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ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Sumário
O limite de € 7500 a que alude o n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do RGIT.
Texto Integral
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
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I - Relatório
No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, no âmbito do processo comum singular nº 2692/08.3TABRG, por despacho de 24 de Agosto de 2009, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos F....,. SA, Liliana , Cristiana e Manuel, todos com os demais sinais dos autos, na qual lhes imputava a prática “em co-autoria (…) de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2, artigo 105º, n.ºs 4, alíneas a) e b), e artigo 7º, n.º3 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/06, de 29 de Dezembro”, “por a considerar manifestamente infundada, uma vez que as condutas em causa estão descriminalizadas”
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Inconformado com tal despacho dele recorreu o Ministério Público, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
1. «O douto despacho recorrido considerou que a alteração ao artigo 105°, n.º 1 do RGIT introduzida pelo artigo 113° da Lei n.º 64-A/2008, de 31/12, descriminalizou também condutas anteriormente integradoras dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social previstas no art.º 107°, n.º 1, sempre que a prestação tributária não seja superior a € 7 500,00, como é o caso dos autos, julgando cessados os efeitos penais da condenação, em conformidade com o disposto no n.º 2, do art.º 2.° do CP.
2. Para tanto, o Tribunal "a quo" entendeu que a "remissão feita pelo n.º 1 do artigo 107º do RGIT para as penas previstas no n.º 1 do artigo 105º do mesmo diploma, tem de se considerar feita não só para a pena como também para o respectivo valor mencionado nesse preceito".
3. Salvo o devido respeito, esta interpretação extensiva foi além da "mens legis", não encontrando suporte nem na letra, nem no espírito da lei.
4. Desde logo, o art.º 107.°, n.º 1, apenas remete para o art.º 105.° no que respeita às penas aplicáveis (n.ºs 1 e 5 do art.º 105.°) e não à conduta. Esta última, encontra-se integralmente prevista naquele dispositivo legal. Não é, portanto, uma remissão em bloco para o art.º 105.°, mantendo-se, por isso, intacto o art.º 107.º
5. Por outro lado, constata-se que o legislador do RGIT, na parte III (Das infracções tributárias em especial), dentro do Título I (Crimes tributários), reservou dois capítulos diferentes, um para os crimes fiscais (capítulo III) e outro para os crimes contra a segurança social (capítulo IV), atribuindo-lhes, por isso, um tratamento diferente, tendo em conta a diferente natureza das prestações.
6. Também não se pode afirmar uma total correspondência dos regimes punitivos dos crimes fiscais e dos crimes contra a segurança social.
7. Não obstante a similitude da construção dos ilícitos de abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social, são diferentes os bens jurídicos que visam tutelar.
8. No crime de abuso de confiança contra a segurança social o bem jurídico tutelado é um bem jurídico multifacetado, abrangendo o direito fundamental à segurança social e o dever de solidariedade e, ainda, o património da segurança social, ao passo que no abuso de confiança fiscal visa-se proteger o erário público e o interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias, tendo em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas e a repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
9. Sendo, como são, actuais e prementes os problemas de sustentabilidade da Segurança Social Portuguesa, por certo não esteve no espírito do legislador, com a alteração da redacção do artigo 115°, n° 1 do RGIT (que prevê e pune o crime de abuso de confiança fiscal) feita pelo artigo 113° da Lei 64-A/2008, de 31/12, restringir também a punibilidade do crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. no art.º 107.°, n.º 1 (dando um sinal de sentido negativo à sociedade, que redundaria num agravamento daqueles problemas).
10. O douto despacho recorrido, na parte que declarou cessados os efeitos da condenação pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social violou os artigos 113.° da Lei 64-A/2008, de 31/12, 105°, n.º 1 e 107°, n.º 1 do RGIT, 2° n° 2 do Código Penal e 9°, n.º 2 do Código Civil.»
Termina pedindo que seja revogado o despacho recorrido “e substituído por outro que ordene o normal prosseguimento dos autos, designadamente, para efeitos do artigo 311º do CPP”
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Os arguidos não responderam ao recurso.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 271.
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Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se pela procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP, não houve resposta.
Foram colhidos os vistos legais e realizada a conferência.
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II- Fundamentação 1. Conforme se encontra documentado nos autos:
§1. O Ministério Público acusou os arguidos F....,. SA, Liliana , Cristiana e Manuel, todos com os demais sinais dos autos, imputando-lhes a prática “em co-autoria (…) de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2, artigo 105º, n.ºs 4, alíneas a) e b), e artigo 7º, n.º3 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/06, de 29 de Dezembro”
Conforme resulta daquela acusação, as cotização não pagas ascendem ao montante global de €13630,99, reportam-se aos meses de Março e Abril de 2007 e de Junho de 2007 a Março de 2008, e nenhuma delas é superior a €7500.
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§2. Em 24 de Agosto de 2009 foi proferido o seguinte despacho (despacho recorrido):
«O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade.
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Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social na forma continuada, p. e p. pelo Artigo 107, n.ºs 1 e 2 do RGIT, por referência ao Artigo 105, n.ºs 4, als a) e b), 6 e 7 e ainda Art. 7, n.º 3 do mesmo diploma.
Acontece que em 1 de Janeiro de 2009, entrou em vigor da Lei n.° 64-A/2008, de 31.12 que no seu Artigo 113, alterou a redacção do Artigo 105 do RJIT, por forma a descriminalizar condutas anteriormente integradoras dos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social (estas últimas por força da remissão do n.º1 do Artigo 107 do RGIT) sempre que a prestação tributária não seja superior a € 7.500,00, como é o caso destes autos.(sublinhado no original)
(. A este propósito, refere-se que a remissão feita pelo n° 1 do Artigo 107 do RG IT para as penas previstas no n.º 1 do Artigo 105 do mesmo diploma, tem de se considerar feita não só para a pena como também para o respectivo valor mencionado nesse preceito, da mesma forma que a remissão feita pelo mesmo n.º 1 do Artigo 107 para as penas previstas no n.º 5 do Artigo 105, tem de se considerar feita como sempre se considerou - não só para a pena (agravada) aí prevista, mas também para o valor (superior a € 50.000,00) aí igualmente mencionado e subjacente à agravação. Não fazendo por isso sentido, em nosso modesto entendimento, interpretar a mesma norma - Artigo 105, n.º 1 do RGIT-, de forma diferente, consoante se trate da remissão nela feita para o n.º 1 ou n.º5 do artigo 105 .
.Aliás, outra posição não se nos afigura coerente com a circunstância de, com esta nova lei, e por revogação do n.º 6 do Artigo 105 do RGIT, se ter agora eliminado para os crimes de abuso de confiança contra a segurança social, a possibilidade de extinção da responsabilidade criminal pelo pagamento, quando o valor da prestação não excedesse os € 2.000,00. Pois, se não se tivesse querido restringir a punibilidade para os casos de prestações superiores a € 7.500,00, a lógica seria transpor o antigo n.º 6 do Artigo 105 do RGIT para o Artigo 107 do mesmo diploma, de forma a deixar intocado o respectivo
punitivo, o que não foi feito, obviamente por tal ter deixado de fazer sentido, uma vez que já não é criminalizada a falta de entrega de contribuições à segurança social de valor não superior a € 7500,00)
Consequentemente e em conformidade com o disposto no artigo 311º, n.º2, al. a) e n.º 3, al. d) do CPP, decido rejeitar a acusação, por a considerar manifestamente infundada, uma vez que as condutas em causa nos autos estão descriminalizadas.
Notifique»
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2.A questão.
Neste recurso, a única questão suscitada pelo recorrente consiste em saber se no que respeita ao crime de abuso de confiança contra a segurança social ocorreu ou não a referida despenalização, com a consequente extinção da responsabilidade criminal.
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3. A alteração legislativa.
A Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009, consagrou importantes alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias, nomeadamente no que concerne ao crime de abuso de confiança fiscal.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 113º da citada Lei n.º 64-A/2008, foi alterada a redacção do n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, mediante a introdução de um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando-se a exigir que ela seja de "valor superior a € 7500".
Fruto desta alteração, a redacção do n.º1 do citado artigo 105º é agora a seguinte: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”
Com esta nova redacção, por força daquele limite [independentemente da sua qualificação dogmática - como elemento conformador da ilicitude penal ou como condição objectiva de punibilidade - veja-se a discussão in Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra, 2006, págs. 302-305 que se inclina para a primeira categoria, aludindo a um “limite negativo da incriminação”, e Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª ed., Coimbra, 2007, págs.155-156] é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária não excede € 7.500.
Questiona-se, porém, a aplicação deste novo normativo ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do RGIT
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4. Uma nova vexata quaestio
Como é sabido, a questão está a provocar divergências profundas quer ao nível da 1ª instância quer na jurisprudência dos tribunais superiores.
Uma corrente minoritária, sufragada pelo despacho recorrido, entende que a nova redacção dada ao artigo 105º, n.º1 do RGIT pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2009 de 31 de Dezembro, que estabeleceu o limite de €7500 para o crime de abuso de confiança fiscal, é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, por força do n.º 1 do artigo 107º desse mesmo RGIT
Neste sentido se pronunciaram os seguintes arestos:
- Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009, proc.º n.º 102/04.4TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia;
- Ac. da Rel. de Guimarães de 23-3-2009, proc.º n.º 2378/08-2ª, rel. Anselmo Lopes;
- Ac. da Rel. do Porto de 27-5-2009, proc.º n.º 343/05TAVNF.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias,
- Ac. da Rel. de Lisboa de 15-7-2009, proc.º n.º 6463/07.DLSB.L1-4, rel. Maria José Machado;
- Ac. da Rel. de Lisboa de 13-10-2009, proc.º n.º 12323/03.2TDLSB.L1-5, rel. Nuno Gomes da Silva;
- Ac. da Rel. do Porto de 14-10-2009, proc.º n.º 0546335, rel. António Gama (com um voto de vencido);
- Ac. da Rel. de Lisboa de 28-10-2009, proc.º n.º 77/08.0TDLSB.L1, rel. Maria José da Costa Pinto;
- Ac. da Rel. de Lisboa de 3-12-2009, proc.º n.º 7133/07.0TDLSB.L1.9, rel. Moisés Silva, todos in www.dgsi.pt,
No sentido deste entendimento se pronunciaram também o Dr. Carlos de Almeida Lemos,”Crime de Abuso de Confiança Contra a Segurança Social”, in Abreu Advogados, Newsletter n.º 19, Março, de 2009, págs. 8-10, disponível in www.abreuadvogados.com e os Drs. Frederico Soares Vieira e Caiado Milheiro, “Alterações introduzidas pela Lei n.º 64-A/2008, aos artigos 105º e 107º do RGIT, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Boletim Informação e Debate, VI Série, n.º1-Junho 2009, págs. 155-162.
A favor desta tese da despenalização são invocados, em síntese, os seguintes argumentos:
a) O crime de abuso de confiança contra a segurança social foi desenhado à imagem do crime de abuso de confiança fiscal do art. 105°, sendo os interesses tutelados essencialmente os mesmos;
b) Sempre se quis que o regime punitivo de ambos os crimes fosse idêntico;
c) A remissão do art. 107° para o n.º 6, do art. 105°, do RGIT, entretanto também revogado pela Lei do Orçamento, sem revogação da remissão, demonstra que o legislador continua a não ter qualquer preocupação autónoma com os crimes contra a segurança social;
d) O argumento literal é pouco relevante porquanto o art. 107° remete não só para o n.º1 mas também para o n.º 5, do art. 105°, pelo que se esta última norma abarca os elementos do tipo qualificado (valor da prestação superior a € 50.000) não se percebe porque é que aquela primeira não poderá também abranger a fixação de um patamar mínimo de punibilidade (ou seja € 7.500);
e) A aplicação do regime previsto no art. 105° n.º1, do RGIT, aos crimes de abuso de confiança à segurança social e a descriminalização dos crimes de abuso de confiança contra o fisco quando, em ambos os casos, estivesse em causa prestação de valor não superior a € 7.500, redundaria em violação do princípio da legalidade, por excesso de punição daquela primeira infracção, com a consequente violação do princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade;
f) Numa interpretação sistemática e teleológica do art. 107° n.º 1, do RGIT, tem que considerar-se descriminalizada a falta de entrega à Segurança Social da contribuição deduzida e comunicada em cada declaração cujo valor não seja superior a € 7.500.
Outros sustentam, porém, que o referido limite de € 7500 não tem aplicação em sede de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social
Neste sentido podem ver-se os seguintes arestos:
Relação de Guimarães
- 27-04-2009, proc.º n.º 1304/00.8TABRG.G1, rel. Tomé Branco, in www.dgsi.pt;
- 27-04-2009, proc.º n.º 1440/07.0TABCL-A.G1, rel. Tomé Branco;
- 25-05-2009, proc.º n.º 10976/02.8TABRG-BG1, rel. Cruz Bucho, www.dgsi.pt ;
- 08-06-2009, proc.º n.º 258/07.4TAPVL.G1, rel. Maria Augusta Fernandes;
- 29-06-2009, proc.º n.º 1443/06.1TABCL.G1, rel. por Carlos Barreira;
- 06-07-2009, proc.º n.º 682/07.2TAGMR.G1, rel. por Carlos Barreira;
- 09-07-2009, proc.º n.º 2438/07.3TAGMR.G1, rel. Tomé Branco, in www.dgsi.pt;
- 09-07-2009, proc.º n.º 187/08TABRG.G1, rel. Cruz Bucho,
- 09-07-2009, proc.º n.º 10458/02.8TABCL.G1, rel. Tomé Branco;
- 28-09-2009, proc.º n.º 24/07.TAEPS.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 28-09-2009, proc.º n.º 4391/06.1TDLSB.A.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 28-09-2009, proc.º n.º 2370/07.OTABRG.A.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 28-09-2009, proc.º n.º 111/07.7TABCL.G1, rel. Maria Augusta Fernandes;
- 12-10-2009, proc.ºn.º9641/05.9TDLSB-B.G1, rel. Margarida Ramos de Almeida
- 12-10-2009, proc.ºn.º8991/06.1TDLSB.G1, rel Fernando Ventura, in www.dgsi.pt
- 26-10-2009, proc.ºn.º4141/05.OTDSLB.A.G1, rel. Estelita de Mendonça;
- 15-12-2009, proc.ºn.º 3686/03.0TDLSB.G1, rel. Cruz Bucho.
Relação do Porto
- 25-3-2009, proc.º n.º 1131/01.5TASTS, rel. Maria Leonor Esteves;
- 20-4-2009, proc.º n.º 8419/02.6TDPRT, rel. José Carreto;
- 27-5-2009, proc.º n.º 946/07.5TABGC.P1, rel. Maria Elisa Marques (com um voto de vencido);
- 27-5-2009, proc.º n.º 1760/06.0TDPRT, rel. José Piedade;
- 3-6-2009, proc.º n.º 0715084, rel Francisco Marcolino;
- 15-7-2009, proc.º n.º 08446834, rel. Coelho Vieira;
- 23-9-2009, proc.º n.º 267/02.01DBRG-BP1, rel. Pinto Monteiro;
- 21-10-2009, proc.º n.º 7310/02.0TDPRT.P1, rel. Melo Lima;
- 4-11-2009, proc.º n.º 491/00.0TAMTS.P1, rel. Maria Deolinda Dionísio (com um voto de vencido);
- 11-11-2009, proc.º n.º 485/02.0TAVLG.P1, rel. Eduarda Lobo (com um voto de vencido);
- 25-11-2009, proc.º n.º 1865/06.8TASTS.P1, rel. Artur Vargues;
- 25-11-2009, proc.º n.º 380/06.4TAVRL.P1, rel. Jorge Raposo, todos in www.dgsi.pt
Relação de Lisboa:
- 28-10-2009, proc.º n.º 685/07.7TDLSB.L1-3, rel. Maria Elisa Marques, (com um voto de vencido):
- 21-10-2009, proc.º n.º 21-10-2009, rel. Domingos Duarte;
- 20-7-2009, proc.º n.º 7867/2008-3, rel. Conceição Gonçalves, todos in www.dgsi.pt ;
A favor desta orientação são invocados, fundamentalmente, os seguintes argumentos:
a) O art. 107º n.º 1, do RGIT, contém todos os elementos constitutivos do tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social;
b) Tal dispositivo legal apenas acolhe do art. 105°, a moldura penal abstracta;
c) São diversos os bens jurídicos tutelados por cada incriminação, razão porque o legislador as autonomizou;
d) A nível da sistematização do RGIT os crimes fiscais estão previstos no capítulo III e os crimes contra a segurança social no capítulo IV;
e) O regime contra-ordenacional relativo à segurança social está previsto em legislação especial, a qual não contempla a falta de entrega de prestações não superiores a € 7.500, ao contrário do que se verifica quanto à falta de entrega de prestações tributárias de tal valor, como decorre do disposto no art. 114° n.º 1, do RGIT;
f) Se o legislador quisesse abranger o crime de abuso de confiança contra a segurança social tê-lo-ia dito expressamente.
Aguarda-se, ansiosamente, por uma orientação clarificadora por parte do STJ, através do competente acórdão de fixação de jurisprudência.
Importa, porém, decidir.
Pela nossa parte perfilhamos, claramente, este segundo entendimento, amplamente maioritário na jurisprudência desta Relação (cfr. Crónica do Tribunal da Relação de Guimarães, Scientia Ivridica, tomo LVIII-319, págs. 615-617) e dos demais tribunais superiores.
Na sua explanação vamo-nos socorrer de largos extractos de um modesto trabalho elaborado pelo relator, em 14 de Abril de 2009, intitulado “A Lei do OE 2009 e o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social”, disponível in www.trg.pt., actualizando-o com os contributos da jurisprudência entretanto publicada.
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5. Os textos legislativos
Era a seguinte anterior redacção do n.º 1 do artigo 105º do RGIT:
"Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias."
A alteração determinada no art. 113° da Lei n.° 64-A/2009, de 31de Dezembro (OE 2009) circunscreveu-se à introdução de um limite ao valor da prestação tributária ali considerada, passando a exigir que ela seja de "valor superior a € 7500", e à revogação do n.º6 daquele preceito legal.
Fruto desta alteração, a redacção do n.º1 do citado artigo 105º é agora a seguinte: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”
Com esta nova redacção, por força daquele limite [independentemente da sua qualificação dogmática - como elemento conformador da ilicitude penal ou como condição objectiva de punibilidade - veja-se a discussão in Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra, 2006, págs. 302-305 que se inclina para a primeira categoria, aludindo a um “limite negativo da incriminação”, e Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2ª ed., Coimbra, 2007, págs.155-156] é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária - o de cada declaração a apresentar à administração tributária, de acordo com o n° 7 do referido art. 105° - não excede € 7.500.
Por outro lado, manteve-se inalterada a redacção do artigo 107°, que continua a ser a seguinte:
"1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art. 105°.
2. É aplicável o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105º”
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6. A interpretação da lei
O problema de que nos ocupamos traduz-se, no fundo, numa questão de interpretação da lei.
Os cânones a que deve submeter-se a interpretação da lei constam do artigo 9º do Código Civil, válido para todos os ramos do direito (cfr., v.g., Freitas do Amaral, Da necessidade de revisão dos artigos 1º a 13º do Código Civil, in Themis, ano I, n.º1-2000, págs. 9-10 e Taipa de Carvalho, Direito Penal-Parte Geral, vol. I, Porto 2003, pág. 207).
Como muito recentemente o nosso mais Alto Tribunal teve oportunidade de salientar, e por duas vezes:
«Interpretar um preceito consiste, antes do mais, em tirar das palavras usadas na sua redacção um certo sentido, um certo conteúdo de pensamento, uma significação; em extrair da palavra - expressão sensível de uma ideia - a própria ideia nela condensada. Não se tratará, porém, de colher da lei um qualquer sentido, o primeiro que, o texto legal traga ao espírito do jurista.
E que a lei não se destina a alimentar a livre especulação individual; é um instrumento prático de realização e de ordenação da vida social, que se dirige sempre a uma generalidade mais ou menos ampla de indivíduos, não concretamente determinados, para lhes regular a conduta (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 1973, p. 144 - Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 5.ª ed., 1951, p. 24).
Diversos elementos contribuem para esse objectivo.
O elemento gramatical com uma primeira função de natureza negativa, eliminadora: a de eliminar dos sentidos possíveis da lei todos aqueles que, de qualquer modo exorbitam do texto respectivo (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 159), tendo presente que, quanto às normas que comportam mais de um significado (sentido, pensamento), nem todos esses sentidos recebem do texto legislativo igual apoio; uns hão-de naturalmente caber dentro da letra da lei mais à vontade do que outros; os primeiros correspondem ao sentido natural das expressões utilizadas, os outros a um sentido arrevesado, forçado.
O intérprete deve, em princípio, admitir que a lei procede de um legislador que sabe exprimir com suficiente correcção o seu pensamento [...]; do simples texto da lei recebe maior impulso o sentido que melhor corresponde ao seu significado natural, ao seu alcance normal (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pp. 159 e 160).
Quando no texto da lei surgem vocábulos de sentido dúbio ou ambíguo, só o elemento lógico pode fixar o seu sentido e alcance decisivos, o que não significa que não deva esse elemento intervir mesmo quando o texto da lei é aparentemente claro, dada a possibilidade de o texto legislativo ter atraiçoado o pensamento real do legislador.
O elemento racional, a razão de ser, o fim visado pela lei (a ratio legis) e ainda nas circunstâncias históricas particulares em que a lei foi elaborada (ocasio legis) contribuem para a avaliação da sua influência no espírito do legislador e, assim, para descortinar mais facilmente a disciplina que através da norma se pretendeu estatuir. O elemento sistemático, as disposições reguladoras do instituto em que se integra a norma a interpretar e as disposições reguladoras dos institutos ou problemas afins. E o elemento histórico, os materiais relacionados com a história da norma e que lançam alguma luz sobre o seu sentido e alcance decisivo.
Sintetizando, pode reter-se que se trata de estabelecer o sentido das expressões legais para decidir a previsão legal e, logo, a sua aplicabilidade ao pressuposto de facto que se coloca perante o intérprete, cientes de que «a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do CC), além de que ‘na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas’ (artigo 9.°, n.º 3).» (Acs. de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2009 in Diário da República, 1ª série, N.º11, de 16 de Janeiro de 2009, pág. 395, e n.º 5/2009, in Diário da República, 1ª série, N.º55, de 19 de Janeiro de 2009, pág. 1766).
É, pois, neste quadro de fundo, tendo em conta as regras e princípios que ficaram enunciados, recentemente reafirmados pelo Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 14/2009, de 21 de Outubro (in Diário da República, 1ª série, N.º226, de 20 de Novembro de 2009, pág. 8447) que, sem prejuízo das especialidades ou limitações existentes em sede de interpretação da lei penal, derivadas do princípio da legalidade (cfr., por mais recentes, Taipa de Carvalho, Direito Penal-Parte Geral, vol. I, cit., pags 204-210, Figueiredo Dias, Direito Penal- Parte Geral, Tomo I, 2ªed., Coimbra, 2007, págs. 187-193, §§18-30 e Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal, 2ªed., Coimbra, 2009, págs. 135-148) deve buscar-se a solução da questão controvertida.
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7. O elemento gramatical
“O ponto de partida da interpretação tem de estar na letra” que “é também um elemento irremovível de toda a interpretação” (Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 1978, págs. 349 e 350).
A primeira e principal tarefa do intérprete “é ler a lei e ver o que aí se diz” (Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1977, pág. 351).
Ora, lendo a lei e vendo o que ela diz é, desde logo, possível formular duas conclusões.
Em primeiro lugar, conforme foi, de resto, doutamente sublinhado nos citados Acs. da Rel. de Coimbra de 4-3-2009 e da Rel. do Porto 25-3-2009, da análise das duas normas em questão (artigo 107º e 105º, ambos do RGIT) resulta que a descrição dos elementos típicos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social consta integralmente do n.º 1 daquele art. 107°, que se manteve intocado ["1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art. 105°”].
O crime de abuso de confiança contra a segurança social mantém, pois, a sua “tipificação autónoma e integral” (parecer do PGA Dr. João Vieira, de 26-3-2009, proferido no proc.º n.º6463/07.6TDLSB.L1, in www.pgdlisboa.pt).
Em segundo lugar, a remissão constante do n.º1 do citado artigo 107º [“são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art. 105°] circunscreve-se às penas que neles vêm cominadas.
Tendo em conta “as regras da gramática e designadamente o uso (corrente) das linguagem” e também “os modos de expressão técnico-jurídico” (Enneccerus, apud Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 3ªed. Lisboa, 1977, pág. 111) é forçoso reconhecer que, de acordo com a letra da lei, a remissão não abrange, o novo limite de €7500, introduzido no n° 1 do art. 105°.
Isso mesmo foi, de resto, reconhecido pelo citado Ac. da Rel. de Guimarães de 23 de Março de 2009, proc.º n.º 2378/08-2ª, rel. Anselmo Lopes, quando refere que “Numa interpretação puramente literal, a não alteração do n.º1 do art.º 107º, ou a falta de remessa para o novo valor inscrito no n.º1 do art.º 105º, encerram, sem mais, as portas à aplicação da restrição agora introduzida ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.”
Nem se diga que não faz sentido que se interprete a mesma norma de duas formas diferentes, consoante a remissão se faça para o n.º1 ou para o n.º5 do mesmo preceito (cfr. neste sentido v.g. o citado Ac. desta Relação de Guimarães de 23 de Março de 2009, avalizando a promoção proferida no proc.º n.º 340/07.TATND do 2º juízo do Tribunal Judicial de Tondela que, nesta parte, reproduz a informação de serviço n.º 1/09 do Procurador da República de Viseu, Dr. Vítor Pereira Pinto, e o Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009, proc.º n.º 102/04.4TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia).
O n.º 5 do art. 105° limita-se a prever uma circunstância agravante qualificativa, que interessa unicamente à delimitação entre o crime simples e o crime agravado, influindo em exclusivo na moldura penal aplicável, que passa para prisão de um a cinco anos, quanto às pessoas singulares, e de multa de 240 a 1200 dias, quanto às pessoas colectivas, quando a não entrega for superior a € 50.000.
Como a propósito se retorquiu no Acs. da Rel. de Coimbra de 17-6-2009, proc.º n.º 37/05.3TASEI.C1, e desta Rel. de Guimarães, de 12-10-2009, proc.ºn.º8991/06.1TDLSB.G1, ambos relatados pelo distinto Des. Fernando Ventura, “a circunstância do legislador procurar sintonia na circunstância agravante qualificativa entre dois tipos penais não significa que os crimes sejam - devam ser - em todos os seus elementos típicos, inteiramente similares, ou dizendo de outra forma, que o crime de abuso de confiança contra a segurança social não seja mais do que o espelho do crime de abuso de confiança fiscal. Não se olvide que o legislador reservou um capítulo próprio para a tutela criminal da segurança social, deixando claro que os bens jurídicos respectivos, embora próximos, não se confundem”
Numa outra perspectiva, contra a defesa de uma pretensa interpretação extensiva, merece destaque o Ac. da Rel. do Porto de 21-10-2009, proc.º n.º 7310/02.0TDPRT.P1, relatado pelo Exmo Des. Melo Lima:
“A remissão feita no artigo 107° para o artigo 105°/ 1 e 5 circunscreve-se à parte respeitante à sanção aplicável e não à descrição da conduta que preenche o tipo de ilícito.
Ressalve-se, neste particular, que aquele a quem compete o exercício da iuris dictio não pode deixar de ter presente, em última instância, que subjacentes à normação jurídica hão-de estar seguramente observados, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança (elementos constitutivos do Estado de Direito) na ideia da exigência da "precisão ou determinabilidade dos actos normativos" e/ou da conformação material e formal destes em "termos linguisticamente claros, compreensíveis e não contraditórios»
Nesta ordem de ideias - dizer, ainda, no pressuposto razoável da fiabilidade, c1areza, racionalidade e transparência do acto normativo sob referência - não se vê fundamento para que o intérprete e/ou aplicador do direito deva estender o pensamento do legislador a partir de uma sua suposta falha quando não chegou a dizer o que efectivamente queria dizer.
Neste conspecto, entende-se, se fosse pretensão do Legislador aplicar a alteração ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, em obediência aos sobreditos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança tê-lo-ia determinado expressamente.
Não o fez. Porquê, fazê-lo, agora, em sua substituição (ou sobreposição), o aplicador do direito?»
Note-se que de acordo com a tese da interpretação extensiva, que outros designam de interpretação in bonam partem, o n.º1 do artigo 107º deveria ler-se como se tivesse a seguinte redacção: “"1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos 1 e 5 do art. 105°, desde que o valor a entregar exceda €7500”.
Não é esse, porém, o texto da lei e, na conhecida frase de Canaris, só o texto da lei recebe a autoridade das mãos do legislador.
Pelo contrário, na perspectiva que sufragamos o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social pode revestir duas formas, em função do valor das contribuições deduzidas e não entregues:
- crime simples – se o valor daquelas contribuições for igual ou inferior a €50.000;
- crime qualificado – se o valor daquelas contribuições for superior a €50.000.
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8. A intenção do legislador (a “mens”ou “voluntas legislatoris)
É claro que a certeza na interpretação da norma (artigo 107º) sairia claramente beneficiada se o legislador tivesse optado pela sua reconstrução.
Ao invés, ao manter a redacção do artigo 107º totalmente inalterada, esta opção legislativa conduziu até a um aparente paradoxo: o artigo 115º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro [o qual não constava da proposta de lei do Governo e foi aprovada na sequência de uma proposta de alteração proveniente do Grupo Parlamentar do Partido Socialista (cfr. Diário da Assembleia da República, de 29 de Novembro de 2008, I Série, n.º 20, pág. 73)] revogou expressamente o n.º 6 do artigo 105º do RGIT. O legislador, manteve, porém, a remissão para o citado n.º 6 operada pelo n.º 2 do artigo 107º do RGIT o que redunda, formalmente, na manutenção de uma remissão para uma norma revogada, impondo-se, pois, uma interpretação ab-rogante daquela remissão (cfr. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, cit., págs. 369-372).
Mas esta técnica legislativa não autoriza a extrair outras consequências em sede de interpretação da norma, nomeadamente que “Se não fosse intenção do legislador alargar a restrição de punibilidade ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no art.º 107, então deveria ter transposto aquele n.º6 do art.º 105º para o art.º 107º”- Ac. da Rel. do Porto de 14-10-2009, proc.º n.º 0546335, rel. António Gama (com um voto de vencido), nem sequer para ilustrar que “o legislador continua a não ter qualquer preocupação autónoma com os crimes contra a segurança social (atitude essa que já se vem notando desde que os transpôs para o RGIT)”- Ac. da Rel. do Porto de 27-5-2009, proc.º n.º 343/05TAVNF.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias)
Pelo contrário, a não eliminação expressa da remissão para aquele n.º6 constitui antes um indício de que o legislador não teve qualquer intenção de alterar a configuração dos crimes contra a Segurança Social.
Aliás, “mesmo que se defenda que deve ser restringida a tipicidade dos crime de abuso de confiança contra a segurança social nos mesmos termos em que o foi quanto ao crime de abuso de confiança fiscal, sempre ficará sem conteúdo a remissão para o n.º 6 do artigo 105º do GIT e, inerentemente, afirmada a presença da deficiência legislativa. Então, pretender reconstituir a intenção do legislador a partir de um lapso manifesto, afigura-se-nos constituir exercício incongruente.”- Ac. da Rel. de Coimbra de 17-6-2009, proc.º n.º 37/05.3TASEI.C1, rel. Fernando Ventura.
A não eliminação expressa da remissão para aquele n.º6, conjugada com a ausência de qualquer alteração legislativa no domínio dos crimes contra a Segurança Social, associada à falta de qualquer referência a essa pretensa aplicação do limiar de punição do abuso de confiança fiscal ao abuso de confiança contra a Segurança Social quer no Relatório do Orçamento do Estado para 2009 (relatório este que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 31º da Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto - Lei de Enquadramento Orçamental - acompanha necessariamente a proposta de lei de Orçamento de Estado), quer na discussão na generalidade da proposta de lei n.º 226/X -Orçamento do Estado (Diários da Assembleia da República I série, n.ºs 16, 17 e 18, de 5, 6 e 7 de Novembro de 2008, respectivamente; no domínio que nos interessa não houve discussão na especialidade por não ter chegado a haver inscrições para os artigos 95º e 96º daquela proposta de lei - cfr. Diário da Assembleia da República I série, n.º28, de 27 de Novembro), tudo inculca não ter sido intenção do legislador tornar extensível o referido limite de € 7500 ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
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9. Os elementos sistemático e teleológico
Não se ignorando as diversas críticas que foram formuladas ao subjectivismo dominante no século XIX (cfr. Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, cit., págs. 352-353 e A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 3ªed., Coimbra 2006, pág. 322), mas sem menosprezar aquele elemento (mens legislatoris), até porque, a este respeito, o Código Civil não consagra qualquer orientação, já que apenas refere discretamente “o pensamento legislativo” (artigo 9º, n.º1), “colocando-se deliberadamente acima da velha querela entre subjectivistas e objectivistas” (cfr. a notável comunicação à Assembleia Nacional de 26 de Novembro de 1966, do Ministro da Justiça Prof. Antunes Varela, intitulada “Do Projecto ao Código Civil”, n.º6, in BMJ n.º161, pág. 26), debrucemo-nos, agora, sobre os elementos sistemático e teleológico.
Recorda-se que “o sentido literal na maior parte dos casos não basta como critério interpretativo, precisamente porque ainda permite diversas interpretações” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, 1978, pág. 369). Na verdade, o elemento gramatical “é um elemento frágil: há palavras por vezes vagas, equívocas e bem pode suceder que o legislador tenha dito mais ou menos do que pretendia dizer. Por isso, o elemento literal é o menos importante e raramente dispensa o recurso aos elementos lógicos, a cujo resultado devemos, em homenagem ao espírito da lei, dar preferência se conflituar com o sentido literal (A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, cit, pág. 328).
A favor da tese que repudiamos, segundo a qual o limite de € 7500, do crime de abuso de confiança fiscal é igualmente aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, invoca-se a identidade dos respectivos regimes punitivos.
Como se observou no citado Ac. da Rel. de Lisboa de 25-2-2009 (proc.º n.º 102/04.4TACLD.L1-3, rel. Nuno Garcia), “Não se compreenderia (…) que prevendo agora o legislador uma menor severidade quando estão em causa quantias não superiores a €7500, se aplicasse tal alteração apenas aos crimes de abuso de confiança fiscal e não também aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, não se fazendo a identidade de punições que sempre o legislador entendeu fazer”
Não cremos, porém, que deva argumentar-se com a circunstância de “os tipos legais de crimes contra a segurança social [serem] construídos em larga medida através de remissão para os seus homónimos fiscais” (cfr. Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit., 2ªed, Coimbra, 2007, pág. 151), ou com a identidade de regime punitivo entre o crime de abuso de confiança da segurança social e o de abuso de confiança fiscal para justificar um pretenso paralelismo que a letra da lei não parece consentir.
Importa não esquecer que aqueles tipos legais são autónomos, encontram-se previstos em dois capítulos diferentes do RGIT [a circunstância de os crimes contra a Segurança Social terem sido integrados, juntamente como os crimes fiscais, num mesmo e único diploma, o que vem ocorrendo desde o Dec.-Lei n.º 140/95, de 14 de Julho, não lhes retira autonomia, nunca tendo sido seguida entre nós a técnica sugerida por Augusto Silva Dias, segundo o qual “bastava criar um número em cada um dos preceitos analisados adaptando à protecção do património da Segurança Social o regime punitivo definido para a protecção do património fiscal” (“Crimes e contra-ordenações fiscais, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinais, vol. II, Coimbra, 1999, pág. 468], e tutelam bens jurídicos distintos.
Serve de exemplo desta autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social, o diferente limite mínimo a partir do qual a conduta é punível, que no crime de fraude fiscal é de €15.000 (artigo 103º, n.º5, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 60º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro) e no crime de fraude contra a segurança social se mantém em €7500 (artigo 103º, n.º2), a consagração de um regime sancionatório contra-ordenacional especial previsto em legislação extravagante (ressalvado pelo n.º2 do artigo 1º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e reafirmado na parte final da alínea d) do artigo 1º do RGIT), a circunstância de a falta de entrega de prestação tributária igual ou inferior a €7500 constituir contra-ordenação prevista pelo artigo 114º do RGIT enquanto a falta de entrega de quotizações deduzidas à Segurança Social não constitui contra-ordenação social [acentuando este último aspecto cfr. Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit. págs.155-156; contra, mas sem razão, Costa Andrade, “O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza de um acórdão do Tribunal Constitucional”, cit., pág. 314, nota 14, o qual, porém, alterou posteriormente o seu entendimento - cfr. Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, “As Metamorfoses e Desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 17, n.º1 (2007), reproduzido in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinais, vol. III, Coimbra, 2009, págs. 333-334].
Do mesmo modo, não obstante alguma semelhança decorrente da igual conformação dos tipos de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a Segurança Social (ambos crimes omissivos puros, cuja consumação ocorre com a não entrega total ou parcial de prestações/contribuições deduzidas), e apesar da identidade de regimes punitivos até à recente Lei n.º 64-A/2008, aqueles tipos legais encontram-se previstos em dois capítulos diferentes do RGIT, são autónomos, como sempre o foram (cfr. artigo 3º do Dec.- Lei n.º 511/76, de 3 de Julho, artigo 6º do Dec.-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, artigo 46º, n.º3 da Lei n.º 28/84, de 14 e Agosto e artigo 27º-B do Dec.-Lei n.º 140/95, de 14 de Julho) e tutelam bens jurídicos distintos (sobre este último ponto cfr., v.g., Carlos Rodrigues de Almeida, Os crimes contra a segurança social, previstos no regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras, Revista do Ministério Público, nº 72, págs. 95-96 e 102, e os Ac. da Rel do Porto de 15-10-2003, proc.º n.º 0314181, rel. Borges Martins e da Rel. de Évora de 12-6-2007, rel. António João Latas, ambos in www.dgsi.pt).
Na verdade, como o STJ já teve oportunidade de salientar, “diversamente do que acontece em regra com os impostos, que constituem receitas do Estado, não afectas a fins específicos, as contribuições para a segurança social destinam-se a fins específicos da mesma, de que beneficiam apenas alguns cidadãos. Algumas das prestações sociais constituem, aliás, a contrapartida das quotizações dos trabalhadores”(Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º2/2005, in DR, 1ª Série, n.º 63, de 31 de Março de 005, pág. 2714). É o caso do sistema providencial, que abrange, para além do mais, o regime de segurança social aplicável à generalidade dos trabalhadores por conta de outrem, assente no princípio da contributividade, segundo o qual tal sistema deve ser fundamentalmente autofinanciado, tendo por base “uma relação sinalagmática directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações”-artigo 54º Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social (cfr. José Casalta Nabais, O Financiamento da Segurança Social em Portugal, in Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, pág. 638 e 642).
Por isso, como doutamente se salientou no Ac. da Rel. do Porto de 15-10-2003, proc.º n.º 0314181, rel. Borges Martins, justamente relembrado no Ac. da Rel. de Coimbra de 4-3-2009, proc.º n.º 257/03.5TAVIS.C1, rel. Jorge Raposo, ambos in www.dgsi.pt):
«É certo que os crimes contra a segurança social reportam-se a condutas paralelas ou similares às dos crimes fiscais.
Mas nos crimes contra a administração fiscal os valores tutelados são os inerentes ao regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado. O sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também, e primordialmente, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a diminuição das desigualdades entre os cidadãos - cfr. arts. 103 e 104 da CRP.
Diferentemente, nos crimes contra a Segurança Social o bem jurídico tutelado é o património (lato sensu) da Segurança Social, ou seja, como diz o recorrente [IGFSS], "a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular". Ao contrário do que acontece com as receitas fiscais, as contribuições para a Segurança Social não servem para, indistintamente, o Estado realizar os seus fins (sociais ou outros). Não são receitas do Estado, mas do recorrente (art. 25 n° 1 al. a) do Dec.-Lei 260/99 de 7-7), destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, de que não beneficiam, sequer, todos os cidadãos.»
Aliás, essa autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social tem vindo a ser acentuada pelo legislador que nas mais recentes leis de orçamento (Leis n.º 53-A/2006 e 64-A/2008) introduziu alterações restritivas nos tipos criminais de fraude fiscal e de abuso de confiança fiscal (artigos 103º e 105º do RGIT), deixando incólumes os correspondentes normativos protectores do sistema de segurança social (artigos 106º e 107º), assim procurando “manter um regime sancionatório mais exigente, conferindo-se maior eficácia à protecção dos interesses subjacentes” (Informação de serviço de 7-1-2009 do Procurador da República Dr José Luís Trindade, avalizada pelo Director do DIAP de Coimbra, Dr. Euclides Dâmaso).
Este reforço da autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social funda-se e justifica-se na necessidade premente de defesa da sustentabilidade da segurança social fortemente ameaçada, em Portugal como na generalidade dos países europeus, pelo efeito conjunto de várias situações, nomeadamente o crescente envelhecimento da população, a redução da taxa de natalidade, o aumento progressivo do período contributivo (amadurecimento do sistema) e o crescimento das pensões a um ritmo superior ao das contribuições (cfr., v.g., o “Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social”, apresentado pelo Governo aos parceiros sociais, em Maio de 2006), as quais fazem perigar a própria manutenção do Estado Social.
Assim, quanto ao crime de abuso de confiança fiscal compreende-se que, por razões de eficiência, se retirem dos tribunais, contribuindo deste modo para o seu descongestionamento, processos de natureza bagatelar por não se justificar que o Estado afecte recursos humanos e materiais na perseguição criminal de ilícitos fiscais em que a prestação não entregue é igual ou inferior a €7500, mas em que fica ressalvada a luta contra evasão fiscal (onde, de resto, se têm vindo a realizar grandes progressos), desde logo por via do procedimento contra-ordenacional (em que o valor mínimo da coima aplicável corresponde ao valor da prestação em falta, se o arguido for pessoa singular, e duas vezes esse valor, se o arguido for pessoa colectiva - cfr. artigos 114º, n.º1 e 26º, n.º1, ambos do RGIT).
Mas, a mesma justificação não colhe no que se refere ao abuso de confiança contra a segurança social no que toca à não entrega das quotizações deduzidas de valor igual ou inferior a €7500, já que o orçamento do IGFSS assenta ainda primordialmente nas receitas advenientes das contribuições resultantes dos descontos nas remunerações devidas – cfr. artigos 54º, 90º, n.º2 e 92º todos da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e Gomes Canotilho-Vital Moreira, CRP Anotada, 4ªed., vol. I, Coimbra, 2007, págs. 817- 818 e 1105-1106.
Note-se que mesmo no sistema previdencial as receitas provenientes das contribuições obrigatórias já não são suficientes para o pagamento de todas as prestações aos beneficiários, sendo cada vez mais necessárias transferências de outras rubricas orçamentais – cfr. Glória Teixeira, e João Félix Nogueira, Segurança Social - Uma perspectiva Fiscal, in Nos 20 Anos do Código das sociedades Comerciais, vol. II, Coimbra, 2007, pág. 772 e José Casalta Nabais, O Financiamento da Segurança Social em Portugal, cit., pág. 643-648; aliás, já em 2005 só foi possível assegurar o equilíbrio financeiro da Segurança Social, na parte contributiva, devido à contribuição do IVA que nesse ano o Governo decidiu que revertesse para a Segurança Social).
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10. De novo o elemento sistemático: a “unidade do sistema jurídico” (artigo 9º, n.º1 do Código Civil)
Na lição, sempre cristalina, de Castro Mendes “A ordem jurídica forma um sistema, de elementos coordenados e homogéneos entre si, não podendo comportar contradições. Daqui resulta que as leis se interpretam umas pelas outras - cada norma e conjunto de normas funciona em relação às outras como elemento sistemático de interpretação” (Introdução ao Estudo do Direito, Lisboa, 1977, pág. 361).
Ora, o entendimento segundo o qual o limite de € 7500, do crime de abuso de confiança fiscal é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constituiria um factor de grave desequilíbrio na unidade do sistema, pondo em causa, nas palavras de Baptista Machado, a “coerência intrínseca do ordenamento” (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2ªreimp., Coimbra, 1987, pág. 183).
Com efeito, passaria a existir, incompreensivelmente, um mesmo limite para a fraude e para o abuso de confiança contra a Segurança Social (€7500), enquanto que no âmbito dos crimes fiscais o limite mínimo para a fraude (€15.000) corresponde ao dobro do estabelecido para o abuso de confiança (€7500).
Por outro lado, a total impunidade da falta de entrega de quotizações deduzidas, em montante igual ou inferior a €7500, já de si incompreensível uma vez que a fixação de limites negativos de criminalidade anda associada à transformação dos respectivos factos em contra-ordenações [cfr. artigos 113º, n.º1, 114º, 118º e 119º, todos do RGIT e, na doutrina: Germano Marques da Silva, Notas sobre o regime geral das infracções tributárias, in Direito e Justiça, vol. XV, tomo 2 (2001), págs. 64-65; Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, cit., pág. 156; e Susana Aires de Sousa, Crimes Fiscais, cit., pág. 304], para além de incompatível com o propósito nacional (e europeu) de assegurar a sustentabilidade do sistema da segurança social, particularmente ameaçado em tempos de gravíssima crise económica e financeira, não teria qualquer justificação no confronto com outros comportamentos bem menos censuráveis, tipificados como contra-ordenações contra a segurança social, nomeadamente pelo Dec.- Lei n.º 64/89 de 25 de Janeiro.Como justamente se salientou no recente Ac. da Rel do Porto de 4-11-2009, rel. Maria Deolinda Dionísio:
“(…) considerando as regras que presidem ao apuramento das quantias devidas a título de cotização/contribuição à segurança social e cuja falta de entrega constitui crime [desconto de determinada percentagem (11 % - 10%) na remuneração devida aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais] e o valor médio dos salários em Portugal - veja-se que o tecido empresarial é constituído essencialmente por pequenas (senão mesmo micro) e médias empresas e que o SMN se fixa nos € 450, sendo irrisória a percentagem de trabalhadores/órgãos sociais que aufere salários de valor significativo - estaria encontrada a forma de praticamente extinguir tal tipo de crime, circunstância que se nos afigura exorbitar completamente a vontade do legislador.”
Uma última nota.
Quanto à pretensa inconstitucionalidade da interpretação que sufragamos segundo a qual o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é punível com a pena prevista no n.ºl do artigo 105° do RGIT quando o montante das contribuições não entregue à Segurança Social seja igual ou inferior a €7.500,00, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, “por conduzir a um excesso de punição (…) com consequente violação do princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade (na medida em que situações iguais eram tratadas em termos sancionatórios de forma desigual) e, portanto, por contrariarem o estatuído nos arts. 18º, n.2 e 13º da CRP” (Ac. da Rel. do Porto de 27-5-2009, proc.º n.º 343/05TAVNF.P1, rel. Maria do Carmo Silva Dias), apenas diremos que esta tese parte de um pressuposto que não aceitamos conforme acima justificámos.
Não estamos perante situações idênticas.
Para utilizarmos uma imagem impressiva sugerida pelo Ac. da Rel. de Lisboa de 13-10-2009, proc.º n.º 12323/03.2TDLSB.L1-5, rel. Nuno Gomes da Silva, a não entrega do IVA até ao montante de €7500 não tem hoje, seguramente, o mesmo significado que a não entrega das prestações deduzidas a trabalhadores de semelhante valor
Num momento em que a Pátria se confronta com mais de 500.000 de desempregados, em que se anuncia que num futuro próximo as reformas atingirão em alguns casos apenas cerca de 50% dos salários percebidos, compreende-se perfeitamente que a falta de entrega do IVA no montante de €7500 devida pela venda de um automóvel de gama alta não tenha, num Estado de Direito assente na dignidade da pessoa humana, o mesmo significado, a mesma ressonância ético-social, a mesma relevância jurídico-criminal do que a falta de entrega à Segurança Social da quantia de €7500 representativa dos descontos efectuados, durante um mês, nos salários de 150 (cento e cinquenta) trabalhadores que auferem o salário mínimo nacional.
Como justamente se assinalou no douto Ac. da Rel. do Porto de 21-10-2009, proc.º n.º 7310/02.0TDPRT.P1, relatado pelo Exmo Des. Melo Lima;
«Estando em causa, como acima se deixa referido, tipos legais autónomos que, sob diferente teleologia, pretendem tutelar bens jurídicos diferentes, o que pode coarctar o legislador na adopção das medidas adequadamente diferenciadas relativamente aos diferentes interesses subjacentes?
Como se diz no AC.242/09 de 12.05.2009 do Tribunal Constitucional:
"....cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação das regras princípios constitucionais relevantes na matéria. E, citando o Acórdão n.º1146/96 do mesmo Tribunal: “a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela'. Vindo a concluir que 'as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105° (abuso de confiança fiscal) e 107° (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção pelo legislador"
Em que é que, no caso concreto - repete-se: "numa altura em que se discute, se questiona e se pretende essencialmente assegurar e defender a sustentabilidade da segurança social, objectivo que ganhou foros de princípio fundamental do Estado Previdência e como garante de satisfação do pagamento das prestações sociais e reformas dos seus beneficiários" - na adopção e na interpretação segundo a letra da lei e os valores subjacentes à mesma ocorre uma opção inadequada, desmedida, excessiva?
Não se vê.»
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11. Conclusão
Tudo devidamente ponderado, afigura-se-nos que o limite de € 7500 a que alude o n.º 1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção que lhe foi conferida pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do RGIT.
Por isso que o despacho recorrido não possa manter-se, procedendo o presente recurso.
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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, em consequência do que revogam o despacho recorrido o qual deverá ser substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos para julgamento.
Sem tributação.