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CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
ACIDENTE DE VIAÇÃO
EXAME SANGUÍNEO
CONSENTIMENTO
Sumário
A colheita de amostra de sangue, para exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, constitui meio de obtenção da prova legalmente previsto para os casos de condutores intervenientes em acidentes de viação, quando o estado de saúde do condutor não permita a realização do exame para pesquisa de álcool no ar expirado, em momento algum a lei impondo que seja formulado um pedido expresso de consentimento de quem tem de sujeitar-se ao exame de recolha de sangue para os referidos efeitos.
Texto Integral
I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, do Tribunal Judicial de Cuba, o arguido JFG foi, por sentença depositada em 4-11-2011, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à razão diária de 10 €, isto é, na multa de 600,00 €, e na sanção acessória de 5 meses de inibição de conduzir veículos com motor.
Nessa sentença e na parte que agora interessa ao recurso, foi dado como provado o seguinte:
1. No dia 10 de Abril de 2009, pelas 22horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…..), na EM 1003, com uma taxa de álcool no sangue de 1,40g/l, tendo sido interveniente em acidente de viação, ao km 3,8, por despiste do qual resultaram para o próprio e único ocupante do veículo lesões, que implicaram que o mesmo fosse transportado para o Hospital de Beja a fim de ser socorrido e onde lhe foi efectuada recolha de sangue para despistagem da alcoolemia na condução.
2. O arguido antes de ter iniciado a condução, tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que sabia que poderias determinar uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admissível.
3. Sabia pois que naquelas condições lhe estaria vedada a condução na via pública e não obstante o ter previsto, conformou-se com aquela proibição e quis conduzir o referido veículo.
4. Não foi comunicado ao arguido que o sangue extraído se destinava a exame para detecção de álcool no sangue.
5. O arguido não consentiu na recolha de sangue que lhe foi feita no Hospital de Beja para detecção de álcool no sangue.
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Desta sentença interpôs o arguido recurso, tendo esta Relação, por acórdão publicado em 20-5-2014, considerado e decidido o seguinte, na parte que agora interessa ao assunto:
No tocante à questão de que o tribunal "a quo" não podia ter dado como provado que o arguido conduzia com uma taxa de álcool de 1,40g/l, uma vez que a interpretação que a decisão recorrida fez do art.º 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, de que a recolha de sangue, para efeitos de pesquisa de álcool em caso de acidente, não carece de ser comunicada ao arguido, nem de ser por ele consentida, é materialmente inconstitucional, por violação dos art.º 27.°, 25.° 26.°, 32.° n.º 1 e 8, 1.°, 2.° e 18.° da Constituição da República:
(…)
Não identifica o recorrente quais os segmentos destas normas que entende terem sido violadas pelo tribunal "a quo", uma vez que, suspeitamos, alguns parece não terem qualquer familiaridade com o assunto dos autos. Nós que escolhamos.
Ora bem.
Como esclarece Costa Andrade em «Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal», Coimbra Editora, 1992, pág. 127, as dificuldades na abordagem destas matérias aumentam à medida que nos aproximamos da “zona de fronteira e concorrência entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu estatuto como objecto de medidas de coacção ou de meios de prova. Nesta zona cinzenta deparam-se, não raramente, situações em que não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito de um exame, revista, acareação ou reconhecimento, admissíveis mesmo se coactivamente impostos; ou quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível auto-incriminação coerciva”.
O princípio constitucional de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa tem como conteúdo essencial a exigência de que o arguido seja tratado como sujeito e não como objecto do procedimento penal, garantindo-lhe a Constituição, com essa finalidade, não só um direito de defesa (art.º 32.º, n.º 1), a que a lei confere efectividade através de direitos processuais autónomos a exercer durante o processo e que lhe permitem conformar a decisão final do processo, mas também a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da condenação, elemento fundamental naquela perspectiva.
A importância de que se reveste a produção de prova em processo penal, enquanto superação de um modelo inquisitorial do processo e conquista basilar do processo de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal, limites que se traduzem nos conceito e regime das proibições de prova.
Em particular, quanto à liberdade de declaração do arguido, ela é analisada pela doutrina numa dupla dimensão, positiva e negativa. Pela positiva, abre ao arguido o «mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa», e, pela negativa, a liberdade de declaração do arguido veda todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção, de declarações auto-incriminatórias.
A vertente negativa (nemo tenetur se ipsum accusare) assume particular relevância em matéria de proibições de prova, não podendo o arguido ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua incriminação.
De novo com Costa Andrade: o que está em jogo “é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de auto-responsabilidade.”[1]
Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em sentença proferida em 17-12-1996 (caso Sauders v. Reino Unido), concluiu que o citado direito à não auto-incriminação se refere, em primeira linha, ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, ao direito ao silêncio, acrescentando que esse direito se não estende ao uso, em processo penal, de elementos obtidos do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, por exemplo as colheitas por expiração, de sangue, de urina, assim como de tecidos corporais com finalidade de análises de A.D.N..
E o Tribunal Constitucional Espanhol, nomeadamente a propósito da obrigatoriedade de submissão a testes de alcoolémia, afirmou que a realização dos mesmos não constitui, em si mesmo, uma declaração ou incriminação, para efeitos deste privilégio, uma vez que não se obriga o detectado a emitir uma declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa, mas apenas a tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia (STC 103/1985). E, reiterando tal doutrina, considerou em 1997 (STC 191/1997) – depois de citar jurisprudência do TEDH, onde se reconhece que o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação, embora não expressamente mencionados pelo art.º 6.º da CEDH, se situam no coração do direito a um processo equitativo e se relacionam estreitamente com o direito à defesa e à presunção da inocência – que as garantias face à auto-incriminação só se referem às contribuições do arguido de conteúdo directamente incriminatório, não tendo o alcance de se poder subtrair a diligências de prevenção, indagação ou de prova. A configuração genérica de um tal direito a não suportar nenhuma diligência deste tipo deixaria desarmados os poderes públicos no desempenho das suas legítimas funções de protecção da liberdade e convivência, lesaria o valor da justiça e as garantias de uma tutela judicial efectiva.
A doutrina dominante e uma boa parte da jurisprudência nacional e internacional de direitos humanos têm entendido que a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico no ar expirado e no sangue para efeitos de análise do grau de alcoolemia[2].
Na verdade como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa, pág. 178) "problema típico é o de saber se o direito à integridade pessoal impede o estabelecimento de deveres públicos dos cidadãos que se traduzam em (ou impliquem) intervenções no corpo das pessoas (v. g. vacinação, colheita de sangue para testes alcoolémicos, etc.), a resposta é seguramente negativa desde que a obrigação não comporte a sua execução forçada (sem prejuízo das penas em caso de recusa)".
Ora conforme decorre deste texto, parece-nos claro que, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 1997 [CJSTJ 2/97, pág.91] "o direito à integridade física poderá impedir que, contra a vontade da pessoa em causa, lhe seja extraído sangue com vista à realização do exame de que se fala; mas, neste caso, a sua tutela termina aí, dado que a falta de razão séria para tal atitude não impede que o visado sofra, por isso, outras consequências".
A necessidade desse consentimento é, pois, uma questão que não se coloca, uma vez que a lei – art.º 152.° do Código da Estrada – não faz depender tal recolha de prévia autorização do arguido o que é diferente da situação de o arguido se negar a submeter-se ao exame de pesquisa do álcool, o que acarreta sanções legais. A lei prevê a possibilidade de recusa (com consequências penais para o recusante) mas não impõe uma autorização prévia por parte do examinando. Inexiste assim, qualquer ilegalidade e, designadamente, nulidade no âmbito da obtenção de prova por inexistência da aludida advertência.
Assim e no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, entendemos que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da recolha de material biológico no ar expirado e no sangue para efeitos de análise do grau de alcoolemia. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação.
Termos em que se desatende as invocadas inconstitucionalidades.
(…)
No tocante à 2.ª das questões postas, a de que o tribunal "a quo" violou o disposto no art.º 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ao não ter investigado se foi por o arguido estar impossibilitado de ser submetido ao teste de pesquisa de álcool no ar expirado que lhe foi recolhido sangue para apuramento da taxa de alcoolemia:
Apesar de entendermos, como acima ficou expresso, que a colheita de amostra de sangue para exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, constitui meio de obtenção da prova legalmente previsto para os casos de condutores intervenientes em acidentes de viação, quando o estado de saúde do condutor não permita a realização do exame para pesquisa de álcool no ar expirado (art.º 156.º, n.º 2, do Código da Estrada) e que em momento algum a lei impõe que seja formulado um pedido expresso de consentimento de quem tem de sujeitar-se ao exame de recolha de sangue para os efeitos referidos, constata-se que, não obstante, no caso dos autos realmente não está provado nem que o exame através de pesquisa de álcool no ar expirado não tenha sido exequível, nem que não tenha sido viável informar o arguido da finalidade da recolha de sangue.
Se, não obstante ter sido conduzido ao hospital, o estado de saúde do arguido era compatível com a realização do exame através de ar expirado, o exame de sangue a que se procedeu para determinação da taxa de álcool foi realizado fora do circunstancialismo previsto no art.º 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, portanto, ilegalmente realizado e não pode ser valorado.
Na verdade, quando o exame não é feito mediante a vulgar pesquisa de álcool no ar expirado, o julgador deve ter especiais cuidados no apuramento da matéria de facto porquanto a colheita de amostra de sangue para posterior diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool está sujeito a regras específicas cujo incumprimento pode invalidar a prova obtida.
No caso em apreço, conforme resulta expressamente da factualidade apurada, a qual nesta parte nem sequer foi impugnada, ocorreu um acidente de viação que consistiu no despiste de um veículo automóvel conduzido pelo arguido.
Em caso de acidente, rege a norma especial constante do art.º 156.º, do Código da Estrada, sob a epígrafe “exames em caso de acidente”.
É o seguinte o teor daquele art.º 156.º: 1. Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153º, 2. Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool. 3. Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool. 4. Os condutores e peões mortos devem também ser submetidos ao exame previsto no n.º 2.
Conforme flúi com clareza do normativo transcrito, em caso de acidente de viação a pesquisa deve fazer-se, em primeiro lugar, mediante exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
No caso de tal não ser possível por os condutores e peões terem falecido, procede-se a colheita de sangue.
Estando os condutores e peões vivos só deverão ser submetidos a colheita de sangue quando o seu estado de saúde não lhes permitir ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
Ao contrário do que por vezes se pensa, não basta que o condutor (ou peão) esteja ferido, ou que já esteja na maca dos bombeiros ou que tenha de ser conduzido ao estabelecimento de saúde ou que já se encontre neste estabelecimento para que se torne legítima e válida a colheita de sangue.
Tal só acontece, repete-se, quando o estado de saúde do condutor não lhe permitir ser submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
Pode, pois, um condutor encontrar-se ferido, na maca dos bombeiros, prestes a ser transportado ao hospital ou até já ter sido conduzido ao hospital quando da chegada ao local do acidente das autoridades policiais e, todavia, ser perfeitamente possível o exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
Consequentemente, nestes casos importa apurar se o estado de saúde do condutor lhe permitia ou não ser submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
Não basta dizer-se, como se diz em sede de factualidade provada, que "No dia 10 de Abril de 2009, pelas 22horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula QI-31-81, na EM 1003, com uma taxa de álcool no sangue de 1,40g/l, tendo sido interveniente em acidente de viação, ao km 3,8, por despiste do qual resultaram para o próprio e único ocupante do veículo lesões, que implicaram que o mesmo fosse transportado para o Hospital de Beja a fim de ser socorrido e onde lhe foi efectuada recolha de sangue para despistagem da alcoolemia na condução".
Não é só isso que interessa apurar, mas também se, não obstante essas lesões, era ou não possível proceder a exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
É preciso alegar, para depois provar que, em consequência ou do acidente, ou do estado de embriaguez do condutor ou dos tratamentos que lhe estão a ser ministrados ou devem ser de imediato ministrados, o seu estado de saúde (em estado de coma, inconsciente, em paragem cárdio-respiratória, ou a carecer de cuidados urgentes que não se compadecem com as demoras dos procedimentos, etc.) não permite a realização do exame através do ar expirado. Casos em que, naturalmente, não é, porque não pode, ser comunicado ao arguido que o sangue extraído se destinava a exame para detecção de álcool no sangue (cfr. ponto 4 dos factos provados) e em que, portanto, realmente o arguido não consentiu na recolha de sangue que lhe foi feita no Hospital de Beja para detecção de álcool no sangue (cfr. ponto 5 dos factos provados).
Caso o tribunal não averigúe tais questões, recorrendo, se necessário ao disposto ao mecanismo previsto no art.º 358º do Código de Processo Penal (alteração não substancial) ocorre insuficiência para a decisão da matéria de facto porquanto “da factualidade vertida na decisão concernente, se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição”(Ac. do STJ de 23-10-1997, proc.º 97P318, rel. Dias Girão, também reproduzido no Ac. do STJ de 18-3-2004, proc.º n.º 03P3566, Rel. Simas Santos).
Em sede de factualidade apurada, não se encontra qualquer referência ao estado de saúde do arguido a justificar aquele exame de sangue.
Mas antes de continuarmos, vamos primeiro falar um pouco de dois princípios do nosso actual ordenamento processual penal.
São eles o princípio do acusatório e o princípio da investigação.
(…) na fase de julgamento, o princípio do acusatório é temperado pelo princípio da investigação judicial, como se constata do teor do art.º 340.º, sendo que os próprios factos da acusação podem ser alterados nos termos e condições previstas nos art.º 358.º e 359.º
O princípio da investigação (…) traduz o poder dever que incumbe ao tribunal de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão.
O poder-dever que impende sobre o tribunal de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento não impede ou limita a actividade probatória do M.º P.º, do assistente e do arguido e o seu total aproveitamento pelo tribunal, mas significa que o tribunal também não fica limitado na sua busca da verdade pela contribuição dos demais sujeitos processuais.
Definido o objecto do processo pela acusação e delimitado consequentemente o objecto do julgamento, o tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios processualmente admissíveis alcançar a verdade histórica, independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa. Contrariamente ao que sucede no processo civil, não existe ónus da prova no processo penal. O tribunal pode e deve ordenar oficiosamente toda a produção de prova que entenda por necessária ou conveniente para a descoberta da verdade.
(Neste sentido, cf., entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 10-11-99, Colectânea de Jurisprudência, 1.999, V-47; e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-12-96, Boletim do Ministério da Justiça n.º 462-286).
Posto isto, ainda que o recurso (como já acima se disse) se restrinja à matéria de direito, o tribunal ad quem deve oficiosamente certificar-se de que não existem os vícios mencionados no art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Ora um desses vícios, o contemplado na al.ª a) – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – vai, no caso dos autos, surgir na sequência da omissão de exercitação pela Senhora Juiz recorrida do princípio do investigatório de que estivemos a falar.
Este vício, como os demais previstos naquele n.º 2 do art.º 410.º, tem de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à sentença, ainda que constem do processo.
E verifica-se quando há lacuna, deficiência ou omissão no apuramento e investigação daquela matéria. Podendo e devendo fazer-se uma total reconstrução dos factos com vista à sua subsunção na concreta previsão legal, houve uma falha naquela reconstrução, o que necessariamente se repercute na qualificação jurídica dos mesmos e/ou na medida da pena aplicada, acarretando a normal consequência de uma decisão viciada por falta de base factual, a qual, por isso, não poderá ser a decisão justa que devia ter sido proferida.
Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando o tribunal deixe de investigar, podendo fazê-lo, toda a matéria de facto relevante, de tal forma que os factos declarados provados não permitam, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador.
(Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13-5-98, Colectânea de Jurisprudência dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, II-199, e de 25-9-97, Boletim do Ministério da Justiça 469-351; e acórdão da Relação de Coimbra, de 27-10-99, Colectânea de Jurisprudência, 1999, IV-68).
Foi neste vício que incorreu a decisão recorrida.
Na verdade, era obrigação do tribunal que investigasse, e isso estava manifestamente ao seu alcance, quer inquirindo as testemunhas BD e JG, ambos militares da GNR que se apresentaram no local do acidente a tomar conta do mesmo e que deveriam depor também sobre o estado de consciência ou inconsciência em que o arguido se encontrava e porque é que não lhe fizeram na altura o exame à alcoolemia com recurso ao ar expirado e, sobretudo, solicitar ao Hospital de Beja a documentação clínica existente sobre o episódio da urgência ocorrida com o arguido e proceder à identificação e audição em julgamento do médico que procedeu, no Hospital de Beja, à recolha de sangue, para o efeito de pesquisa de álcool, que até foi arrolado a fls. 93 no rol de testemunhas de defesa pelo arguido, independentemente de depois dela ter prescindido em julgamento a fls. 97, a fim de se saber por ele, conjugado com a documentação clínica fornecida, em que condições de saúde se encontrava o arguido quando lhe foi colhido sangue para exame à alcoolemia e se ele na altura não estava em condições de fazer tal exame através da expiração de ar para um alcoolímetro. E introduzir tais factos à consideração dos sujeitos processuais através do mecanismo descrito no art.º 358.º, n.º 1: «se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».
E trata-se de uma alteração não substancial, pois não se imputa ao arguido crime diverso, nem se agravam os limites máximos das sanções aplicáveis: art.º 1 al.ª f).
Após colher tais provas, ficará o tribunal "a quo" na posse de todos os elementos de facto necessários a aplicar o Direito que aqui se deixou exposto: se se fizer prova de que o arguido não estava em condições físicas de se submeter a exame de alcoolemia através da expiração de ar para alcoolímetro, o exame ao sangue que lhe foi feito para apurar do estado de alcoolemia será válido e o arguido condenado; se se fizer prova de que o arguido estava em condições físicas de se submeter a exame de alcoolemia através da expiração de ar para alcoolímetro, o exame ao sangue para apurar do estado de alcoolemia não será válido e o arguido absolvido; se já nada se conseguir apurar sobre se ele estava ou não em condições físicas fazer o teste pelo alcoolímetro, entrará em funções o princípio "in dubio pro reo".
(…)
Assim, em face do exposto e tendo em conta o teor do art.° 426.º, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em determinar o reenvio do processo para novo julgamento a fim de ser sanado o vício invocado, julgamento a efectuar pelo tribunal competente, nos termos do art.° 426.º-A do CPP.
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Na sequência deste acórdão da Relação, o tribunal "a quo" procedeu a novo julgamento parcial e proferiu a correspondente sentença, na qual e na parte que agora interessa ao recurso, manteve a condenação do arguido José Gião pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, agora à razão diária de 8 €, isto é, na multa de 480,00 €, e na sanção acessória de 5 meses de inibição de conduzir veículos com motor.
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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1ª
O arguido, aqui recorrente, foi condenado pela sentença de 28-06-2013 em 60 dias de multa à taxa diária de 8 € e em 5 meses de inibição de conduzir.
2ª
Por não se conformar com ela, interpõe da mesma o presente recurso, com os fundamentos que seguem.
3ª
O arguido considera, contrariamente ao que foi decidido na sentença, que está provado que, às 02,00h 11 Abril2009 - data da extração do sangue -, estava em perfeitas condições físicas e psicológicas para fazer o teste de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 156º nº 1 do Código da Estrada.
4ª
Por isso, vêm impugnados, os seguintes pontos da matéria de facto considerada provada na sentença:
a)" No dia 10 de Abril de 2009, pelas 22 horas, o arguido conduzia ... , com uma taxa de álcool no sangue de 1,40 g/l, " ( nº1 da matéria de facto enumerada na
Sentença);
b) "O arguido ... não estava em condições físicas de ser submetido a exame através de pesquisa de álcool expirado. " (nº 4 da matéria de facto enumerada na sentença).
5ª
Assim, deve ser corrigida a sentença, considerando-se provado que o arguido, às 02:00h 11-Abr-2009- estava em condições de fazer o teste de pesquisa de álcool no sangue, com base nas seguintes provas produzidas em sede de audiência de julgamento:
a) Declarações do arguido, gravadas em suporte digital, nas passagens que estão
entre os 00:01:36 (1 m e 36 s) e 00:02:54 (2 m e 54 s):
- Conseguia fazer o sopro
- Tinha uma perna parida em 2 sítios, a perna esquerda
- Tinha uma ferida na cabeça
- Estava em condições de fazer o sopro
- Os agentes não lhe perguntaram se estava em condições de fazer o sopro.
b) Declarações de RE, gravadas em suporte digital, nas
passagens que estão entre os 00:05:00 (5 m) e 00:05:30 (5 m e 30 s):
- Não sabe por que é que lhe tiraram sangue
- Não sabe se o arguido estava em condições de fazer o sopro ou não
- Não sabe por que é que optaram pela extração de sangue.
c) Declarações de JC, gravadas em suporte digital, nas
passagens que estão entre os 00:02:00 (2 m) e 00:03:03 (3 m e 3 s):
- Normalmente e quase sempre se faz acolheita de sangue quando é feridos
graves.
- Do caso concreto não se recorda. Da pessoa em si não.
- Só sei segundo o que consta aqui que é ferido grave.
- Segundo a lei é feita a recolha de sangue.
Entre os 00:03:16 (3 m e 16 s) e os 00:04:12 (4 m e 12 s)
- Chegam ao Hospital .
- tentamos saber se é ferido leve ou se é ferido grave.
- Primeiro temos que saber perante o médico se é ferido grave ou se não é .
- O procedimento é sempre este.
- Faço dezenas deles ao nível de todo o Distrito de Beja.
Entre os 00:04:29 ( 4 m e 29 s) e os 00:05:30 (5 m e 30 s)
- Chegam ao Hospital consoante o que o médico disser ... se for ferido grave a
bolsa é aberta.
- É entregue ao enfermeiro.
- O enfermeiro é que faz a colheita de sangue e nós presenciamos.
- O impresso é preenchido por nós.
- Esse impresso é enviado para o Instituto de Medicina Legal.
d) Declarações de JM, gravadas em suporte digital, nas
passagens que estão entre os 00:02:45 (2 m e 45 s) e 00:03:17 (3 m e 17 s):
- Estiveram à espera de saber se era ferido grave.
- Depois mais tarde veio a saber-se que era ferido grave.
- Tirámos o sangue.
- Quando é ferido grave faz-se sempre a despistagem por causa da droga.
Entre os 00:03:28 (3 m e 28 s) e os 00:05:16 (5 m e 16 s)
- Fazia parte da patrulha.
- Comandava o cabo JC.
- Não sabe precisar a que horas chegaram ao Hospital.
- Foi em 2009, já há 4 anos.
-Têm muitos casos.
-Estamos lá quase todos os dias.
- Perguntam ao médico se é ferido leve ou grave.
-Se o médico diz que é ferido grave ... tiram o sangue.
-Quem tirou o sangue foi a enfermeira.
-O impresso foi preenchido pela enfermeira.
-A enfermeira tira o sangue.
-Não se lembra se o impresso foi entregue ou não ao arguido.
- O contacto é mais com a enfermeira.
-Falam também com o médico mas pouco
e) Relatório de urgência nº 0121570550 do Hospital José Joaquim Fernandes,
nos seguintes registos:
"data da admissão
00:12h 11-Abr-2009"
RE (cirurgia geral) - às 00:25 h : "Orientado.Consciente. Ferida no coiro cabeludo com cerca de 8 cm"
AG (enfermeira)- às 01:39h 11-Abr-2009:
"doente consciente, calmo, aparentemente orientado e
colaborante dentro das suas possibilidades.
Apresenta ferida couro cabeludo, que foi suturada".
CLF (ortopedia) - às 01:51h 11-Abr-2009:
"Ortopedia: doente com capacidade para movimentar os 4 membros embora parcialmente o membro inferior esquerdo por causa de uma fractura dos ossos da perna.
Nega parestesias ou perda de forças.
Constata-se frialdade em ambos os dois pés com dificuldade em apalpar pulsos periféricos mas com bom preenchimento capilar e sem dor ao movimentar os dedos. Recupera temperatura e cor depois de alinhar a fractura e colocar tala gessada.
Dor lombar que se corresponde com uma fractura de L1 de Grau I. Suspeita de fissura de C5 pelo que mantem colar cervical.
Bacia e coxa sem alterações.
A monitorização da temperatura digital e o preenchimento capilar às 2:00Hs amostra melhoria da perfusão mas acho que deve continuar a ser observado de perto assim que chegar ao seu destino".
f) Relatório final do Instituto de Medicina Legal nº 09.001277.2
"Data e hora de colheita (dia-mês-ano) 11-04-2009 às 02 horas 00 minutos"
6ª
São estes os meios probatórios relevantes, que a sentença não ponderou e valorou, de forma racional e de acordo com as regras da lógica, da ciência médica e da experiência, pelo que foram violados os artigos 156º nº1 do Código da Estrada e o artigo 127º do Código de Processo Penal.
7ª
A apreciação e a valoração dos mencionados meios probatórios; de acordo com as regras de experiência, da ciência e da experiência; impõem que se dê como provado que o arguido estava em condições de fazer o teste de pesquisa do álcool no ar expirado.
8ª
Estando o arguido em condições de saúde para fazer o teste de pesquisa de álcool no ar expirado (artigo 156º nº1 do Código da Estrada); a colheita de sangue; feita, também, em desrespeito ao disposto nos artigos 156º nº2 do Código da Estrada e 9º da Portaria nº 902-B/2007; é abusiva e configura um meio de prova proibido, nulo, pelo que não pode ser valorado, nos termos dos artigos 1º, 2º, 266º, 25º nº1, 26ºnº1, 18º e 32º nº8 da Constituição e 126º nº 1 do C .
9ª
A colheita de sangue representa meio de prova proibido, sendo nula, porquanto:
- o arguido estava em condições de ser submetido ao teste de pesquisa de álcool no ar expirado (artigo 156º nº1 do Código da Estrada);
- não lhe foi sequer comunicado o fim da extração do sangue;
- não lhe foi perguntado se queria soprar;
- foram violados os artigo 153ºnº2 do Código da Estrada e o artigo 9º da
Portaria 902-B/2007, porque o impresso foi preenchido pelo cabo José
JC, em vez do médico, tendo a colheita de sangue sido feita à revelia
do médico;
- não foi entregue ao arguido o duplicado do impresso - artigo 9º da Portaria nº
902-B/2007;
- não foi perguntado a nenhum médico se o arguido estava em condições de
soprar;
- o sangue foi extraído pela enfermeira;
- A bolsa e o impresso não foram entregues ao médico, como determinam os
artigos 5º e 9º da Portaria nº 902-B/2007 .
- a extracção do sangue foi feito fora do controlo médico (que nem preencheu o
impresso).
10ª
A extração do sangue foi feita de forma abusiva e proibida, sendo certo que num estado de direito (artigos 2º, 18º e 266º da Constituição) , baseado na dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição) e nos direitos fundamentais, maxime, o direito à integridade física (artigo 25ºnº1 da Constituição), à liberdade e à relevância da vontade (artigo 26º nº1 da Constituição), não pode valer tudo, pelo que o exame deve ser declarado nulo, porque representa um meio de prova proibido, nulo, que não pode ser valorado, nos termos dos artigos 156º nº1 do Código da Estrada; 9º da Portaria nº 902-B/2007 de 13/8; 1º, 2º, 18º, 25ºnº1, 26º nº1 e 32º nº8 da Constituição e 126º nº1 do Código de Processo Penal.
11ª
Deve considerar-se, em consequência, que não está provada a taxa de álcool de 1,40 g/l, porque a colheita, nos termos em que o foi, é um meio de prova proibido, sendo prova nula e proibida a sua valoração.
12ª
A sentença de 28-06-2013 deve, por isso, ser revogada, porque violou os .
os artigos 156ºnºs 1 e 2 do Código da Estrada; artigo 9º da Portaria nº 902-B/207 de 13/8; 1º, 2º, 18º, 25º nº1, 26ºnº1 e 32º nº8 da Constituição; 126ºnº1, 127º do Código de Processo Penal e 292º do Código Penal e, ainda, o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido neste processo.
13ª
A sentença é, ainda, nula , nos termos dos artigos 379º nº 1 a ), 374º nº2, 368º e 369º do Código de Processo Penal, porque não enumerou os seguintes factos que resultam provados da discussão da causa:
- O sangue foi extraído pela enfermeira, sem o controlo médico, que nem
preencheu o impresso a que alude o artigo 9º da Portaria nº 902-B/2007:
- O impresso (artigo 9º da Portaria 92-B/2007) foi preenchido pelo cabo JC, comandante da patrulha, quando tinha que ser pelo médico;
-Nem o médico nem o cabo JC entregaram o impresso, depois de
preenchido, ao arguido, não obstante ele estar consciente.
14ª
Os artigos 5º e 9º da Portaria nº 902-B/2007 impõe que o impresso anexo à mesmo seja correcta e completamente preenchido pelo médico.
15ª
Pelas declarações do comandante da patrulha, cabo JC, prestadas em 14/06/2013, o arguido tomou conhecimento de que foi ele que, em substituição do médico, preencheu o impresso.
16ª
Em 17/06/2013, o arguido arguiu tal irregularidade, que foi indeferida pela
sentença de 28-06-2013, com o argumento que o incumprimento dos artigos 5º e 9º da Portaria nº 902-B/2007 é irrelevante e que a arguição é intempestiva.
17ª
A sentença de 28-06-2013 violou os artigos 5º e 9º da Portaria nº 902-B/2007;
artigos 98º 118º nº 2, 123º nº 1 do Código de Processo Penal e os artigos 2º e 266º da Constituição; pelo que deve ser declarada a irregularidade, com as legais consequências.
18ª
O arguido deve ser absolvido.
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O Ex.mo Procurador-Adjunto do tribunal recorrido respondeu, pugnando pela manutenção do decidido.
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Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1. No dia 10 de Abril de 2009, pelas 22horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…..), na EM 1003, com uma taxa de álcool no sangue de 1,40g/l, tendo sido interveniente em acidente de viação, ao km 3,8, por despiste do qual resultaram para o próprio e único ocupante do veículo lesões, que implicaram que o mesmo fosse transportado para o Hospital de Beja a fim de ser socorrido e onde lhe foi efectuada recolha de sangue para despistagem da alcoolemia na condução.
2. O arguido antes de ter iniciado a condução, tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que sabia que poderias determinar uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admissível.
3. Sabia pois que naquelas condições lhe estaria vedada a condução na via pública e não obstante o ter previsto, conformou-se com aquela proibição e quis conduzir o referido veículo.
4. O arguido apresentava-se consciente, porém, não estava em condições físicas de ser submetido a exame através de pesquisa de álcool no ar expirado.
5. Não foi comunicado ao arguido que o sangue extraído se destinava a exame para detecção de álcool no sangue, não obstante ter sido viável tal comunicação.
6. O arguido não consentiu expressamente na recolha de sangue que lhe foi feita no Hospital de Beja para detecção de álcool no sangue.
7. O arguido é sócio-gerente de uma empresa de transportes de mercadorias, auferindo um vencimento mensal de € 670,00.
8. Vive com uma companheira, empregada de escritório que aufere cerca de € 500,00.
9. A companheira está neste momento grávida de gémeos.
10. Suporta com o empréstimo para aquisição de habitação própria a quantia de € 975,00.
11. Tem de habilitações literárias o 9º ano de escolaridade.
12. Por sentença transitada em julgado em 08.07.2006, proferida no processo nº 184/04.9 PHLSR, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loures, o arguido foi condenado pela prática, em 27.01.2004, de dois crimes de coacção grave, na pena única de 22 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, a qual foi declarada extinta em 18.09.2008.
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-- Factos não provados:
Da produção da prova e discussão da causa, não resultaram factos não provados, com interesse para a decisão da causa.
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Fundamentação da decisão de facto:
O tribunal formou a sua convicção sobre os factos que são imputados ao arguido na acusação, com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, nomeadamente, no depoimento do arguido, declarações das testemunhas inquiridas em sede de julgamento, observando o comportamento e postura individual de cada uma, confrontando as suas razões de ciência com as mais elementares regras da experiência comum e da livre convicção do julgador e, bem assim, com o auto de noticia de fls. 3 e documentação clínica de fls. 363 a 381.
Concretizando:
O arguido JFG prestou declarações e quanto aos factos que importava apurar, referiu estar consciente, sendo que os militares da GNR que ocorreram ao local nada lhe falaram quanto ao teste do álcool. Estiveram presentes no local a GNR e os Bombeiros. Referiu, ainda que, após o acidente estava fora do veículo, com uma perna por baixo do mesmo. Quando chegou o INEM foi transportado para o hospital, onde lhe fizeram vários exames, não se recordando se no hospital os militares da GNR estiveram junto de si.
Relativamente ao militar BD, apresentou um depoimento espontâneo e imparcial, que o Tribunal reputou, por isso de credível. Esta testemunha esclareceu não ter conhecimento que tivesse sido comunicado ao arguido que o sangue extraído se destinava a exame para detecção de álcool no sangue ou sequer se o arguido consentiu na recolha de sangue que lhe foi feita no Hospital de Beja para detecção de álcool no sangue.
Relativamente ao estado de consciência do arguido referiu que o mesmo estava consciente e gritava com dores, sendo impossível fazer o teste ao álcool expirado uma vez que o arguido estava muito ferido, encontrando-se debaixo do veículo, e os bombeiros para o socorrerem tiveram de retirar o veículo de cima do arguido e prestar-lhe ali os primeiros socorros.
A testemunha JG, prestou um depoimento pouco esclarecedor, não se recordando do estado físico em que o arguido se encontrava e por isso nada de novo trouxe aos autos com relevância.
As declarações da testemunha BD foram conjugadas com a participação de acidente, elaborado por este militar, o auto de notícia, o resultado da análise toxicológica de quantificação da taxa de álcool no sangue, valorado nos exactos termos do previsto no nº 1 do artigo 163º do Código de Processo Penal.
No que concerne ao médico que assistiu o arguido no Hospital – Dr. RE, o mesmo começou por referir que não se recordava do arguido, porém, confrontado com o teor da documentação clínica junta aos autos referente ao dia do acidente, confirmou ter sido ele o médico responsável e que elaborou a respectiva documentação. Confrontado com a mesma referiu que dela resulta que o arguido estava consciente, contudo apresentava ferimentos graves na face e tal poderia inviabilizar o teste ao álcool expirado.
Da documentação clínica junta aos autos resulta, entre outros: “ Queixa: Vitima de acidente de ligeiro com capotamento da viatura de que resultou ferida do couro cabeludo e dor no MID. (…) Prioridade: Laranja - Muito urgente TAC (…) Observa-se hematoma epicraniano na região fronto-temporal esquerda. Suspeita-se de fractura da calote craniana, fronto-temporal esquerda. Fractura na parede externa da órbita esquerda. Fractura da metade anterior e superior do corpo da 1ª vértebra lombar, estável, sem compromisso neurológico. Suspeita de pequeno traço de fractura no 173 anterior do corpo da 5º vértebra cervical, também sem compromisso neurológico. (….) Ferida extensa da região fronto-temporal esquerda, com avulsão do retalho antero-inferior (…). Escoriações da região frontal e pavilhão auricular esquerdo. Ferida inciso-contusa da região frontal dta, infra-centimétrica, com corpo estranho – vidro (…). Dor lombar que se corresponde com uma fractura de L1 de Grau I. Suspeita de fissura de C5 pelo que mantém colar cervical. (…)”.
Ora da conjugação das declarações do médico – Dr. RE, bem como do teor da documentação clínica resulta que o arguido estava consciente, mas em condições físicas que decerto inviabilizaram a realização do teste no álcool expirado atentos os ferimentos que o mesmo apresentava, sendo que o mesmo tinha colocado um colar cervical por suspeita de fractura cervical, para além dos ferimentos que tinha na zona da face e que inviabilizaram a realização do teste ao ar expirado, assim nos ditam as regras da lógica e da experiência comum. Repare-se que em sede de triagem na chegada ao Hospital, foi atribuído ao arguido a cor Laranja, com o significado de Muito Urgente, e é do senso comum, que tal nível de prioridade no atendimento é atribuída a feridos graves.
Ainda assim, determinou-se a inquirição dos militares da GNR que se deslocaram ao hospital para realização do teste ao álcool expirado, uma vez que não foram os mesmos que chegaram ao local do acidente, sendo que tais testemunhas referiram que é procedimento habitual fazer-se a recolha de sangue quando os médicos referem que o doente está em estado grave e por isso impossibilitado de realizar o exame ao álcool expirado. A testemunha RC não se recordando do caso concreto, assegurou que sendo ferido grave e tendo tal sido comunicado pelo médico é feita a recolha do sangue.
Por sua vez a testemunha JP referiu que o arguido estava consciente, mas fisicamente muito debilitado, tendo sido o médico que lhes referiu que o arguido não estava em condições de fazer o sopro e mais tarde confirmou tratar-se de um ferido grave, daí ter-se procedido à recolha do sangue para apurar o grau de alcoolemia, sendo este o procedimento habitual.
Ambas as testemunhas prestaram depoimentos tranquilos, serenos e convictos, utilizando expressões em discurso directo, gesticulando enquanto falavam, tudo indicadores de autenticidade no testemunho, e que imprimiu genuidade aos depoimentos e por isso merecedores de credibilidade ao tribunal.
Quanto o arguido, as suas declarações no essencial não colidiram com as declarações das demais testemunhas, pois que todos referiram que o arguido estava consciente, aliás tal resulta da documentação clínica, e atendendo às declarações do médico responsável e das demais testemunhas, conjugadas com o teor da documentação clínica, donde resultam à saciedade os ferimentos que o arguido padecia na altura e, que quanto a nós permite a conclusão que o arguido não obstante estar consciente, não estava em condições físicas de proceder ao teste do álcool expirado, com o consequente juízo probatório a que se chegou.
Nesta conformidade, conforme determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, tendo em vista apurar se o arguido estava em condições físicas de fazer o teste ao álcool expirado e se foi viável informar o arguido da recolha do sangue, tais factos resultaram como provados, em sede de audiência de julgamento, conforme o supra exposto.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provado que, quando lhe foi colhido o sangue, o arguido não estava em condições físicas de ser submetido a exame através de pesquisa de álcool no ar expirado;
2.ª – Que a extracção do sangue para a exame à alcoolemia foi feita em violação do disposto nos art.º 153.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada, e 5.º e 9.º da Portaria n.º 902-B/2007, de 13-4, uma vez que:
a) O sangue foi extraído por uma enfermeira;
b) O impresso foi preenchido pelo Cabo da GNR; e
c) O arguido não recebeu o duplicado
– pelo que a prova dai resultante é nula; e
3.ª – Que a sentença é nula por falta de enumeração dos factos referidos na questão anterior, ou seja, que o sangue foi extraído por uma enfermeira, o impresso foi preenchido pelo Cabo da GNR e o arguido não recebeu o duplicado.
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Vejamos:
No tocante à 1.ª das questões, a de que foi por ter avaliado mal a prova produzida em julgamento que o tribunal a quo deu como provado que, quando lhe foi colhido o sangue, o arguido não estava em condições físicas de ser submetido a exame através de pesquisa de álcool no ar expirado:
Estabelece o art.º 1 do Regulamento de Fiscalização da Condução Sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas (Lei n.º 18/2007, de 17-5) que: 1 - A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo. 2 - A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue. 3 - A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.
Daí o interesse do arguido em ver provado que, ao contrário do estabelecido pelo tribunal "a quo", à hora em que lhe foi feita a colheita de sangue, por vota das 2H00, ele já estava capaz de soprar no alcoolímetro.
Parece pois o arguido estar de acordo que antes dessa hora, designadamente a seguir ao acidente de viação de que foi único intérprete e ocorreu pelas 22H00, viagem para o hospital, chegada ao hospital e durante todo o tempo que mediou até à altura em que lhe colheram o sangue para exame à alcoolemia, ele estaria fisicamente impossibilitado de soprar convenientemente no alcoolímetro. Constatada a existência de hematoma epicraniano na região fronto-temporal esquerda, suspeita de fractura da calote craniana, fronto-temporal esquerda, fractura na parede externa da órbita esquerda, fractura da metade anterior e superior do corpo da 1ª vértebra lombar, estável, sem compromisso neurológico, suspeita de pequeno traço de fractura no 173 anterior do corpo da 5º vértebra cervical, também sem compromisso neurológico, ferida extensa da região fronto-temporal esquerda, com avulsão do retalho antero-inferior, escoriações da região frontal e pavilhão auricular esquerdo, ferida inciso-contusa da região frontal dta, infra-centimétrica, com corpo estranho (vidro), dor lombar que se corresponde com uma fractura de L1 de Grau I e suspeita de fissura de C5 pelo que tinha aposto um colar cervical – quando lhe colheram o sangue, cerca de hora e meia antes de ser transferido de ambulância para o hospital de São José, em Lisboa… e eis que aí já estava bom para assoprar, o que pelos vistos até teria feito com gosto para evitar lhe colhessem sangue para exame à alcoolemia.
Pois.
Acontece que, não obstante tão assinalável tenacidade do arguido agora revelada, resulta do depoimento prestado em julgamento pelo médico que na urgência o atendeu, Dr. RE, que o arguido não estava efectivamente em condições físicas de, sem reprovável violência física e psíquica, poder soprar eficazmente num alcoolímetro. E não obstante o arguido asseverar que não se importava de ter suportado essa manifesta provação, a nos também nos parece bem que não o tenham feito passar por ela, tanto mais que se trata do parecer de um médico que, além de ir ao encontro da sensibilidade que sobre o assunto a experiência da vida criou, não foi refutado pelo parecer de qualquer outro profissional avalizado na matéria que por exemplo o recorrente tenha indicado – e uma vez que tanto empenho ele agora põe em ter antes soprado no alcoolímetro.
Pelo que improcede a objecção e se tem por correcta a fixação que o tribunal "a quo" fez da matéria de facto assente como provada.
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No tocante à 2.ª das questões, a de que a extracção do sangue para a exame à alcoolemia foi feita em violação do disposto nos art.º 153.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada, e 5.º e 9.º da Portaria n.º 902-B/2007, de 13-4, uma vez que:
a) O sangue foi extraído por uma enfermeira;
b) O impresso foi preenchido pelo Cabo da GNR; e
c) O arguido não recebeu o duplicado
– pelo que a prova dai resultante é nula;
Quanto a esta questão, importa distinguir entre a obtenção ou valoração de uma prova proibida e a obtenção/produção de provas permitidas, mas alcançadas sem a observância das respectivas formalidades legais.
Como refere João Conde Correia, in "Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais", 1999, Coimbra Editora, pág. 156, na primeira situação, o vício cometido é a violação de uma proibição de prova, conduzindo à eventual proibição da sua valoração. Na segunda situação, o vício cometido pode constituir causa de inexistência, de nulidade ou de mera irregularidade, consoante o teor da previsão legislativa. Ora – arredada que deve ser liminarmente a figura da inexistência –, compulsado o elenco das nulidades insanáveis e sanáveis, previstas nos art.º 119.° e 120.°, do Código de Processo Penal, resulta que a violação dos procedimentos legais para recolha, análise e armazenamento da amostra de sangue alegadas pela recorrente, não integram qualquer das situações previstas nos referidos preceitos legais, nem em qualquer outra disposição avulsa quer do Código de Processo Penal, quer de outro diploma legal.
Assim, a violação de tais procedimentos constitui mera irregularidade processual, a invocar nos termos do art.º 123.°, do Código de Processo Penal. O qual estabelece no seu n.º 1 que qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
Alega o recorrente que só teve conhecimento daquelas irregularidades através do teor do depoimento prestado na sessão de julgamento ocorrida em 14-6-2013 pela testemunha JC, militar da GNR, sendo que as invocou pelo requerimento que está a fls. 414 e entrou no processo a 17-6-2013 – logo, a arguição foi feita dentro do prazo legal para tanto estabelecido.
Mas vamos por partes.
Naquele requerimento, as irregularidades que são apontadas são as de que o comandante da patrulha não entregou, ao médico de serviço, o impresso que constitui o anexo I à Portaria n.º 902-B/2007; declarando que tal impresso é preenchido por nós e ainda que nada foi entregue ao arguido, designadamente o duplicado do referido impresso.
Ora destas irregularidades, a arguição de que nada foi entregue ao arguido, designadamente o duplicado do referido impresso (como o estabelece o art.º 9.º al.ª c) da Portaria n.º 902-B/2007) é intempestiva, porque essa falta de entrega ocorreu em 11-4-2009, de nada valendo ao arguido qualquer pretenso desconhecimento de que, segundo a lei, devia ou não receber um duplicado do mencionado impresso.
Sobra pois a de que o comandante da patrulha não entregou, ao médico de serviço, o impresso que constitui o anexo I à Portaria n.º 902-B/2007; declarando que tal impresso é preenchido por nós.
A esta irregularidade acrescentou o arguido agora no recurso mais a de que o sangue foi extraído por uma enfermeira – a qual está arguida fora de prazo (independentemente de afinal não ser irregularidade alguma porque o que o art.º 7.º da citada Portaria determina é que o médico deve providenciar a obtenção de um volume de sangue, o que é diferente de se determinar seja o próprio médico a fazer a colheita do sangue).
Assim, sobra pois a alegação de que o impresso, o anexo I, foi preenchido pelo Cabo da GNR (no requerimento de fls. 414, a 17-6-2013, dizia-se antes que o impresso não tinha sido sequer entregue ao médico de serviço…).
Tal anexo I está a fls. 399.
Da sua análise, facilmente se constata que os campos referente ao preenchimento do nome do examinando (o arguido), sua data de nascimento, domicílio, se foi interveniente em acidente e se é o condutor, bem como o do nome do hospital, a data e hora da colheita e o n.º do selo, o nome da testemunha [JC, militar da GNR] e o n.º do seu BI, estão preenchidos com uma letra manifestamente diferente – que corresponde então ao preenchimento feito pelo citado militar da GNR –, da respeitante aos campos da indicação da medicação efectuada antes da realização da colheita e após a entrada no hospital. Além de que o citado anexo I se mostra rubricado no local assinalado como assinatura do médico e está aposta a vinheta de Dr. RE.
Sendo que o art.º 9.º da Portaria estabelece que o médico que promover a colheita deve: a) Preencher, correcta e completamente, o impresso do modelo do anexo i;
b) Entregar ao agente de autoridade que requisitou o exame o original preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional.
O que com o citada norma se pretende é assegurar é a imprescindibilidade da manutenção da cadeia de custódia do sangue, ou seja e basicamente, a que não haja dúvida de que o sangue examinado com vista à averiguação da presença de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas ou à averiguação e quantificação da taxa de álcool é mesmo o extraído à pessoa à qual depois serão imputados os resultados do exame.
Para assegurar essa fidedignidade, instituiu o legislador uma série de procedimentos, os quais são, para o caso de avaliação do estado de influenciado pelo álcool, descritos nos art.º 4.º a 6.º da Lei n.º 18/2007, de 17-5, e 3.º a 10.º da Portaria n.º 902-B/2007, de 13-4.
Agora a questão é: se algum dos passos referidos neste receituário legal não for cumprido ou for cumprido de forma diferente da exactamente ali prescrita, isso afectará o valor do respectivo exame de avaliação do estado de influenciado pelo álcool em termos de fazer intervir o n.º 2 do art.º 123.º do Código de Processo Penal, caso em que daí resultaria que o mencionado exame ao sangue deixaria de ter préstimo para o fim a que se destina?
O caso restringir-se-á agora a estabelecer em que medida é que o incumprimento ou o cumprimento “defeituoso” de algum dos passos estabelecidos na mencionada Lei n.º 18/2007, e na citada Portaria n.º 902-B/2007, afectará ou não a validade do resultado obtido no exame, ou seja, a «força probatória» da prova.
E a resposta só pode ser a de que depende: se a finalidade dos procedimentos estabelecidos naqueles dois diplomas legais se destina a assegurar a inviolabilidade da cadeia da custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame, há que verificar em que medida essa inviolabilidade e essa fidedignidade foi posta em causa pelo incumprimento ou o cumprimento “defeituoso” de algum dos passos estabelecidos nos mencionados diplomas legais.
Ora não se vê como possa a inviolabilidade da cadeia da custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame serem afectados pela circunstância de não ser o próprio médico, com a sua própria mão, a preencher num formulário de requisição ao IML de um exame de alcoolemia o nome do examinando, a sua data de nascimento, domicílio, se foi interveniente em acidente e se é o condutor, bem como o do nome do hospital, a data e hora da colheita e o n.º do selo, o nome da testemunha e o n.º do seu BI, se foi depois ele, o médico, que por sua vez certificou a natureza e quantidade de medicação tomada pelo examinando antes da colheita e após a entrada no Hospital – isso sim, uma matéria importante para o resultado da alcoolemia e sobre a qual ele tem um domínio privilegiado – e ao assinar o modelo, bem como lhe apor a sua vinheta, sancionou o trabalho de amanuense a que foi poupado.
Termos em que improcede a apontada objecção.
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Posto o que se esvaziou de alcance prático a resposta que pudesse ser dada à 3.ª das questões apresentadas pelo recorrente e que era a de que a sentença é nula por falta de enumeração dos factos referidos na questão anterior, ou seja, que o sangue foi extraído por uma enfermeira, o impresso foi preenchido pelo Cabo da GNR e o arguido não recebeu o duplicado – as quais afinal não interessam para resultado prático algum.
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Assim sendo, resta repristinar aqui alguns dos considerandos que motivaram o reenvio do processo para o julgamento do qual resultou a sentença que agora está em recurso.
Com a brevidade própria dos epílogos, diremos que ao delimitar esse julgamento pelas questões que esta Relação queria ver respondidas e que eram (cf. fls. 25 do acórdão anterior):
1.ª – Se se fizesse prova de que o arguido não estava em condições físicas de se submeter a exame de alcoolemia através da expiração de ar para alcoolímetro, o exame ao sangue que lhe foi feito para apurar do estado de alcoolemia seria válido e o arguido condenado;
2.ª – Se se se fizesse prova de que o arguido estava em condições físicas de se submeter a exame de alcoolemia através da expiração de ar para alcoolímetro, o exame ao sangue para apurar do estado de alcoolemia não seria válido e o arguido absolvido; e
3.ª – Se já nada se conseguir apurar sobre se ele estava ou não em condições físicas de fazer o teste pelo alcoolímetro, entraria em funções o princípio "in dubio pro reo".
O tribunal "a quo" apurou sem mácula que se lhe possa apontar ter-se verificado a 1.ª daquelas hipóteses: fez-se prova de que o arguido não estava em condições físicas de se submeter a exame de alcoolemia através da expiração de ar para alcoolímetro, pelo que o exame ao sangue que lhe foi feito para apurar do estado de alcoolemia é válido e o arguido foi condenado.
É que, como também naquele acórdão desta Relação se considerou, (…) como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 1997 [CJSTJ 2/97, pág.91] "o direito à integridade física poderá impedir que, contra a vontade da pessoa em causa, lhe seja extraído sangue com vista à realização do exame de que se fala; mas, neste caso, a sua tutela termina aí, dado que a falta de razão séria para tal atitude não impede que o visado sofra, por isso, outras consequências".
A necessidade desse consentimento é, pois, uma questão que não se coloca, uma vez que a lei – art.º 152.° do Código da Estrada – não faz depender tal recolha de prévia autorização do arguido o que é diferente da situação de o arguido se negar a submeter-se ao exame de pesquisa do álcool, o que acarreta sanções legais. A lei prevê a possibilidade de recusa (com consequências penais para o recusante) mas não impõe uma autorização prévia por parte do examinando. Inexiste assim, qualquer ilegalidade e, designadamente, nulidade no âmbito da obtenção de prova por inexistência da aludida advertência.
(…) a colheita de amostra de sangue para exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, constitui meio de obtenção da prova legalmente previsto para os casos de condutores intervenientes em acidentes de viação, quando o estado de saúde do condutor não permita a realização do exame para pesquisa de álcool no ar expirado (art.º 156.º, n.º 2, do Código da Estrada) e (…) em momento algum a lei impõe que seja formulado um pedido expresso de consentimento de quem tem de sujeitar-se ao exame de recolha de sangue para os efeitos referidos (…)
Improcede, assim, o recurso.
IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).
Évora, 21-04-2015
(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)
João Martinho de Sousa Cardoso
Fernando Ribeiro Cardoso
Ana Maria Barata de Brito (com voto de vencida)
VOTO DE VENCIDA
Votei vencida pelas seguintes razões:
No recurso estava em causa a detecção do grau de alcoolemia em condutor interveniente em acidente de viação, condutor sinistrado mas consciente.
A minha divergência residiu, com todo o respeito, na circunstância de, em meu entender, a extracção de sangue para prova da alcoolemia não poder processar-se coercivamente, no caso presente.
Os condutores intervenientes em acidente de viação encontram-se legalmente obrigados à detecção do estado de influenciado pelo álcool.
O artigo 152º, nº 3, do Código da Estrada preceitua que os condutores e peões intervenientes em acidentes de viação “que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidos por crime de desobediência”.
Mas essa detecção processa-se de uma forma sempre legalmente vinculada.
Do artigo 153º do mesmo diploma decorre que “o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito” (nº 1); que “se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito, ou, se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele decorrentes, de que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e de que deve suportar todas as despesas originadas por esta contraprova no caso de resultado positivo” (nº 2); e que “a contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando: a) novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado; b) análise de sangue” (nº 3).
Decorre também deste artigo que “se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser conduzido, o mais rapidamente possível, a estabelecimento oficial de saúde, a fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito” (nº 5).
Por seu turno, a Lei nº 18/2007 dispõe, no seu art. 1º, que “a presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo (nº 1); a quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue (nº 2); a análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo (nº 3)”.
De acordo com o artigo 2º da mesma lei, “quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos” (nº 1); “para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário” (nº 2).
Por último, o art. 156.º do CE prevê os “exames em caso de acidente”, com a redacção seguinte:
"1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º; 2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para
posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas; 3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito ou o examinando se recusar a ser submetido a colheita de sangue para análise, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influência pelo álcool e ou por substâncias psicotrópicas. 4 - Os condutores e peões mortos devem também ser submetidos ao exame previsto no nº 2.”
Do cotejo das normas referidas do CE com a Lei nº 18/2007 resulta que a taxa de alcoolemia se pode demonstrar por teste ao ar expirado (em equipamento qualitativo, a despistagem, e em equipamento quantitativo, a prova ou a contraprova), por análise ao sangue (a prova ou contraprova) e por exame médico (a prova ou contraprova), e que existe uma obrigatoriedade de notificação do condutor após teste de alcoolemia, por escrito ou verbalmente, do resultado, das sanções legalmente decorrentes daquele resultado e de que pode, de imediato, requerer contraprova e que, caso positivo, deve suportar todas as despesas originadas por essa contraprova.
Independentemente de se tratar já de uma prova com relação estreita com a “pessoa” e o seu corpo - que pode incidir sobre o corpo (extracção de sangue) ou sobre manifestações deste (o ar expirado), o que justificaria logo procedimentos ou regras especiais à luz da lei geral (vide art. 154º do CPP) -, o direito especial rodoviário sujeita-a a formas vinculadas de aquisição e obtenção.
A lei prevê detalhadamente o modo como pode fazer-se a demonstração da alcoolemia e do seu grau no âmbito do direito estradal e obriga ainda a um dever de comunicação e informação, impondo um procedimento assumidamente transparente.
O modus de obtenção da taxa de alcoolemia para o processo traduz-se, pois, numa actividade legalmente vinculada e subtraída ao critério livre da autoridade policial ou judiciária.
E se, por um lado, o regime probatório é aqui claramente de imposição – imposição ao arguido de sujeição à verificação (através do seu sopro, do seu sangue ou do seu corpo) com ligações sensíveis ao princípio do nemo tenetur, que se encontram abstractamente resolvidas e já com a anuência do Tribunal Constitucional - pelo outro, é de uma imposição leal e transparente que se trata.
Legalidade, lealdade e transparência são, neste processo, noções indissociáveis.
Do art. 156º do CE resulta que o exame através do sangue será aqui possível perante uma impossibilidade de se proceder ao exame através do ar expirado, atento o estado físico do sinistrado. Mas desta norma não resulta a possibilidade de se proceder à extracção imediata do sangue para prova da alcoolemia sem o conhecimento do visado (ou seja, sem o esclarecimento sobre a finalidade da colheita), encontrando-se este consciente como sucedia no caso presente.
Pois se o condutor sinistrado se encontrar em condições de recusar (de manifestar uma recusa) rege o nº 3 do 156º.
Os nºs 2 e 3 do art. 156º têm de ser lido em conjunto, aplicando-se o nº 2 aos casos em que o visado não está em condições de se manifestar sobre a recolha e utilização do seu sangue para prova da alcoolemia. Ou seja, o nº 2 aplica-se aos casos de inconsciência do condutor, regendo o nº 3 para os restantes. Pois só assim faz sentido o nº 3, com a previsão do visado poder recusar a colheita.
Revertendo ao caso, e com todo o respeito, do que se tratava aqui não era apenas de decidir sobre a existência (ou exigência) de um consentimento expresso na extracção de sangue ao arguido, pois a inexigibilidade desse consentimento não esgotaria o problema da legalidade da prova por exame ao sangue de condutor sinistrado.
Tratava-se, sim, de verificar se lhe havia sido assegurada (ao arguido, condutor sinistrado consciente) a possibilidade de se manifestar sobre o exame, o que inclui a possibilidade de se lhe opor, querendo. Pois a prova da alcoolémia obtida através do sangue nunca é coerciva. O visado não pode ser sujeito, contra sua vontade e à força, à colheita de sangue.
E aceitando-se que não tenha que existir uma sua autorização expressa, tem que lhe ser assegurada, pelo menos, a possibilidade de se opor e recusar. O que pressupõe o conhecimento e o esclarecimento sobre as finalidades da colheita e sobre o destino a dar ao sangue extraído. Conhecimento que, no caso, não ficou demonstrado ter existido.
Pelo contrário, no concreto episódio de vida em apreciação – condução ao Hospital de condutor acidentado, em estado grave mas perfeitamente consciente, para ali ser medicamente assistido e tratado – a utilização do sangue nestas circunstâncias – não no tratamento e cura do paciente como tudo indicaria, mas afinal na sua incriminação em processo judicial – é um procedimento probatório ilegal nos termos que cremos ter deixado justificados, e consubstancia ainda um meio enganoso de prova.
No presente caso, a legalidade do procedimento no que respeita à obtenção da prova em causa, pressuporia a lealdade do procedimento no sentido de que ao arguido tivesse sido dado prévio conhecimento das finalidades da recolha de sangue e da sua utilização na demonstração da taxa de alcoolemia. O que não ficou demonstrado ter sucedido.
Votaria, em suma, a invalidade da prova e a absolvição.
Ana Maria Barata de Brito
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[1] Cfr. ob. cit., pág. 121.
[2] Já assim o decidimos, o ora relator e a mesma Exm.ª Desembargadora adjunta, no acórdão desta Relação de 15-11-2011, processo 103/09.6 GCBJA.E1, www.dgsi.pt.
A nível nacional e a favor: acórdãos da Relação de Coimbra de: 21-11-2007, proferido no processo 6/05.3PTVIS.C1; de 25-3-2010, processo 1828/06.3TALRA.C1; de 15-9-2010, processo 202/09.4GDLRA.C1, e de 10-11-2010, processo 35/09.8PTFIG.C1, todos acessíveis em www.dgsi.pt; contra: Benjamim Silva Rodrigues, «Da Prova Penal: A Prova Científica (…), 2009, I-128».
Assim, considerou-se no acórdão da Relação do Porto de 20-10-2010, processo 1271/08.0PTPRT, relatado pela Exm.ª Desembargadora Olga Maurício, no mesmo site: A colheita de amostra de sangue ao arguido para realização do exame a que se refere o nº 2 do art. 156º do Código da Estrada, sem ele a haver expressamente autorizado, não gera nulidade da prova por esse meio obtida.
E no acórdão da Relação de Coimbra de 14-7-2010, processo 113/09.3GBCVL.C1, relator Exm.º Desembargador Mouraz Lopes, mesmo site:
1.O condutor de veículo, desde que esteja em condições de o fazer, e podendo embora incorrer na prática de um crime de desobediência, pode recusar-se a submeter-se ao exame de detecção de álcool ou de substâncias psicotrópicas, assuma este a forma de colheita por ar expirado ou por exame ao sangue.
2 A lei não impõe ou exige que se formule um pedido expresso de consentimento de quem tem que sujeitar-se ao exame de recolha de sangue para efeitos acima referidos.
E no acórdão da Relação de Évora de 11-10-2011, processo 101/09.0GBMMN.E1, relatado pelo Exm.º Desembargador Gomes de Sousa, no mesmo site:
1 – A sujeição a exame de sangue para apuramento da taxa de alcoolemia não constitui prova proibida nem configura violação do privilégio contra a auto-incriminação.
2 - As provas existentes independentemente da vontade do acusado não dizem respeito ao direito ao silêncio e são excluídas do privilégio de não auto-incriminação. Estão neste caso os documentos obtidos em virtude de um mandado, as colheitas de ar expirado, de sangue e de urina e tecidos corporais para análise ao ADN.
3 - Excluído está, portanto, um entendimento do privilégio contra a auto-incriminação como privilégio de não contribuir “com o seu próprio corpo” para a auto-incriminação.
4 - Está, igualmente, excluída qualquer pretensão de o arguido determinar, pela sua vontade, quais as provas que contra si podem ser apresentadas, resultado a que se chegará pela aplicação de um amplo e injustificado entendimento do privilégio.