definidos pelo legislador para a classificação de uma determinada actividade como perigosa, pelo que não tem aplicação a presunção de culpa estabelecida no n.º 2 do artigo 492º do C. Civil.
Em consequência aplicam-se aos presentes autos as regras gerais de repartição do ónus da prova.
Mesmo que se considerasse a actividade da apelante como perigosa, considera-se que a matéria alegada e provada afasta qualquer responsabilidade da apelante na verificação do acidente.
Tivesse o apelado respeitado as instruções que lhe foram comunicadas previamente à sua entrada em pista e permanecido no interior do seu kart , e do embate descrito nos autos, não teria resultado qualquer dano ou lesão para o mesmo.
O valor fixado a título de danos patrimoniais (€ 20.000,00) é manifestamente exagerado, face ao circunstancialismo que resulta provado.
A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 493º, n.º 2, 342º e 487º do Código Civil.

O recorrido apresentou contra-alegações que constam dos autos a fls. 503 a 507, e nas quais pugna pela manutenção do decidido, com as alterações decorrentes do recurso por si interposto.

Colhidos os vistos, cumpre decidir

II – Nos termos do artigo 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do artigo 660º do mesmo código.

Em 1ª instância foi dada como provada a seguinte matéria de facto:
A) A 2ª R. é proprietária e exploradora, com fins lucrativos, de um espaço destinado ao desporto automóvel amador de Kart, denominado Karting de Viana, sito no ......;
B) No local indicado em A, a 2ª R. aluga aos seus clientes karts, sendo então conduzidos exclusivamente no circuito existente para o efeito e sob as regras de segurança e circulação impostas por ela;
C) No dia 01 de Maio de 2002, ocorreu um acidente no dito circuito: nesse dia, o A. conduzia um kart alugado pela 2ª R. no interior das suas instalações, no dito circuito, quando, devido a um despiste, o kart que conduzia ficou preso na gravilha, não podendo assim retomar a sua marcha, acabando o A. por ser embatido por um piloto de outro kart que se despistou no mesmo local onde ocorrera o despiste do A, embatendo no pé esquerdo deste;
D) O A. nasceu no dia 20 de Dezembro de 1969;
E) A 2ª R. transferiu para a 1ª R. a responsabilidade pela indemnização dos danos ocorridos no espaço indicado em A) através da apólice nº 111.592, a qual prevê, além do mais: a) “Exclusões: os danos, sejam de que natureza forem, causados entre si pelos pilotos dos “Karts” e os causados aos próprios “Karts”; b) “Franquia: 10% por sinistro, danos materiais, mínimo 50.000$00”.

- Constantes das respostas à matéria da base instrutória:

1) O piloto referida em C) (que embateu no A) era cliente da 2ª R, tendo, tal como o A, alugado a esta o kart que conduzia. -Quesito 1º
2) Nas circunstâncias referidas em C) o A. saiu do kart, a fim de o empurrar para a berma da pista, assim saindo da gravilha para ter tracção motora. -Quesito 2º
3) Quando o A. já se encontrava fora do kart, mas ainda em cima da dita gravilha, fora da pista, foi atingido pelo piloto referido em E). -Quesito 3º
4) Todos os Karts disponibilizados pela ré Incentivo, incluindo os intervenientes no acidente dos autos, dispõem de um dispositivo de protecção, guardas de protecção (compostas de um material muito resistente, tipo uma liga metálica ou plástico duro, à volta de todo o veículo (tipo carrinhos de choque) que protege o próprio veículo e o seu condutor, em caso de colisão. -Quesitos 5º e 6º
5) Em consequência do acidente, o A. fracturou o tornozelo esquerdo. -Quesito 7º
6) Logo após o acidente, o A. foi transportado de ambulância para o Hospital Santa Luzia, em Viana do Castelo, onde lhe foram prestados os primeiros socorros no respectivo Serviço de Urgências. -Quesito 8º
7) Daí foi transferido para o Hospital de S. Marcos, em Braga, tendo sido engessado no tornozelo esquerdo. -Quesito 9º
8) O A. passou 8 dias com o tornozelo engessado, sofrendo dores. -Quesito 10º
9) No 8° dia, o A. voltou ao Hospital de S. Marcos, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica com colocação de material de osteossintese (platina). -Quesito 11º
10) Ainda hoje o A. sofre dores, não mais tendo retirado o material de osteossintese (platina) do tornozelo esquerdo. -Quesito 12º
11) Em consequência das lesões sofridas no tornozelo, e das sequelas resultantes das mesmas, designadamente das dores que sente, o autor deixou de praticar desporto, ténis, futebol e caminhadas, como vinha fazendo até então. -Quesito 13º
12) Os factos indicados nas respostas aos quesitos 7º a 13º causaram ao A. angústia, apreensão e aborrecimentos. -Quesito 14º
13) À data do acidente, o A. era trabalhador da Vector SI – Sistemas de Informação, SA, prestando serviço com a categoria de analista informático. -Quesito 15º
14) Recebia mensalmente um vencimento de cerca de € 1.500,00. -Quesito 16º
15) Em consequência do acidente, o A. esteve de baixa médica, desde a data da sua ocorrência até 17 de Julho do mesmo ano. -Quesito 17º
16) Não tendo, nesse período, auferido a quantia de € 1.618,16. -Quesito 18º
17) Recebendo apenas € 2.131,84 da segurança social. -Quesito 19º
18) Em consequência directa e necessária do acidente, o A. ficou portador de uma Incapacidade Permanente Geral de 15% e, em termos de rebate profissional, essas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares. -Quesito 20º

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Questões a decidir nos dois recursos: resposta ao quesito 4º
Se a actividade da recorrente é uma actividade perigosa.
Montante da indemnização .
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Encontrando-se gravada a prova produzida em julgamento, de acordo com o disposto nos artigos 522º-B e 522º-C do Código de Processo Civil, a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada se para tanto tiver sido observado o condicionalismo imposto pelo artigo 690º-A, como é permitido pelo disposto no artigo 712º, n.º 1, alínea ) do mesmo diploma.
Conforme consta dos autos, existiu gravação da prova.

Dispõe o artigo 690º-A do Código de Processo Civil, que quando se impugne matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou da gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Dispõe ainda o n.º 2 do citado artigo que no caso da alínea b) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro de apreciação das provas tenham sido gravados , incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522º-C.

A ré indica como meio probatório que conduziria a uma resposta diferente os depoimentos das testemunhas, J....., L....., M.... e A....

Quesito 4º.
No quesito 4º da base instrutória perguntava-se o seguinte: antes de iniciar a condução do kart, o autor foi advertido para os procedimentos de segurança em caso de avaria, despiste ou acidente de qualquer kart em pista, tendo-lhe sido transmitido que:
a) em qualquer uma dessas situações deveria permanecer no interior no kart que tripulava e levantar a mão de modo a avisar um dos comissários de pista de que se encontrava impossibilitado de circular.
b) Uma vez avisado um dos comissários de pista, seria levantada uma bandeira amarela para advertir todos os tripulantes de karts da verificação de situação anormal e, consequentemente, da necessidade de reduzirem a velocidade dos respectivos karts e da proibição de efectuarem ultrapassagens.
c) Depois de avistado pelo comissário de pista mais próximo, este deslocar-se-ia para o local onde o A. se encontrava imobilizado para o ajudar a remover o kart para local seguro, ou caso ainda fosse possível fazê-lo retornar à pista e assim seguir a sua marcha.

Entende a recorrente que o quesito deveria ser considerado como provado.

No despacho que decidiu a matéria de facto, o Mmº Juiz analisando os depoimentos das testemunhas, referiu “ que ficou com fortes dúvidas que no dia em causa se tenha feito qualquer alusão no briefing às normas de segurança quesitadas”.
Referiu ainda que o depoimento da testemunha A...... não beneficiou de qualquer outro , ou de um diferente elemento de prova, que lhe desse consistência e suporte, e a experiência relatada indica-nos que o normal é naquele tipo de competições, em que o grosso das pessoas em pista são experientes, é não haver grandes preocupações com explicações de regras básicas de segurança que todos conhecem “

No seu depoimento, quanto a esta matéria, a testemunha J.... participante na prova, e condutor do kart que embateu no autor, disse que se inscreveu na prova organizada pela Universidade do Minho – UM Karting – e que antes da prova houve um briefing, efectuado pelo director da prova.
Quanto ao que foi referido no briefing, disse não se lembrar com exactidão o que aí foi dito.
Também não soube precisar quantos comissários existiam, assim como quantas pessoas estavam na Torre do kartódromo.
Quanto às questões de segurança, disse saber como agir, tendo referido que quando um kart sai da pista , se se conseguir, deve retornar-se à mesma. Não se conseguindo, deve levantar-se o braço para vir alguém do kartódromo para ajudar.
Quanto aos karts que estavam a utilizar os mesmos eram de “média potência” e estavam todos equipados com uma protecção para evitar choques.

A testemunha L......, era um dos organizadores da prova e o seu director.
A prova – que não era organizada pela recorrente –inseria-se no campeonato de kart da Universidade do Minho, que se desenrola em diversos kartódromos e, apesar de não ser uma prova oficial, tinha um regulamento próprio, comissários e director da prova, sendo também aberta a antigos estudantes e outros (que a testemunha designou como convidados).
Segundo referiu o regulamento prevê um “briefing” prévio que foi feito.
Foi a testemunha quem fez o briefing, que se destinava a gerir os comportamentos em pista.
Segundo depôs, e no que respeita à segurança em pista “imagina que disse quais os comportamentos a ter, mas não tem a certeza”.
Assim como não se lembra se o recorrido foi advertido das normas a seguir em caso de acidente, ou saída da pista.
Disse também que no briefing que a recorrente fez antes da prova “imagina que foram referidas as normas de segurança, mas também não tem a certeza”.
A testemunha M......., também confirmou a existência dos “briefings”; um feito pela organização da prova e outro feito pela recorrente.
Como referiu, a organização da prova (da qual o mesmo faz parte) tem preocupação com a segurança, embora não se lembrasse exactamente do que foi dito.
Também disse que o Sr. A..., do kartódromo foi falar com os concorrentes, e também não se lembrando exactamente do teor preciso das palavras do mesmo, sabe que o mesmo fez uma palestra ( a que a testemunha se referiu como “a chamada seca”) onde, pelo menos, advertiu o autor e os outros para os cuidados elementares de segurança a observar durante a corrida.
A testemunha A..., trabalhava à época, para a recorrente, sendo ele quem fazia a parte financeira e a gestão do kartódromo.
Confirmou os depoimentos das testemunhas quanto à existência dos briefings , um feito pela organização da prova e outro feito por ele próprio.
Explicou quais as normas adoptadas pela empresa antes de qualquer tipo de evento e explicou que a recorrente cede o kartódromo para provas realizadas por outros e aluga também karts individualmente para pessoas que o queiram, fora de qualquer prova .
Disse também que as recomendações sobre segurança estão afixadas no kartódromo.
Em qualquer tipo de evento chamam todos os participantes e ele ou outro funcionário, alerta os concorrentes para as normas de segurança a seguir dentro da pista.
No caso, foi ele que fez a palestra sobre as normas de segurança, onde referiu o significado das bandeiras, o procedimento a seguir em caso de acidente e distribuiu a cada um, um panfleto com as mesmas normas, já que o regulamento da prova não era da responsabilidade da ré.
Disse que os karts têm uma protecção, por isso se recomenda aos seus condutores para não saírem do mesmo em caso de acidente ou avaria.
Os funcionários do kartódromo (durante a prova) tal como ele têm uma visão completa da pista para poderem proceder em conformidade em caso de acidente ou avaria de um kart, utilizando as respectivas bandeiras.
Perante o que consta destes depoimentos entendemos que ficou provado que foram comunicados aos participantes da prova não só as regras da mesma, como os procedimentos de segurança. As duas testemunhas, confirmaram o depoimento desta última quanto à existência dos briefings – um com o director e organizador da prova e outra com o funcionário da recorrente , apesar de terem dito que não se lembravam exactamente do que foi dito (mas não deixaram de dizer que certamente a mesma versou sobre a segurança).
Apesar disso (da pouca precisão, nomeadamente dos organizadores e director da prova), não foi posto em causa este depoimento e faz todo o sentido o que a testemunha referiu, uma vez que a mesma não organizava a prova e não era da sua competência dar indicações sobra a regulamentação da mesma e o modo como ia decorrer. Por outro lado, a testemunha M...... confirmou que a testemunha A..... falou sobre as questões de segurança, e só assim se compreende o briefing com o responsável do kartódromo, já que a prova não era organizada por este, fazendo todo o sentido, que fossem dadas instruções sobre o comportamento e as normas a seguir dentro da pista, e sobre o tipo de kart que iam conduzir.
E quanto aos depoimentos das testemunhas – organizadores da prova , nomeadamente do seu director – estranha-se que o mesmo, como responsável pela prova e pela organização do campeonato, tenha invocado o tempo decorrido para não saber exactamente o que foi dito sobre a segurança, e o que ele próprio disse, nessa matéria (refugiando-se no termo “imaginam que falaram”). No seu depoimento, um dos organizadores da prova, tentou mesmo desvalorizar essa norma de segurança pondo-a em causa, chegando mesmo a dizer que na sua opinião, em caso de avaria ou de acidente sair do kart é mais seguro.
No entanto, a testemunha J....., participante da prova, sabia exactamente – como referiu no seu depoimento – quais os comportamentos a ter na pista.
O que efectivamente levanta dúvidas é o modo como depuseram os organizadores da prova não afirmando nem negando o que lhe foi perguntado, dando a ideia de não se querem comprometer. De qualquer modo, a testemunha M.... sempre confirmou que os concorrentes foram advertidos sobre as normas de segurança, o que confirma o depoimento da testemunha A.... .
É que apesar dos depoimentos das duas testemunhas não terem sido completamente afirmativos, o certo é que as mesmas acabaram por confirmar o depoimento da testemunha A ...., no que respeita à existência dos briefings, depoimento que não foi posto minimamente em causa, assim como a sua credibilidade. E não é pelo facto de não existir outro elemento de prova que não pode ser considerado este depoimento. A nosso ver só assim seria se o Mmº Juiz entendesse que a testemunha por qualquer razão não estava a dizer a verdade, ou que não era merecedora de qualquer credibilidade.
Perante o que resultou da prova testemunhal entendemos que o quesito 4º deve ser dado como provado.

Tendo em consideração o que acima foi referido é a seguinte a matéria de facto provada:
A) A 2ª R. é proprietária e exploradora, com fins lucrativos, de um espaço destinado ao desporto automóvel amador de Kart, denominado Karting de Viana, sito no Lugar de.....;
B) No local indicado em A, a 2ª R. aluga aos seus clientes karts, sendo então conduzidos exclusivamente no circuito existente para o efeito e sob as regras de segurança e circulação impostas por ela;
C) No dia 01 de Maio de 2002, ocorreu um acidente no dito circuito: nesse dia, o A. conduzia um kart alugado pela 2ª R. no interior das suas instalações, no dito circuito, quando, devido a um despiste, o kart que conduzia ficou preso na gravilha, não podendo assim retomar a sua marcha, acabando o A. por ser embatido por um piloto de outro kart que se despistou no mesmo local onde ocorrera o despiste do A, embatendo no pé esquerdo deste;
D) O A. nasceu no dia 20 de Dezembro de 1969;
E) A 2ª R. transferiu para a 1ª R. a responsabilidade pela indemnização dos danos ocorridos no espaço indicado em A) através da apólice nº 111.592, a qual prevê, além do mais: a) “Exclusões: os danos, sejam de que natureza forem, causados entre si pelos pilotos dos “Karts” e os causados aos próprios “Karts”; b) “Franquia: 10% por sinistro, danos materiais, mínimo 50.000$00”.
- Constantes das respostas à matéria da base instrutória:

1) O piloto referido em C) (que embateu no A) era cliente da 2ª R, tendo, tal como o A, alugado a esta o kart que conduzia. -Quesito 1º
2) Nas circunstâncias referidas em C) o A. saiu do kart, a fim de o empurrar para a berma da pista, assim saindo da gravilha para ter tracção motora. -Quesito 2º
3) Quando o A. já se encontrava fora do kart, mas ainda em cima da dita gravilha, fora da pista, foi atingido pelo piloto referido em E). -Quesito 3º
4º Antes de iniciar a condução do kart, o autor foi advertido para os procedimentos de segurança em caso de avaria, despiste ou acidente de qualquer kart em pista, tendo-lhe sido transmitido que:
d) em qualquer uma dessas situações deveria permanecer no interior no kart que tripulava e levantar a mão de modo a avisar um dos comissários de pista de que se encontrava impossibilitado de circular.
e) Uma vez avisado um dos comissários de pista, seria levantada uma bandeira amarela para advertir todos os tripulantes de karts da verificação de situação anormal e, consequentemente, da necessidade de reduzirem a velocidade dos respectivos karts e da proibição de efectuarem ultrapassagens.
f) Depois de avistado pelo comissário de pista mais próximo, este deslocar-se-ia para o local onde o A. se encontrava imobilizado para o ajudar a remover o kart para local seguro, ou caso ainda fosse possível fazê-lo retornar à pista e assim seguir a sua marcha.

5) Todos os Karts disponibilizados pela ré CC...., incluindo os intervenientes no acidente dos autos, dispõem de um dispositivo de protecção, guardas de protecção (compostas de um material muito resistente, tipo uma liga metálica ou plástico duro, à volta de todo o veículo (tipo carrinhos de choque) que protege o próprio veículo e o seu condutor, em caso de colisão. -Quesitos 5º e 6º
6) Em consequência do acidente, o A. fracturou o tornozelo esquerdo. -Quesito 7º
7) Logo após o acidente, o A. foi transportado de ambulância para o Hospital Santa Luzia, em Viana do Castelo, onde lhe foram prestados os primeiros socorros no respectivo Serviço de Urgências. -Quesito 8º
8) Daí foi transferido para o Hospital de S. Marcos, em Braga, tendo sido engessado no tornozelo esquerdo. -Quesito 9º
9) O A. passou 8 dias com o tornozelo engessado, sofrendo dores. -Quesito 10º
10) No 8° dia, o A. voltou ao Hospital de S. Marcos, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica com colocação de material de osteossintese (platina). -Quesito 11º
11) Ainda hoje o A. sofre dores, não mais tendo retirado o material de osteossintese (platina) do tornozelo esquerdo. -Quesito 12º
12) Em consequência das lesões sofridas no tornozelo, e das sequelas resultantes das mesmas, designadamente das dores que sente, o autor deixou de praticar desporto, ténis, futebol e caminhadas, como vinha fazendo até então. -Quesito 13º
13) Os factos indicados nas respostas aos quesitos 7º a 13º causaram ao A. angústia, apreensão e aborrecimentos. -Quesito 14º
14) À data do acidente, o A. era trabalhador da Vector SI – Sistemas de Informação, SA, prestando serviço com a categoria de analista informático. -Quesito 15º
15) Recebia mensalmente um vencimento de cerca de € 1.500,00. -Quesito 16º
16) Em consequência do acidente, o A. esteve de baixa médica, desde a data da sua ocorrência até 17 de Julho do mesmo ano. -Quesito 17º
17) Não tendo, nesse período, auferido a quantia de € 1.618,16. -Quesito 18º
18) Recebendo apenas € 2.131,84 da segurança social. -Quesito 19º
19) Em consequência directa e necessária do acidente, o A. ficou portador de uma Incapacidade Permanente Geral de 15% e, em termos de rebate profissional, essas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares. -Quesito 20º
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A questão em causa nos autos é a de saber se a actividade da recorrente – de aluguer de karts, e do kartódromo - é uma actividade perigosa que se integra no disposto no n.º 2 do artigo 493º do Código Civil e, se por isso, se presume a culpa da mesma na produção do acidente.
A lei não define o que é uma actividade perigosa.
Como vem sendo entendido pela doutrina e jurisprudência deve tratar-se, pois, de actividade que, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral (neste sentido, Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 493).

O que determina a qualificação de uma actividade como perigosa é a sua especial aptidão para produzir danos, aptidão esta que resulta da sua própria natureza ou da natureza dos meios empregados - artigo 493º, n.º 2 do Código Civil.
O artigo 493 n.º 2º do Código Civil, estabelece uma inversão do ónus probatório presumindo a culpa do demandado, cabendo a este provar que empregou todas as medidas exigidas pelas circunstâncias, com o fim de prevenir os danos causados.
Em relação às actividades perigosas , o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade , provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para evitar os danos.
Também entende a jurisprudência que a perigosidade a que alude o n.º 2 do artigo 493º, pode resultar de qualquer actividade complementar da principal, desde que indispensável e inerente – neste sentido, Ac. do STJ de 2/11/89 –

A ré explora um kartódromo, cedendo-o para corridas e competições organizadas por outros e aluga individualmente karts.
A actividade complementar ao aluguer do kart pode constituir, a nosso ver, uma actividade que pode ser considerada como perigosa, o que deve ser aferido em concreto, pois depende do tipo de kart utilizado (o tipo de motor) e também da utilização do mesmo, já que não é indiferente a sua condução individual ou inserido numa competição (existindo karts que podem ser conduzidos por crianças).
Com efeito, uma prova (corrida) de karting, onde pode atingir-se velocidades consideráveis e de onde pode resultar acidentes integra-se no conceito do n.º 2 do artigo 493º do Código Civil.
Tal como vem sendo defendido pela jurisprudência, nomeadamente a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, as corridas de automóveis ou a realização de provas desportivas de karting devem ser consideradas como actividades perigosas ( a este propósito veja-se o Ac. do STJ de 6/6/02. CJ, Acs do STJ , Ano X, t. 2, pág. 98).
E, por isso todas as provas desportivas – de acordo, nomeadamente, com o Regulamento Nacional de Circuitos de Karting, Competição e Lazer, em vigor desde 1 de Janeiro de 1998- só podem efectuar-se mediante a existência de seguro que garanta a responsabilidade civil dos concorrentes em relação a terceiros.
Também em actividades desportivas, é necessária ( e já era à data dos factos)a existência de seguros que cubram os riscos de acidentes, pessoais e de terceiros inerentes à actividade desportiva.
Os organizadores de provas desportivas são responsáveis pelos danos causados por essa actividade, a menos que haja culpa do próprio lesado na produção do acidente.
No caso dos autos, o que resulta da inquirição das testemunhas é que a recorrente cedeu (alugou) as instalações do kartódromo para que aí decorresse uma prova, que não foi organizada por si (mas que integrava o campeonato da Universidade do Minho), e na qual o autor era concorrente.
No entanto, não consta do elenco dos factos provados (nem tão pouco foi alegado), qual o regulamento da prova, nem se os seus organizadores efectuaram qualquer seguro, a favor de terceiros e se os concorrentes efectuaram algum seguro pessoal.
Também não consta que tipo de kart estava a ser utilizado, no que se refere ao motor, desconhecendo-se a velocidade que o mesmos podem atingir.

O que foi dado como provado é que, quer o autor, quer o condutor que embateu no autor tinham alugado o kart à ré (dando a ideia que esse aluguer foi individual, e que não estávamos perante qualquer prova) – alínea c) dos factos dados como assentes.
Também resultou provado que todos os Karts disponibilizados pela ré Incentivo, incluindo os intervenientes no acidente dos autos, dispõem de um dispositivo de protecção, guardas de protecção (compostas de um material muito resistente, tipo uma liga metálica ou plástico duro, à volta de todo o veículo (tipo carrinhos de choque) que protege o próprio veículo e o seu condutor, em caso de colisão.
E que, em caso de saída da pista os condutores devem observar certos procedimentos, o que no caso não aconteceu.
Por outro lado, o acidente ocorreu porque após a saída do autor do kart, foi embatido por outro kart (que saiu da pista) – facto descrito na alínea c) da sentença .
Provou-se ainda que nas circunstâncias referidas em C) o autor saiu do kart, a fim de o empurrar para a berma da pista, assim saindo da gravilha para ter tracção motora. – resposta ao quesito 2º
E que quando o autor já se encontrava fora do kart, mas ainda em cima da dita gravilha, fora da pista, foi atingido pelo piloto referido em E). – resposta ao quesito 3º.

O acidente não ocorreu devido a qualquer defeito existente na pista, ou a qualquer defeito do equipamento utilizado, nomeadamente do kart utilizado quer pelo autor, quer pelo condutor que lhe embateu, ou a qualquer falha na pista, da qualidade das barreiras do circuito (ou da falta dela), ou falha de algum funcionário da recorrente, ou devido a alguma omissão da ré.
Mesmo a considerar-se que o aluguer individual do kart (ou a actividade que lhe é inerente de utilização do mesmo) constitui uma actividade perigosa por parte da recorrente uma vez que, mesmo fora de uma competição, pode resultar perigo da condução do kart, o certo é que se provou que a mesma adoptou todos os procedimentos a que estava obrigada para evitar acidentes e preveni-los.

Havendo uma presunção de culpa, ao lesado é apenas exigível a prova do facto e o nexo de causalidade, entre os danos e o exercício da actividade perigosa, ficando dispensado de provar a culpa do lesante (artigo 483º do Código Civil).
Conforme resulta da matéria de facto provada, o acidente ocorreu, porque, em circunstâncias não totalmente apuradas, um condutor de um kart embateu no autor, quando este se encontrava fora do mesmo.
Tendo o autor saído do kart, e tendo infringido as regras de segurança, que lhe impunham a permanência dentro daquele, há culpa da sua parte na produção dos danos.
Deste modo, não pode ser imputada à recorrente a responsabilidade pelos danos sofridos pelo autor, devendo a mesma ser absolvida .
Fica assim, prejudicada a apreciação do recurso do autor e as demais questões suscitadas no recurso da ré.
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III - Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação da ré procedente e a apelação do autor improcedente e, em consequência absolvem a ré do pedido.
Custas da acção e do recurso pelo autor.
Guimarães, 3 de Dezembro de 2009.