Não é válida a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da entidade que financiou a compra efectuada pela requerida a terceiro de um veículo automóvel sobre que incide aquela garantia e, em consequência, só por isso, improcede o pedido de restituição do referido veículo, pois que só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/proprietário clausular a reserva de propriedade.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelos recorrentes (art. 684.º, n. 3, 690.º, n. 3 e 660.º, n. 2, todos do Código de Processo Civil), a questão essencial a dirimir, no fundo, centra-se em saber se é válida ou nula a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor da requerente, entidade que financiou a compra efectuada pela requerida a terceiro de um veículo automóvel sobre que incide aquela garantia e, em consequência, se procede o pedido de restituição do referido veículo.
Mas vejamos a factualidade dada como assente.
a) No documento (fls. 50 a 54 – que aqui se dá por integrado e reproduzido) a que se refere o “contrato” alegado resultam apostas assinaturas, uma respeitante ao nome da requerente (por cima dos dizeres “assinatura do consumidor e 2.º Titular = B.I.”), outra ilegível sobre o carimbo de “… – Crédito especializado” (sob os dizeres “Pela … – CRÉDITO ESPECIALIZADO, S.A.”);
b) No documento referido em a) resulta assinalado com um “x” a indicação “reserva de propriedade”;
c) Das condições gerais respeitantes ao acordo referido em a) e b) resulta “9. Garantias – Em garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações para si emergentes do presente contrato, e de acordo com o estabelecido nas condições particulares, o consumidor presta à … – CRÉDITO ESPECIALIZADO, S.A. garantias nas seguintes condições (…) 9.2 Constituição no interesse da … – CRÉDITO ESPECIALIZADO, S.A. de reserva de propriedade sobre o veículo automóvel. O respectivo registo manter-se-á até ao momento em que o Consumidor pague a totalidade da dívida (…)”.
Conforme decorre já da leitura da decisão recorrida, a questão tem sido objecto de decisões jurisprudenciais contraditórias, defendendo uns que deve efectuar-se uma interpretação actualista do artº 409.º nº 1 do C. C. e do DL 54/75 de 12/12 (vd Ac. STJ de 30.09.2014 citado na sentença de 1.ªinstância) no sentido de ser admissível à financiadora constituir a cláusula de reserva de propriedade com vista a garantir os direitos emergentes do contrato de mútuo (e consequentemente a possibilidade de recorrer à providência cautelar ali prevista), enquanto que, para outros, tal apenas seria possível nos contratos de alienação.
Como procuraremos demonstrar, atento o disposto nos Artºs 409º nº1 do C.C. e no D.L. 54/75, só nos contratos de alienação será lícito ao vendedor/ proprietário clausular a reserva de propriedade.
Sob a epígrafe "Reserva de Propriedade", dispõe o nº 1 do artº 409º do C.C., que “nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento", o que significa a suspensão da transmissão da coisa decorrente do respectivo contrato, mantendo-se a propriedade na titularidade do vendedor até que o preço se encontre completamente liquidado (cfr. P. de Lima e A. Varela, C.C. Anot." vol. I, p.376 e Luís Lima Pinheiro –“A Cláusula de Reserva de Propriedade" 1998, p. 93)
Assim sendo, suspendendo-se os efeitos decorrentes de um contrato de alienação, a cláusula de reserva de propriedade só nesse contrato pode ser estipulada sob pena de se desvirtuar a própria unidade do instituto já que só pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem quem detém a posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado. Esta interpretação é a que melhor se coaduna com o disposto no DL n. 54/75, chamando-se a atenção para a redacção do preceituado no artº 18° n° 1 do mesmo diploma legal onde se dispõe que “Dentro de 15 dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil conforme haja ou não lugar o concurso de credores: dentro do mesmo prazo, o titular do registo de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação".
Ora, com o respeito devido, não vislumbramos possibilidade para a aplicação de um modelo de interpretação actualista defendido pelo já referido acórdão do STJ de 2014 já que, para além de um mínimo de correspondência verbal (ainda que imperfeitamente expresso) com a letra da lei (nº 2 do artº 9º), a interpretação deve, a partir dos textos, reconstituir o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que foi elaborada.
Por outro lado, como se defende no voto de vencido do já aludido aresto do STJ de 2014, não se vê como a dita propriedade do veículo pudesse ser adquirida pela requerente (financeira) por via da cessão ou sub-rogação, já que se tratam de institutos que são típicos do direito das obrigações e não dos direitos reais.
Seguimos, pois, a orientação já defendida nos Acórdãos desta Relação com os n° 1493/08-2 de 26/06/2008, e n° 919/08-2 de 23/04/2009, no sentido só o vendedor do veículo a prestações, titular do registo da reserva de propriedade, poder requerer o processo cautelar de apreensão e propor a acção a que se refere o n° 1 do artº 18º daquele DL. 54/75 (vd também os Acs do STJ de 10/07/2008; de 16/09/2008, de 2/10/2007; de 14/12/2004; da R.P. 3/03/2009, de 17/02/2009, de 25/09/2008: de 15/04/2008 e de 1/06/2004; da R.L. de 31/03/2009; de 15/04/2008 e de 3/07/2007 e de 31/05/2007; todos acessíveis in www.dgsi.pt).
Em face da posição agora assumida, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação interposta, confirmado a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique e Registe.
Évora, 26 de Fevereiro de 2015
António Sérgio Abrantes Mendes
Luís Manuel da Mata Ribeiro
Rui Machado e Moura (dispensei o visto)