DETENÇÃO
COMPARÊNCIA SOB CUSTÓDIA
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
Sumário

A detenção de pessoa faltosa (não arguido) para assegurar a sua comparência a diligência processual só é possível desde que se trate de diligência a efetuar perante autoridade judiciária.

Texto Integral




Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


1. No Tribunal da Comarca de Faro (Silves, Instância Local, Secção de Competência Genérica, J2) corre termos o Proc. n.º 278/14.2GESLV (Atos Jurisdicionais), no qual, por despacho de 15.12.2014, e na sequência de promoção do Ministério Público, foi decidido:
- Julgar injustificada a falta da testemunha CAFA à diligência marcada para 22.10.2014, pelas 10h00, no Posto da GNR de Armação de Pêra - à qual faltou sem dar qualquer justificação e para a qual se encontrava pessoalmente notificada – e condenar a mesma na multa de 2 UC (art.ºs 116 n.ºs 1 e 2 e 117 n.º 1 do CPP);
- Indeferir a emissão de mandados de detenção da referida testemunha para condução ao Posto da GNR de Armação de Pêra para realização da diligência.

2. Recorreu o Ministério Público de tal despacho, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 – A emissão dos mandados de detenção foi indeferida por se considerar que tal detenção é legalmente admissível para fazer comparecer tal pessoa perante autoridade judiciária, o que não resultará da conjugação do art.º 116 n.º 2 com o art.º 254 n.º 1 al.ª a), ambos do CPP.
2 – Não constituindo a GNR de Armação de Pêra uma autoridade judiciária (art.º 1 al.ª b) do CPP), mas antes um órgão de polícia criminal, não pode a pretensão do MP ser, como não foi, deferida, em síntese, nas suas conclusões de recurso:
3 – É desta interpretação que se discorda, pois o art.º 116 n.º 2 do CPP aplica-se a toda e qualquer situação de falta injustificada de qualquer sujeito processual e não visa apenas e só fazer comparecer aquelas pessoas que faltarem injustificadamente perante autoridade judiciária.
4 – A detenção para condução a que se refere o art.º 116 n.º 2 do CPP não se cinge nem é aplicável tão só aos atos que devam ser praticados perante autoridade judiciária, já que as regras do art.º 254 e seguintes do CPP aplicam-se apenas às situações de detenção em flagrante delito, ou fora dele, e somente são aplicáveis aos casos aí expressamente previstos – para comparência em julgamento sumário, para interrogatório de arguido detido, para aplicação de medidas de coação, etc.
5 – Não é correta a posição do Mm.º Juiz recorrido quando afirma que a detenção, in casu, serve para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária em ato processual.
6 – Por outro lado, tal interpretação corresponde a uma visão meramente formalista do que é ou do que deve ser a investigação num processo crime.
7 – A seguir-se a interpretação ora recorrida teríamos esta situação caricata de a detenção, conforme interpreta o Mm.º Juiz recorrido, levar necessariamente a pessoa detida à presença do Magistrado do MP para este, logo de seguida, a poder remeter ao OPC a fim de se realizar a mesma diligência, ainda que por competência delegada.
8 – Por outro lado, segundo essa interpretação, todas as diligências de investigação, em caso de falta injustificada da pessoa convocada, deveriam ser realizadas pelo Magistrado do MP, enquanto autoridade judiciária, quando é do conhecimento geral que os serviços do Ministério Público não têm meios humanos suficientes e bastantes para fazer face a todas essas diligências e não têm meios materiais e espaços físicos para a realização de determinadas diligências, como seja a prova por reconhecimento.
9 – Isso só serviria para emperrar mais a investigação, para tornar ainda mais lenta a justiça, e seria totalmente contrários aos princípios da economia e da celeridade processual, para além de que não vemos que a emissão de mandados de detenção para assegurar a comparência de alguém, injustificadamente faltoso, em diligência a realizar em instalações do OPC ponha em causa, de forma intolerável e injustificável, qualquer direito fundamental.
10 - Nestes termos, decidindo como se decidiu, foi violado o disposto no art.º 116 n.º 2 do CPP, pelo que deve dar-se provimento ao recurso e revogar-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine a emissão de mandados de detenção da pessoa faltosa, injustificadamente, para ser conduzida ao Posto da GNR, a cargo de quem se encontra a realização de diligências de investigação.

3. Admitido o recurso e sustentada a decisão recorrida (fol.ªs 18 destes autos), foram os autos remetidos a este tribunal, tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido da procedência do recurso (fol.ªs 24 e 25).

4. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Para tanto, importa considerar os seguintes factos:
1 – CAFA foi notificado, pessoalmente, em 12.10.2014, para comparecer no dia 22 de outubro de 2014, pelas 10h00, no Posto da GNR de Armação de Pêra, sito na Via Dorsal, Armação de Pêra, a fim de ser inquirido como testemunha no âmbito do Processo com o NUIPC (…..), com a advertência de que, caso não comparecesse e não justificasse a falta nos prazos legais, seria condenado no pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC (UC = 102,00 €) e podia ser ordenada a sua detenção.
2 – A testemunha convocada não compareceu à diligência marcada nem justificou sua falta, tendo sido condenada na multa de duas UC, nos termos dos art.ºs 116 n.ºs 1 e 2 e 117 n.º 1, ambos do CPP.
3 – Por despacho de 15.12.2014 – o despacho recorrido - e na sequência de promoção do Ministério Público, foi indeferida a emissão de mandados de detenção da referida testemunha para condução ao Posto da GNR de Armação de Pêra para a realização da diligência, em síntese, porque se entendeu:
- que dos art.ºs 116 n.º 2 e 254 n.º 1 al.ª b) do CPP resulta que a detenção “in casu” serve para assegurar a presença do detido perante autoridade judiciária, sendo que a autoridade judiciária são as entidades referidas no art.º 1 al.ª b) do CPP;
- que a pretensão do Ministério Público não merece acolhimento, porque visa a apresentação, não perante autoridade judiciária, mas perante um órgão de polícia criminal (invoca-se a favor do decidido o acórdão da RP de 5.05.2010, Proc. 784/08.8PAVLG-A.P1, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que “é constitucional e legalmente inadmissível a detenção da faltosa para comparecer a ato processual a realizar perante a PSP, dado que tal detenção, prevista do art.º 254 n.º 1 do CPP, apenas é permitida para que a pessoa faltosa seja apresentada perante a autoridade judiciária em ato processual”).

5. Sabido como é que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, uma única questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal e que aqui cumpre apreciar e decidir: é a de saber se – tendo a testemunha faltado a diligência para a qual foi devidamente notificada (e advertida das consequências da sua falta, caso não a justificasse), no âmbito de inquérito, a realizar no Posto da GNR, e não tendo justificado a sua falta – é legalmente admissível a emissão de mandados de detenção para condução ao Posto da GNR, pelo tempo indispensável à realização da diligência (art.º 116 n.º 2 do CPP).
Esta é, pois, a questão a decidir.
Em primeiro lugar deve dizer-se que entendermos não ser aplicável ao caso em apreço o disposto no art.º 254 do CPP, que respeita à detenção – “a que se referem os artigos seguintes” – em flagrante delito (art.º 255 do CPP) ou fora de flagrante delito (art.º 257 do CPP), nos termos e para os efeitos aí consignados, ou seja, para julgamento em processo sumário, para 1.º interrogatório judicial, para aplicação ou execução de medida de coação ou para assegurar a presença do detido “perante a autoridade judiciária em ato processual”.
Para o caso rege o art.º 273 do CPP, inserido no capítulo que versa sobre o inquérito, onde se dispõe:
1 - Sempre que for necessário assegurar a presença de qualquer pessoa em ato de inquérito, o Ministério Público ou a autoridade de polícia criminal em que tenha sido delegada a diligência emitem mandado de comparência, do qual conste… a menção das sanções em que incorre no caso de falta injustificada.
(…)
4 – É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 116” (onde se dispõe que o Juiz pode ordenar a detenção do faltoso “pelo tempo indispensável à realização da diligência…”).
Da interpretação literal deste preceito parece resultar que a desobediência (injustificada) ao mandado para comparência a ato de inquérito a realizar pela entidade policial é passível, para além de ser sancionada com multa, de dar origem à emissão de mandado de detenção da pessoa faltosa para a fazer comparecer à diligência.
Mas não é assim.
De facto, a privação da liberdade, “pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (art.º 27 n.º 3 da CRP), só é admissível, excecionalmente, nas situações previstas no art.º 27 n.º 3 da CRP, ou seja, no que aqui importa considerar, “… para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente” (al.ª f) do n.º 3 do art.º 27 da CRP), o que significa que a detenção de pessoa faltosa (não arguido) para assegurar a sua comparência a diligência processual só é possível, constitucionalmente, desde que se trate de diligência a efetuar perante autoridade judiciária.
Isto é o que resulta expressamente do art.º 27 n.º 3 al.ª f) da CRP, enquanto norma limitativa do direito à liberdade, pelo que uma interpretação do art.º 273 n.º 4 do CPP, no sentido de permitir a detenção de uma testemunha, nos termos do art.º 116 n.º 2 do CPP, para assegurar a sua comparência perante um órgão de polícia criminal, violaria tal preceito constitucional.
Neste sentido pode ver-se ao cordão deste tribunal proferido no Proc. 220/14.0GESLV-A.E1 (que o relator deste subscreveu como adjunto) e a jurisprudência e doutrina que aí vem identificada, concretamente – citamos - “os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de janeiro, de 10 de fevereiro e de 3 de outubro de 2000 (Coletânea de Jurisprudência XXV-1-136/137 e 156/157 e 4-143/144, respetivamente), do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.11.2009 (Processo 111/09.7GEACB-A.C1), do Tribunal da Relação do Porto de 5.05.2010 (Processo 748/08.8PAVLG-A.P1), estes disponíveis in www.dgsi.pt, e ainda Maia Costa, no Código de Processo Penal – Comentado, Almedina, 2014, pág. 967, e Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 302 e pág. 692, bem como o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República de 9.03.2000, Diário da República, 2.ª série, de 24.01.2001)”. Em sentido contrário pode ver-se, como também aí se dá conta, o acórdão da Relação de Lisboa de 16.01.2014, Proc. 586/12.7PBSCR-A.L1-9, in www.dgsi.pt, mas os argumentos aí utilizados, com o devido respeito, colidem com o estabelecido naquele preceito constitucional.

6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em confirmar integralmente o despacho recorrido.

Sem tributação.
(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 17-03-2015

Alberto João Borges

Maria Fernanda Pereira Palma